Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP00039834 | ||
Relator: | ANTÓNIO GAMA | ||
Descritores: | ADMOESTAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP200612060545599 | ||
Data do Acordão: | 12/06/2006 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REC. PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE. | ||
Indicações Eventuais: | LIVRO 239 - FLS. 141. | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | Não é obstáculo à aplicação da pena de admoestação o facto de não haver dano a reparar ou de o dano não ser quantificável. | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação do Porto: No Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Famalicão foi o arguido B………….., condenado como autor de um crime de ameaça, p. e p. pelo art.º 153º, n.º1 do Código Penal, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 4 Euros, o que perfaz um total de 160 Euros. Inconformado com a condenação recorreu o arguido rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões, que se transcrevem: A sentença violou, entre outras, as disposições legais constantes dos artºs 186º n.º1 do Código Penal, 124º, 127º e 410º n.º 2 a) e b) do Código Processo Penal. Assim de acordo com as regras da experiência comum não pode alguém ser absolvido do crime de ameaça pelo qual vem acusado por ter dirigido ao ofendido a expressão «vou-te matar» e em simultâneo, ser condenado pela prática do mesmo crime de ameaça por ter dito «vou-te fazer o mesmo a ti que fizeste ao cão». Se quanto à ameaça de morte ficou provado que a mesma não deixou qualquer receio ao ofendido de que o arguido atentasse contra a sua vida, como pode a expressão que conduziu à condenação ter provocado medo e inquietação se proferida como no caso, por alguém que nem carta de condução ou veículo automóvel possui! O arguido, ficou provado, é boa pessoa, pacata, bem comportada e todos estes atributos não foram tidos em consideração pelo tribunal na fixação da medida da pena. O ofendido com a sua conduta praticou um acto repreensível que o Mmo juiz não valorizou adequadamente atendendo ao contexto em que ocorreram os factos. Por outro lado não se pode aceitar como congruente que da sentença conste que depõem contra o arguido o mediano grau de ilicitude dos factos e a intensidade do dolo, directo e logo a seguir se diga que milita a seu favor a relativamente pequena gravidade das consequências da sua conduta, as circunstâncias em que foram praticados os factos, o facto de o arguido não ter antecedentes e as suas condições sociais e económicas. Admitido o recurso o Ministério Público respondeu concluindo pela manutenção da decisão recorrida. Neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto teve vista nos autos. Após os vistos realizou-se audiência. Nesta, e em sede de alegações, não foram suscitadas novas questões. Factos provados: 1- No dia 21 de Janeiro de 2005, pelas 17.30 h., na Rua ……, em …., Vila Nova de Famalicão, o arguido travou-se de razões com o ofendido C…………, por motivos relacionados com ferimentos causados, por este último e por atropelamento, num cão pertencente ao arguido; 2- Então, o arguido dirigiu ao ofendido, em tom grave e sério, pelo menos, a seguinte expressão: “vou-te fazer o mesmo a ti que fizeste ao cão”; 3- A expressão proferida pelo arguido causou inquietação e medo ao ofendido, atendendo às circunstâncias e ao modo como foram proferidas, deixando-o com receio que o arguido qualquer dia atente contra a sua integridade física; 4- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de convencer o ofendido que viria a efectivar o mal prometido, perturbando-o no seu sossego e tranquilidade; 5- Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei; 6- O arguido não tem antecedentes criminais; 7- É casado e tem três filhos, sendo dois ainda menores e a seu cargo; 8- Exerce a actividade de trolha, auferindo cerca de 496 Euros mensais e a esposa é doméstica; 9- Vive com a esposa e os filhos em casa própria, adquirida com recurso ao crédito bancário, pagando mensalmente por tal cerca de 106 Euros; 10- Tem como habilitações literárias a 4ª. classe; 11- É considerado pelas pessoas das suas relações como boa pessoa, pacato e bem comportado. Factos não provados: - Não provado que os factos referidos em 2. tenham ocorrido na sequência da discussão que se gerou entre ambos; - Não provado que aquando dos factos referidos em 2. o arguido tenha também dito que “o cão tem a perna partida” e “vou-te matar”; - Não provado que a expressão tenha deixado o ofendido com receio que o arguido atentasse contra a sua vida. Motivação: Para formar a sua convicção relativamente aos factos provados, baseou-se o tribunal, para além do correlacionamento de toda a prova produzida: - nas declarações prestadas pelo arguido, apenas no que concerne à sua actual situação social, familiar e económica, única parte credível; - nas declarações do ofendido, o qual descreveu, na parte em que mereceu igualmente alguma credibilidade, face à demais prova produzida, aquilo que sucedeu consigo, referindo, designadamente e em síntese, que o cão se atravessou na frente do seu veículo e ficou a ganir, tendo depois o arguido, para além de o insultar, dito que lhe ia fazer a mesma coisa que ao cão; - nos depoimentos das testemunhas inquiridas, sendo que D……….., assistiram aos factos, descrevendo a forma como ocorreram e o que ouviram, prestando depoimentos que se revelaram sinceros e credíveis; E…………., esposa do arguido e que ia inicialmente com ele, disse que o marido veio depois do atropelamento para baixo, discutir com o ofendido, e quem ouviu o que ele disse foram os dois homens que lá estavam (as anteriores testemunhas referidas); e, F…………, pessoa das relações do arguido e que atestou o seu habitual bom comportamento; e, - no teor dos documentos juntos de fls.38, 77 a 80 e 81. Relativamente aos factos não provados, baseou o tribunal a sua convicção negativa na ausência de prova credível e segura nesse sentido produzida em audiência. O Direito: A censura do recorrente tem duas dimensões críticas, por um lado sindica a matéria de facto, por outro discorda da condenação e respectiva medida, sustentando neste particular, que devia ter sido dispensado de pena, nos termos do art.º 186º n.º1 do Código Penal. Quanto à crítica relativa à matéria de facto a mesma espelha alguma confusão, ou erro de interpretação do recorrente. Assim, não corresponde à verdade que a sentença «absolveu o arguido do crime de ameaça por ter dirigido ao ofendido a expressão «vou-te matar» e, em simultâneo, condenou o arguido pela prática do mesmo crime de ameaça por ter dito «vou-te fazer o mesmo a ti que fizeste ao cão». Se o recorrente tivesse lido com algum cuidado e ponderação a factualidade assente e não provada, concluiria que a Ex.ma juíza considerou não provado «que o arguido tenha dito “vou-te matar”», assim como também considerou não provado que «a expressão tenha deixado o ofendido com receio que o arguido atentasse contra a sua vida». Só por imperdoável distracção é que perante o acabado de referir se pode argumentar que o tribunal desconsiderou a ameaça «vou-te matar» e deu relevo a «vou-te fazer o mesmo a ti que fizeste ao cão». O que aconteceu, repete-se, é que não se apurou que o recorrente proferiu a ameaça vou-te matar. Consequentemente, não se provando essa afirmação, a conclusão lógica é a de que não se apurou também que o ofendido ficou com receio, por causa dessa afirmação. Não aponta o recorrente qualquer outro vício à factualidade assente e o certo é que, lendo e relendo esse segmento da decisão recorrida, os factos não provados e a motivação, concluímos que a mesma não padece de qualquer vício pelo que a consideramos definitivamente como assente. Não se vislumbra sequer a, simplesmente alegada, violação dos artºs 124º, 127º e 410º n.º 2 a) e b) do Código Processo Penal. Em sede de dispensa de pena cumpre referir que o recorrente mais uma vez se distraiu. O instituto da dispensa de pena revela que as finalidades da aplicação desta são exclusivamente preventivas: quando não exista necessidade de tutela de bens jurídicos nem de evitar que o agente volte a cometer crimes a pena não deve pura e simplesmente ser aplicada(1). O instituto da dispensa de pena tem consagração na parte geral do Código Penal, art.º 74º do Código Penal, constituindo o art.º 186º um seu desenvolvimento específico, na parte especial, a propósito dos crimes contra a honra. Outras manifestações do princípio na parte especial encontram-se v.g. nos artºs 143º n.º3, 148º n.º2, 250º n.º3, 286º, 294º, 372º n.º 2, e 373º n.º 3, do Código Penal. Daí uma primeira constatação: não tendo o arguido sido condenado por crime contra a honra, mas pela prática de um crime contra a liberdade pessoal, p. e p. pelo art.º 153º do Código Penal, é deslocada a invocação da disposição especial do art.º 186º do Código Penal. Vejamos, então, se será caso de aplicação do instituto da dispensa de pena com consagração geral no art.º 74º do Código Penal. A doutrina(2) assinala ao instituto a finalidade de resolver casos de bagatelas penais, em que se verificam todos os pressupostos da punibilidade mas em que se não justificaria a aplicação de qualquer sanção penal, já que tanto não seria exigido pelos fins das penas. Numa palavra aplica-se aos casos de falta de dignidade punitiva do facto concreto. A aplicação do instituto da dispensa de pena está dependente da verificação simultânea de quatro requisitos, art.º 74º n.º1 do Código Penal: pena aplicável [pena abstracta e não a pena concreta] não superior a 6 meses de prisão, ou só com multa não superior a 120 dias; Ilicitude do facto e culpa do agente diminutas; Reparação do dano; Falta de oposição de exigências de prevenção. Se prima facie o caso dos autos é uma bagatela penal, a limitação legal feita no art.º 74º n.º1 do Código Penal – crime punível com pena de prisão não superior a 6 meses, ou só com multa não superior a 120 dias - afasta a sua hipotética consideração, já que o crime de ameaças do art.º 153º n.º1 do Código Penal, não é punível só com multa, mas com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. Próxima da dispensa de pena e com ela mantendo, v.g., quanto aos requisitos de aplicação, alguns pontos de contacto está outro instituto jurídico: a pena de admoestação(3). A consideração da sanção admoestação, apesar de não requerida, filia-se no entendimento de que o art.º 60º n.º1 do Código Penal ao admitir a possibilidade de aplicação de admoestação – pode o tribunal – não confere um verdadeiro poder ou faculdade, mas antes um poder dever, uma faculdade vinculada à verificação dos respectivos pressupostos formais e materiais(4). Tem a admoestação carácter puramente simbólico. Apesar desse carácter meramente simbólico não pode ser proferida antes de transitada a decisão condenatória que a manda aplicar, sob pena de perder utilidade o recurso interposto dessa decisão. São pressupostos da sua aplicação: Pressuposto formal: que o tribunal tenha fixado em concreto para o crime uma pena de multa em medida não superior a 120 dias, art.º 60º do Código Penal. Pressuposto material: desde que o dano tenha sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, art.º 60º n.º2 do Código Penal. Em regra, obsta a aplicação da admoestação a circunstância de o agente, nos três anos anteriores ao facto, ter sido condenado em qualquer pena, admoestação incluída, art.º 60º n.º3 do Código Penal. No caso foi aplicada pena de 40 dias de multa pelo que se verifica o pressuposto formal, sendo certo que o arguido não tem antecedentes criminais. O dano em questão sofrido pelo ofendido é de natureza psicológica, já que está em causa a liberdade de decisão e de acção, dano que por natureza não é quantificável, apesar de poder ser compensado. De facto, os danos não patrimoniais, embora insusceptíveis de uma verdadeira e própria reparação, porque inavaliáveis pecuniariamente, podem ser, de algum modo, compensados(5). Poderá então ser aplicável pena de admoestação? Numa primeira abordagem vislumbramos duas saídas extremas: ou se considera que, nestes casos, dada a natureza não reparável do dano é insusceptível de aplicação a pena de admoestação; ou se entende que, como a impossibilidade de reparação não é da responsabilidade do arguido, não pode ele ser prejudicado, pelo que, a falta de reparação não pode funcionar neste casos como obstáculo a aplicação da admoestação. Analisando a questão com algum detalhe somos levados a afirmar que a prévia reparação do dano, em princípio, só é possível nos crimes de resultado, lesão ou dano, sendo que, mesmo nestes crimes, casos há em que é difícil, senão impossível, quantificar previamente o dano, caso do dano não patrimonial. Sendo o crime de ameaça um crime de perigo as dificuldades são acrescidas. Como pode o arguido reparar previamente o dano? Temos para nós que a solução se encontrará numa consideração global de todos estes problemas. O questionado pressuposto material da aplicação da pena de substituição admoestação - prévia reparação - tem de ser analisado e apreciado tendo em vista o concreto crime. Se estamos perante um crime de dano ou de resultado em que o prejuízo resulta de uma pura operação aritmética, não resta dúvida que é exigível ao arguido a prévia reparação; se a reparação não ocorreu não pode ser aplicada a pena de admoestação. Agora pode acontecer que não exista um dano a reparar, ou que esse dano não seja quantificável. Nesses casos e naqueles em que não depende do arguido a quantificação do dano, v.g. dano não patrimonial, em processo que não foi deduzido pedido de indemnização, parece-nos que não existe obstáculo a que se aplique uma admoestação, desde que verificados os demais pressupostos. Nestes casos a ênfase terá que ser posta na viabilidade de um juízo de prognose favorável à ressocialização e ainda em que a aplicação da admoestação não ponha em causa os limiares mínimos de expectativas comunitárias ou de prevenção de integração. Nos casos de dano de natureza não reparável, em que ao arguido não é possível, mesmo que o pretenda, proceder à reparação, temos como razoável desconsiderar o requisito da reparação, verificados os demais pressupostos de aplicação da admoestação(6). Neste sentido parece-nos apontar Damião da Cunha ao afirmar que esta reparação do dano não se tem de configurar como mero contributo patrimonial ou real(7), antes como uma espécie de remoção do dano. Volvendo a nossa atenção ao caso dos autos temos que de relevante se apurou que o arguido não tem antecedentes criminais; é casado e tem três filhos, sendo dois ainda menores e a seu cargo; exerce a actividade de trolha, auferindo cerca de 496 Euros mensais e a esposa é doméstica; vive com a esposa e os filhos em casa própria, adquirida com recurso ao crédito bancário, pagando mensalmente por tal cerca de 106 euros; tem como habilitações literárias a 4ª. classe; é considerado pelas pessoas das suas relações como boa pessoa, pacato e bem comportado. Importa não olvidar que o arguido actuou «a quente» em acto seguido ao atropelamneto do seu cão. Este quadro, tanto mais que o arguido conforme se apurou é considerado pelas pessoas das suas relações como boa pessoa, pacato e bem comportado, permite concluir por uma culpa diminuta, pois o arguido terá agido em consequência, em acto imediato, e afectado pelo evento que presenciou – o atropelamento do seu cão - que o terá perturbado e revoltado. A imagem global fornecida pelos autos e a da falta de dignidade punitiva do facto, ligada à inexistência de razões preventivas que imponham uma punição, aconselha a que ao arguido se faça a censura mínima, a aplicação da pena de admoestação: censura solene feita oralmente ao arguido em audiência pública pelo tribunal, art.º 60º n.º4 do Código Penal, de forma a que se não confunda com alocução referida no art.º 375º n.º2 do Código Processo Penal, art.º 497º n.º3 do Código Processo Penal, a levar a cabo na 1ª instância. Decisão: Na parcial procedência do recurso aplica-se ao arguido a pena de substituição de admoestação, a proferir oportunamente no tribunal recorrido. Sem tributação. Boletim à D.G.A.J. Porto, 8 de Dezembro de 2006 António Gama Ferreira Ramos Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva Arlindo Manuel Teixeira Pinto __________ (1) F Dias, O instituto da dispensa de pena: algumas notas, RLJ, 123º 203 e Direito Penal Português, 1993, pág. 324. (2) F Dias, O instituto da dispensa de pena: algumas notas, RLJ, 123º, p. 196, Maia Gonçalves, Código Processo Penal anotado, comentário ao art.º 74º. (3) Quanto á natureza desta pena, pena de substituição, pena alternativa, Damião da Cunha, Não punibilidade e dispensa de pena, RPCC, 15º (2005), p. 251, não deixa de ter alguma razão ao sustentar que embora prevista na PG, é uma verdadeira pena alternativa, na medida em que a opção em seu favor não implica a determinação da pena principal. Agora também não deixa de ser exacto que a admoestação pode ser a pena de substituição quando ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 120 dias, o que pressupõe senão uma completa determinação da pena pelo menos a opção pela multa e em montante não superior a 120 dias. (4) F Dias, Direito Penal Português, 1993, pág. 388. (5) Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed. 502. (6) Acórdão da RL de 12 de Maio, de 1998, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIII, Tomo III, P. 143, que entendeu não impedir a aplicação de admoestação a inexistência de qualquer dano a reparar. (7) Não punibilidade e dispensa de pena, RPCC, 15º (2005), p. 251. |