Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
437/17.6GAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA NATÉRCIA ROCHA
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
REGIME
Nº do Documento: RP20200115437/17.6GAVNG.P1
Data do Acordão: 01/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Deve ser aplicado o regime legal relativo ao período de suspensão da execução da pena de prisão, vigente na data da prática dos factos se o regime posterior é concretamente mais desfavorável ao arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 437/17.6GAVNG.P1
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia – J3– Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 437/17.6GAVNG a correr termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia (J3) foi julgado e condenado o arguido B… pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art.º 203.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, acompanhada de regime de prova.

Desta decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 213/215 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das conclusões seguintes (transcrição):
1. Foi o arguido condenado pela prática de um crime de furto simples, p. e p. pelo art. 203º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, acompanhada de regime de prova;
2. Ora, é com a aludida duração da suspensão da execução da pena de prisão que se não pode concordar.
3. Na verdade, atendendo à redação do artigo 50º, n.º 5, do Código Penal à data da prática dos factos em causa nos autos, a suspensão da execução da pena de prisão deveria ter sido fixada pelo período de 1 ano – precisamente, a duração da pena concretamente aplicada e com a qual se concorda.
4. Com efeito, ao abrigo do disposto no artigo 2º, n.º 1, do referido Código, “as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem”; ora, tendo os factos ocorrido 21/06/2017 e tendo a atual redação do artigo 50º, n.º 5, que permite ao juiz fixar a suspensão da execução da pena de prisão num período entre 1 a 5 anos entrado em vigor a 21/11/2017, o prazo da suspensão da execução da pena de prisão deveria ter sido fixado ao abrigo da lei em vigor à data da prática dos factos – ou seja, de 1 ano, atenta a pena concretamente aplicada;
5. Não podendo sequer dizer-se que o regime em vigor atualmente é mais favorável ao agente (nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2º, n.º 4, do Código Penal), pois que uma pena de prisão suspensa na sua execução por um ano é, indubitavelmente, menos gravosa para o arguido do que uma pena de prisão suspensa por 2 anos.
6. Pois que o agente fica mais tempo “à prova”.
7. Ao não decidir do modo descrito, violou o Tribunal a quo as disposições legais previstas nos artigos 2º, nºs 1 e 4 e 50º, n.º 5, ambos do Código Penal, pois que ao aplicar a última citada norma do modo em que o fez (aplicando o regime atualmente em vigor) decidiu contra o que resulta do legalmente estabelecido.
Termina pedindo seja o presente recurso julgado procedente e, em consequência, seja revogada a sentença proferida, sendo substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de furto simples, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra a fls. 227/229 dos autos, pugna pela procedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais veio a ser acrescentado.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II- Fundamentação:
Fundamentação de facto
a) São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª Instância:
1. No dia 21 de junho de 2017, pela 01h30m, o arguido dirigiu-se à rua …, …, Vila Nova de Gaia, onde se encontrava estacionado, junto ao nº de polícia …, o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca Renault, modelo …, com a matrícula ..-..-ZE, propriedade de C….
2. Aí chegado, o arguido abeirou-se do aludido veículo automóvel e arrancou o espelho retrovisor esquerdo, no valor de € 43,90, ausentando-se do local, levando consigo o espelho retrovisor, fazendo-o seu.
3. Ao atuar como se descreve, o arguido agiu de forma livre e com o propósito concretizado de fazer seu o referido espelho retrovisor, integrando-o no seu património, o qual sabia não lhe pertencer, atuando contra a vontade e em prejuízo do ofendido, o que representou.
4. O arguido sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei penal.
5. O arguido é pedreiro, estando, atualmente, de baixa médica e a receber cerca de € 300,00 mensais. A esposa é doméstica. O casal paga € 150,00 de renda de casa.
6. O arguido foi condenado:
- em 1994, neste Tribunal, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos;
- no mesmo ano e no mesmo Tribunal, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos;
- no mesmo ano e no mesmo Tribunal, pela prática de um crime de furto e um crime de introdução em lugar vedado ao público, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos;
- no mesmo ano, no Tribunal Judicial de Espinho, pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos;
- no mesmo ano e neste Tribunal, pela prática de um crime de furto qualificado e um crime de introdução em lugar vedado ao público, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos;
- no mesmo ano e no mesmo Tribunal, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, na pena de 8 meses de prisão (que foi declarada perdoada);
- em 03.12.1996, no mesmo Tribunal, pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, na pena de 10 meses de prisão;
- em 12.04.1996, no mesmo Tribunal, pela prática de um crime de homicídio, na pena de 18 anos de prisão (pena esta que veio a ser cumulada com a aplicada pela prática de um crime de ofensa à integridade física, vindo a ser fixada a pena única de 20 anos de prisão, declarada extinta a 06.01.2014, com efeitos reportados a 15.09.2011);
- em 11.07.2007, no mesmo Tribunal, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa;
- em 06.01.2009, no mesmo Tribunal, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa.
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Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a causa.
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Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).
A única questão que cumpre apreciar prende-se com a duração do período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada, nomeadamente saber se o regime previsto à data da prática dos factos pelos quais o arguido foi condenado é o concretamente mais favorável ao arguido.
Vejamos.
Alega o Ministério Publico recorrente que a sentença recorrida viola o disposto no art.º 2.º, n.ºs 1 e 4 e art.º 50.º, n.º 5, ambos do Cód. Penal, porque ao condenar o arguido pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art.º 203.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, acompanhada de regime de prova, não fez a adequada aplicação da lei em vigor à data da prática dos factos, sendo que esse era o regime concretamente mais favorável ao arguido.
No que concerne à questão da suspensão da execução da pena de prisão, no que agora importa, a sentença recorrida decidiu:
“(…). Nesta conformidade, e tomando em consideração todas as circunstâncias concretas do caso atrás enunciadas, entendemos ser justo e adequado aplicar ao arguido a pena de 1 ano de prisão.
O artigo 45º do Código Penal preceitua, no seu nº 1, que “a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes”.
Considerando que o arguido já sofreu, como se disse, condenações anteriores pela prática, entre o mais, de crimes contra o património e contra as pessoas e cumpriu uma pena de 20 anos de prisão, extinta em 2014, o Tribunal entende que as referidas condenações não lhe serviram de qualquer advertência para manter um comportamento conforme ao direito e, consequentemente, que a execução da prisão se impõe pela necessidade de prevenir a realização de novos crimes.
Todavia, nos termos do artigo 50º, n.º 1 do Código Penal “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão é que esta não seja superior a cinco anos.
Pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da pena, acompanhadas ou não da imposição de deveres e/ou regras de conduta e/ou regime de prova, são suficientes para realizar as finalidades da punição. Para a realização de tal juízo o tribunal atenderá à personalidade do agente, às condições da sua vida e à sua conduta anterior e posterior aos factos.
Tendo presente o que acaba de referir-se, e atendendo, por um lado, a que o arguido está familiarmente integrado e, por outro lado, a que as condenações pela prática de crimes contra o património são muito antigas (datam de 1994 e 1996), sendo a pena de prisão cumprida pelo arguido mais recentemente pela prática de crimes que, embora graves, são de natureza completamente diferente (e não esquecendo ainda que os factos aqui em causa não são especialmente graves) – pelo que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente para o afastar da prática de novos crimes (desta natureza) -, o Tribunal entende suspender a execução da pena de 1 ano de prisão aplicada ao arguido por um período de 2 anos, nos termos do artigo 50º, nºs 1 e 5 do Código Penal.
A suspensão será, nos termos do artigo 50º, nº 2 e 53º, nºs 1 e 2 do Código Penal, acompanhada de regime de prova. O regime de prova visa assegurar a efetiva integração dos condenados na sociedade, assentando numa ideia de assistência e vigilância, que consideramos ser importante no caso concreto por forma a garantir, tendo em conta o seu passado criminal, que o arguido não repete atos desta natureza. (…)”.
Analisando a sentença recorrida esta procedeu à aplicação ao caso concreto do disposto no art.º 50.º, n.º 5, do Cód. Penal, atualmente em vigor, e na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 94/2017, de 23.08, que estipula que “O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos”.
Assim, de acordo com o regime atualmente em vigor, pode o julgador, se o entender mais adequado às circunstâncias do caso concreto, fixar a suspensão da execução da pena de prisão em período mais longo do que a pena concretamente fixada, no intuito de, durante um período mais longo, o condenado interiorizar os valores ético-jurídicos vigentes.
Contudo, de acordo com a matéria de facto considerada provada, a prática dos factos pelos quais o arguido foi condenado ocorreram a 21 de junho de 2017 (cf. facto provado n.º 1).
O art.º 50.º, n.º 5, do Cód. Penal, vigente à data da prática dos factos, determinava que “O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão”.
Ora, de acordo com tal normativo, tendo a pena concretamente aplicada no caso em análise sido fixada em 1 (um) ano, a suspensão da execução da pena de prisão teria que ser fixada pelo período de 1 (um) ano.
A suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição em sentido próprio, uma vez que que o seu cumprimento é feito em liberdade e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão, em lugar da qual é aplicada e executada.
Tem como pressuposto formal da sua aplicação que a medida da pena imposta ao agente não seja superior a cinco anos de prisão e como pressuposto material a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele, em que o tribunal conclua que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as respetivas circunstâncias, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal).
O juízo de prognose favorável reporta-se ao momento em que a decisão é tomada e pressupõe a valoração conjunta de todos os elementos que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, no sentido de que irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando o eventual cometimento de novos crimes prevenido com a ameaça da prisão, daí se extraindo, ou não, que a sua socialização em liberdade é viável.
A aplicação desta pena de substituição só pode e deve ter lugar quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, como decorre do mencionado art.º 50.º do Código Penal. Circunscrevendo-se estas, de acordo com o art.º 40.º do Código Penal, à proteção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, é em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas – prevenção geral e especial – que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa.
No caso concreto em análise, o Tribunal a quo entendeu (e bem, a nosso ver), suspender a execução da pena de prisão aplicado ao arguido.
Contudo, no que concerne à fixação da duração dessa suspensão, e atendendo à alteração da disposição penal contida no n.º 5 do art.º 50.º, o Tribunal a quo estava obrigado ao disposto no art.º 2.º, do Cód. Penal, nomeadamente no que concerne à ponderação a efetuar sobre o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente.
Se o disposto no art.º 2.º, n.º 1, do Cód. Penal, determina que “As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto o do preenchimento dos pressupostos de que dependem”, o disposto no n.º 4 do mesmo normativo legal estipula que “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; (…)”.
Considerando o caso concreto, o período mais curto de suspensão mostra-se mais favorável ao arguido, porque mais depressa ele se vê liberto da ameaça de prisão. Assim, o regime penal em vigor à data da prática dos factos é mais favorável ao arguido do que o atualmente em vigor, pois prevê que o arguido apenas esteja “sob a ameaça de prisão” durante um ano, período de duração igual ao da pena de prisão determinada pela sentença recorrida, ao contrário do regime atualmente em vigor aplicado pelo Tribunal a quo que estipulou o período de dois anos para a suspensão da execução da pena de prisão de um ano aplicada.
Assim, a pena de prisão de um ano concretamente aplicada ao arguido pelo Tribunal a quo tem que ser suspensa na sua execução pelo período de um ano, já que foi esse o tempo que lhe foi concretamente fixado, por força do disposto no art.º 50.º, n.º 5, do Cód. Penal vigente à data da prática dos factos imputados ao arguido e do disposto no art.º 2.º, n.ºs 1 e 4, ambos do Cód. Penal.
Considerando tudo quanto se deixa exposto, procede o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a sentença recorrida na parte em que fixou o período de dois anos de suspensão da execução da pena de um ano de prisão aplicada ao arguido, que será substituída por outra que determina o período de 1 (um) ano de suspensão da execução da pena de 1 (um) ano de prisão aplicada ao arguido.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte que se refere à duração do período de suspensão da execução da pena, que se substitui por outra que fixa o período de 1 (um) ano de suspensão da execução da pena de 1 (um) ano de prisão aplicada ao arguido B…, mantendo-se o demais determinado naquela sentença.
Sem custas.

Porto, 15 de janeiro de 2020
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Paula Natércia Rocha
Élia São Pedro