Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1358/09.1TAPVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
COISA MÓVEL
Nº do Documento: RP201111091358/09.1TAPVZ-A.P1
Data do Acordão: 11/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Preenche o tipo objectivo do crime de abuso de confiança a conduta de quem se apropria, entregando-o a terceiro, em pagamento de uma dívida, de um estabelecimento comercial adquirido com reserva de propriedade para o alienante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)
- no processo n.º 1358/09.1TAPVZ-A.P1
- com os juízes Artur Oliveira [relator] e José Piedade,
- após conferência, profere, em 2 de novembro 2011, o seguinte
Acórdão
I - RELATÓRIO
1. No processo comum (tribunal singular) n.º 1358/09.1TAPVZ, do 1º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal da Comarca de Póvoa de Varzim, em que é assistente B…….., LDA. e são arguidos C…… e OUTRO, após despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, foi proferida decisão instrutória que pronunciou os arguidos pela “prática de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 1 e 4, alínea b), por referência ao artigo 202.º, alínea b), ambos do Código Penal” [fls. 310 dos presentes autos que integram certidão do processo principal].
2. Inconformada, a arguida recorre, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões [fls. 357-360]:
«1-Resulta do despacho que aqui se sindica, um erróneo enquadramento jurídico para a pronuncia da arguida/recorrente.
2. O contrato de trespasse celebrado e ao qual foi aposta clausula de reserva de propriedade nunca podia/deveria originar a pronúncia da recorrente, pelo crime de abuso de confiança qualificada p. e p no artº 205
3-Não obstante, o Mº Juiz de Instrução entendeu não colher os argumentos apresentados pela digníssima procuradora, no despacho de arquivamento, findo o inquérito.
4- Entendeu que arguidos fizeram seu o referido estabelecimento de restauração, bem como todos os seus elementos, pese embora soubessem que não lhes pertenciam, apropriando-se dos mesmos e dando-os como forma de pagamento de uma divida.
5- Não se pode aceitar tal raciocino, desde logo porque os fundamentos apresentados, salvo o devido respeito, estão completamente desfasados da realidade pelo que nunca deveriam ter originado o despacho de pronúncia que originaram.
6- Fêz-se uma errónea interpretação do artº 205 º do Código de Penal, bem como se configura como abusiva, sendo até mesmo arbitrária a conclusão colhida relativamente ao sentido e alcance da clausula de reserva de propriedade constante do contrato de trespasse celebrado – venda a titulo definitivo do estabelecimento de restauração – ; não foram igualmente tidas em consideração as normas constantes dos artsº 879º e 886º ambos do Código Civil.
7- Pelo que a aqui recorrente nunca deveria ter sido pronunciada pelo crime de abuso de confiança qualificada.
8- Desde logo porque o estabelecimento comercial sendo composto por um todo unitário, do qual fazem parte bens corpóreos e incorpóreos não integrará assim o conceito de coisa móvel constante do artº 205 nº1 do Código Penal.
9- Assim como também entendemos – contrariamente ao entendimento do Mº Juiz de Instrução – que a natureza da clausula de reserva de propriedade constante no contrato de trespasse, se consubstancia no reforço da garantia no cumprimento de uma obrigação, – tal qual pagamento do preço - não colidindo ou impedindo a transmissão do estabelecimento a titulo definitivo, podendo contudo o contrato de trespasse vir a ser resolvido em virtude do não pagamento do preço.
10- E assim sendo, sempre a aqui recorrente deteve o conjunto de poderes de gozo e disposição correspondentes ao conteúdo de um verdadeiro direito de propriedade, nunca se tendo apropriado de coisa alheia, uma vez que legitimamente possuía em nome próprio por título translativo de propriedade, agindo de boa fé, comportando-se como real e efectiva proprietária.
11- Os efeitos da compra e venda constantes do artº 879 do Código Civil atribuem, clara e evidentemente, o direito a deter o conjunto de poderes de gozo e disposição correspondentes ao conteúdo de um verdadeiro direito de propriedade, pelo que a aqui recorrente nunca se apropriou de coisa alheia, possuía legitimamente em nome próprio por título translativo de propriedade, sempre agiu de boa fé, comportando-se como real e efectiva.
12- Mais se refira que o preceituado no artº886 do Código Civil também nos diz claramente que nas situações em que o preço não é pago na totalidade e em que a propriedade é reservada até integral pagamento reveste sempre a natureza de obrigação, sendo certo que o incumprimento será idóneo à resolução do contrato – porquanto da convenção em contrário ali prevista dever ser lida/entendida como reserva de propriedade.
13- Em virtude dos imperiosos argumentos nunca a aqui recorrente podia/devia ter sido pronunciada pelo já mencionado crime de abuso de confiança qualificada.
Nos termos expostos, nos do douto suprimento, deverão proceder as presentes motivações/conclusões e, em consequência, ser alterada o douta decisão, proferindo V. Exªs outra em que não pronunciem a arguida pelo crime de abuso de confiança qualificada de que vem pronunciada.
(…)»
3. Na resposta, o Ministério Público reitera as razões que o levaram ao arquivamento do inquérito [fls. 405-408]. Já a assistente refuta os argumentos do recurso, pugnando pela manutenção do decidido [fls. 404-415].
4. Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-geral Adjunta adere à argumentação do despacho recorrido, emitindo parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso [fls. 425-426].
5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
6. O despacho de pronúncia, propriamente dito, tem o seguinte teor [fls. 308-310]:
«(…) Pronuncio para julgamento em Processo Comum e perante Tribunal Singular os arguidos:
- MARISA MANUELA DE JESUS RIBEIRO, (…); e,
- (…)
Porquanto indiciam suficientemente os autos que:
A assistente, através de documento escrito titulado de “Contrato de Trespasse e Fiança”, outorgado em 31 de Março de 2006, vendeu, pelo preço de €75.000,00, à sociedade “D…… Lda.”, representada à data pelos arguidos, seus sócios gerentes, o estabelecimento comercial de restauração denominado “E……”, instalado na Rua …, n.º …, freguesia de …., do concelho da Póvoa de Varzim.
A venda daquele estabelecimento e de todos os bens que o incorporam, descritos no inventário que faz parte integrante daquele contrato e que aqui se considera integralmente reproduzido, foi efectuada com reserva de propriedade a favor da aqui assistente, até integral pagamento do preço.
No referido contrato consta também que estão compreendidos no referido trespasse “todos os elementos que constituem e integram o referido estabelecimento, nomeadamente (...) equipamento, imobilizado, stocks em armazém, bem como móveis e mercadorias, as quais se encontram descriminadas em inventário”.
Também através do referido contrato, os arguidos constituíram-se fiadores e principais pagadores de todas as obrigações assumidas no mesmo pela sociedade comercial que representavam, garantindo “expressa e pessoalmente o bom e pontual cumprimento” por esta “de todas as obrigações assumidas no mesmo”.
Os arguidos não pagaram pelo menos €55.000,00 do preço devido pelo negócio celebrado com a assistente e supra referido.
Não obstante tal facto, os arguidos, em 09/10/2007, fizeram seu e da sua representada o referido estabelecimento e entregaram, como dação em pagamento de uma dívida, o local arrendado onde este se encontrava a funcionar, bem como todo o recheio do mesmo.
Em 19 de Fevereiro de 2009, a aqui assistente teve conhecimento de tal facto através de notificação de oposição efectuada no âmbito do processo executivo instaurado tendo em vista a cobrança dos referidos €55.000,00.
Os arguidos sabiam que o referido estabelecimento de restauração e todos os seus elementos integrantes não lhes pertenciam e, não obstante tal facto, apropriaram-se dos mesmos, entregando-os como forma de pagamento de uma dívida.
Com a sua conduta, os arguidos causaram prejuízo patrimonial à assistente, o qual ascende, pelo menos, ao valor do preço não pago.
Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era, como é, proibida e punida por lei.
Em consequência do exposto incorreram os arguidos na prática de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 1 e 4, alínea b), por referência ao artigo 202.º, alínea b), ambos do Código Penal.
(…)»

II – FUNDAMENTAÇÃO
7. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objecto do recurso, importa saber se os factos descritos no despacho de pronúncia não são suscetíveis de integrar a prática do crime de Abuso de confiança, do artigo 205.º, do Código Penal [CP], imputado à recorrente. Concretamente, importa saber (i) se um estabelecimento comercial não é uma “coisa móvel”; e (ii) se a cláusula de “reserva de propriedade” não impede a transmissão do estabelecimento comercial, a título definitivo, para o adquirente.
8. Tudo isto, porque, como se sabe, o artigo 205.º, n.º 1, do CP, prescreve:
1 - Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa [sublinhado nosso].
9. São, portanto, elementos do tipo objetivo de ilícito i. a apropriação ilegítima, ii. de coisa móvel iii. entregue por título não translativo da propriedade.
10. Os factos descritos no despacho de pronúncia dão fé da celebração de um “Contrato de Trespasse e Fiança” pelo qual a assistente “vendeu” à sociedade representada pelos arguidos um estabelecimento comercial “com todos os bens que o incorporam”, descritos em inventário, “efectuada com reserva de propriedade a favor da aqui assistente, até integral pagamento do preço”; e que os arguidos fizeram seu e da sua representada o referido estabelecimento comercial entregando-o “como dação em pagamento de uma dívida, o local onde este se encontrava a funcionar, bem como todo o recheio do mesmo” [ver Despacho de pronúncia].
11. Vejamos, então, as duas questões suscitadas pelo recurso.
12. (i) Primeira questão: o estabelecimento comercial não integra o conceito de “coisa móvel”?
13. Diz a recorrente que “o estabelecimento comercial sendo composto por um todo unitário, do qual fazem parte bens corpóreos e incorpóreos não integrará assim o conceito de coisa móvel constante do artº 205.º n.º 1 do Código Penal” [conclusão 8].
14. Não tem razão. Como se sabe, o estabelecimento comercial é encarado como uma universalidade, um aglomerado de coisas que possuem um fim económico comum: nas palavras sempre atuais do Professor Orlando de Carvalho, o estabelecimento comercial ou industrial é uma organização concreta de factores produtivos como (ou enquanto) valor de posição no mercado [Direito das Coisas, pág. 196].
15. Nesse sentido, o estabelecimento é um bem novo que não se confunde com os bens de que é feito. O que caracteriza o estabelecimento comercial não são os vários bens que o integram, mas sim uma certa organização apta a criar lucro: é, por isso, um bem que transcende à mera soma dos diversos bens que o compõe, consistindo num sobrevalor.
16. Ora, de acordo com o disposto no artigo 204.º, n.º 1, do Código Civil, “São coisas imóveis: a) Os prédios rústicos e urbanos; b) As águas; c) As árvores, os arbustos e os frutos naturais, enquanto estiverem ligados ao solo; d) Os direitos inerentes aos imóveis mencionados nas alíneas anteriores; e) As partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos (…)”. E, nos termos do disposto no artigo 205.º, n.º 1, do mesmo diploma, “São móveis todas as coisas não compreendidas no artigo anterior”.
17. Resulta assim claro que, não sendo classificado como bem imóvel, o estabelecimento comercial é um bem móvel [nesse sentido se pronuncia, desde há muito, a doutrina referida em diversos arestos: Galvão Telles, Das Universalidades, pág. 202 e Orlado de Carvalho, ob cit., nota 3, pág. 201].
18. (ii) Segunda questão: a cláusula de reserva de propriedade não impede a transmissão do estabelecimento comercial, a título definitivo, para o adquirente?
19. A argumentação da recorrente expande-se no sentido de tentar demonstrar que a natureza da cláusula de reserva de propriedade “se consubstancia no reforço da garantia no cumprimento de uma obrigação – tal qual pagamento do preço - não colidindo ou impedindo a transmissão do estabelecimento a título definitivo (…) a aqui recorrente deteve o conjunto de poderes de gozo e disposição correspondentes ao conteúdo de um verdadeiro direito de propriedade, nunca se tendo apropriado de coisa alheia, uma vez que legitimamente possuía em nome próprio por título translativo de propriedade, agindo de boa fé, comportando-se como real e efectiva proprietária [conclusões 9 e 10].
20. Volta a não ter a razão do seu lado. Desde logo, não atentou no que diz a Lei. Sob a epígrafe “Reserva de propriedade”, o artigo 409.º, n.º 1, do Código Civil, dispõe:
“1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.”
21. Depois, a recorrente não acolheu a jurisprudência nem escutou a doutrina —ambas, afirmando que num contrato de alienação com reserva de propriedade não há, como consequência da celebração do contrato, a imediata transferência da propriedade da coisa alienada. Na verdade, quer se entenda que a cláusula de reserva de propriedade constitui uma condição suspensiva da transmissão da propriedade [posição dominante, defendida por Antunes Varela e Pires de Lima, in Código Civil Anotado, vol. I, pág. 337], quer se considere que a eficácia translativa da alienação fica diferida para um momento posterior [pagamento do preço], obtendo o comprador, com a celebração do contrato, uma mera expectativa real de aquisição [posição defendida por Telles de Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, volume III, pág. 61 e segs.], todos convergem na asserção caracterizadora do instituto: na venda com reserva de propriedade, enquanto a condição se não verifica, o comprador não tem título translativo da propriedade ou outro que lhe permita dispor dela.
22. No fundo, é essa a razão de ser da reserva de propriedade: visa assegurar que a transmissão da propriedade só se concretize após o cumprimento da condição subjacente à cláusula de reserva da propriedade. [Nesse sentido, v.g., AcRP 23.9.2010 e de 11.11.2010, disponíveis em www.dgsi.pt].
23. Ou seja: a cláusula de reserva de propriedade impede a transmissão do estabelecimento comercial, a título definitivo, para o adquirente. O vendedor ou o trespassante conserva a propriedade do estabelecimento, visando com esta posição garantir o pagamento do preço. A transmissão da propriedade fica diferida para o momento do pagamento integral do preço – o que, como vimos, no caso presente nunca veio a acontecer.
24. Apesar de ter a posse do estabelecimento comercial, a recorrente continua a não poder dispor dele como coisa sua, uma vez que não chegou a pagar o preço acordado. E assim sendo, revela-se o último dos elementos do tipo objetivo do crime imputado à arguida [Abuso de confiança, do artigo 205.º, n.º 1 e 4, alínea b), do CP]. Pelo que improcede mais este fundamento e com ele todo o recurso.
A responsabilidade pela taxa de justiça
Uma vez que a arguida decaiu no recurso que interpôs é responsável pelo pagamento da taxa de justiça [artigo 513.º, do CPP], cujo valor é fixado entre 3 e 6 UC [artigo 8.º, n.º 5 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais]. Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 3 UC.
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, os Juízes acordam em:
● Negar provimento ao recurso interposto pela recorrente C….., mantendo o despacho de pronúncia recorrido.
Taxa de justiça: 3 [três] UC, a cargo da recorrente.
[Elaborado e revisto pelo relator – em grafia conforme ao Acordo Ortográfico de 1990]

Porto, 2 de novembro de 2011
Artur Manuel da Silva Oliveira
António Gama – Presidente da secção
José Joaquim Aniceto Piedade (voto vencido, conforme declaração)
_________________
Proc. 1 358/09.1TAPVZ-A.P1
Declaração de Voto

Na Decisão Instrutória de pronúncia pela prática de um crime de abuso de confiança agravado, efectuada na sequência de despacho de arquivamento do M°P°, são descritos factos que referem, em síntese — de acordo com o parágrafo 10 do projecto -‘ a celebração de um “Contrato de Trespasse e Fiança” pelo qual a assistente “vendeu” à sociedade representada pelos arguidos um estabelecimento comercial “com todos os bens que incorporam”, descritos em inventário, “efectuada com reserva de propriedade a favor da aqui assistente, até integral pagamento do preço”; e que os arguidos fizeram seu e da sua representada o referido estabelecimento comercial entregando-o, “como dação em pagamento de uma dívida, o local onde se encontrava a funcionar, bem como todo o recheio do mesmo”.
A previsão típica do crime de abuso de confiança, exige que a coisa móvel tenha sido entregue por “título não translativo da propriedade”; por título não translativo de propriedade deve entender-se qualquer entrega que não implique transferência da propriedade (e que acarrete, pois, a obrigação de restituir ou apresentar a coisa recebida ou um valor equivalente, ou dar-lhe determinada finalidade).
Tendo o contrato de “venda” sido efectuado com reserva de propriedade, tal como referido no projecto, enquanto o preço não estiver integralmente satisfeito, a propriedade não se transmite, pelo que a recorrente não podia dispor do estabelecimento comercial e entregá-lo como “dação em pagamento de uma dívida”.
Dúvidas não existem, pois que a recorrente violou o contrato e praticou um acto de disposição de um bem alheio.
Porém, integra isso a prática de um crime de abuso de confiança?
Afigura-se-me que a resposta nos é fornecida, através do recurso à genealogia histórico-dogmática do crime abuso de confiança: pratica o crime quem se apropriar ilegitimamente de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade, abusando da confiança que nele foi depositada, ou, por outras palavras, violando o dever de confiança que lhe era exigível.
Assinala-o Figueiredo Dias (Dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 97:
“(...) Neste sentido pode e deve dizer-se — com consciência das relevantíssimas consequências dogmáticas que a afirmação importa — que o abuso de confiança é um delito especial, concretamente na forma de delito de dever, pelo que o autor só pode ser aquele que detém uma qualificação determinada, resultante da relação de confiança que o liga ao proprietário da coisa recebida por título não translativo da propriedade e que fundamenta o especial dever de restituição.”.
Regressando ao caso, o estabelecimento comercial com todos os bens que o incorpora, não foi “confiado” à recorrente, foram-lhe entregues no âmbito de um contrato que implicava — conforme vimos — a transferência da propriedade, mas apenas após integral pagamento do preço.
Assim, ao dispor do bem, não houve abuso de confiança, houve incumprimento contratual, e disposição de um bem alheio.
Aqui chegados, há que apelar ao princípio da subsidiariedade do Direito Penal: a intervenção do Direito Penal só é legítima quando a tutela dos bens jurídicos não puder ser garantida por outras vias com incidências menos drásticas para os direitos das pessoas, sejam elas estaduais ou privadas. Nomeadamente, não é aceitável o recurso, por parte dos particulares, à tutela do Direito Penal, para resolver questões decorrentes de negócios jurídicos regulados pela Lei Civil ou Comercial.
Para que a intervenção do Direito Penal se mostre exigível — nestes casos limite — é necessário que a actividade em análise integre um dano social e não puramente individual; esse dano social decorrerá da existência de uma violação da Ordem Jurídica que pela sua intensidade e gravidade a única sanção seja uma pena; se para a debelação dessa violação da Ordem Jurídica bastarem as sanções atenuadas da indemnização, da execução forçada ou in natura, restituição à situação anterior ei ou anulação do acto, estaremos perante um ilícito meramente civil — cfr. AC. do STJ de 3/2/2005, citando Nelson Hungria.
No caso, a possibilidade de reparação total dos danos, através dos meios civis colocados à disposição da lesada, é, parece-me, evidente.
Sendo, deste modo a violação da Ordem Jurídica levada a cabo pela recorrente, reparável através dos meios civis e inexistindo razões de Ordem Colectiva que imponham a intervenção do Direito Penal para tutela dos bens jurídicos violados, tornando-se imperioso evitar a “colonização” do foro penal por causas de um cariz estritamente civil, voto — com estes fundamentos — o provimento do recurso, com a revogação do Despacho de Pronúncia, e a consequente não pronúncia da arguida, aqui recorrente, pela prática do crime de abuso de confiança.
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9/11/2011
José Piedade