Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2214/17.5YLPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP201710262214/17.5YLPRT.P1
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 789, FLS.2-8)
Área Temática: .
Legislação Nacional: ART. 15º - F, N.º 4 DO NRAU
Sumário: I - A compressão do direito de defesa resultante da regra do nº 4 do art. 15º-F do NRAU, exigindo a prestação de uma caução pelo valor das rendas em dívida como condição da dedução de oposição em procedimento especial de despejo fundado na falta de pagamento de rendas, não resulta numa solução de indefesa ou sequer de profunda restrição ao direito de tutela judiciária.
II - A referido compressão revela-se adequada e proporcional, enquanto contraponto do grau limitado de protecção conferido ao direito de propriedade do senhorio, num contexto integrado já pela aparência de violação da mais básica obrigação contratual do inquilino - a do pagamento das rendas contratadas- prevenindo que o exercício do direito de defesa possa constituir um expediente dilatório, em resultado do qual, com o retardamento da devolução do locado, se agrave ou frustre a realização do direito do senhorio.
III - Por não constituir limitação intolerável ao direito de defesa do inquilino, o regime constante do nº 4 do art. 15º-F do NRAU é compatível com os princípios e normas constitucionais de proporcionalidade e de proibição de indefesa, designadamente os arts. 18º e 20º da CRP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 2214/17.5YLPRT.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto - Juiz 5

REL. N.º 454
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Lina Castro Baptista
Fernando Samões
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
1. RELATÓRIO
B… e C…, Requerentes em Procedimento Especial de Despejo em que é Requerida D…, UNIPESSOAL, LDA., alegando terem celebrado com esta um contrato de arrendamento de um imóvel que lhes pertence, para que ela aí exercesse uma actividade hoteleira, pediram o despejo do locado, com fundamento na falta de pagamento de rendas.
Alegaram encontrarem-se em dívida, a título de rendas, a quantia de €5.874 (cinco mil oitocentos e setenta e quatro euros) correspondente, então, às rendas vencidas de Novembro e Dezembro de 2016, parte de Janeiro e Fevereiro 2017 e a totalidade do mês de Março 2017.
A requerida deduziu oposição, alegando irregularidades processuais na dedução da pretensão dos requerentes, arguindo a ineptidão do requerimento por falta de causa de pedir, bem como diversas outras excepções, concluindo nada dever e ser até credora dos requerentes.
Convidada a pronunciar-se sobre a matéria alegada pela requerida, vieram os requerentes apontar que esta, tendo deduzido oposição, não prestou a caução legalmente exigida, correspondente às rendas em falta e que fundamentam o pedido de despejo, devendo, por isso, a oposição ter-se por não deduzida, nos termos do n.º 4 do art. 15.º -F do NRAU. Sem prejuízo, pronunciaram-se ainda sobre a matéria excepcionada pela requerida.
Foi, então, proferida pelo tribunal a decisão recorrida, de que se transcreve o segmento aqui relevante: “(…)Nos termos do disposto no artigo 15ºF do Novo Regime do Arrendamento Urbano [Lei nº 6/2006, de 27FEV], e tal como a Requerida foi advertida na notificação que lhe foi feita, tendo o pedido de despejo como fundamento a falta de pagamento de rendas, a Requerida deveria, com a oposição, apresentar comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas.
A Requerida não pagou qualquer caução.
Por conseguinte, tendo em atenção o nº 4 da disposição legal citada, não se mostrando paga a caução, a oposição considera-se por não deduzida, o que se decide.
Em face do exposto, nos termos do disposto no artigo 15ºE, nº 1, alínea a) do NRAU, declaro resolvido o contrato e determino a desocupação do locado, sito na rua …, nº … a ….
Custas pela Requerida, porque vencida – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.”
É desta decisão que vem interposto o presente recurso onde, além de arguir a nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação, a requerida suscita a inconstitucionalidade da regra constante do nº 4 do art. 15º, al. F do NRAU. Mais pediu a atribuição de efeito suspensivo ao recurso.
Terminou o seu recurso formulando as seguintes conclusões:
A)A douta decisão recorrida não só fez a adequada e justa ponderação dos factos de acordo com os elementos fornecidos pelo processo como não fez a boa aplicação do direito competente, que imporiam decisão diferente;
B) Não cumpre, integralmente, o previsto e estatuído no n° 1 do Art. 154º e no n° 4 do Art. 607º do CPC., mormente porque não esta fundamentada, de facto e, especialmente de direito, sendo tal injunção um imperativo, considerando que a necessidade de fundamentação prende-se com a própria garantia do direito ao recurso e tem a ver com a legitimação da decisão judicial em si mesma ", sob pena de, face à omissão, esta acarretar a nulidade daquela decisão, que se argui;
C) Sendo a caução apenas uma garantia da posição dos recorridos, não significando tal que, em ultima instância, a recorrente fique ou não desapossada de tal ou tais valores, passando assim para a mesma para a esfera patrimonial dos recorridos, até porque, para alem de não se poder considerar incontroversamente devido, verdadeiramente, neste momento, mais do que devedora, a recorrida é considera-se credora dos recorridos, considerando não só os bens e pertences que foram furtados do imóvel e de que suspeita o envolvimento dos mesmos, a ser apurado em processo criminal a correr seus termos, como dos valores de todas as rendas que pagou a mais. dado que eram valores ilíquidos e os recorridos deviam efectivar as devidas retenções, manifestando fiscalmente, não olvidando o valor de todas as benfeitorias, obras e beneficiações que produziu no locado, incorporadas no mesmo, de valor superior a cinquenta mil euros;
C) A não ser assim está inderrogavelmente e de forma irreversível afectado o acesso à via jurisdicional, colocando e perigando direitos fundamentais, mormente direitos, liberdades e garantias com assento constitucional, em termos de que careça uma justificação orientada à defesa e salvaguarda de outros interesses e direitos constitucionais, basilados pelo principio da proporcionalidade, na sua tríplice dimensão da necessidade, adequação e proporcionalidade, com inscrição no Art, 18 n° 2 da C.R.P., no estrito respeito pelo alcance e extensão do conteúdo do estatuído e consagrado no disposto no n° 3 deste mesmo artigo.
D) Se assim não fosse e não seja, coloca-se em causa um direito fundamental com foros de assento constitucional integrante dos direitos, liberdades e garantias, ou seja, o direito do acesso aos tribunais e à tutela efectiva previsto e estatuído no Art. 20 N° 1 da Constituição da Republica Portuguesa, para defesas de interesses e direitos legalmente protegidos, não podendo nem se concedendo, nunca, o não acesso e a denegação de justiça por insuficiência de meios económicos.
E) Na hermenêutica e aplicação, deve e impõem-se que se sujeite o Art. 15 E N° 1, al. a) do NRAU ao crivo constitucional, subsumindo-se e confrontando-se com os imperativos cconstitucionais que emanam do Art. 62º da C.R.P., em conjugação com o princípio da proporcionalidade estatuído no Art. 18 N°2 do mesmo diploma fundamental, não se restringindo direitos fundamentais do inquilino, como seja o acesso aos tribunais e tutela judicial efectiva em nome e por função de uma celeridade processual em beneficio e no interesse do senhorio, sem que este tenha de se subsumir e esteja vinculado ao ónus da prova que o vincula por força do disposto no Art. 342º, nº 1 do Código Civil.
F) A ser assim promove-se a denegação de justiça por decorrência de uma eventual insuficiência de meios económicos, não para propor uma acção judicial mas sim para cumprir uma exigência adjectiva de uma prestação de caução que pode também eventualmente alcançar valores avultados e mesmo não suscetíveis de atingir sendo negada justiça a quem, pelo seu nível de rendimentos, não atinge os patamares e valores absolutos e totais, que a final poderão não ser exigíveis, por não conseguir proceder à prestação da caução, ficando assim o inquilino impedido de deduzir oposição e exercer o seu direito de acesso aos tribunais e de se defender, sendo assim, perdoe-se a expressão, " despejado" num curto espaço de tempo e indefesamente.
G) A Constituição da Republica Portuguesa não permite e proíbe a indefesa no sentido de, em favor e benefício de valores liberais, a recorrida fique privada e limitada no seu direito de defesas perante e face aos órgãos judiciais junto dos quais se discutem ou possam discutir questões e matérias que lhe digam respeito, limitando-se o seu direito de defesa, uma vez que os direitos e interesses que a exigência legal de prestação de caução visa acautelar, e salvaguardar, mostram-se tutelados e garantidos por outras soluções legais, quer sejam do direito substantivo quer do direito adjectivo.
H) Não se verifica assim uma qualquer relação objectiva entre a medida legislativa adoptada e fins constitucionalmente legítimos, sendo desproporcional, por excessiva, em relação aos fins que visa alcançar, a exigência de prestação de caução de que depende a admissibilidade da oposição à acção especial de despejo, havendo um desequilíbrio injustificado entre os sacrifícios impostos e os benefícios concedidos, para mais, o que não é demais de repetir, quando esses fins já são logrados por outras vias.
I) A douta decisão deverá ser declarada nula por violação do disposto no artigo 607 N° 3 e 4 assim como do Art. 615 N° 1, al. b) e c), ambos do CPC, em articulação com os Arts. 20 N°1 e 18 N°s 2., 3 da CRP e assim revogada, considerando que o N° 4 do Art. 15-F elo NRAU é materialmente inconstitucional, para alem de representar uma clara restrição aos direitos dos inquilinos, enquanto cidadão e pessoa, abrindo espaço aos despejos arbitrários e abusivos, sem controle judicial à posteriori, sendo a exigência legal de prestação de caução um verdadeiro e efectivo factor inibidor do e ao exercício do direito de oposição Termos em que, deve ser julgado procedente e provado o presente recurso, revogando a douta decisão, atribuição de efeito suspensivo ao mesmo.
Os requerentes responderam ao recurso, negando a verificação da nulidade arguida e a falta de fundamento das razões da recorrente, designadamente quanto à inconstitucionalidade da norma invocada. Requereram ainda que ao recurso fosse atribuído efeito meramente devolutivo.
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo, afirmando-se o impedimento legal para que o mesmo pudesse beneficiar de efeito suspensivo.
Foi depois recebido nesta Relação, considerando-se o mesmo devidamente admitido.
Cumpre decidir.
2- FUNDAMENTAÇÃO
Com atenção às conclusões enunciadas no recurso da apelante, que conformam as questões a decidir (arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1 e 2, do C.P.Civil.), cumpre sindicar a validade da decisão recorrida, em razão das nulidades de falta de fundamentação e de contradição que lhe são imputadas. Em caso de resposta negativa, haverá que ponderar a constitucionalidade da aplicação, ao caso, das normas constantes do art. 15º do NRAU, que redundaram, nos termos da decisão em crise, na ineficácia da oposição deduzida pela requerida.
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A apelante começa por arguir a nulidade da sentença recorrida, afirmando que a mesma carece de fundamentação de facto e de direito, incorrendo nos vícios previstos nas als. b) e c) do art. 615º do CPC.
É inequívoco que as decisões judiciais carecem de fundamentação. Prescreve-o expressamente o art. 154º do CPC, vindo o art. 607º dispor sobre o necessário conteúdo dessa fundamentação, nos seus nºs 3 e 4. A importância dessa componente da decisão judicial é tal que, como bem refere a apelante, a sua omissão determina a nulidade do acto, nos termos da al. b) do art. 615º do CPC. De resto, é aceite como dogma a asserção segundo a qual a fundamentação é condição de legitimação da própria decisão, o que bem se espelha na regra que, nesse sentido, se inscreve no nº 1 do art. 205º da CRP.
Em qualquer caso, a ausência de fundamentação prevista como causa de nulidade da sentença, nos termos da referida al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC não coincide com uma mera deficiência ou insuficiência da fundamentação usada. Essas hipóteses poderão afectar o mérito da decisão, mas não determinam a respectiva nulidade, reservada esta para as situações em que falte por completo a descrição dos factos que constituem pressuposto da decisão, ou em que se verifique a total ausência das referências à fonte legal da solução decretada.
Diferente é a nulidade prevista na al. c) do nº 1 do mesmo art. 615º do CPC, que não consiste na falta de fundamentação, mas num vício identificado no silogismo que a sentença consubstancia, de tal forma que as premissas usadas não confluem para a conclusão enunciada.
Acontece, porém, que nenhum desses vícios se identifica no caso em apreço, pois que o silogismo judiciário que a decisão recorrida constitui se revela integralmente preenchido, quer quanto à premissa menor – as concretas circunstâncias do facto – quer quanto à premissa maior – o regime legal a que se subsumem tais circunstâncias. E isso exclui que se verifique a invocada falta de fundamentação.
Para além disso, a solução aplicada constitui a consequência do processo lógico formado pela concatenação das duas premissas, excluindo a verificação do vício previsto na al. c) do art. 615º, nº 1 do CPC.
Com efeito, no caso, a premissa maior é constituída pelas regras constantes dos nº 3 e 4 do art. 15º-F do NRAU, que dispõem:
“3 - Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos nºs 3 e 4 do artigo 1083.º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas (…).
4 - Não se mostrando paga a taxa ou a caução previstas no número anterior, a oposição tem-se por não deduzida.”
A decisão recorrida faz uma referência descritiva a este regime, que identifica claramente. Não se verifica, pois, a ausência de fundamentação legal.
A premissa menor corresponde aos pressupostos factuais da decisão, in casu integrados pela realidade processual traduzida em a requerida se ter apresentado a deduzir oposição no âmbito de um procedimento especial de despejo fundado na falta de pagamento de rendas, por referência ao art. 1083º, nº 3 do C. Civil, sem que tenha demonstrado a prestação de uma caução no valor das rendas em atraso. Estas, aliás, pressupostas na decisão, mas perfeitamente identificadas nos termos do procedimento, quer quanto ao seu valor, quer quanto à sua cronologia: um total de 5.874,00€, correspondente às rendas vencidas de Novembro e Dezembro de 2016, parte de Janeiro e Fevereiro 2017 e a totalidade do mês de Março 2017.
Também quanto a esta premissa é completa e esclarecedora a decisão recorrida, pelo que não pode justificar-se, também por aqui, a nulidade invocada.
Por fim, a conclusão deste silogismo é a enunciada na regra do nº 4 do regime citado, isto é, ter-se a oposição por não deduzida. E foi essa a exacta solução decretada, com os seus consequentes efeitos, a extrair da inerente procedência da pretensão dos requerentes: dar-se o contrato por resolvido e determinar-se a desocupação do locado.
Por todo o exposto, não pode colher a tese da apelante, ao apontar à decisão em crise os vícios geradores das nulidades referidas, cuja ocorrência se rejeita.
Improcede, pois, nesta parte, a apelação.
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Já quanto à substância da decisão, vem a apelante arguir a inaceitabilidade, à luz de preceitos e princípios constitucionais, do regime legal em causa, por constituir uma solução de indefesa, sem justificação e desproporcionada.
Afirma a apelante que condicionar a dedução da defesa, neste procedimento, à prestação de uma caução como a descrita, viola o direito fundamental de acesso ao direito e a uma tutela judicial efectiva, bem como que a restrição desses direitos dos inquilinos, como é o seu caso, em homenagem a interesses dos senhorios, sejam de celeridade na realização do seu direito, sejam quanto à efectiva afirmação deste, viola o princípio da proporcionalidade.
Acresce que a exigência da prestação de uma tal caução, visando a salvaguarda de direitos em discussão, pode vir a revelar-se injustificada, caso se não reconheçam, a final, esses direitos, como poderá acontecer no caso em apreço, face à invocação de um crédito seu sobre os senhorios, superior ao valor das rendas pedidas. E, mesmo assim, inibir a própria dedução da defesa, caso ocorra uma incapacidade económica para prestar a caução relativa a rendas que a final se confirmariam não serem devidas.
O regime legal em questão já foi descrito. No caso de a resolução do contrato de arrendamento pretendida pelo senhorio se fundar na falta de pagamento de rendas, em termos que relevem segundo o disposto nos nºs 3 e 4 do art. 1083º do Código Civil, a apresentação de defesa, no âmbito do correspondente procedimento especial de despejo, depende da comprovação da prestação de uma caução no valor das rendas devidas, com o limite do valor de seis dessas rendas.
Deste regime resulta um efectivo condicionamento do exercício do direito de defesa do inquilino pela exigência de uma caução que garanta, até um limite tido por razoável pelo legislador, a ulterior realização efectiva do direito do senhorio, violado através da inadimplência daquele.
O resultado da conjugação dos valores em presença é óbvio: sendo o fundamento da resolução do contrato uma relevante violação dos interesses económicos do senhorio, pretende-se prevenir que a demora na resolução do litígio - inevitável efeito da dedução de uma oposição àquela pretensão deduzida em procedimento especial de despejo - possa redundar num agravamento irreversível e na eventual frustração daqueles interesses. Isso foi conseguido através da compressão, até certo ponto, do direito à dedução da defesa. Esta compressão opera condicionando o exercício desse direito à prestação de um caução de um valor que poderá não corresponder à totalidade do direito invocado pelo senhorio, mas atingindo um limite tido por razoável: o equivalente ao valor de seis das rendas contratadas.
Antes de prosseguirmos, impõe-se salientar que, no caso sub judice, não está em causa um arrendamento para fins habitacionais, mas sim para o exercício de uma actividade económica, cujo valor é, no mínimo, tão relevante como o inerente à actividade económica dos próprios senhorios, aqui requerentes/apelados. E, bem assim, que diferentemente de outros casos que surgem recorrentemente no sistema judiciário no quadro destes interesses, não estamos perante uma omissão de prestação de caução por dificuldade económica, motivadora, paralelamente, da concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, mas de uma simples e injustificada inobservância daquele ónus processual.
Sem prejuízo, conhecem-se as reservas a que se expõe o regime legal em causa, por constituir, sem dúvida, um condicionamento ao exercício do direito de defesa do inquilino, designadamente no contexto de um regime em que já se deslocalizou para ele aquilo Elizabeth Fernandez (cfr. cit. infra) designou por “iniciativa do contencioso”: é ao inquilino que cabe a iniciativa de, em sede judicial, impedir a formação de um título executivo determinante da entrega do locado, e não ao senhorio que cabe demonstrar os pressupostos necessários à obtenção desse título.
Refere ELIZABETH FERNANDEZ, O Procedimento Especial de Despejo (Revisitando o Interesse Processual e Testando a Compatibilidade Constitucional), JULGAR - N.º 19 – 2013: “Em primeiro lugar, e no que se refere ao incidente da oposição (destinado a evitar a formação do título de desocupação e assim indirectamente a por em crise a cessação comunicada por via extrajudicial) devemos dizer que nos preocupa que a possibilidade de dedução eficaz de oposição esteja condicionada ao caucionamento das rendas em atraso até ao valor de 6 rendas. No fundo do que se trata é de dificultar ou mesmo impedir ao sujeito para o qual o contencioso foi deslocalizado (invertido) a possibilidade de o introduzir e de o exercer. O seu direito de acção (evitar que se forme o título através da impugnação dos fundamentos da anunciada cessação) está dependente da possibilidade de inquilino poder caucionar as rendas despesas ou encargos em atraso até ao valor máximo correspondente a seis rendas. Sabemos que o ónus de caucionamento não existe para os casos em que ao requerido tiver sido concedido o apoio judiciário (artigo 15.º-F, n.º 3). Contudo, entendemos que em face da exiguidade da garantia deste apoio financeiro ainda é manifestamente desproporcional a exigência de caucionamento do valor da renda até àquele limite quando o título ainda não está formado, sendo certo que se deve ter presente que do que aqui se trata não é de exigir uma garantia para obter uma efeito suspensivo da execução ou na formação do título para desocupação. Do que aqui se trata é de exigir o caucionamento de uma quantia para exercer o direito de se opor (impugnar) à própria cessação operada, impedindo a sua transformação em título executivo para entrega de coisa certa. Com efeito, não se mostrando paga a caução (tal como sucede com a taxa) a oposição tem-se por não deduzida. (artigo 15.º-F, n.º 4).”
Porém, em divergência para com as considerações referidas, não se nos afigura desproporcional a solução consagrada no regime legal em questão, especialmente numa situação em que – como a dos autos – ambos os interesses em tensão são puramente económicos.
É, de resto, por isso mesmo que acolhemos integralmente a argumentação expendida no Ac. do TRL de 9/7/2015 (proc. nº 2684/14.3YLPRT.L1-7, disponível em dgsi.pt), que se transcreve parcialmente:
“Nos termos do disposto no art.20º, nº1, da CRP, «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».
(…)
O direito à justiça não pode, pois, ser prejudicado, nos termos da citada disposição legal, por insuficiência de meios económicos.
Esta insuficiência traduz uma noção relativamente indeterminada, que, como tal, permite uma larga margem de discricionariedade legislativa.
No entanto, incumbindo à lei assegurar a concretização da citada norma constitucional, não pode prever um regime de tal modo gravoso que torne insuportável o acesso aos tribunais, designadamente, condicionando-o a cauções ou outras garantias financeiras incomportáveis.
É certo que a Constituição não determina a gratuitidade dos serviços de justiça, mas é igualmente certo que proíbe que estes sejam tão onerosos que dificultem, de forma considerável, o acesso aos tribunais, sendo que, não pode deixar de haver isenções para quem os não possa suportar sem grandes sacrifícios.
Isto é, haverá que ter em atenção a condição económica das pessoas, devendo observar-se o princípio da proporcionalidade e da adequação, que são princípios básicos do Estado de direito.
Na verdade, nos termos do art.18º, nº2, da CRP, «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Note-se que há restrições não expressamente autorizadas pela Constituição, que são aquelas que são criadas por lei sem habilitação constitucional, mas que não podem deixar de admitir-se para resolver problemas de ponderação de conflitos entre bens ou direitos constitucionais.
Aliás, a restrição só é legítima, precisamente, para salvaguardar um outro direito ou interesse constitucionalmente protegido.
O que significa que o sacrifício de um direito fundamental não pode ser arbitrário e desmotivado.
Por outro lado, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se:
- como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei, que são os da salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos (princípio da adequação ou da idoneidade);
- necessárias, na medida em que os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias (princípio da necessidade ou da indispensabilidade);
- proporcionais em relação aos fins obtidos, assim se impedindo a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas e excessivas relativamente àqueles fins (princípio da proporcionalidade em sentido restrito).
Acresce que há sempre um limite absoluto para a restrição de direitos, liberdades e garantias, o qual consiste no respeito do «conteúdo essencial» dos respectivos preceitos, como resulta do disposto no nº3, in fine, do citado art.18º.
Isto é, independentemente de haver ou não excesso de restrições, há que salvaguardar sempre a extensão do núcleo essencial, tendo em conta não só a necessidade de protecção de outros bens ou direitos constitucionalmente garantidos, mas também a necessidade de manutenção de um resto substancial de direito, liberdade e garantia, que assegure a sua utilidade constitucional (cfr. ob.cit., pág.395).
No caso dos autos, o outro direito substancialmente garantido a que aludem recorrente e recorrida, é o direito de propriedade privada, consagrado no art.62º, nº1, da CRP.
Assim, de harmonia com o disposto no citado artigo, «A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição».
Aquele direito não faz parte, na CRP, do elenco dos «direitos, liberdades e garantias», apesar de gozar do respectivo regime, naquilo que nele reveste natureza análoga à daqueles (cfr. o art.17º, da CRP).
E como o direito de propriedade reveste, em vários dos seus componentes, uma natureza negativa ou de defesa, possui natureza análoga aos «direitos, liberdades e garantias», pelo que compartilha do respectivo regime específico (art.17º), designadamente para efeito do regime de restrições (cfr. ob.cit., pág.802).
Estas, porém, estão sujeitas aos limites das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, dado o carácter análogo do direito de propriedade.
Assim, as restrições também podem vir a revelar-se injustificadas por violação dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade.
Note-se que o âmbito do direito de propriedade abrange, além da liberdade de adquirir bens, de usar e fruir dos bens de que se é proprietário, de os transmitir e de não ser privado deles, o direito de reaver os bens sobre os quais se mantém direito de propriedade (cfr. ob.cit., pág.802).
Todavia, o direito de não se ser privado da propriedade e do seu uso, não goza de protecção constitucional em termos absolutos, já que apenas está garantido como um direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação (cfr. o nº2, do citado art.62º).
(…)
Segundo o recorrente, a caução normativamente exigida, além de constituir um factor inibitório do exercício do direito de oposição, para todos aqueles que se vejam em situação de insuficiência económica, apresenta-se, ainda, manifestamente desproporcional, excessiva e injustificadamente redutora da extensão e alcance do conteúdo essencial do direito fundamental albergado no art.20º, nº1, da Lei Fundamental e, por isso, em patente violação do disposto no art.18º, nºs 2 e 3, da CRP/76.
Não cremos, porém, que assim seja.
Conforme de defendeu no Acórdão nº255/07, do Tribunal Constitucional, «A propósito do direito de acesso aos tribunais, na sua vertente de proibição de denegação da justiça por insuficiência de meios económicos, tem este Tribunal seguido uma impressiva jurisprudência de acordo com a qual, conquanto a Constituição não imponha a gratuitidade daquele acesso, o que será vedado ao legislador é o estabelecimento de regras de onde resulte que os encargos que hão-de ser suportados por quem recorre aos órgãos jurisdicionais possam, na prática, constituir um entrave inultrapassável ou um acentuadamente grave ou insuportável sacrifício para desfrutarem de tal direito».
Note-se que, no caso sub judice, estamos perante uma situação de resolução do contrato pelo senhorio, fundada em mora do arrendatário no pagamento da renda, nos termos dos nºs 3 e 4, do art.1083º, do C.Civil, a qual opera por comunicação da senhoria ao arrendatário, onde fundadamente se invoque a obrigação incumprida, de harmonia com o disposto no art.1084º, nº2, do mesmo Código.
Como é sabido, o pagamento da renda ou do aluguer é a primeira e mais relevante obrigação do locatário (cfr. o art.1038º, al.a), do C.Civil).
O seu não pagamento priva o locador do conteúdo económico do seu direito e quebra a confiança no cumprimento daquela obrigação, provocando inúmeros incómodos ao locador.
Trata-se, assim, de uma situação objectiva de incumprimento grave por parte do inquilino.
Por isso que tal situação se encontra entre aquelas que justificam a utilização do procedimento especial de despejo, que é um meio processual que se destina a efectivar a cessação do arrendamento (cfr. o art.15º, do NRAU).
Assim, nos termos da al.e), do nº2, do citado art.15º, pode servir de base àquele procedimento, em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no nº2, do art.1084º, do C.Civil.
E só nesse caso é que o arrendatário tem o dever de prestar uma caução no valor das rendas em atraso, mas não podendo ultrapassar o valor máximo correspondente a seis rendas, como condição para que a sua oposição possa ser apreciada (cfr. os nºs 3 e 4, do art.15º-F, do NRAU).
Estamos, pois, perante uma caução que, como tal, se destina, apenas, a garantir a posição do senhorio, pelo que, o que for despendido a esse título, não implica, necessariamente, que o arrendatário fique desapossado do respectivo valor em definitivo.
Por outro lado, se este tiver apoio judiciário, fica isento do pagamento da aludida caução.
É certo que o apoio judiciário é uma solução a utilizar, de forma excepcional, apenas pelos cidadãos economicamente carenciados ou desfavorecidos (cfr. os Acórdãos nºs 495/96 e 255/07, do Tribunal Constitucional).
Mas será que a previsão daquela caução, como condição para que a oposição à pretensão de despejo seja apreciada, torna insuportável ou inacessível para a generalidade das pessoas o acesso aos tribunais?
A nosso ver, os valores em causa (valor das rendas em atraso, num máximo de seis rendas), fixados a título de caução, nos termos atrás referidos, não se revelam manifestamente excessivos e desproporcionados, não pondo em risco o acesso à justiça.
Atente-se que tais valores nunca serão perdidos pelo caucionante, pois que, das duas uma: ou a oposição procede e os mesmos são recuperados pelo arrendatário; ou a oposição improcede e os mesmos são destinados ao senhorio, livrando-se o arrendatário, nessa medida, da respectiva obrigação de pagamento.
Não nos parece, pois, que a fixação da caução, nos termos legalmente previstos, constitua um factor inibitório do exercício do direito de oposição.”
Em conclusão de todo este conjunto de argumentos, que subscrevemos na íntegra, partilhamos igualmente a conclusão extraída no referido acórdão: “Consideramos, assim, que estamos perante norma restritiva que se revela proporcional e evidencia uma justificação racional, procurando garantir o adequado equilíbrio face, nomeadamente, ao direito de propriedade privada, constitucionalmente protegido, tal como o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
Haverá, deste modo, que concluir que a norma constante do nº4, do art.15º-F, do NRAU, não é inconstitucional, já que não viola o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no art.20º, nº1, da CRP, não afectando de forma irreversível o direito à via jurisdicional.”
Tal como se enuncia na conclusão precedente, consideramos que a compressão do direito de defesa resultante da regra do nº 4 do art. 15º-F do NRAU, que de forma alguma resulta numa solução de indefesa ou sequer de profunda restrição ao direito de tutela judiciária, se revela proporcional ao grau – também limitado - de protecção de outros interesses que consegue alcançar, num contexto integrado já pela aparência de violação da mais básica obrigação contratual do inquilino: a do pagamento de rendas.
A referida compressão, constituindo o contraponto daquele grau limitado de protecção que o regime legal em causa confere ao direito de propriedade do senhorio, previne que o exercício do direito de defesa possa constituir um expediente meramente dilatório, em resultado do qual, com o retardamento da entrega do locado ao locador, se agrave ou frustre a realização do direito deste.
Assim, e porquanto também não constitui limitação intolerável a tal direito de defesa, concluímos que o regime constante do nº 4 do art. 15º-F do NRAU é compatível com os princípios e normas constitucionais referidos, designadamente os arts. 18º e 20º da CRP.
Consequentemente, não se encontra razão para se rejeitar a aplicação, ao caso, do disposto no nº 4 do art. 15º-F do NRAU, o que, tal como declarou o tribunal recorrido, conduz a que se deixe de considerar, para os efeitos do procedimento de despejo, a oposição deduzida.
Nestes termos, cabe concluir pela improcedência da apelação e confirmar, quanto aos fundamentos do recurso, a decisão recorrida.
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Sumariando (art. 663º, nº 7 do CPC):
1 - A compressão do direito de defesa resultante da regra do nº 4 do art. 15º-F do NRAU, exigindo a prestação de uma caução pelo valor das rendas em dívida como condição da dedução de oposição em procedimento especial de despejo fundado na falta de pagamento de rendas, não resulta numa solução de indefesa ou sequer de profunda restrição ao direito de tutela judiciária.
2 - A referido compressão revela-se adequada e proporcional, enquanto contraponto do grau limitado de protecção conferido ao direito de propriedade do senhorio, num contexto integrado já pela aparência de violação da mais básica obrigação contratual do inquilino - a do pagamento das rendas contratadas- prevenindo que o exercício do direito de defesa possa constituir um expediente dilatório, em resultado do qual, com o retardamento da devolução do locado, se agrave ou frustre a realização do direito do senhorio.
3 - Por não constituir limitação intolerável ao direito de defesa do inquilino, o regime constante do nº 4 do art. 15º-F do NRAU é compatível com os princípios e normas constitucionais de proporcionalidade e de proibição de indefesa, designadamente os arts. 18º e 20º da CRP.
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3 – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso sob apreciação, em razão do que confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Porto, 26 de Outubro de 2017
Rui Moreira
Lina Baptista
Fernando Samões