Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6/08.1ZRPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ELSA PAIXÃO
Descritores: TRÁFICO DE PESSOAS
BEM JURÍDICO TUTELADO
ACÇÃO TÍPICA
CRIME DE LENOCÍNIO DE MENOR
Nº do Documento: RP201405146/08.1ZRPRT.P1
Data do Acordão: 05/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160º do C. Penal, protege, para além da liberdade pessoal, a dignidade da pessoa humana.
II - Trata-se de crime de dano (quanto à lesão do bem jurídico) e de resultado (quanto ao objecto da acção).
III – A acção típica do tráfico de adulto consiste na oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte (por meio próprio do agente ou de terceiro, mas custeado pelo agente), alojamento ou acolhimento de uma pessoa com vista à sua exploração sexual, à exploração da sua mão-de-obra ou à extracção dos seus órgãos.
IV - É crime de execução vinculada, estando os meios de execução do crime tipificados, e delito de intenção (“para fins de”) pois que visa a realização de um resultado que não faz parte do tipo (a exploração sexual, a exploração do trabalho e a extracção de órgão), que é provocado por uma acção ulterior a praticar pelo próprio agente ou por um terceiro, não sendo necessária a verificação da exploração efectiva da vítima nem a extracção efectiva de um órgão seu.
V – É crime de natureza eminentemente pessoal.
VI - O “ardil ou manobra fraudulenta” é a acção pela qual o agente engana outrem sobre o significado, o propósito e as consequências da sua acção, não sendo suficiente o mero aproveitamento passivo de engano alheio.
VII - A “especial vulnerabilidade da vítima” inclui a vulnerabilidade em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, e traduz a exploração de uma tal situação de fraqueza que à vítima não resta senão a possibilidade de se conformar.
VIII - O tipo subjectivo exige o dolo.
IX – O crime de lenocínio de menor, p. e p. pelo art.º 175º, do Código Penal, protege a autodeterminação sexual do menor de 18 anos, o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, criando as condições para que esse desenvolvimento se processe de forma adequada e sem perturbações.
X - Agente do crime pode ser qualquer homem ou mulher, desde que tenha mais de 16 anos e que desempenhe o papel de intermediário ou medianeiro para o exercício da actividade de prostituição, por parte da menor.
XI - Vítima deste crime é necessariamente um menor de 18 anos de idade.
XI - É crime de resultado pelo que é necessário que se consumam os referidos actos sexuais de relevo e que a sua consumação seja acompanhada de um pagamento.
XII - O tipo subjectivo exige o dolo relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito.
XIV - É crime de natureza eminentemente pessoal.
XV - O crime de tráfico de pessoas e de lenocínio de menor estão numa relação de concurso efectivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 6/08.1ZRPRT.P1
1ª Vara Criminal do Porto

Acordam, em Conferência, as Juízas desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
Na 1ª Vara Criminal do Porto, no processo comum colectivo nº 6/08.1ZRPRT, foram submetidos a julgamento os arguidos B… e C…, tendo sido proferida decisão com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, o Tribunal julga parcialmente procedente a douta acusação pública e, em consequência, decide:
1 - condenar o arguido C… nas seguintes penas, pela prática dos seguintes crimes:
- Em co-autoria com a B…, um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual ou laboral, p. e p. pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do CP (vitima D…), na pena de 5 anos de prisão;
- Em co-autoria com a B…, um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, p. e p. pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do CP (vitima E…), na pena de 5 anos de prisão;
- Em co-autoria com a B…, um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual ou laboral, p. e p. pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do CP (vítima F…), na pena de 5 anos de prisão;
- Em co-autoria com a B…, um crime de lenocínio de menor, p. e p. pelo art.º 175º, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e d) do CP (vítima E…), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão (este crime está em relação de concurso aparente – consunção - com o crime de coacção);
- Em co-autoria com a B…, um crime de lenocínio de menor, p. e p. pelo art.º 175º, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e d) do CP (vítima F…), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão (este crime está em relação de concurso aparente – consunção - com o crime de coacção);
- em co-autoria com a B…, um crime de coacção simples, previsto e punido pelo art.º154.º, do C. Penal, na pena de 1 ano de prisão (queixosa D…);
- em cúmulo jurídico na pena única de 10 anos de prisão;
2 – condenar a arguida B… nas seguintes penas, pela prática dos seguintes crimes:
- Em co-autoria com C…, um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, p. e p. pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do CP (vitima D…), na pena de 3 anos e 3 meses de prisão;
- Em co-autoria com C…, um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, p. e p. pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do CP (vitima F…) na pena de 3 anos e 3 meses de prisão;
- Em co-autoria com C…, um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, p. e p. pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do CP (vitima E…), na pena de 3 anos e 3 meses de prisão;
- Em co-autoria com o arguido C…, um crime de lenocínio de menor, p. e p. pelo art.º 175º, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e d) do CP (vítima E…), na pena de 3 anos e 3 meses de prisão (este crime está em relação de concurso aparente – consunção - com o crime de coacção);
- Em co-autoria com o C…, um crime de lenocínio de menor, p. e p. pelo art.º 175º, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e d) do CP (vítima F…), na pena de 3 anos e 3 meses de prisão (este crime está em relação de concurso aparente – consunção - com o crime de coacção);
- em co-autoria com o C…, um crime de coacção simples, previsto e punido pelo art.º154.º, do C. Penal, na pena de 9 meses de prisão (queixosa D…);
- na pena única de 6 anos de prisão.
Mais se absolve os arguidos dos restantes crimes de que foram acusados, em virtude da já referida relação de concurso aparente - relação de consunção - com o crime pelos quais foram condenados.
Custas pelos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 6UCs.
Notifique e deposite.
***
Inconformada com a decisão condenatória, a arguida B… veio interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
A. Por acórdão proferido a 21 de Novembro de 2013, no âmbito do processo nº 6/08.1ZRPRT, que correu os seus termos na 1.ª Vara Criminal do Porto, foi a recorrente condenada como - co-autora de três crimes de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, p. e p. pelo art.º 160.º n.1 als. b) e d) do Código Penal, na pena de 3 anos e 3 meses para cada um dos crimes; – co-autora de dois crimes de lenocínio de menor, p. e p. pelo art.º 175 n.ºs 1 e 2 als. a), b) e d) do Código Penal, em concurso aparente com o crime de coacção, na pena de 3 anos e 3 meses para cada um dos crimes; e – co-autora de 1 crime de coação simples, p. e p. pelo art.º 154.º do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão, - resultando a pena única de 6 anos de prisão.
B. O presente recurso tem como objecto toda a matéria do acórdão condenatório proferido nos presentes autos.
C. Para a condenação da recorrente, o Meritíssimo Tribunal “a quo” concluiu pela total credibilidade dos depoimentos prestados para memória futura.
D. Tal conclusão foi sustentada em pressupostos com os quais a recorrente não concorda, desconsiderando-se toda a prova testemunhal prestada em sede de audiência de discussão e julgamento, aliás, prova esta oferecida pela acusação.
E. O Tribunal a quo deu como provado o texto acusatório na sua essencialidade para a pesada condenação da arguida.
D. Formando a sua convicção, e com o devido respeito, quanto à Recorrente de forma errada, nos depoimentos prestados para memória futura, que por mais nenhuma testemunha é corroborado.
E. Errada apreciação do depoimento da Testemunha D…, que sendo a única testemunha presencial se mostrou firme ainda que sujeita a forte contraditório.
F. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos, porquanto, em relação aos mesmos não foi produzida prova cabal e suficiente.
G. Assim, da análise da prova produzida resulta, plenamente demonstrado, que a Arguida não cometeu os crimes pelos quais foi condenada.
H. Ao ter decidido como o fez, o Tribunal a quo violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, o princípio da descoberta da verdade material, a essência do princípio in dubio pro reo, o princípio da imediação e o princípio da oralidade.
I. No que aos Crimes de Tráfico de Pessoas para Fins de Exploração Sexual, p. e p. pelo art.º 160.º n.1 als. b) e d) do Código Penal respeita, mormente o vertido nos factos 1 a 10 do douto acórdão, é notória a ausência de participação da recorrente na conduta explanada.
J. Resulta provado pela transcrição vertida que, as ofendidas, em momento algum foram ludibriadas no propósito da viagem.
K. Atendendo-se à prova testemunhal produzida, constacta-se, inequivocamente, da errada formação da convicção do Tribunal ao condenar a arguida por este crime.
L. Nomeadamente do testemunho da ofendida D…, prestado directamente, em sede de julgamento.
M. Do qual resulta claro a total ausência da arguida/recorrente na prática do crime de tráfico, não havendo uma única referência à sua participação.
N. Tendo o Tribunal a quo desobedecido aos princípios basilares do Processo Penal da Imediação e da Livre Apreciação da Prova porquanto, carece de total fundamentação e motivação a condenação da arguida pelo Crime de Tráfico de Pessoas, dos quais deverá ser absolvida, revogando-se o acórdão recorrido.
O. Relativamente aos Crimes de Lenocínio de Menor, p. e p. pelo art.º 175 n.ºs 1 e 2 als. a), b) e d) do Código Penal, também não se retira dos factos dados como provados, motivação e fundamentação bastante que, a arguida/recorrente B… tenha praticado tais crimes.
P. No que à arguida/recorrente diz respeito, a sua única conduta era de que, ela mesma, também praticava o alterne ou striptease.
Q. Conduzindo, ocasionalmente, as ofendidas para as casas quando, também ela ia trabalhar, e não com a função de as controlar.
R. Na prova testemunhal produzida, oferecida pela acusação, nenhuma destas condutas logrou obter acolhimento, como se demonstrou pelos depoimentos da ofendida D…, G… e M….
S. Sendo evidente que, a actividade desenvolvida por todas era o alterne e nunca a prostituição.
T. Não ficou também demonstrado que as ofendidas receassem a arguida/recorrente.
U. Não pode o Tribunal recorrido bastar-se com a simples presunção do medo.
V. Assim como controlo que nunca foi exercido pela arguida/recorrente.
W. Evidenciou-se que, a arguida/recorrente tinha exactamente as mesmas funções das ofendidas, e nunca o desígnio de as violentar, ameaçar, enganar, ou tendo sequer obtido qualquer proveito económico com a sua conduta.
X. Não ficou demonstrado que, qualquer quantia monetária lhe tivesse sido entregue, por quem quer que fosse.
Y. Resultou claro que a prática do alterne era vontade de todas as ofendidas, chegando a testemunha D… a afirmar que era como se estivessem numa discoteca.
Z. E que aliás continuou a exercer após os factos levados a julgamento, e nesse sentido depuseram as testemunhas I… e J….
AA. Demonstrou-se o não preenchimento dos requisitos para a condenação da arguida/recorrente pela prática de 2 crimes de lenocínio de menor.
AB. Assim, como, também, resulta da prova testemunhal produzida, NUNCA é aventada a prática de sexo, ou actos relevantes de ofensa à dignidade humana, integridade moral e física das ofendidas.
AC. Ou seja, não se fez qualquer prova, em momento algum de factos que consubstanciem, que pelo menos pela arguida/recorrente, tenha “levado” as ofendidas à prática de sexo ou actos sexuais de relevo, e como estamos perante um crime de resultado, não há crime!
AD. Houve, portanto, erro notório, pois retirou-se de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, assim como se retirou de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, notoriamente violadora das regras da experiência comum.
AE. Aliás, os factos provados são incompatíveis e irremediavelmente contraditórios com outros dados de facto, positivos e negativos, senão vejam-se, os factos provados, a prova produzida e a fundamentação do acórdão proferido pelo tribunal a quo – tudo em si contraditório.
AF. Pronunciamo-nos também sobre o factor menoridade, só conhecido das ofendidas e da testemunha K….
AG. E que as ofendidas deliberadamente ocultaram da arguida/recorrente e da pessoa que supostamente ajudou a ofendida D….
AH. Esse sim, era o seu verdadeiro receio, o da descoberta da sua idade e que terá potenciado a sua “fuga”, pois nem os arguidos sabiam dessa especial condição como a mesma afirma no seu depoimento.
AI. Conclui-se assim que, não foi pela arguida/recorrente cometido qualquer crime, pelo que deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado, também, na condenação da arguida pela prática de 2 crimes de Lenocínio de Menor, pugnando-se pela absolvição da mesma.
AJ. Quanto ao Crime de Coação Simples p. e p. pelo art.º 154 do Código Penal, fundou-se o seu recurso em motivos semelhantes aos expostos para os crimes que antecedem.
AK. A prova testemunhal produzida e transcrita, elucida por si própria que, nunca a arguida/recorrente exerceu qualquer violência ou ameaça sob as ofendidas para as mesmas praticarem ou omitirem determinado acto, muito menos quanto à ofendida D…, que é a visada neste crime.
AL. Pelo que, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado, também, na condenação da arguida pela prática deste crime, pugnando-se pela absolvição da mesma.
AM: Pronunciamos-mos, também, sobre a errada valoração da prova por parte do Tribunal recorrido.
AN. É notória a primazia dada pelo Tribunal a quo às declarações para memória futura, em detrimento da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, o que não deveria ter acontecido.
AO. Primazia extrema ao considerar as declarações para memória futura da testemunha K… que, relembre-se, foi participante fulcral no arranjo, concertação e vinda das ofendidas para Portugal.
AP. As duas testemunhas, que depuseram em tribunal explanando a sua versão e sentimento quanto aos factos em depoimento directo, são preteridas na valoração de prova, em relação àquelas duas que não se quiseram apresentar em juízo e que produziram declarações sem qualquer contradita.
AQ. É errada a valoração de prova do respeitável Tribunal a quo que, ao fundar-se nas declarações para memória futura, pois das outras não resulta motivação suficiente para as condenações da arguida/recorrente, violou os princípios da livre apreciação da prova, do contraditório, da oralidade e da imediação.
AR. Pois a prova produzida nos autos impunha ao Tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta do acórdão recorrido e consequente absolvição da arguida/recorrente, o que se pretende.
AS. Há também desacordo, e ainda que não se conceda e conceba a condenação da arguida, que funda o presente recurso na sua versão maxime, no que respeita ao número de crimes vs conduta da arguida.
AT. De tudo o quanto se expos, e na eventualidade que, só academicamente se aceita, uma vez verificados os pressupostos objectivos dos crimes de Tráfico de Pessoas e Lenocínio de Menor imputados à arguida/recorrente, crê-se que, tal materialidade apurada e os valores protegidos pelas normas enfocados no interesse geral da comunidade, estaremos perante um caso de unidade criminosa independentemente do número de pessoas traficadas ou sujeitas ao lenocínio.
AU. Ainda no que ao crime de tráfico de pessoas respeita, defende-mos que, o bem que se visa proteger é a expressão livre de deslocação para país estrangeiro assente nos valores morais da sociedade, longe, portanto, da pessoalização do crime ou conduta.
AV. E o mesmo raciocínio se aplicou ao Crime de Lenocínio de Menor, pois, o bem protegido não será a liberdade de determinação sexual, uma vez que, tal crime existe ainda que aquele que pratica a prostituição o faça livremente, sem quaisquer constrangimentos. Se a prostituta/o pretende exercer a prostituição, o favorecimento que outro fizer dessa actividade, com intuito lucrativo, não tem que ver com a sua liberdade de determinação sexual.
AW. Estando, assim em ambos os crimes perante uma unicidade dos mesmos, ainda que, o crime de Tráfico de Pessoas venha a ser consumido pelo de Lenocínio de Menor.
AX. As condutas associadas aos crimes em questão, estão num estrito relacionamento instrumental entre os dois tipos de crime, ou seja, em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu alcance e os seus efeitos.
AY. Não julgando dessa forma, o Tribunal recorrido desrespeitou as regras informadoras das relações de concurso aparente existentes entre cada um dos ilícitos, descurando que, in casu, o crime de Lenocínio consome o crime de Tráfico de Pessoas.
AZ. Devendo, portanto, e se persistia o Acórdão pela condenação da arguida/recorrente, o ter feito apenas pela prática de um crime de Lenocínio de Menor, demonstrada que está e unicidade do mesmo e a sua consunção relativamente ao crime de tráfico de pessoas.
BA: Determinando-se assim a revogação do acórdão recorrido e a condenação da arguida/recorrente apenas e só por um crime de Lenocínio de Menor.
BB. Subsumiu o Tribunal a quo aos factos provados e sua motivação que os crimes praticados pela arguida/recorrente o foram, em co-autoria.
BC. Não poderia o Tribunal recorrido pugnar pela co-autoria, porquanto, a mesma não ficou, sequer, minimamente provada.
BD. Em momento algum se demonstrou que a arguida/recorrente tivesse participado ou sequer estivesse consciente dos intentos do co-arguido e da testemunha K…, ou que, participou na partilha de meios, ou sequer de proveitos do trabalho com vista à concretização de qualquer um dos crimes.
BE. Nesse sentido se pronunciou a testemunha/ofendida D… que caracterizou a arguida recorrente como vítima!
BF. Colocamos academicamente a hipótese da cumplicidade que, no lugar de condenação, que se censura, deveria esta, ser sempre especialmente atenuada em função deste instituto.
BG. Conclui-se pela suspensão da execução da pena de prisão.
BH. Uma vez que se crê na revogação do acórdão recorrido, absolvendo V. Exas. a arguida dos crimes por que foi condenada, não poderemos obviar, em alternativa, a uma drástica redução da pena a aplicar à recorrente.
BI. E nesse caso concluir que, a suspensão da execução da pena de prisão se mostra adequada aos presentes autos, tendo também em consideração as condições sociais, familiares e profissionais, a que acresce um registo criminal imaculado à data dos factos.
Em suma, nos presentes autos, ficou cabalmente provado que a Arguida não praticou os crimes pelos quais veio condenada, não restando dúvida da total ausência de participação nos factos pelos quais vinha acusada e quanto à sua culpa, pelo que deverá ser absolvida.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido, e a Arguida absolvida da prática dos crimes por que veio condenada, tudo com as legais consequências.
Em alternativa, e caso V. Exas. assim o acordem, se resultar condenação inferior a 5 anos de prisão, deverá tal pena ser suspensa na sua execução.
Com o que V. Exas. farão JUSTIÇA!
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O recurso foi admitido (cfr. despacho de fls. 1323).
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Em resposta ao recurso da arguida o Ministério Público pugnou que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se nos precisos termos o acórdão recorrido.
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Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do insucesso do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido deduzida resposta ao parecer.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Passemos agora ao conhecimento das questões alegadas no recurso interposto da decisão final proferida pelo tribunal colectivo.
Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida.
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respectiva motivação, constantes do acórdão recorrido (transcrição):
II – Fundamentação:
Matéria de facto provada:
1 - Em Setembro de 2007, D…, de nacionalidade romena e naquela época com 16 anos de idade, viajou da Roménia para Itália a fim de arranjar emprego naquele país.
2 - Após um mês de permanência em Itália realizou diversos contactos via Internet com um amigo romeno, K…, que trabalhava em Portugal como motorista dos arguidos C… e B….
3 – D… manifestou o desejo de trabalhar em Portugal, tendo solicitado ao seu amigo K… que lhe arranjasse emprego.
4 – K…, num contacto posterior, comunicou a D… que havia arranjado emprego para aquela no ramo de hotelaria, mais propriamente num restaurante, e que ficaria hospedada na casa dos arguidos C… e B….
5 - Assim, em dia não concretamente apurado, em meados de Outubro de 2007, K… e o arguido C… deslocaram-se a Itália para ir buscar D….
6 - Com D…, vieram duas amigas, E… e F…, menores de idade, que se encontravam em Itália, com a promessa feita pelo arguido C… de que viriam todas trabalhar num restaurante.
7 - Viajaram para Portugal num veículo de marca Seat, com a matrícula ..-..-DG, de cor vermelha.
8 - Durante a viagem, o arguido C… retirou-lhes os telemóveis e destruiu-os.
9 - Assim chegadas a Portugal as três menores ficaram hospedadas em casa dos arguidos B… e C…, sita na Rua …, n.º …º, .º Direito - ., nesta cidade e comarca.
10 - Foram as mesmas recebidas pela arguida B… que, conjuntamente com o arguido C…, as informou que teriam que pagar a viagem de Itália a Portugal e de que não iriam trabalhar num restaurante, mas em casas de diversão nocturna que a arguida B… conhecia, onde teriam que se prostituir.
11 - Para as forçar a fazerem o que ambos os arguidos pretendiam, o arguido C… agrediu-as e ameaçou-as.
12 - E uma vez que as mesmas não dispunham de documentos e eram menores, o arguido C… deu-lhes cópias de documentos de identificação que não correspondiam aos verdadeiros com os nomes e datas de nascimento adulterados.
13 – D… passou a ter o nome de “D1…”, foi obrigada a trabalhar em casas de alterne, cerca de 4 meses, das 23.00 horas às 4.00 horas, sem receber qualquer contrapartida pelo seu trabalho, porquanto era obrigada a entregar todos os valores que recebia a esse título aos arguidos.
14 - Passou por diversas casas de diversão nocturna e obedecia às ordens da arguida B… que a controlava e sabia o que fazia e quanto ganhava. Tinha a função de servir bebidas e conversar com os clientes.
15 - Durante os referidos 4 meses ficou hospedada em casa de B…, só lhe sendo permitido sair de casa para ir trabalhar para as ditas casas de diversão nocturna, ou para ir ao supermercado, tendo igualmente saído com um cliente, a testemunha M….
16 - A queixosa D… tinha medo do arguido C…, sendo que não se importava de trabalhar nas casas de alterne, apenas não ficando satisfeita pelo facto de não ficar com qualquer dinheiro que angariava, uma vez que o entregava todo ao C…, pelo medo supra referido.
17 - Por seu turno, E… e F…, foram igualmente obrigadas a trabalhar, como alternadeiras, isto é, com a função de servir bebidas e conversar com clientes, em casas de diversão nocturna, sendo que mudavam de “casa” periodicamente.
18 – E… e F…, viviam em condições idênticas à menor D…, onde todos os seus movimentos eram controlados, não podendo contactar com ninguém, inclusive com a família.
19 - No entanto, passados cerca de 15 dias de estarem a trabalhar nas casas de diversão nocturna supra referidas, o arguido C… afirmou que E… e F…, para além de servirem bebidas aos clientes teriam ainda que ter relações sexuais com os mesmos, para receberem mais dinheiro.
20 - Como estas se recusavam a efectuar tais serviços, o arguido bateu-lhes e retirou-lhes comida, tendo inclusivamente batido diariamente na queixosa F….
21 - Assim, E… e F… foram obrigadas a manter relações sexuais com homens durante o tempo em que estiveram em Portugal, sendo que o dinheiro obtido, por estes actos, era todo entregue à arguida B… ou ao arguido C….
22 - As quantias obtidas por estas duas menores, E… e F…, traduziram-se em quantias monetárias não concretamente apuradas, atendendo á diversidade e número de clientes com que as mesmas foram obrigadas a manterem relações sexuais e também à tabela de preços praticada por cada uma das “casas” de diversão onde apanhavam esses clientes.
23 - O transporte das menores D…, E… e F…, até às casas de diversão nocturna era, umas vezes assegurado pela arguida B…, que utilizava um veículo de marca Subaru …, de cor cinzenta e outras pelas carrinhas das casas de diversão nocturna que as recolhiam no ….
24 - O arguido C… obrigava ainda as menores (com excepção da D…) a tomar Carnitina, um medicamento para emagrecer, afirmando que estas estavam gordas e que tal não era do agrado dos clientes com quem bebiam e/ou mantinham relações sexuais.
25 - Os arguidos B… e C… obrigavam as ditas menores a efectuar a limpeza e arrumação da casa onde todos habitavam, sendo que quando estas recusavam eram agredidas fisicamente pelo arguido C….
26 - Além disso, os arguidos B… e C… também lhes retiravam todo o dinheiro que elas recebiam nos clubes nocturnos, valores esses referentes às bebidas e/ou aos serviços sexuais.
27 – F… e E… não podiam comunicar livremente com os seus familiares e, quando o faziam, era sempre na presença do arguido C….
28 - Por sua vez, a queixosa D… também não podia comunicar livremente com os seus familiares, sendo que também não o tentava fazer por sentir vergonha do que se estava a passar.
29 - A dada altura, o arguido C… permitiu que as jovens usassem um telemóvel, mas as conversas decorriam sempre na presença deste, estando proibidas de mencionar o que faziam em Portugal.
30 - Certo dia, E… conseguiu enviar um SMS a uma amiga romena onde referiu que era obrigada a manter relações sexuais com homens contra a sua vontade, tendo sido surpreendida pelo arguido C….
31 - Em face da referida mensagem o arguido C… espancou de forma violenta E…, tendo esta ficado cerca de 3 dias impossibilitada de frequentar clubes nocturnos, devido ao estado físico em que ficou.
32 – E… e F…, viviam constantemente em terror, chorando várias vezes e dizendo sucessivamente que não queriam continuar a frequentar as casas de alterne e a ter relações sexuais com os clientes, e que não aguentavam mais aquela situação, sendo que a queixosa D… além do medo que sentia do arguido C… tinha também receio de ficar sozinha em Portugal, uma vez que era menor e não tinha qualquer documento, tendo igualmente vergonha e receio de contar á família o que se estava a passar.
33 - Em face do desespero vivido pelas 3 jovens, as mesmas pediram ajuda ao seu amigo K….
34 - Assim, em meados de Fevereiro de 2008, em dia não concretamente apurado, K… convenceu o arguido C… a sair e a levar as 3 jovens a um clube nocturno para se distraírem. Nesse clube, K… conseguiu que este consumisse diversas bebidas alcoólicas tendo ficado embriagado.
35 - Em face do estado do arguido C…, o mencionado K… conseguiu encetar a fuga com E…, levando-a com ele. Fê-lo todavia sem ter conseguido levar também as menores F… e D…, uma vez que a primeira foi obrigada a consumar relações sexuais com clientes, num bar …, e a menor D… encontrava-se embriagada pelo consumo de bebidas alcoólicas, naquela noite.
36 - No entanto, posteriormente, K… contactou o irmão de F… e contou-lhe o que se estava a passar com esta em Portugal.
37 - Após este contacto o pai de F…, contactou o arguido C… e mencionou que se este não deixasse a sua filha regressar, iria de imediato contar o que se passava à Interpol, tendo então o arguido C… deixado a menor F… ir ter com a mãe a Itália.
38 - Entretanto, a menor D… continuava no nosso país a exercer funções de “alternadeira”, em diversos bares e clubes nocturnos nesta cidade, a mando e sob o controlo dos dois arguidos que continuavam a exigir-lhe a entrega de todo o dinheiro que ela ganhava nessa actividade.
39 - Numa das noites em que D… se encontrava a trabalhar nas casas de diversão nocturna conheceu M…, mais conhecido por “Sr. M1…”, tendo-lhe contado as condições em que se encontrava no nosso país.
40 - Certa noite, o Sr. M1… convenceu o arguido C… a deixar sair D… na sua companhia, com o intuito de ajudar esta a fugir da casa dos arguidos.
41 - Nessa noite, em Fevereiro de 2008, D… conseguiu sair com o Sr M1…, acompanhada da arguida B…, para a vigiar e controlar, e um outro indivíduo amigo e cliente, tendo todos ido ao O….
42 - Quando chegaram a casa, a arguida abriu a aporta e saiu do carro, ao que o M1… arrancou com o carro onde se encontrava D… e fugiu com esta.
43 - Após o Sr. M1… levou D… para casa de uma amiga de nacionalidade romena, em São João da Madeira.
44 – D… nunca mais viu o arguido C…, tendo visto a arguida B… há uma cerca de 1 ano, não tendo conhecimento que os mesmos a tivessem procurado, quando saiu de sua casa.
45 - Os arguidos C… e B… agiram de comum acordo e em comunhão de esforços e intentos, obrigando as vitimas menores de idade a prostituírem-se usando para tal a força física e amedrontando-as, privando-as da sua liberdade e obrigando-as a entregar-lhes todos os proventos auferidos diariamente naquela actividade. Os arguidos conseguiram, desta forma que as menores E… e F… se prostituíssem e que a menor D… exercesse as funções de alterne, contra a vontade das ofendidas e com o propósito conseguido de obter elevadas vantagens patrimoniais, decorrentes dessas actividades.
46 - Os arguidos C… e B… agiram de comum acordo e em comunhão de esforços, com o propósito de privarem as ofendidas da sua liberdade de acção durante o tempo em que, contra a vontade das mesmas, as mantiveram dentro da habitação não as deixando contactar com ninguém, retirando-lhes os telemóveis e supervisionando todas as suas condutas e passos.
47 - Deste modo, amedrontaram e constrangeram as ofendidas obrigando-as a continuar na actividade da prostituição, explorando-as economicamente quer na prática de actos sexuais por parte de E… e F…, quer nas funções de alterne por parte de D…. Aproveitaram-se sempre da vulnerabilidade das ofendidas, bem sabendo que as mesmas eram menores, e sempre com o propósito de obterem proventos económicos.
48 - Actuaram os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
49 - Os arguidos não têm antecedentes criminais.
50 - A arguida trabalha em limpezas e faz manicure, auferindo cerca de 600€ mensais. Está a morar sozinha em Portugal, pagando cerca de 300€ de renda. Actualmente namora, sendo que o seu namorado que a auxilia economicamente. Tem uma filha de 3 anos, do arguido C…, que vive na Roménia com a sua mãe (da arguida). Estudou até ao 12.º ano. Quando tem disponibilidade financeira envia dinheiro para a Roménia. Ainda não definiu o seu projecto de vida, não sabendo se vai voltar para a Roménia ou se se irá radicar definitivamente em Portugal.
51 - Após ter fugido da casa dos arguidos, a queixosa D… continuou em Portugal, trabalhando em casas de alterne.

Factos não provados
Não se provaram outros factos com relevância para a boa decisão da causa, mormente que:
- a arguida tenha exigido às queixosas que lhe pagassem 330€ da viagem;
- as queixosas tivessem consigo os seus documentos de identificação e que o arguido os tivesse retirado das queixosas;
- o nome das casas que as queixosas trabalharam, bem como que as mesmas tivessem mudado de casa de 15 em 15 dias;
- que a queixosa D… estivesse privada de falar com os gerentes da casas de alterne onde trabalhava;
- que o arguido C… tivesse batido na queixosa D…;
- que o C… tenha permitido que a queixosa D… se tivesse encontrado com o M1… a troco de 150€, e que tal encontro apenas tivesse ocorrido no dia seguinte à data combinada, por imposição do arguido C…, que não permitiu que o encontro tivesse ocorrido na primeira noite.
- que os arguidos tivessem privado as queixosas da sua liberdade de locomoção, para além da liberdade de acção dada como assente nos pontos 46 e 47.
- não resultaram também provados outros factos alegados na acusação, contestação ou alegadas durante a discussão da causa e que se mostrem em contradição com os factos dados como provados ou por eles prejudicados.
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Indicação probatória quanto aos factos dados como provados e não provados
Para prova dos factos constantes da acusação, o Tribunal atendeu aos documentos juntos aos autos, bem como ao depoimento da arguida e de todas as testemunhas inquiridas.
Começando pela arguida a mesma afirmou ter vindo para Portugal em 2005, tendo trabalhado em cafés, restaurantes e limpezas, sendo que em 2007, começou a trabalhar em casas de diversão noturna como stripper e alternadeira. Referiu também que conheceu o C… em Portugal, tendo vivido em união de facto com o mesmo cerca de 6 anos (desde 2005 até Outubro/Novembro de 2011). Na altura, no ano de 2005, conheceu-o num café onde trabalhava. Referiu que o arguido C… vendia carros em Portugal, transportando-os da Alemanha para cá, juntamente com o K…, que era quem conduzia os carros. Mais referiu que a partir de 2009 exploraram um bar de diversão noturna em Matosinhos.
Começando a depor sobre os factos propriamente ditos, a arguida referiu que o C… e o K… foram a Itália buscar a D…, tendo-se deslocado num Seat … de cor vermelha, com a matrícula DG, apenas sabendo que a D… era namorada do K… e que vinha para morar com ele. Mais esclareceu que o K… morava com os arguidos na rua …. Quando chegaram, além da D… vieram mais duas raparigas, não sabendo por que motivo, sendo que o C… apenas lhe disse que era amigas de infância da D… e que queriam trabalhar em Portugal. Afirmou que não ficou muito satisfeita com toda aquela situação, tanto mais que não tinham espaço para tanta gente, pois que a casa apenas tinha um quarto, que era o que partilhava com o arguido C…, passando as restantes pessoas a dormirem na sala.
Quando chegaram, a arguida negou que alguma vez lhes tivesse exigido dinheiro, nomeadamente 330€ para o pagamento da viagem, bem como que lhes tivesse tirado o passaporte ou que as tivesse obrigado a prostituir-se, esclarecendo que as mesmas foram trabalhar para casas de diversão nocturna porque quiseram, não sabendo se apenas eram alternadeiras ou se se prostituíam. Disse também que nunca suspeitou de que as mesmas fossem menores, não aparentando tal facto nem nunca tendo perguntado ao seu marido e ao K… a idade das mesmas. Também negou que alguma vez tivesse visto os documentos das ofendidas, desconhecendo a alegada alteração dos mesmos, conforme vem referido na acusação
Negou ainda que as ofendidas lhe entregassem o dinheiro que recebiam do seu trabalho, não sabendo se o faziam ao C… ou ao K…. No entanto, confirmou que as mesmas contribuíam para as despesas da casa.
Quanto á acusação de que controlaria as queixosas durante a noite e as impedia de sair durante o dia, a arguida negou terminantemente, referindo apenas que chegou a trabalhar com as queixosas no mesmo estabelecimento, mas que nunca procedeu a um controlo conforme vem referido na acusação. A esse propósito também disse que as menores circulavam livremente dentro e fora de sua casa, deslocando-se ao café e ao supermercado e contactando com a família através de telemóvel e Internet. Negou também qualquer agressão às menores, esclarecendo que, à sua frente, o arguido C… nunca lhes bateu, não sabendo, porém, se tal sucedeu em alguma ocasião, porque se encontrava muitas vezes fora de casa.
Questionado sobre o veículo que possuía, a arguida confirmou ter tido um Subaru cinzento, embora negando que utilizasse tal veículo para levar as ofendidas às casas onde trabalhavam, referindo que as mesmas se deslocavam para o … onde eram recolhidas por camionetas que depois as transportavam aos diferentes estabelecimentos de diversão noturna.
Relativamente à relação entre o arguido e o K…, a arguida referiu que a mesma se foi deteriorando, sendo que a explicação que encontrou para tal facto foi a circunstância de o arguido se ter metido com a queixosa D… algo que suspeitava, mas que apenas veio a confirmar posteriormente.
Quanto às circunstâncias em que as menores saíram da sua casa, a arguida referiu que o K… e a E… foram embora durante uma noite em que estava a trabalhar, não tendo avisado ninguém, nunca mais os tendo visto. Mais referiu que estavam a poupar dinheiro para alugarem um apartamento maior e que o K… e a E… levaram tal dinheiro consigo. Quanto à F…, a arguida afirmou que foi ela que a levou à estação e que apenas o fez porque a mesma afirmou querer ir embora. Negou, contudo, que tal se tenha ficado a dever a alguma ameaça perpetrada pelos familiares da queixosa.
Finalmente e quanto à saída da D…, a arguida narrou as circunstâncias em que tal ocorreu. Assim, referiu que uma noite foi jantar com o M1... e com um cliente seu que era amigo do M1…. Disse também que foi uma saída normal, não tendo ido com a D… para a controlar, mas sim porque o amigo do M1… queria estar consigo, tendo formulado pedido nesse sentido. Mais afirmou que a dado momento dessa saída, saiu do carro para fumar, ao que o M1…, a D… e o outro cliente se colocaram dentro do carro e se foram embora. Após esse episódio, nunca mais viu o K…, sendo que encontrou a B… há cerca de 1 ano atrás, sabendo que a mesma ficou em Portugal, trabalhando em casas de diversão nocturna.
Por fim, confirmou estar zangada com o arguido C…, em virtude do mesmo a ter traído com outras mulheres, bem como pelos processos em causa, referindo estar a ser incriminada por algo que não cometeu
Por sua vez, as testemunhas inquiridas depuseram neste sentido:
- I…, inspector do SEF afirmou ter recebido uma denúncia das autoridades da Roménia de que as menores haviam sido levadas para Portugal, tendo identificado os arguidos, indicando a sua morada e inclusivamente o carro em que a arguida se fazia deslocar. Tal denúncia teve origem numa queixa formulada por uma das menores que tinha fugido da casa dos arguidos.
No seguimento da mesma, em Janeiro de 2008, os agentes do SEF deslocaram-se a casa dos arguidos tendo-os interpelado, ao que estes negaram que vivesse lá mais alguém. No entanto, desconfiou dos arguidos, uma vez que verificou a existência de vários casacos na sala da habitação. Por causa disso, fizeram algumas vigilâncias à casa dos arguidos, não tendo descoberto as queixosas.
Finalmente, confirmou a intervenção do SEF, Departamento Regional do Centro, numa intervenção a casas nocturnas, na qual foi encontrada a queixosa D…, que se encontrava a trabalhar numa casa de alterne.
- J…, inspector da PJ, relatou as diligências que efectuou nos autos, confirmando que quando ouviram a B… a mesma não tinha qualquer documento de identificação em sua posse. Referiu também que a B… se encontrava a trabalhar numa casa de alterne e que a mesma aparentava ter cerca de 15/16 anos. Finalmente, confirmou que as alternadeiras costumam ser recolhidas no …, por carrinhas que depois as deixam nas várias casas de diversão noturna.
- E… afirmou conhecer os arguidos e não estar zangada com eles, confirmando que esteve em Portugal numa data que não pode precisar. Mais referiu não se recordar do que se passou em Portugal.
- D… afirmou ter 21 anos de idade, não trabalhando actualmente. Mais disse que veio para Portugal com cerca de 15/16 anos, tendo vindo com o K…, o arguido C… e com as duas amigas. Antes de vir para Portugal esteve em Itália, tendo ido para lá de autocarro. Essa viagem foi-lhe paga por um terceiro que lhe reteve a documentação, por forma a assegurar que a testemunha lhe ressarciria o dinheiro do bilhete. Como não o fez, ficou sem os documentos pessoais. Quando veio para Portugal fê-lo sem pensar, tendo partido á aventura e porque queria estar com o K…. Disse também que a sua intenção era trabalhar e passar férias. Com ela vieram as 2 amigas, F… e E…, que também queriam conhecer um país novo e trabalharem. Questionado sobre o motivo do C… ter ido com o K… buscá-las a Itália, a testemunha afirmou desconhecer, pensando que foi apenas para fazer companhia ao K….
Quando aqui chegaram, o arguido, disse-lhes que tinham de pagar a viagem e de contribuir para as despesas da casa, referindo-lhes que podiam trabalhar em casas de alterne, ao que a depoente e as suas amigas concordaram, porque precisavam de dinheiro e até achavam piada ao trabalho, pois que mais não era do que saírem à noite e divertirem-se. Mais disse que a B… também trabalhava na noite. Depois de iniciarem a sua actividade, a depoente e as amigas começaram a entregar o dinheiro que ganhavam ao arguido C…, que lhes ficava com o dinheiro todo, ora dizendo que era para a luz, ora para a renda ora para outra despesas concretas, o que deixava a depoente e as suas amigas bastante tristes. Questionada sobre o valor que auferia, a depoente afirmou não se recordar, referindo que não tinha muita consciência do valor do euro. Mais disse que apesar de entender que estava a dar dinheiro a mais, ela e as suas amigas não questionavam o C… porque tinham medo dele, designadamente que ele lhes batesse. A esse propósito, a testemunha afirmou que apenas saía de casa para ir trabalhar e para ir ao P…, não comunicando com os seus familiares na Roménia por sentir vergonha. Já as suas amigas comunicavam com a família, mas sempre na presença do arguido C… que controlava tudo o que diziam, não podendo dizer que trabalhavam na noite. Recorda-se de uma ocasião, em que a E… comunicou com a Roménia sem o arguido saber, tendo este ficado furioso, agredindo a E…. Disse também que o arguido nunca a obrigou a manter relações sexuais com clientes, referindo que, no início não desgostava do que fazia e que o fazia voluntariamente, apenas não gostando do facto do arguido lhe ficar com todo o dinheiro que auferia. Questionada sobre o motivo de não esconder dinheiro do arguido, dando-lhe tudo o que tinha, a testemunha afirmou que apenas o fazia por sentir medo dele, explicando também que nunca fez queixa à policia por ser menor e não ter documentação, tendo medo de ser mandada embora, reforçando que apesar de tudo gostava do que fazia, apenas querendo ficar com o dinheiro que auferia.
Quanto ao K…, a testemunha afirmou que pouco falava com ele, não percebendo muito bem qual era o seu papel na casa. Negou ainda que o K… e o arguido se tivessem zangado, bem como que tivesse tido um relacionamento amoroso com o arguido C…. Confirmou também que era intenção dos arguidos mudarem para uma casa maior, sendo que a casa onde estavam era pequena para as 6 pessoas (só tinha um quarto e sala), sendo que todas as mulheres ajudavam na limpeza e nas lides da casa.
Questionada sobre o modo como ia para as casas de alterne, a testemunha afirmou ter ido umas vezes na carrinha que as deixava nas diferentes casas, enquanto noutras ocasiões foi transportada pela arguida, que a levava no seu Subaru … cinzento. Disse ainda que a B… chegou a trabalhar nas mesmas casas que ela, interpretando tal facto como uma mera coincidência e não como uma forma da arguida controlar a sua actividade. No entanto, realçou que a arguida sabia o valor que a testemunha auferia, o que constituía mais um motivo para entregar todo o dinheiro ao C….
Quanto à arguida B…, a testemunha afirmou que a mesma estava apaixonada/obcecada pelo arguido C…, fazendo tudo o que ele pedia, pelo que não se abria com a B… por sentir medo que a mesma fosse contar ao arguido. Mais disse que a B… nunca lhes fez mal, mas sabia de tudo o que se estava a passar nunca tendo intercedido por elas.
Quanto às fugas, a testemunha confirmou o vertido na acusação, explicando que quando a E… fugiu a intenção era fugirem os 4, sendo que tal apenas não sucedeu, porque a F… estava a trabalhar e ela, quando tentava embebedar o arguido, acabou por ficar embriagada e adormecer, sendo que o K… e a E… apenas fugiram quando o arguido foi tomar banho.
Já relativamente à F…, a testemunha afirmou que o irmão da mesma falou com o C… e ameaçou que iria contar tudo à polícia, pelo que este a colocou dentro de um autocarro com destino a Itália.
Finalmente e no que concerne à sua fuga, confirma as circunstâncias em que tal sucedeu, referindo que tinha tudo combinado com o M1… e que fugiu no carro quando a arguida tinha acabado de sair para ir para casa. Mais afirmou que já tinha tido combinado com a Q… para ficar a dividir apartamento com a mesma, sendo que quem encetou contacto com a Q… foi o M1…. Após ter vindo embora, a testemunha afirmou que os arguidos não a procuraram, apenas os tendo encontrado uns anos depois. Disse também que continuou a trabalhar como alternadeira, tendo, em data que não sabe precisar, sido detida sem estar na posse da sua documentação.
- G…, proprietário de um bar de alterne, afirmou conhecer a B… e a D… em virtude de as mesmas terem trabalhado no seu bar, a primeira como stripper e a segunda como alternadeira, referindo que as mesmas chegaram a trabalhar naquele estabelecimento na mesma altura, tendo ideia que foi a B… que lhe pediu para contratar a D…. Mais disse que pagava diariamente, sendo que, em média, a B… auferia 300/400€ por semana.
- S… afirmou conhecer a arguida por frequentarem o mesmo café, referindo que a mesma é uma boa pessoa, boa mãe e uma boa amiga, sabendo que a mesma tinha problemas com o companheiro, o arguido C….
- M…, M1…, afirmou conhecer a D… e a arguida B… das casas de diversão nocturna, designadamente bares de alterne
Das conversas que mantinha com a D… referiu que a mesma lhe confidenciou que a B… e o companheiro tinham a documentação dela e que lhe ficavam com o dinheiro que ganhava, pelo que lhe solicitou que a ajudasse a sair de casa, pois queria ganhar o seu dinheiro. Quanto aos alegados maus-tratos, o seu depoimento foi muito intermitente, umas vezes referindo que a D… lhe contava que o arguido lhe batia e outras vezes referindo que nada sabia sobre essa questão.
Disse também que chegou a estar com a D… durante a tarde, na zona …, no Porto, tendo passeado com a mesma durante algum tempo, não sentindo que a queixosa estivesse constrangida ou, por qualquer, forma, coarctada nos seus movimentos, não sentindo que alguém os tivesse a seguir e a controlar os seus passos.
Mais afirmou que nunca praticou sexo com a D… nem a mesma lhe propôs que mantivessem qualquer tipo de relacionamento sexual.
Finalmente e quanto ao “episódio da fuga”, a testemunha afirmou que, numa determinada noite cuja data não consegue precisar, foi com a D…, a arguida B… e um amigo até ao O…, tendo jantado e jogado no referido estabelecimento. Mais disse que quando regressaram, deixou a arguida B… em casa e, depois de ela sair do carro, fecharam as portas e arrancaram, tendo levado a D… para uma casa de uma Romena em …, conforme previamente combinado. Depois disso, soube que a D… continuou a trabalhar em casas de diversão noturna, bem como a B…, tendo igualmente sabido que a queixosa era menor de idade, algo que nunca desconfiou dos tempos que privou com ela.
Finalmente foram lidas as declarações das testemunhas F… e K…, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
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Como é sabido, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127.º).
As regras ou normas da experiência, como refere Cavaleiro de Ferreira, são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto "sub judice", assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação de alicerçam, mas para além dos quais têm validade.
Por outro lado, a livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores (...).
Em suma, a prova deve ser apreciada pelo julgador livremente, de acordo com o bom senso, a lógica e a experiência de vida, temperados pela capacidade de distanciamento dada pela experiência de julgar[1].
Ora, de acordo com o bom senso, a lógica e a experiência de vida, bem se vê que a partir dos factos atrás consignados, só se podia concluir da forma como o fizemos.
Na verdade e desde logo há que atentar que esta situação foi vivenciada por 3 menores, sendo que, para além delas e dos arguidos, apenas a testemunha K… sabia perfeitamente do que se estava a passar.
Ora, dessas 3 menores, apenas 2 depuseram em audiência de discussão e julgamento, sendo que uma delas (E…) não quis falar, referindo que se esqueceu de tudo o que se passou em Portugal, enquanto que a testemunha D… suavizou um pouco a situação.
Já as outras 2 testemunhas, a F… e o K… não vieram a Tribunal, não tendo sido possível ouvir o seu depoimento, pelo que e dado que todos os intervenientes processuais concordaram, foram lidas as suas declarações prestadas em inquérito, pouco tempo depois da prática dos factos.
Ora, tais declarações, prestadas numa altura em que os factos ainda estavam vivos na memória dos intervenientes e numa época em que o decurso do tempo ainda não tinha relativizado a gravidade dos factos, foram bastante importantes para darmos como assente a factualidade vertida na acusação.
Com efeito, essas testemunhas relataram, de um modo muito pormenorizado, tudo aquilo que se passou, não tendo procurado formular juízos de valor, apenas descrevendo pura e simplesmente os factos, ao contrário do que já sucedeu com a testemunha D…, cujo depoimento já não se nos afigurou tão espontâneo, pelos motivos que a seguir se enumeram
Na verdade, esta vítima (D…) continuou a viver em Portugal, tendo refeito e organizado a sua vida, procurando esquecer tudo aquilo que vivenciou, denotando-se uma certa preocupação em querer esquecer o sucedido e não incriminar os arguidos, principalmente a arguida B…, não se comprometendo.
Porém, e após várias insistências, não deixou de relatar alguns factos, estando em sintonia com o que referiram as outras 2 testemunhas (foram enganadas quando vieram para Portugal pois pensavam que iam trabalhar na restauração, estavam sem documentos, não podiam comunicar sem estarem na presença do arguido C…, o mesmo batia nas queixosas, ficava-lhes com o dinheiro, etc), sendo que relativamente a ela afirmou sempre que, durante o período em que esteve na casa dos arguidos, não manteve relações sexuais com homens a troco de dinheiro, nem foi agredida, ao contrário das 2 outras menores.
Já o episódio da fuga da D… tivemos em conta aquilo que foi dito pela própria D…, pela testemunha L… e pela arguida, que admitiu ter ido com a queixosa nessa noite, embora negando que o seu objectivo tivesse sido o de controlar a queixosa.
Quanto ao que se passava nas casas de alterne, nomeadamente no que se refere á D…, o depoimento da testemunha G… foi suficiente para confirmarmos aquilo que foi dito pela D…, não se provando, dessa forma, que a arguida B… apenas fosse para essas casas com o intuito de controlar as queixosas, mas sim que a mesma também trabalhava nesses bares.
Aqui chegados, convém abordar duas situações, talvez, as mais controvertidas em termos de análise de prova e que consistem na conduta da arguida B…, bem como na alegada liberdade das queixosas.
Começando pela segunda questão e para além dos depoimentos das testemunhas K… e F…, que depuseram nesse sentido (a B… também, embora de uma forma mais suavizada), confirmando uma ausência de liberdade e um total controlo dos seus movimentos por parte de ambos os arguidos, embora em graus diferentes, há dois elementos objectivos que nos levam a concluir desse modo.
Desde logo, os episódios das fugas. Ora, se estava tudo bem e não havia qualquer privação da liberdade, de que forma fosse, ou qualquer tipo de exploração, então não se percebe por que motivo houve necessidade de recorrer a determinados estratagemas para a fuga, como o de embebedar o arguido, ou aproveitar uma desatenção da arguida. Acresce que a F… só regressou á Roménia após contacto da sua família com o arguido, ameaçando-o com uma queixa à Interpol.
Estes factos apontam claramente para uma privação da liberdade e para um clima de intimidação e medo.
Por outro lado, a testemunha I…, inspector do SEF, afirmou que após denúncia de que as menores se encontravam em Portugal, se deslocou a casa dos arguidos, tendo-lhes perguntado se lá vivia mais alguém, para além deles (arguidos), ao que estes negaram, tendo escondido as queixosas. Além disso, as várias diligências efectuadas pelos inspectores do SEF nos dias subsequentes revelaram-se infrutíferas, o que evidenciou um cuidado dos arguidos em esconderem tudo o que se passava.
Ora, esta conduta também é indiciadora de que algo de mal se estava a passar, sendo que juntando todas as peças do puzzle, facilmente se podia concluir que estávamos perante algo (bastante mais) do que uma simples permanência ilegal no nosso país.
No entanto, essa privação de liberdade, não significa privação da liberdade de locomoção, pois as queixosas não estavam presas fisicamente em determinado local, podendo circular. Simplesmente não o faziam por terem medo das consequências, designadamente por terem medo que o arguido C… lhes batesse caso não fizessem o que eles (arguidos) queriam, sendo que a intenção dos arguidos era que as queixosas se prostituíssem ou trabalhassem como alternadeiras e que lhes dessem todo o dinheiro que auferiam, mantendo ao mínimo todos os contactos com terceiros, de modo a esconder essa actividade.
Por outro lado, importa analisar a actuação da arguida B….
No decorrer do julgamento, a arguida negou que algo se passasse em sua casa, afirmando que pelo menos á sua frente nada sucedeu, embora admita que algo pudesse ter ocorrido pois que estava muito tempo fora de casa a trabalhar e só mais tarde é que descobriu que o arguido C… a traía com outras mulheres, bem como outros factos nada abonatórios para o mesmo.
Tais declarações são contrariadas pelos depoimentos das testemunhas K… e F…, que colocam a arguida como sendo autora dos factos, referindo que a mesma agia em concertação com o arguido C…, controlando as queixosas e retirando-lhes o dinheiro, embora nunca relatando que a arguida lhes tivesse batido.
Já a D…, no seu depoimento, procurou suavizar a gravidade da conduta da arguida, referindo que a mesma tinha medo do arguido C… e que era mais vítima do que agressora.
No entanto e não obstante entendermos que era notório um ascendente do arguido C…, certo é que tal não apaga, nem desculpa totalmente a conduta da arguida B…, nomeadamente os factos por ela praticados e que foram dados como assentes, baseados essencialmente nos testemunhos da F… e do K….
Acresce que não havia notícia de que a B… fosse vítima de maus-tratos por parte do arguido – não houve queixas, nem ninguém relatou tal factos – sendo que a mesma estava livre e voluntariamente naquela casa, sendo companheira do arguido, ajudando-o e auxiliando-o na sua conduta, tendo inclusivamente o ajudado a esconder a presença das queixosas, aquando da interpelação dos inspectores do SEF.
Além disso, também o depoimento da testemunha D… forneceu alguns indícios para podermos concluir da forma como fizemos, pois que e quando confrontada com o facto de não esconder parte do dinheiro que ganhava do arguido C…, a queixosa referiu que não o fazia porque a arguida sabia o que ela ganhava. Ora, tal resposta indicia claramente que a arguida B… estava a par de tudo e agia em concertação de esforços com o arguido C…, sendo que as queixosas tinham medo que ela as denunciasse.
Finalmente esclareça-se que numa casa tão pequena era impossível a arguida não ter visto as agressões e toda a envolvência dos factos, sendo que a sua justificação para tal facto - estava muito tempo a trabalhar - não mereceu acolhimento por parte deste Tribunal, pois que a altura em que o fazia era a mesma em que as queixosas se prostituíam, frequentando até as mesmas casas de alterne ou prostituição. Logo, temos de concluir que as agressões e a privação de liberdade ocorreram numa altura em que todas estavam em casa, pelo que a credibilidade da arguida B… ficou seriamente abalada, não havendo dúvida que o seu depoimento mais não consistiu numa tentativa de empurrar todas as responsabilidades para o arguido C….
Nessa conformidade e sem necessidade de nos repetirmos, a factualidade dada como assente baseou-se essencialmente nos depoimentos das testemunhas inquiridas, principalmente nas pessoas que vivenciaram os factos (K…, D… e F…), sendo que os factos dados como não provados basearam-se na ausência de prova ou na produção de prova contrária, mas sempre tendo em conta as declarações supra descritas.
A este propósito esclareça-se que não ficou assente que as queixosas tivessem ficado privadas da sua liberdade de locomoção em virtude de as próprias terem reconhecido que tal não sucedeu. Na verdade, as mesmas não estavam presas em determinado sitio, não estando impedidas fisicamente de se deslocarem e moverem. Simplesmente não o faziam e não iam a locais que os arguidos não queriam que elas fossem por terem medo da reacção do arguido C…, o que é bastante diferente, nomeadamente e como a seguir veremos a título de qualificação jurídica dos factos.
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Enunciação das questões a decidir no recurso em apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal [Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada]. [Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95].
Assim, face às conclusões apresentadas pela recorrente, importa decidir as seguintes questões:
- Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada;
- Erro notório na apreciação da prova e contradição da fundamentação e a decisão - vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal;
- Enquadramento jurídico dos factos;
- Unicidade do crime: concurso real/concurso aparente de crimes;
- Co-autoria e cumplicidade;
- Medida da pena;
- Suspensão da execução da pena de prisão.
Importa, antes de mais, tecer algumas, breves, considerações sobre a alegação constante da resposta do Ministério Público ao recurso da arguida, no sentido de que este deve ser indeferido por falta de indicação das normas violadas – artigo 412º, n.º 2, alínea a) do Código do Processo Penal.
Não concordamos com tal posição, já que analisadas a motivação e as conclusões em causa, se verifica que, ainda que de forma incipiente, o recorrente faz referência a algumas das normas jurídicas que entende que foram violadas, nomeadamente as respeitantes aos crimes em causa e dos quais pretende ser absolvida.
E neste sentido, concordamos com a orientação plasmada no Ac. do STJ de 21.01.1999, proc. nº 742/98, 3ª, SASTJ, nº 27, 80, in Código de Processo Penal Anotado, 17ª edição, 2009, notas ao art. 412º, pág. 968, em que se decidiu:
“- A observância das regras do nº 2 do artigo 412º do Código de Processo Penal tem de ser encarada com equilíbrio e sensatez, de modo a que, sendo apercebido, num mínimo, o desiderato do recurso, se não frustre com aspectos formais o objectivo principal de aplicar justiça”.
Face ao exposto, entendemos, pois, que o recorrente observou suficientemente o formalismo exigido no art. 412º, n.º 2, do Código do Processo Penal.
Ultrapassada esta questão prévia, passamos a analisar a primeira das questões supra elencadas e que contende com a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada.
É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, de conhecimento oficioso, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do Código de Processo Penal, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal, como sejam o de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e o de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, além da indicação das provas a renovar, se for caso disso.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (Sobre estas questões, v. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, disponíveis em www.dgsi.pt.).
Temos, pois, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.
Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
Mas se o recurso que incide sobre matéria de facto implica a reponderação, pelo Tribunal da Relação, de factos pontuais incorrectamente julgados, essa reponderação não é realizada se este tribunal se limitar a ratificar ou “homologar” o julgado (por exemplo, com a simples constatação, a partir do acolhimento da fundamentação, da correcção do factualmente decidido), em vez de fazer um verdadeiro exercício de julgamento, embora de amplitude menor.
Como faz notar o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 30.11.2006 (www.dgsi.pt/jstj), “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efectivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento” [No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 15.10.2008 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Henriques Gaspar) em que se escreveu que “a reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global e muito menos um novo julgamento da causa, também se não poderá bastar com declarações e afirmações gerais quanto à razoabilidade do julgamento da decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada (ou, melhor, uma nova ponderação), em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção em relação aos factos impugnados, para, por esse modo, confirmar ou divergir da decisão recorrida (cf. Ac. n.º 116/07 do TC, de 16-02-2007, DR, II série, de 23-04-2007, que julgou inconstitucional a norma do art. 428.º, n.º, 1 do CPP «quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos da prova produzida.]
É esse exercício que procuraremos fazer de seguida, mas não pode olvidar-se que uma das grandes limitações do tribunal de recurso quando é chamado a pronunciar-se sobre uma impugnação de decisão relativa a matéria de facto, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração, efectuada na primeira instância, da prova testemunhal, decorre da falta do contacto directo com essa prova, da ausência de oralidade e, particularmente, de imediação.
Também não se pode esquecer que o julgador pode recorrer a presunções naturais ou hominis no processo de formação da sua convicção, uma vez que se trata de um meio de prova admitido na lei (cf. art. 125º do Código de Processo Penal), sendo que de acordo com o disposto no art. 349º Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou julgador extrai de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido. Consistem, pois, em raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, que o julgador elabora, a partir da prova indiciária, para alcançar a verificação dos “factos juridicamente relevantes”.
Está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta (Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP, de 28.01.2009, do TRC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007 (todos disponíveis em www.dgsi.pt), também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância.
O nosso poder de cognição está confinado aos pontos de facto que a recorrente considere incorrectamente julgados, com as especificações estatuídas no art. 412º n.º 3 e 4 do Código Processo Penal.
E diga-se que a recorrente cumpriu minimamente o ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal.
A recorrente argumenta que foi incorrectamente julgada toda a matéria de facto dada como provada no acórdão em crise.
Atentemos no que se fez constar na Motivação da Matéria de Facto da sentença recorrida.
E atentemos também nos argumentos invocados pela recorrente.
O Tribunal da Relação procedeu à audição integral da prova testemunhal (e leitura dos depoimentos prestados em sede de inquérito), tal como das declarações da arguida, produzidas em audiência de julgamento, tal como analisou os documentos juntos aos autos.
Comecemos pelas declarações da arguida.
Quanto à arguida, em síntese, referiu que veio para Portugal em 2005 e foi aqui que conheceu o arguido C… num café onde trabalhava na altura. Depois em 2006 ou 2007 passou a trabalhar em casas de diversão nocturna como stripper e alternadeira. Esteve junta com o arguido C… 6 anos (desde 2005 até Outubro/Novembro de 2011), aliás, ele é o pai da sua filha, acabou por se separar em Outubro ou Novembro de 2011. Referiu que o arguido C… vendia carros em Portugal, transportando-os da Alemanha para cá, juntamente com o K…, que era quem conduzia os carros. Mais referiu que, a partir de 2009, exploraram um bar de diversão nocturna em Matosinhos. Declarou que o arguido e o K… foram a Itália buscar a namorada deste, a D…, no seu carro, da marca SEAT, não sabendo porque razão o C… foi com o K… e também não sabe porque razão foram buscar uma menina e vieram três. Mais esclareceu que o K… morava com os arguidos na rua …. Quando chegaram, além da D… vieram mais duas raparigas, não sabendo por que motivo, sendo que o C… apenas lhe disse que eram amigas de infância da D… e que queriam trabalhar em Portugal. Quando chegaram a Portugal ficaram em sua casa. Afirmou que não ficou muito satisfeita com toda aquela situação, tanto mais que não tinham espaço para tanta gente, pois que a casa apenas tinha um quarto, que era o que partilhava com o arguido C…, passando as restantes pessoas a dormirem na sala.
Quando chegaram, a arguida negou que alguma vez lhes tivesse exigido dinheiro, nomeadamente 330€ para o pagamento da viagem, bem como que lhes tivesse tirado o passaporte ou que as tivesse obrigado a prostituir-se, esclarecendo que as mesmas foram trabalhar para casas de diversão nocturna porque quiseram, não sabendo se apenas eram alternadeiras ou se se prostituíam. Disse também que nunca suspeitou de que as mesmas fossem menores, não aparentando tal facto nem nunca tendo perguntado ao seu marido e ao K… a idade das mesmas. Nunca viu os documentos das meninas, nem nunca teve curiosidade, pois não desconfiava que as meninas eram menores, desconhecendo a alegada alteração dos mesmos, conforme vem referido na acusação. Não sendo verdade que a arguida tivesse cobrado a viagem ou que obrigasse as meninas a prostituírem-se para pagarem as despesas da casa, não sabendo se o C… ficou com os documentos delas ou lhes batia ou se não as deixava sair, quanto a não lhes dar comida, isso não é verdade porque era a arguida que fazia a comida e comiam todos juntos.
Negou ainda que as ofendidas lhe entregassem o dinheiro que recebiam do seu trabalho, não sabendo se o faziam ao C… ou ao K…. No entanto, confirmou que as mesmas contribuíam para as despesas da casa.
Quanto à acusação de que controlaria as queixosas durante a noite e as impedia de sair durante o dia, a arguida negou terminantemente, referindo apenas que chegou a trabalhar com as queixosas no mesmo estabelecimento, mas que nunca procedeu a um controlo conforme vem referido na acusação, sendo verdade que a D… e as outras meninas trabalhavam em casas nocturnas como" alternadeiras", em algumas dessas casas a arguida também trabalhava e por isso as acompanhava, mas não para as controlar.
A esse propósito também disse que as menores circulavam livremente dentro e fora de sua casa, deslocando-se ao café e ao supermercado e contactando com a família através de telemóvel e Internet. Negou também qualquer agressão às menores, esclarecendo que, à sua frente, o arguido C… nunca lhes bateu, não sabendo, porém, se tal sucedeu em alguma ocasião, porque se encontrava muitas vezes fora de casa. Afirmou que foi o C… e o K… que lhes arranjou trabalho. Quanto ao dinheiro que recebiam não sabe se o entregavam na totalidade ao C… ou se ajudavam nas despesas da casa, aliás foi contra a estadia das meninas na sua casa. Questionada sobre o veículo que possuía, a arguida confirmou ter tido um Subaru cinzento, embora negando que utilizasse tal veículo para levar as ofendidas às casas onde trabalhavam, referindo que as mesmas se deslocavam para o … onde eram recolhidas por camionetas que depois as transportavam aos diferentes estabelecimentos de diversão nocturna: as casas nocturnas onde trabalhavam forneciam o transporte que apanhavam no "…".
Relativamente à relação entre o arguido e o K…, a arguida referiu que a mesma se foi deteriorando, sendo que a explicação que encontrou para tal facto foi a circunstância de o arguido se ter metido com a queixosa D… algo que suspeitava, mas que apenas veio a confirmar posteriormente. Entretanto, houve uma zanga entre o C… e o K… por causa da D…, mas o K… foi embora com a E… sem dizerem nada, pois roubaram o seu carro (Seat) e dinheiro.
Quanto às circunstâncias em que as menores saíram da sua casa, a arguida referiu que o K… e a E… foram embora durante uma noite em que estava a trabalhar, não tendo avisado ninguém, nunca mais os tendo visto. Mais referiu que estavam a poupar dinheiro para alugarem um apartamento maior e que o K… e a E… levaram tal dinheiro consigo. Quanto à F…, a arguida afirmou que foi ela que a levou à estação e que apenas o fez porque a mesma afirmou querer ir embora. Negou, contudo, que tal se tenha ficado a dever a alguma ameaça perpetrada pelos familiares da queixosa. Quanto à saída da D…, a arguida relatou as circunstâncias em que tal ocorreu, referindo que uma noite foi jantar com o M1…, um cliente assíduo das casas de diversão nocturna onde trabalhava e por este ser "cliente" da D…, e com um cliente seu que era amigo do M1…. Disse também que foi uma saída normal, não tendo ido com a D… para a controlar, mas sim porque o amigo do M1… queria estar consigo, tendo formulado pedido nesse sentido. Mais afirmou que a dado momento dessa saída, saiu do carro para fumar, ao que o M1…, a D… e o outro cliente se colocaram dentro do carro e se foram embora. Após esse episódio, nunca mais viu o K…, sendo que encontrou a D… há cerca de 1 ano atrás, sabendo que a mesma ficou em Portugal, trabalhando em casas de diversão nocturna. Não sabe explicar porque razão a fuga da D… ocorreu dessa forma, uma vez que quando ficava sozinha em casa ou quando saia sozinha à rua o poderia fazer. Não sabe se o C… obrigou as meninas a prostituir-se, nem a tomar medicamentos. Acha que as meninas não estavam proibidas de contactos porque as chegou a ver comunicar pela Internet e por telemóvel, pois quando chegaram de Itália não tinham telemóvel, mas depois tinham. Nunca viu o C… bater nas meninas. Não sabe se os pais da F… telefonaram ao C… para que este deixasse a F… regressar a Itália, o que sabe é que a foi levar ao autocarro com essa finalidade.
Por fim, confirmou estar zangada com o arguido C…, em virtude do mesmo a ter traído com outras mulheres, bem como pelos processos em causa, referindo estar a ser incriminada por algo que não cometeu.
A testemunha D… referiu que conhece os arguidos, por ter vindo para casa deles de férias a partir de Itália. Afirmou que veio para Portugal com cerca de 15/16 anos, tendo vindo com o K…, o arguido C… e com as duas amigas, a E… e F…. Antes de vir para Portugal esteve em Itália, tendo ido para lá de autocarro. Essa viagem foi-lhe paga por um terceiro que lhe reteve a documentação, por forma a assegurar que a testemunha lhe ressarciria o dinheiro do bilhete. Como não o fez, ficou sem os documentos pessoais. Quando veio para Portugal fê-lo sem pensar, tendo partido á aventura e porque queria estar com o K…, também romeno, de quem gostava. Nessa altura combinou através da Internet com o K…, para virem para Portugal de férias, pese embora não tivessem dinheiro, achavam que podiam arranjar trabalho. Com ela vieram as 2 amigas, F… e E…, que também queriam conhecer um país novo e trabalharem. O K… foi buscá-las a Itália conjuntamente com o C… (o arguido), não sabendo por que razão o C… foi com o K…, pensando que foi apenas para fazer companhia ao K…, não se lembrando de pormenores da viagem, sabendo apenas que foi cansativa e que vieram num carro da marca SEAT.
Quando aqui chegaram foram viver para casa dos arguidos, onde não havia mais ninguém, sendo que o arguido lhes disse que tinham de pagar a viagem e de contribuir para as despesas da casa, referindo-lhes que podiam trabalhar em casas de alterne, ao que ela e as suas amigas concordaram, porque precisavam de dinheiro e até achavam piada ao trabalho, pois que mais não era do que saírem à noite e divertirem-se. Mais disse que a arguida B… também trabalhava na noite. Depois de iniciarem a sua actividade, ela e as amigas começaram a entregar o dinheiro que ganhavam ao arguido C…, não sabendo sequer o que ganhava, que lhes ficava com o dinheiro todo, ora dizendo que era para a luz, ora para a renda ora para outra despesas concretas, o que a deixava e às suas amigas bastante tristes.
Questionada sobre o valor que auferia, a depoente afirmou não se recordar, referindo que não tinha muita consciência do valor do euro. Mais disse que, apesar de entender que estava a dar dinheiro a mais, ela e as suas amigas não questionavam o C… porque tinham medo dele, designadamente que ele lhes batesse. A esse propósito, a testemunha afirmou que apenas saía de casa para ir trabalhar e para ir ao P…, não comunicando com os seus familiares na Roménia por sentir vergonha.
Já as suas amigas comunicavam com a família, mas sempre na presença do arguido C… que controlava tudo o que diziam, não podendo dizer que trabalhavam na noite. Todas começaram a ficar fartas disso, tanto mais que a certa altura numa ocasião, em que a E… comunicou com a Roménia sem o arguido saber, este ficou furioso e bateu na E…. Então planearam fugir, ela, a E… e o K... combinaram embebedar o arguido para fugirem Disse também que o arguido nunca a obrigou a manter relações sexuais com clientes, referindo que, no início não desgostava do que fazia e que o fazia voluntariamente, apenas não gostando do facto do arguido lhe ficar com todo o dinheiro que auferia. Questionada sobre o motivo de não esconder dinheiro do arguido, dando-lhe tudo o que tinha, a testemunha afirmou que apenas o fazia por sentir medo dele, explicando também que nunca fez queixa à policia por ser menor e não ter documentação, tendo medo de ser mandada embora, reforçando que apesar de tudo gostava do que fazia, apenas querendo ficar com o dinheiro que auferia.
Quanto ao K…, a testemunha afirmou que pouco falava com ele, não percebendo muito bem qual era o seu papel na casa. Negou ainda que o K… e o arguido se tivessem zangado, bem como que tivesse tido um relacionamento amoroso com o arguido C…. Confirmou também que era intenção dos arguidos mudarem para uma casa maior, sendo que a casa onde estavam era pequena para as 6 pessoas (só tinha um quarto e sala), sendo que todas as mulheres ajudavam na limpeza e nas lides da casa. Referiu ainda que ia para as casas de alterne, umas vezes na carrinha que as deixava nas diferentes casas, enquanto noutras ocasiões foi transportada pela arguida, que a levava no seu Subaru … cinzento. Disse ainda que a B… chegou a trabalhar nas mesmas casas que ela, interpretando tal facto como uma mera coincidência e não como uma forma da arguida controlar a sua actividade. No entanto, realçou que a arguida sabia o valor que a testemunha auferia, o que constituía mais um motivo para entregar todo o dinheiro ao C….
Quanto à arguida B…, a testemunha afirmou que a mesma estava apaixonada/obcecada pelo arguido C…, fazendo tudo o que ele pedia, pelo que não se abria com a B… por sentir medo que a mesma fosse contar ao arguido. Mais disse que a B… nunca lhes fez mal, mas sabia de tudo o que se estava a passar nunca tendo intercedido por elas.
Quanto às fugas, a testemunha confirmou o vertido na acusação, explicando que quando a E… fugiu a intenção era fugirem os 4, sendo que tal apenas não sucedeu, porque a F… estava a trabalhar e ela, quando tentava embebedar o arguido, acabou por ficar embriagada e adormecer, sendo que o K… e a E… apenas fugiram quando o arguido foi tomar banho.
Relativamente à F…, a testemunha afirmou que o K… acabou por contar ao irmão dela o que se estava a passar e então os pais dela ligaram ao arguido para a deixar regressar a Itália senão iriam fazer queixa à polícia, pelo que este a colocou dentro de um autocarro com destino a Itália.
Finalmente e no que concerne à sua fuga, confirma as circunstâncias em que tal sucedeu, referindo que tinha tudo combinado com o M1… e que fugiu no carro quando a arguida tinha acabado de sair para ir para casa. Mais afirmou que já tinha tido combinado com a Q… para ficar a dividir apartamento com a mesma, sendo que quem encetou contacto com a Q… foi o M1…. Após ter vindo embora, a testemunha afirmou que os arguidos não a procuraram, apenas os tendo encontrado uns anos depois. Disse também que continuou a trabalhar como alternadeira, tendo, em data que não sabe precisar, sido detida sem estar na posse da sua documentação. Acrescentou que sozinha não conseguia fugir, até porque tinha medo, porque o arguido C… não era muito simpático e não a queria deixar ir embora porque era a sua fonte de rendimento. Esta situação durou 3 ou 4 meses. Disse ainda que apenas saíam para ir ao P… a arguida, mas chegaram a ir trabalhar sozinhas e que os arguidos não lhe retiraram os documentos, estes ficaram em Itália retidos porque não pagaram o transporte da Romena para Itália. Afirmou também que não conseguiam falar muito uns com os outros e só quando chegaram a Portugal é que souberam qual o tipo de trabalho é que iam fazer, pois anteriormente estavam convencidas que iam trabalhar em restaurantes, não se importavam com isso, só se importaram com o facto de não ficarem com o dinheiro que ganhavam, que entregavam na totalidade, pois a B… (a arguida) estava sempre presente e sabia o que ganhavam e apesar de nunca as tratar mal tinham medo que ela fosse dizer ao arguido alguma coisa. Acabou por referir ainda que a arguida assistia sempre à entrega do dinheiro e era com esse dinheiro que os arguidos faziam face às despesas da casa.
A testemunha I…, inspector do SEF, referiu ter recebido uma denúncia das autoridades da Roménia de que as menores haviam sido levadas para Portugal, tendo identificado os arguidos, indicando a sua morada e inclusivamente o carro em que a arguida se fazia deslocar. Tal denúncia teve origem numa queixa formulada por uma das menores que tinha fugido da casa dos arguidos.
No seguimento da mesma, em Janeiro de 2008, os agentes do SEF deslocaram-se a casa dos arguidos tendo-os interpelado, ao que estes negaram que vivesse lá mais alguém. No entanto, desconfiou dos arguidos, uma vez que verificou a existência de vários casacos na sala da habitação. Por causa disso, fizeram algumas vigilâncias à casa dos arguidos, não tendo descoberto as queixosas.
Finalmente, confirmou a intervenção do SEF, Departamento Regional do Centro, numa intervenção a casas nocturnas, na qual foi encontrada a queixosa D…, que se encontrava a trabalhar numa casa de alterne. A testemunha em causa confirmou o teor do documento de fls. 5, que consiste numa comunicação da polícia romena ao serviço de estrangeiros e fronteiras português a referir que uma cidadã de nacionalidade romena teria denunciado os arguidos dos presentes autos, indicando identificação e morada, porquanto ela própria e uma menor, de nome D… terão sido vítimas de tráfico de pessoas para fins sexuais. Este documento originou que no dia 14/01/2008 a testemunha em causa, Inspector I… se tivesse deslocado à indicada residência conforme relato de diligência externa de fls. 2 a 3, onde contactou com os denunciados cidadãos romenos, mas onde não verificou a existência de mais ninguém, pese embora lhe tivesse chamado à sua atenção o facto de no bengaleiro da entrada da dita residência se encontrarem vários casacos femininos. Ainda acrescentou que a tal menor procurada foi mais tarde identificada a trabalhar num bar de "alterne".
O que também resulta do documento de fls. 32 a 34 dos autos.
A testemunha J…, inspector da PJ, referiu que a investigação dos presentes autos foi atribuída à PJ na sequência de suspeita da prática de crimes de trafico de menores para fins sexuais, suspeita essa que acabou por confirmar quando falou com a menor B…, que na época tinha 15, 16 anos e tinha essa aparência e não estava na posse de qualquer documentação que alegou se encontrar em casa dos arguidos, onde foi realizada uma busca e foram encontrados um documento do Mº Pº da Roménia e os documentos de um veículo, SEAT registado em nome da arguida e ainda 218 preservativos. Confirmou que a D… se encontrava a trabalhar numa casa de alterne e que a mesma aparentava ter cerca de 15/16 anos. Confirmou também que as alternadeiras costumam ser recolhidas no …, por carrinhas que depois as deixavam nas várias casas de diversão nocturna.
As apreensões efectuadas constam do auto de busca e apreensão de fls. 426 a 427.
A testemunha E… afirmou conhecer os arguidos e não estar zangada com eles, confirmando que esteve em Portugal numa data que não pode precisar. Mais referiu que se esqueceu de tudo o que se passou em Portugal.
A testemunha G…, proprietário de um bar de alterne, afirmou conhecer a B… e a D… em virtude de as mesmas terem trabalhado no seu bar, a primeira como stripper e a segunda como alternadeira, referindo que as mesmas chegaram a trabalhar naquele estabelecimento na mesma altura, tendo ideia que foi a B… que lhe pediu para contratar a D…. Adiantou que lhe deu trabalho apesar de a D… nunca lhe ter facultado os documentos, que insistentemente lhe pediu. Mais disse que pagava diariamente, sendo que, em média, a D… auferia 300/400€ por semana. Trabalhou na sua casa cerca de 1 mês até ao dia em que o SEF a identificou e verificou que a mesma era menor
A testemunha S… afirmou conhecer a arguida B… por frequentarem o mesmo café, referindo que a mesma é uma boa pessoa, boa mãe e uma boa amiga, sabendo que a mesma tinha problemas com o companheiro, o arguido C….
A testemunha M…, conhecido por M1…, afirmou conhecer a D… e a arguida B… das casas de diversão nocturna, designadamente bares de alterne. Adiantou que, das conversas que mantinha com a D…, esta lhe confidenciou que a B… e o companheiro tinham a documentação dela e que lhe ficavam com o dinheiro que ganhava, pelo que lhe solicitou que a ajudasse a fugir de casa, pois queria ganhar o seu dinheiro. Quanto aos alegados maus-tratos, umas vezes referiu que a D… lhe contava que o arguido lhe batia e outras vezes referiu que nada sabia sobre essa questão. Disse também que chegou a estar com a D… durante a tarde, na zona …., no Porto, tendo passeado com a mesma durante algum tempo, não sentindo que a queixosa estivesse constrangida ou, por qualquer, forma, coarctada nos seus movimentos, não sentindo que alguém os tivesse a seguir e a controlar os seus passos. Mais afirmou que nunca praticou sexo com a D… nem a mesma lhe propôs que mantivessem qualquer tipo de relacionamento sexual. Finalmente e quanto ao “episódio da fuga”, a testemunha afirmou que, numa determinada noite cuja data não consegue precisar, foi com a D…, a arguida B… e um amigo até ao O…, tendo jantado e jogado no referido estabelecimento. Mais disse que quando regressaram, deixou a arguida B… em casa e, depois de ela sair do carro, fecharam as portas e arrancaram, tendo levado a D… para uma casa de uma Romena em São João da Madeira, conforme previamente combinado. Referiu que tinham combinado que quando regressassem dessa saída a D… deixava a B… sair em primeiro lugar, depois o depoente trancava o carro e fugia com a D… e foi o que acabou por aconteceu, tendo depois a D… ter ido viver com outra menina romena. Depois disso, soube que a D… continuou a trabalhar em casas de diversão nocturna, bem como a B…, tendo igualmente sabido que a queixosa era menor de idade, algo que nunca desconfiou dos tempos que privou com ela.
A testemunha F…, em 24 de Março de 2009, prestou declarações em sede de inquérito, constantes de fls. 393 a 400, as quais foram lidas em audiência de julgamento, nos termos do disposto no artº 356°, nº4 do Código de Processo Penal.
Na ocasião referiu que, em Outubro de 2007, se encontrava em Itália juntamente com o seu irmão e com a D…. Como a D… não conseguia arranjar trabalho em Itália falou com um amigo K… que se encontrava em Portugal e, tendo este se disponibilizado para lhe arranjar emprego, foi buscá-la a Itália acompanhado de um outro romeno de nome C… (o arguido). Este acabou também por a convencer a ir para Portugal, o que acabou por acontecer com outra amiga de nome E…. E disse-lhe que lhe arranjar um lugar de trabalho na cidade do Porto. Assim, partiram todos para Portugal num carro da marca SEAT de cor vermelha e durante o caminho o C… retirou os telemóveis à D… e à E… e a si retirou-lhe a agenda telefónica e o cartão do telemóvel, destruindo tudo, pois disse que em Portugal precisavam de esquecer os amigos e a família, nem podiam comunicar com ninguém. Foram viver todos, e ainda com uma tal B…, para a cidade do Porto. O C… sempre disse que iam trabalhar na restauração, mas depois a B… levou-as para trabalhar num clube nocturno onde tinham que estar com clientes, sendo certo que metade do consumo feito por esses clientes era para si e para as outras meninas. Dinheiro esse que tinham que entregar na totalidade ao C…. Entretanto como a dona do clube descobriu que eram menores deixou de lhes dar trabalho e por isso o C… arranjou documentos falsos, onde constava 1989 como ano de nascimento, que a B… autenticou num Notário. Passaram a trabalhar em vários clubes nocturnos, mas o dinheiro ganho era todo entregue ao C…. No clube "T…" o patrão tentou obrigá-la a manter relações sexuais com um cliente, mas como recusou, o C… bateu-­lhe e sequestrou-a em casa, retirando-lhe toda a comida até concordar prostituir-se, o que também aconteceu com as outras meninas (E… e D…). O C… batia diariamente à E… sem qualquer motivo e à D… dava umas pastilhas chamadas "Creatina". Eram transportadas de um lugar chamado "…" numa carrinha para os clubes nocturnos, sempre vigiadas pela B… (arguida). Passado algum tempo foi separada da E… e da D…, que foram transferidas para outros clubes, onde tinham que manter relações sexuais e o dinheiro obtido era todo retirado pelo arguido C…. Uma vez por semana, os arguidos acompanhavam-na até uma cabine telefónica onde falava com os seus pais a dizer que estava tudo bem, até que a E… acabou por fugir com a ajuda do K… num carro da marca SEAT, que era da B…. Já na Roménia o K… telefonou aos seus pais a contar o que se passava e estes telefonaram ao C… para que a libertasse senão iam fazer uma denúncia à Interpol. Também tentou fugir com a ajuda de um cliente, mas a B… impediu e tendo contado ao C…, este bateu-lhe. A D… ficou chorando, mas depois soube que ela também conseguiu fugir. Mais tarde foi contactada pelo arguido que lhe ofereceu 2.000,00 Euros para não prestar declarações sobre o que ele lhe fez em Portugal.
A testemunha K… também prestou declarações em sede de inquérito, em 26 de Maio de 2009 e constantes de fls. 401 a 405, as quais foram lidas em audiência de julgamento, nos termos do disposto no artº 356°, nº4 do Código de Processo Penal. Referiu que em Junho de 2007, através de um conhecido seu, conheceu o arguido C…, que lhe ofereceu uma proposta de trabalho em Portugal como motorista, o que ele aceitou. Quanto às ofendidas conhece-as há muito tempo por terem sido suas vizinhas e, uma delas, a F…, foi sua namorada no ano de 2006 na Roménia. Já em Portugal falou, por telefone, com as mesmas que nessa altura estavam em Itália e, como lhe tivessem pedido para lhes arranjar emprego em Portugal, falou com o arguido que se ofereceu para as ajudar. Foram então para Itália, ele o arguido, num SEAT da arguida buscar as meninas. Então o arguido C… falou com elas e prometeu que ia conseguir trabalho como copeiras num restaurante em Portugal e elas concordaram em acompanhá-los até Portugal. Na viagem de regresso o arguido retirou os telemóveis às meninas. No Porto foram todos residir na mesma casa, sendo certo que os arguidos ocupavam um quarto e ele e as três meninas o outro quarto, onde apenas existia uma cama e um colchão. Passados três dias as meninas perguntaram por que ainda não trabalhavam e o arguido disse-lhes que não consegue arranjar-lhes trabalho porque são menores e que vai procurar trabalho num restaurante como damas de companhia, sem lhes dizer que a sua intenção era obrigá-las a prostituírem-se. Como as meninas eram menores para trabalharem nos clubes nocturnos e assim não conseguiam emprego o arguido arranjou bilhetes de identidade falsos, onde constavam outros nomes e outras idades, todas com mais de 18 anos, que a arguida fotocopiou e entregou às meninas, para que estas os exibissem quando fossem identificadas nos clubes no turnos, onde os arguidos lhes arranjaram trabalho e onde o arguido queria que elas se prostituíssem, ameaçando-as de actos violentos, batendo-lhes, obrigando-as a arrumarem a casa, não lhes dando de comer e não as deixando sair sozinhas, mas sempre acompanhadas dos arguidos. Nos clubes as meninas eram obrigadas pela arguida B… a prostituírem-se, mantendo relações sexuais com mais do que um homem por noite e o dinheiro que ganhavam na prostituição era entregue aos arguidos. As meninas não tinham telemóvel, não podiam comunicar com ninguém. Mais tarde o arguido permitiu-lhes que usassem um telemóvel para comunicarem com os familiares, mas sempre na presença do arguido e proibiu-as de dizerem o que estavam a fazer em Portugal. Um dia a E… contou a uma amiga romena, através de uma mensagem de telemóvel, que era obrigada a prostituir-se e foi surpreendida pelo arguido C… que a espancou fortemente, o que fez com que ela ficasse três dias sem ser levada para os clubes nocturnos. Perante isto, as meninas pediam-lhe constantemente para as ajudar a fugir, pelo que, pensaram num plano para concretizar essa fuga, passando tal plano por embriagarem o C…. Nesse dia, nos finais do mês de Novembro de 2007, a B… levou a F… para se prostituir num clube nocturno e as outras duas ficaram livres, mas como a D… também se embriagou e não conseguiram levá-la, só fugiu ele e a E…, tendo ambos abandonado Portugal no carro da arguida B…, de marca Seat. Já na Roménia contou tudo o que se estava a passar ao irmão da F… e deu-lhe o número de telefone do arguido C…, sendo que o pai desta contactou o arguido para libertar a filha, senão avisava a Interpol, pelo que o arguido acabou por libertar a F… que foi ter com a mãe a Itália, tendo sabido mais tarde que também a D… havia fugido. Depois foi contactado inúmeras vezes pelo arguido que lhe disse para ter cuidado com as declarações que iria prestar na Roménia sobre o que se passara em Portugal, dizendo-lhe para não dizer a verdade, ou seja, que as meninas foram obrigadas a prostituírem-se.
A fls. 189 a 191 dos autos constam as declarações para memória futura da testemunha Q… que reiterou na íntegra as sua declarações constantes de fls. 29 e 29 verso e, em síntese, referiu que chegou a Portugal vinda ao encontro de uma sua conhecida para trabalhar num restaurante, o que acabou por ocorrer na Póvoa de Varzim. Essa sua conhecida acabou por lhe apresentar os arguidos, que a terão convencido a ir residir com eles no Porto, tendo inclusive trabalhado com a arguida em casas da noite e apesar deste casal não ficar com o dinheiro que ganhava, o arguido chegou a ameaçá-la, de tal forma que acabou por fugir dessa casa (factos reportados a Novembro de 2006) e começou a trabalhar na zona de S. João da Madeira em Bares. Através de uma portuguesa de nome U… conheceu o Sr. M1… que lhe pediu o seu número de telemóvel para entregar a uma rapariga da Roménia, de nome D…, que queria entrar em contacto consigo, pois essa tal rapariga encontrava-se a viver em situação idêntica à sua com os arguidos, onde era mal tratada e assim precisava da sua ajuda. Inicialmente ainda recusou prestar essa ajuda, mas depois acabou por fornecer o seu contacto telefónico, acabando por se encontrar com essa rapariga que lhe disse chamar-se D1…, ter 18 anos e ter os seus documentos presos na casa do tal casal do Porto, pelo que lhe prestou ajuda, acolhendo-a na sua casa.
Prosseguindo.
Sabemos que as provas não podem ser apreciadas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada, devendo ser analisadas e valoradas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma a que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
Revertendo para o acórdão em crise, transcrevemos o seguinte excerto, com o qual concordamos:
Na verdade e desde logo há que atentar que esta situação foi vivenciada por 3 menores, sendo que, para além delas e dos arguidos, apenas a testemunha K… sabia perfeitamente do que se estava a passar.
Ora, dessas 3 menores, apenas 2 depuseram em audiência de discussão e julgamento, sendo que uma delas (E…) não quis falar, referindo que se esqueceu de tudo o que se passou em Portugal, enquanto que a testemunha D… suavizou um pouco a situação.
Já as outras 2 testemunhas, a F… e o K… não vieram a Tribunal, não tendo sido possível ouvir o seu depoimento, pelo que e dado que todos os intervenientes processuais concordaram, foram lidas as suas declarações prestadas em inquérito, pouco tempo depois da prática dos factos.
Ora, tais declarações, prestadas numa altura em que os factos ainda estavam vivos na memória dos intervenientes e numa época em que o decurso do tempo ainda não tinha relativizado a gravidade dos factos, foram bastante importantes para darmos como assente a factualidade vertida na acusação.
Com efeito, essas testemunhas relataram, de um modo muito pormenorizado, tudo aquilo que se passou, não tendo procurado formular juízos de valor, apenas descrevendo pura e simplesmente os factos, ao contrário do que já sucedeu com a testemunha D…, cujo depoimento já não se nos afigurou tão espontâneo, pelos motivos que a seguir se enumeram
Na verdade, esta vítima (D…) continuou a viver em Portugal, tendo refeito e organizado a sua vida, procurando esquecer tudo aquilo que vivenciou, denotando-se uma certa preocupação em querer esquecer o sucedido e não incriminar os arguidos, principalmente a arguida B…, não se comprometendo.
Porém, e após várias insistências, não deixou de relatar alguns factos, estando em sintonia com o que referiram as outras 2 testemunhas (foram enganadas quando vieram para Portugal pois pensavam que iam trabalhar na restauração, estavam sem documentos, não podiam comunicar sem estarem na presença do arguido C…, o mesmo batia nas queixosas, ficava-lhes com o dinheiro, etc), sendo que relativamente a ela afirmou sempre que, durante o período em que esteve na casa dos arguidos, não manteve relações sexuais com homens a troco de dinheiro, nem foi agredida, ao contrário das 2 outras menores.
Já o episódio da fuga da D… tivemos em conta aquilo que foi dito pela própria D…, pela testemunha M… e pela arguida, que admitiu ter ido com a queixosa nessa noite, embora negando que o seu objectivo tivesse sido o de controlar a queixosa.
Quanto ao que se passava nas casas de alterne, nomeadamente no que se refere á D…, o depoimento da testemunha G… foi suficiente para confirmarmos aquilo que foi dito pela D…, não se provando, dessa forma, que a arguida B… apenas fosse para essas casas com o intuito de controlar as queixosas, mas sim que a mesma também trabalhava nesses bares.
Acrescente-se ainda que, conforme resulta da motivação da decisão recorrida (dos factos provados e não provados) o tribunal a quo teve em conta os depoimentos das testemunhas acima identificadas, cujos depoimentos se encontram parcialmente transcritos na motivação de recurso (para além da restante prova produzida) e explicou por que motivo não atendeu à versão apresentada em julgamento pela arguida.
E diga-se que tais transcrições não são susceptíveis de abalar a credibilidade que as declarações das testemunhas F… e K…, aliás em sintonia com o depoimento da testemunha D… (que corroborou que foram enganadas quando vieram para Portugal, pois pensavam que iam trabalhar na restauração, estavam sem documentos, não podiam comunicar sem estarem na presença do arguido C…, o mesmo batia nas queixosas, ficava-lhes com o dinheiro, etc) mereceram ao tribunal recorrido, conforme pretende a recorrente.
Argumenta a recorrente que “o tribunal a quo formou a sua convicção de forma errada, nos depoimentos prestados para memória futura, que por mais nenhuma testemunha é corroborado” e “errada apreciação do depoimento da Testemunha D…, que sendo a única testemunha presencial se mostrou firme ainda que sujeita a forte contraditório”.
Vejamos.
Comecemos por nos referir aos termos “fuga”, “fugir” utilizados por algumas das testemunhas, conforme acima se expôs, no sentido de apurar se as menores E…, F… e D… se encontravam “presas” à vontade dos arguidos.
Sabemos que a arguida diz que não era vontade nenhuma. As menores estavam na sua casa por vontade própria e do C…, seu companheiro e co-arguido neste processo. Aliás, até era contra tal estadia, pois a casa era pequena. As menores eram" alternadeiras" porque queriam e não sabe se por vontade do C… praticavam prostituição e se este lhes ficava com o dinheiro. Nunca coagiu as menores a prostituírem-se ou lhe ficou com o dinheiro. Nunca as maltratou ou viu o C… a fazê-lo.
Contudo, conforme o exposto, estas declarações encontram-se desacompanhadas de qualquer outro meio e prova.
E contra elas depuseram as testemunhas Q… que referiu que a certa altura foi contactada por um "cliente", o Sr. M1… que lhe pediu que ajudasse uma sua compatriota que se encontrava "refém" dos arguidos, que inclusivamente o arguido C… a maltratava, como já havia passado por uma situação idêntica com os arguidos resolveu ajudar.
Ou seja, contra as declarações da arguida temos um depoimento de uma testemunha, que embora não tivesse presenciado os factos, deles teve conhecimento na data da sua alegada prática, que inclusive neles acreditou por ter tido uma experiência semelhante com os mesmos arguidos e não ter qualquer interesse em mentir sobre os mesmos.
Ainda contra as declarações da arguida temos o depoimento da testemunha M… (M1…) que embora não tivesse presenciado os factos, deles teve conhecimento na data da sua alegada prática através da ofendida D… que lhe disse que os arguidos tinham os seus documentos retidos, que lhe ficavam com todo o dinheiro que ganhava e que lhe batiam, pelo que ajudou a D… a fugir.
E pese embora a D… venha dizer que não era maltratada, nem os seus documentos foram retidos pelos arguidos, nem a arguida a vigiasse, apenas o arguido ficava com todo o seu dinheiro, o que é certo é que não só os depoimentos das testemunhas F… e K… o desmentem, como o seu próprio depoimento que apenas é prestado após um longo silêncio, sendo que de acordo com o documento de fls. 32 a 33 a D… foi encontrada em Portugal sem documentos.
Mas mais do que isso, as ofendidas estavam "presas" à vontade dos arguidos pois efectivamente estes ficavam com todo o seu dinheiro, conforme depoimento da testemunha K… e das ofendidas F… e D…. Mais, as ofendidas estavam "presas" à vontade dos arguidos, pois não podiam circular livremente e eram obrigadas a prostituírem-se, conforme depoimentos da testemunha K… e da ofendida F…, conjugado com o documento de fls. 5. Igualmente a ter conta a apreensão de 218 preservativos, indiciadora de que efectivamente os arguidos (a quem foram apreendidos, conforme fls. 426 a 427) desenvolviam alguma actividade ao nível de relacionamento sexual das ofendidas e não apenas ao nível do exercício de "alternadeiras", o que segundo o testemunho da F… e do K…, seria contra a vontade daquelas.
Podemos mesmo dizer que o longo silêncio que antecedeu o depoimento da testemunha D… e o teor do depoimento da testemunha E… são igualmente reveladores do "receio" que ainda hoje as ofendidas têm dos arguidos.
Assim, face ao exposto e no que respeita à liberdade (ou falta dela) das queixosas, para além dos depoimentos das testemunhas K… e F…, que depuseram nesse sentido (a D… também, da forma referida e mais atenuada), confirmando uma ausência de liberdade e um total controlo dos seus movimentos por parte de ambos os arguidos, embora em graus diferentes, existem outros elementos que levam a concluir nesse sentido.
Desde logo, os relatados episódios das fugas. Ora, se estava tudo bem e não havia qualquer privação da liberdade, de que forma fosse, ou qualquer tipo de exploração, então não se percebe por que motivo houve necessidade de recorrer a determinados estratagemas para a fuga, como o de embebedar o arguido, ou aproveitar uma desatenção da arguida. Acresce que a F… só regressou á Roménia após contacto da sua família com o arguido, ameaçando-o com uma queixa à Interpol.
Estes factos apontam claramente para uma privação da liberdade e para um clima de intimidação e medo.
Acresce que a testemunha I…, que prestou depoimento no sentido já exposto, afirmou que, após denúncia de que as menores se encontravam em Portugal, se deslocou a casa dos arguidos, tendo-lhes perguntado se lá vivia mais alguém, para além deles (arguidos), ao que estes negaram, tendo escondido as queixosas. Além disso, as várias diligências efectuadas pelos inspectores do SEF nos dias subsequentes revelaram-se infrutíferas, o que evidenciou um cuidado dos arguidos em esconderem tudo o que se passava.
Ora, também esta conduta também é indiciadora de que algo de estranho se estava a passar e, conjugando todos estes elementos, facilmente se conclui que estava em causa mais do que uma simples permanência ilegal no nosso país.
Assim, se é certo que essa privação de liberdade, não significa privação da liberdade de locomoção, pois as queixosas não estavam presas fisicamente em determinado local, podendo circular, simplesmente não o faziam por terem medo das consequências, designadamente por terem medo que o arguido C… lhes batesse caso não fizessem o que eles (arguidos) queriam, sendo que a intenção dos arguidos era que as queixosas se prostituíssem ou trabalhassem como alternadeiras e que lhes dessem todo o dinheiro que auferiam, mantendo ao mínimo todos os contactos com terceiros, de modo a esconder essa actividade.
Revertendo para as declarações da arguida B… (que negou que algo se passasse em sua casa, afirmando que pelo menos á sua frente nada sucedeu, embora admita que algo pudesse ter ocorrido, pois que estava muito tempo fora de casa a trabalhar e, só mais tarde, é que descobriu que o arguido C… a traía com outras mulheres, bem como outros factos nada abonatórios para o mesmo), ressalta à evidência que as mesmas são contrariadas pelos depoimentos das testemunhas K… e F…, que a colocam como sendo autora dos factos, referindo que a mesma agia em concertação com o arguido C…, controlando as queixosas e retirando-lhes o dinheiro, embora nunca relatando que a arguida lhes tivesse batido.
Já a testemunha D…, no seu depoimento, pelas razões expostas, demonstrou preocupação em querer esquecer o sucedido e não incriminar os arguidos, principalmente a arguida B…, referindo que a mesma tinha medo do arguido C… e que era mais vítima do que agressora.
No entanto, do conjunto da prova produzida não resultou que a arguida B… fosse vítima de maus-tratos por parte do arguido – não houve queixas, nem ninguém relatou tais factos, ao invés, resultando que a mesma estava livre e voluntariamente naquela casa, sendo companheira do arguido, ajudando-o e auxiliando-o na sua conduta, tendo-o inclusivamente ajudado a esconder a presença das queixosas, aquando da interpelação dos inspectores do SEF.
Acresce que, o depoimento da testemunha D… forneceu alguns indícios para se poder compreender a conduta/comportamento da arguida B…, pois, quando confrontada com o facto de não esconder parte do dinheiro que ganhava do arguido C…, a queixosa referiu que não o fazia porque a arguida sabia o que ela ganhava. Ora, tal resposta indicia claramente que a arguida B… estava a par de tudo e agia em concertação de esforços com o arguido C…, sendo que as queixosas tinham medo que ela as denunciasse.
Também não podemos escamotear que numa casa tão pequena era impossível a arguida não ter visto as agressões e toda a envolvência dos factos, sendo que a sua justificação para tal facto - estava muito tempo a trabalhar - não pode merecer acolhimento por parte do Tribunal, pois que a altura em que o fazia era a mesma em que as queixosas se prostituíam, frequentando até as mesmas casas de alterne ou prostituição. Logo, atentas as regras da experiencia comum e da lógica das coisas, necessária é a conclusão de que as agressões e a privação de liberdade ocorreram numa altura em que todas estavam em casa.
Aqui chegados, diga-se que não existe qualquer obstáculo processual a que, no confronto entre as declarações prestadas pela arguida e pelas testemunhas F…, K… e D…, o tribunal atribua maior credibilidade a estas (não obstante as primeiras terem sido prestadas em sede de inquérito e lidas em audiência de julgamento) do que àquela, na medida em que se encontram ambas sujeitas à livre apreciação do julgador.
É que se afigura indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Note-se, aliás, que o legislador, consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem envolver, teve o cuidado de dizer que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que “impõem”e não as que “permitiriam” decisão diversa (cfr. artigo 412º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal).
E reiteramos que, no conjunto da prova produzida, o depoimento das testemunhas F…, K…, D…, conjugados com os depoimentos das testemunhas I…, M…, J… e Q… e com a prova testemunhal referida, se revelaram merecedores de credibilidade, para além de demonstrarem coerência na exposição dos factos, denotando conhecimento sobre os factos sobre que depuseram e apenas relatando os que tinha conhecimento, sendo que quando a estes os relataram de forma pormenorizada, sem os empolar ou ter a preocupação de confirmar todos os factos, concretizando as condutas dos arguidos. Bem andou, pois, o tribunal a quo em considerá-los, actuando de acordo com a sua livre convicção, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal e em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis.
Assim, analisada e avaliada em conjunto toda a prova produzida, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a argumentação e prova indicadas pela recorrente não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto (quer provada, quer não provada) decidida pelo Tribunal a quo.
Pelo que, considerando que se mantém a decisão proferida sobre matéria de facto provada, necessária é a conclusão de que entendemos que o tribunal a quo não violou os invocados princípios da livre apreciação da prova, da descoberta da verdade material, da imediação e da oralidade.
Argumenta também a recorrente que houve, “portanto, erro notório, pois retirou-se de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, assim como se retirou de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, notoriamente violadora das regras da experiência comum”. E continua, “…os factos provados são incompatíveis e irremediavelmente contraditórios com outros dados de facto, positivos e negativos, senão vejam-se, os factos provados, a prova produzida e a fundamentação do acórdão proferido pelo tribunal a quo – tudo em si contraditório”.
Vejamos se lhe assiste razão.
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Como já referimos estão em causa vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
Tais vícios não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
No que ao caso importa, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
O erro notório na apreciação da prova ocorre respectivamente quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
Este vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão da recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal cumprirá dizer que muitas vezes se confunde o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.
Ora, do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência, constam os factos suficientes para a decisão de direito, não se verificando qualquer incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Por outro lado, face ao teor da decisão recorrida, por si e em conjugação com as regras de experiência e normalidade do acontecer, facilmente se conclui que a mesma dá como provados e não provados os factos necessários e suficientes ao raciocínio lógico-subsuntivo que integra a decisão (de condenação), não evidenciando erro notório na apreciação da prova.
Ora, o que a recorrente pretende é contrapor a convicção que ela própria alcançou sobre os factos (que é irrelevante) à convicção que o tribunal de 1.ª instância teve sobre os mesmos factos, livremente apreciada segundo as regras da experiência, e invoca o “erro notório”. No entendimento da recorrente, a sua versão dos factos é que é merecedora de credibilidade, e não a versão que veio a ser acolhida na sentença recorrida. Ou seja, o que a recorrente pretende é substituir a convicção alcançada pelo tribunal recorrido com base na valoração que fez sobre determinados meios de prova, à sua própria convicção fundada, obviamente, na valoração que fez dos mesmos meios de prova.
O modo de valoração das provas, e o juízo resultante dessa mesma valoração, efectuado pelo “tribunal a quo”, ao não coincidir com a perspectiva da recorrente nos termos em que esta as analisa, e consequências que daí derivam, não traduz qualquer vício da decisão.
Pelo que, face a todo o exposto se conclui que o acórdão recorrido não padece dos invocados vícios aludidos nas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Entendemos, ainda, que não se verificou uma situação de non liquet em questão de prova que devesse ter sido valorada a favor da arguida.
Pelo que, é forçoso referir que o acórdão em crise não violou o invocado princípio in dubio pro reo, isto pela simples razão de que ao tribunal jamais se colocou uma situação de dúvida insanável sobre os factos relevantes para a decisão.
Efectivamente, haverá violação do princípio in dubio pro reo se for manifesto que o julgador, perante essa dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo a versão que o desfavorece [Ac. STJ de 27.5.2010 e de 15-07-2008; e Ac. RP de 22.6.2011, 17.11.2010, 2.12.2009, 9.9.2009 e de 11.1.2006, todos disponíveis em www.dgsi.pt].
Como já anteriormente tivemos oportunidade de esclarecer, a prova foi apreciada segundo as regras do artigo 127º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, não só de motivação objectiva segundo as regras da vida e da experiência, e sem que se vislumbre que na apreciação da prova o tribunal tenha incorrido em qualquer erro lógico, grosseiro ou ostensivo.
A decisão em apreço baseia-se num juízo de certeza (independentemente do sentido da mesma), não em qualquer juízo dubitativo. É o que dela resulta com clareza.
Ou seja, em momento algum a decisão impugnada revela que o tribunal recorrido tenha experimentado uma hesitação ou indecisão em relação a qualquer facto. Bem pelo contrário, afirma convictamente a matéria dada como provada. E do conhecimento que sobre tal decisão tomámos, igualmente concluímos que a mesma é linear e objectiva, cumpre os pressupostos decorrentes do princípio da livre apreciação da prova [artigo 127.º, do Código de Processo Penal] e não acolhe espaço para dúvidas ou incertezas relevantes.
Nada há, pois, a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção do tribunal, sendo patente a inexistência de quaisquer motivos para se falar em violação do princípio in dubio pro reo.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.
Aqui chegados e, considerando-se definitivamente assente a matéria de facto dada como provada, cumpre qualificar e enquadrar juridicamente tal factualidade.
A recorrente pugna pela sua absolvição, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos dos crimes pelos quais vem condenada.
Vejamos.
Comecemos pelo crime de tráfico de pessoas, previsto e punível pelo artigo 160º do Código Penal.
O bem jurídico protegido pelo crime em causa é a liberdade de decisão e acção de outra pessoa.
Segundo Pedro Vaz Patto, in “O crime de tráfico de pessoas no Código Penal revisto. Análise de algumas questões”, in Revista do CEJ, Nº 8 – Especial (1º Semestre de 2008)) está, pois, em causa, no tráfico de pessoas, para além da liberdade pessoal, a dignidade da pessoa humana, sendo isso que confere particular gravidade a este crime.
Trata-se de um crime de dano (quanto à lesão do bem jurídico) e de resultado (quanto ao objecto da acção).
O tipo objectivo do tráfico de adulto consiste na oferta, entrega, aliciamento, aceitação, transporte (por meio próprio do agente ou de terceiro, mas custeado pelo agente), alojamento ou acolhimento de uma pessoa com vista à sua exploração sexual, à exploração da sua mão-de-obra ou à extracção dos seus órgãos. Trata-se de um crime de execução vinculada, estando os meios de execução do crime tipificados.
O tipo contém uma intenção (“para fins de”) de realização de um resultado que não faz parte do tipo (a exploração sexual, a exploração do trabalho e a extracção de órgão), mas que é provocado por uma acção ulterior a praticar pelo próprio agente ou por um terceiro.
Portanto, não é necessária a verificação da exploração efectiva da vítima nem a extracção efectiva de um órgão seu, basta que o agente tenha essa intenção: para a consumação do crime de tráfico de pessoas não se exige que a vítima tenha, de facto, sido explorada sexualmente ou no seu trabalho, bastando que as acções referidas no nº 1 do artigo 160º do Código Penal sejam praticadas com uma dessas intenções de exploração sexual ou laboral, ou com a intenção de extracção de órgãos.
Considerando que estarmos perante um crime de natureza eminentemente pessoal, então haverá tantos crimes de tráfico de pessoas quanto os indivíduos alvo dessa actividade, com o que se tutela de modo mais intenso o bem jurídico e as possíveis vítimas: o agente comete tantos crimes de tráfico quantas as pessoas traficadas, havendo concurso efectivo de crimes.
O “ardil ou manobra fraudulenta” é a acção pela qual o agente engana outrem sobre o significado, o propósito e as consequências da sua acção, não sendo suficiente o mero aproveitamento passivo de engano alheio, não provocado pelo agente (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, pág. 493 e 494).
A “especial vulnerabilidade da vítima” inclui a vulnerabilidade em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, e traduz a exploração de uma tal situação de fraqueza que à vítima não resta senão a possibilidade de se conformar.
O conceito em causa abrange, pois, situações como a emigração ilegal, doença, gravidez ou deficiência física ou mental.
Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, tomo I, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pág. 668 liga o aproveitamento à “desumanidade crassa” das condições de exploração sexual ou laboral a que o traficante pretende sujeitar, ou sabe às quais a vítima será sujeita por outrem”.
As condições da exploração sexual ou do trabalho da vítima do tráfico têm que ser tais que constituam uma instrumentalização da pessoa/vítima. É, portanto, necessário distinguir a exploração sexual ou do trabalho, enquanto situação visada no crime de tráfico de pessoas, das condições de, por exemplo lenocínio. A exploração sexual ou do trabalho, no crime de tráfico de pessoas, pressupõe e equivale a um estado de sujeição da vítima ao agente explorados.
O tipo subjectivo exige o dolo.
No que se refere ao crime de lenocínio de menor está previsto no art.º 175.º, do Código Penal.
Dispõe tal preceito legal:
1 – Quem fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição do menor é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
2 – Se o agente cometer o crime previsto no artigo anterior:
a) por meio de violência ou ameaça grave;
b) através de ardil ou manobra fraudulenta;
d) actuando profissionalmente ou com intenção lucrativa;
é púnico com pena de prisão de 2 a 10 anos.
O bem jurídico protegido neste crime é a autodeterminação sexual do menor de 18 anos, o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, criando as condições criando as condições para que esse desenvolvimento se processe de forma adequada e sem perturbações.
Agente do crime pode ser qualquer homem ou mulher, desde que tenha mais de 16 anos e que desempenhe o papel de intermediário ou medianeiro para o exercício da actividade de prostituição, por parte da menor. Vítima deste crime é necessariamente um menor de 18 anos de idade.
Por outro lado, este crime é um crime de resultado, pelo que é necessário que se consumam os referidos actos sexuais de relevo e que a sua consumação seja acompanhada de um pagamento.
O tipo subjectivo exige o dolo relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito.
Atenta a moldura pena aplicável, a tentativa é punível. O crime consuma-se com a realização do primeiro acto de prostituição.
Por outro lado e, atento o facto de que o que está em causa ser a diminuição da esfera de autonomia da vontade da pessoa que se prostitui – a sua liberdade sexual – bem como a autodeterminação sexual do menor então haverá tantos crimes de lenocínio quanto as pessoas alvo de exploração sexual, com o que se tutela de modo mais intenso o bem jurídico e as possíveis vítimas.
Por fim, no nº 2 do art.º 175.º, do Código Penal qualifica-se o lenocínio de menores em função dos meios usados, das relações com a vítima, do objectivo visado e das condições da vítima: para o caso em apreço interessa o uso de violência, ou ameaça grave, o uso de manobra fraudulenta ou a intenção lucrativa, são circunstâncias agravantes facilmente explicáveis que não necessitam de uma análise profunda, sendo perfeitamente compreensível e plausível que uma conduta seja mais fortemente punida quando ocorrem circunstâncias deste calibre.
Aqui chegados, atentemo-nos nos elementos objectivo e subjectivo, cuja verificação se impõe para a subsunção de uma conduta no crime de coacção, previsto e punível no artigo 154.º do Código Penal.
Daqui emerge que comete este crime “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade”.
O tipo objectivo de ilícito consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção, ou suportar uma acção.
Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa.
Os meios de coacção poderão ser apenas a violência ou a ameaça com mal importante.
Quanto à violência, a mesma poderá sê-lo física ou psíquica, e ter por objecto imediato a própria pessoa do coagido, ou de terceiros, ou sobre coisas, quer do coagido, quer de terceiros, desde que o mal causado nas coisas seja idóneo a afectar sensivelmente a liberdade de acção do coagido, de forma a constranger este a adoptar o comportamento visado pelo agente.
Por seu turno, quanto à «ameaça com mal importante», a mesma tanto se poderá reportar á prática de um acto ilícito, como de um acto lícito, e deve ser adequada a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante. A este respeito, deverá a ameaça ser vista sob um critério ao mesmo tempo objectivo, por apelar ao juízo do homem comum, e individual, na medida em que se deve ter em consideração as circunstâncias concretas em que é proferido o anúncio, nomeadamente as sub-capacidades do ameaçado.
Estamos perante um crime de resultado, ou seja, a consumação deste crime exige que a pessoa objecto da acção tenha efectivamente sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua própria vontade.
Mais: é necessário que entre o comportamento do coagido e a acção de coacção exista uma relação de efectiva causalidade.
A imputação deste crime tem necessariamente que ser dolosa, ainda que sob a forma de dolo eventual – basta que o agente, independentemente das suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz sejam susceptíveis de constranger outrem e com tal se conforme.
Bem jurídico tutelado é a livre determinação do indivíduo, protegida, aliás, constitucionalmente através da inviolabilidade da integridade moral e física de cada um pelo artigo 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa [CRP].
O ilícito em questão consuma-se no momento em que alguém é violentado a fazer, a omitir ou a suportar o que não quer, relevando a persistência ou permanência do constrangimento não para a consumação, mas para a determinação do ilícito (cfr. Ac. do STJ, de 17 de Abril de 1990, in BMJ 396.º/222).
Tecidas algumas considerações acerca do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes pelos quais a recorrente vem condenada, cumpre debruçarmo-nos sobre as várias formas de comparticipação, mais concretamente sobre a co-autoria e a cumplicidade (a recorrente coloca academicamente a hipótese da cumplicidade).
A cumplicidade, traduzida no auxílio doloso, material ou moral e por qualquer forma, à prática por outrem de um facto doloso, é punível com a pena fixada para o autor, especialmente atenuada - cf. art. 27º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
Na comparticipação criminosa, em cujas formas se inscreve a cumplicidade, "cada comparticipante responde pelo mesmo facto típico, porque todos os participantes concorrem para a prática do mesmo facto. O modo de cooperação é que é diverso; o objecto a que se dirige a cooperação de todos é o mesmo: o facto, o crime" - Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, Parte Geral, vol. II; Ed. Verbo, 1998, pag. 280.
Ela diferencia-se da co-autoria, pela ausência do domínio do facto; o cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através de auxílio físico (material) ou psíquico (moral), situando-se esta prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado ou facilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor.
Nas palavras de Germano Marques da Silva, ob. cit., pag. 179, "a linha divisória entre autores e cúmplices está em que a lei considera como autores os que realizam a acção típica, directa ou indirectamente, isto é, pessoalmente ou através de terceiros (dão-lhe causa), e como cúmplices aqueles que não realizando a acção típica nem lhe dando causa, ajudam autores a praticá-la".
A cumplicidade é uma forma de participação secundária na comparticipação criminosa, destinada a favorecer um facto alheio, portanto, de menor gravidade objectiva, mas embora sem ser determinante na vontade do autor e sem participação na execução do crime, traduz-se sempre em auxílio à pratica do crime e nessa medida, contribui para a sua prática, configurando-se como uma concausa do crime - Cf. Germano Marques da Silva, ob. cit., pgs. 283 a 291.
Teresa Pizarro Beleza, in Direito Penal, 2º volume, pgs. 425 a 501, analisa a problemática da teoria da comparticipação criminosa, fazendo uma incursão à estruturação histórica das questões suscitadas, concluindo pela eleição do conceito de domínio de facto para distinguir autoria de participação - é autor de um crime quem detém nas suas mãos a possibilidade de fazer a execução de um crime prosseguir até ao fim ou de a fazer fracassar -, e, dentro desta, limitando a figura da cumplicidade, pelas características que lhe reconhece de: a) cláusula de extensão da tipicidade: b) exigência de comportamento doloso; e c) acessoriedade (limitada) da punição.
Por outro lado, configura a cumplicidade material como a "prestação de uma ajuda para a execução de um crime" e a cumplicidade moral como "aquilo a que na linguagem corrente se chama dar apoio moral (..) a uma pessoa que já está decidida a cometer um crime, apenas fortalece essa decisão".
Também Miguel Pedrosa Machado, no seu artigo Para uma síntese do conceito jurídico-penal de comparticipação, inserido na obra Ab Uno Ad Omnes - 75 anos da Coimbra Editora, 1998, pgs. 763 a 772, identifica aquele conceito: autor é aquele que "detém o domínio do facto, ainda que por intermédio de outrem, que utiliza como seu instrumento (assim se contrapondo a autoria imediata à mediata), e participante aquele que intervém nesse facto e pode fazê-lo a título principal ou secundário (dando lugar, respectivamente, ao instigador e ao cúmplice).
Ressalve-se que, na nossa lei, a instigação está tratada, em termos de sistematização, como forma de autoria.
Este mesmo autor no artigo "O dolo e a penalidade do cúmplice", um dos que compõem a sua obra Formas do Crime, textos diversos, 1998, Principia - 1ª ed., remete, igualmente, para a ideia de acessoriedade da participação do cúmplice, no sentido de - tal como defendia Eduardo Correia, in Problemas Fundamentais da Comparticipação Criminosa, 1951 - fazer depender a punição dos actos dos comparticipantes, na prática do facto típico, ou seja da sua execução por outrem.
Hans-Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, pgs. 593 a 595, 4ª ed. Ed. Comares, Granada, na esteira de Lobe e Roxin, elege, igualmente, a teoria do domínio do facto como aquela que distingue autoria e participação, com recurso à mais moderna formulação conceitual jurídico-penal.
Tal como Cavaleiro Ferreira, in Lições de Direito Penal, I, 1987, pags. 352-353, também Faria Costa, in Jornadas de Direito Criminal, As Formas do Crime, Centro de Estudos Judiciários, 1983, pags. 153 a 184, apela à ideia de subalternização da cumplicidade, relativamente à autoria, em que infracção seria sempre praticada, só que o seria em outro tempo, lugar ou circunstância.
A jurisprudência dos nossos tribunais espelha sem cisão a doutrina indicada. Vejam-se os Acs. do STJ, de 17-08-81, Proc. n.º 38264 (este referindo-se, especificamente a uma situação de cumplicidade em crime de violação), de 16-01-90, Proc. n.º 40378, de 04-04-90, Proc. n.º 40425, de 21-10-92, Proc. n.º 42952, de 03-11-94, Proc. n.º 48885, de 05.04.95, Proc. n.º 48898 (in www.itij.mj.pt), de 14.11.96, Proc. n.º 48588, de 13-11-97, Proc. n.º 962/97-3, de 27-11-97, Proc. n.º 291/97-3 (in S. ac. STJ). de 10-12-97, Proc. n.º 916/97-3 (in BMJ 472º/116), de 20-01-98, Proc. n.º 1202/97-3, de 04-06-1998, Proc. n.º 235/98-3, de 15-10-98, Proc. n.º 784/98.3 (in S. A. STJ), de 22-03-01, Proc. n.º 473/01-5 (in. Ac. STJ, Ano IX, Tomo I - 2001, 260), de 02-05-01, Proc. n.º 4112/00-3, de 07-06-01, Proc. n.º 949/01-5, de 06-12-01, Proc. n.º 3160/01-5 (S.Ac. STJ), de 30-10-02, Proc. n.º 2930/02; da Relação de Lisboa, de 20-04-93, Proc. n.º 48355, de 28-11-00, Proc. n.º 59249, de 21-01-03, Proc. n.º 85845; da Relação de Coimbra, de 13-12-00, Proc. n.º 1982/00; da Relação do Porto, de 12-08-02, Proc. n.º 2105/02, de 04-12-02, Proc. n.º 2108/01 (www.dgsi.pt).
A este propósito cita-se, pela sua clareza, o acórdão do STJ de 21-11-01, Proc. n.º 2758/01-3 (relator: Cons. Armando Leandro): «O cúmplice pode participar no acordo e na fase da execução (embora não tenha necessariamente de assim suceder, ao contrário do que acontece com o co-autor) mas, contrariamente ao que se verifica com este - e nisso consiste a característica fundamental de diferenciação entre as duas formas de comparticipação - o cúmplice não tem o domínio funcional do facto ilícito típico. Tem apenas o domínio positivo e negativo do seu próprio contributo, de forma que, se o omitir, nem por isso aquele facto deixa de poder ser executado. A sua intervenção, sendo, embora, concausa do concreto crime praticado, não é causal da existência da acção.» (in Sumários de Acs. do STJ).
Tecidas estas considerações no que respeita à qualificação dos ilícitos em causa e suas formas de comparticipação, cumpre debruçarmo-nos sobre o caso em apreço e analisar as questões suscitadas pela recorrente e supra elencadas.
Revertendo para o acórdão em crise dele consta:
“Subsumindo a factualidade provada ao direito acima referido, designadamente ao que ao crime de tráfico de pessoas diz respeito, não há quaisquer dúvidas de que a conduta dos arguidos consubstanciou, a prática, em co-autoria material, dos crimes de que vêm acusados, embora com diferentes graus de participação.
Analisando a conduta do arguido C…, os factos 5 a 12, 16, 21 e 45 a 47 são bastante claros e elucidativos, não sendo necessárias grandes considerações para se dar como verificado a prática do crime de tráfico de pessoas, preenchendo-se as 2 alíneas supra descritas.
Na verdade, resulta objectivamente da factualidade dada como assente que o arguido C… sempre teve a intenção, concretizada, de explorar sexualmente ou explorar o trabalho das queixosas, actuando sempre com esse propósito, não só quando foi buscar as queixosas a Itália, mas também com a prática de todos os restantes actos em Portugal.
Na prossecução desse objectivo, o arguido não só transportou as queixosas de Itália para Portugal, como as alojou, tendo-o feito com o intuito de as mesmas se prostituírem. Além disso e de forma a que elas acedessem a vir para Portugal, o arguido C… iludiu-as com falsas promessas de emprego (manobra fraudulenta), sendo que, quando chegou a Portugal e as acolheu e alojou em sua casa, o arguido confrontou-as com a realidade e forçou-as a fazer o que pretendia, através do uso da violência e de ameaça, aproveitando-se igualmente das mesmas serem menores e de estarem sozinhas num país estrangeiro. Finalmente e como são 3 vítimas, são 3 os crimes praticados.
Ressalve-se neste caso que, para além da prostituição, o objectivo do arguido foi igualmente de explorar o trabalho das queixosas, ficando com todo o dinheiro resultante da prestação desses serviços, pelo que e a entender-se que não se verifica a finalidade da exploração sexual no que concerne á D… (há autores que defendem que a função de alternadeira não implica, necessariamente a prática de actos sexuais de relevo) sempre se verificaria a hipótese da exploração do trabalho, pois que os arguidos ficavam com todo o dinheiro que a queixosa auferia da sua actividade de alterne. Logo sempre se verificaria a prática do crime.
No que concerne a este crime, também a conduta da arguida B… o integrou, em co-autoria material com o arguido C…, embora essa co-autoria apenas se estenda à parte do acolhimento e alojamento e já não ao transporte. Com efeito, relativamente ao transporte das queixosas para Portugal não ficou assente qualquer acto da arguida.
Logo, a sua autoria apenas se cingiu ao alojamento e acolhimento, tendo preenchido as alíneas b) e d), do art.º 160.º,n.º1 do C. Penal, nomeadamente o uso de ardil ou manobra fraudulenta, bem como o aproveitamento da situação de especial vulnerabilidade das vítimas, pois que, como é óbvio (isso aplica-se também ao arguido C…) o facto das mesmas serem menores e estarem sozinhas num país totalmente desconhecido, contribuiu decisivamente para que as vítimas se sujeitassem aquilo que os arguidos pretendiam. Além disso, a promessa de emprego em Portugal foi também um dos motivos que fez com que as queixosas acedessem a ficar alojadas em casa dos arguidos, sendo que apenas após esse acolhimento é que as mesmas foram confrontadas com os reais objectivos dos arguidos (vide factos 9 e 10). Nessa conformidade, também não há dúvida do preenchimento do tipo legal de crime, relativamente à arguida B…, sendo 3 os crimes praticados, por serem 3 as vítimas.
(…)
Com efeito, postula o art.º 154.º do C. Penal, que pratica este tipo legal de crime punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa “quem, por meio de violência ou ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade”, sendo que tal ilícito é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, quando a coacção for realizada por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos (art.º 155.º, n.º1 alínea a), do C. Penal).
Este tipo de crime centra-se “num constrangimento legal, no obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade”[2], ou seja a violar a liberdade de auto determinação de outrem, sendo que o constrangimento tem de resultar de um mal importante, isto é de “um mal que tenha acentuado relevo, um mal que a comunidade repele e censura pelo dano relevante que causa ou pode causar”[3].
Assim sendo, são pressupostos deste tipo legal de crime, no que ao caso importa, o uso da violência ou a ameaça de um mal importante, com a finalidade de que o visado adopte uma determinada conduta. A nível subjectivo, este tipo legal de crime exige o dolo do agente
Subsumindo tal preceito legal ao caso em apreço não há dúvida que os arguidos praticaram o crime de coacção
Na verdade, através do uso da violência e da ameaça, essencialmente perpetradas pelo arguido C…, coadjuvado pela arguida B… que vigiava os movimentos das queixosas e as denunciava ao arguido C… quando algo não estivesse a ser executado de acordo com o pretendido pelos arguidos, estes lograram constranger as queixosas a suportar determinada actividade, nomeadamente o exercício da prostituição e da actividade de alterne, impedindo-as igualmente de acederem a determinados locais.
Logo, a conduta dos arguidos consubstanciou a prática, em co-autoria material, do crime de coacção simples.
*
Finalmente e no que concerne ao crime de lenocínio de menor, também não temos dúvidas do seu preenchimento, por parte de ambos os arguidos, sendo que os factos dados como assentes nos pontos 14 a 23 e 45 a 47 descrevem a conduta consubstanciadora de tal ilícito.
Acrescente-se que ambos os arguidos cometerem este ilícito, em co-autoria material, pois que e apesar de não ter ficado assente que a arguida B… batesse ou ameaçasse as queixosas, certo é que a mesma também as controlava e vigiava, levando-as ao local de trabalho, sendo que também recolhia o dinheiro que as mesmas auferiam. Logo, tinha perfeito domínio do facto, pelo que estamos perante uma co-autoria material e perante dois crimes de lenocínio, porque duas as vítimas (relativamente á queixosa D… não foi deduzida qualquer acusação, havendo a dúvida de se o “alterne” configura ou não uma situação de prostituição, pelo que resolvemos não nos imiscuir nessa questão, não indo mais além do que a acusação).”
Efectivamente, atenta a factualidade apurada não restam dúvidas de que a conduta da arguida é de subsumir à prática, em co-autoria (com o arguido C…), de um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, previsto e punível pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do Código Penal (vítima D…), de um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, previsto e punível pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do Código Penal (vítima F...), de um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, previsto e punível pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do Código Penal (vítima E…), de um crime de lenocínio de menor, previsto e punível pelo art.º 175º, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e d) do Código Penal (vítima E…), de um crime de lenocínio de menor, previsto e punível pelo art.º 175º, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e d) do Código Penal (vítima F…) e de um crime de coacção simples, previsto e punível pelo art.º154.º, do Código Penal.
De facto, da factualidade apurada resulta que a recorrente, juntamente com o arguido C…, acolheram e alojaram as menores D…, E… e F…, de nacionalidade romena, transportadas por este último e vindas de Itália. E fizeram-no induzindo as vítimas em erro quanto ao objectivo, usando de ardil ou manobra fraudulenta, bem como aproveitando a situação de especial vulnerabilidade das vítimas, nomeadamente do facto das mesmas serem menores e estarem sozinhas num país totalmente desconhecido, contribuindo decisivamente para que as vítimas se sujeitassem aquilo que os arguidos pretendiam. Além disso, a promessa de emprego em Portugal foi também um dos motivos que fez com que as queixosas acedessem a ficar alojadas em casa dos arguidos, sendo que apenas após esse acolhimento é que as mesmas foram confrontadas com os reais objectivos dos arguidos (vide factos 9 e 10). Não há dúvida do preenchimento do tipo legal do crime de tráfico de pessoas pela arguida B…, sendo 3 os crimes praticados, por serem 3 as vítimas.
Relativamente à prática do crime de coacção, da factualidade apurada resulta que, através do uso da ameaça, essencialmente perpetrada pelo arguido C…, coadjuvado pela arguida B… que vigiava os movimentos da queixosa, estes lograram constranger a menor D… a suportar determinada actividade, a actividade de alterne, impedindo-a igualmente de aceder a determinados locais. Pelo que a conduta da recorrente consubstanciou a prática, em co-autoria material com o arguido C…, do crime de coacção simples.
Por fim, no que respeita ao crime de lenocínio de menor, também não restam dúvidas do seu preenchimento pela arguida, sendo que os factos dados como assentes nos pontos 17 a 23 e 45 a 47 descrevem a conduta consubstanciadora de tal ilícito.
Tal como não restam dúvidas de que a arguida cometeu este ilícito, em co-autoria material, pois da factualidade assente resulta que agiu de comum acordo e em comunhão de esforços com o arguido C…, constrangendo as ofendidas e obrigando-as a continuar na actividade da prostituição, controlando e vigiando as menores romenas, levando-as ao local de trabalho e recolhendo o dinheiro que as mesmas auferiam.
Quer dizer, além do acordo entre os arguidos, de uma decisão conjunta existia uma perfeita divisão de tarefas, tendo a recorrente perfeito domínio do facto (não se limitando a facilitar o facto principal, através de auxílio físico (material) ou psíquico (moral), pelo que estamos perante uma situação de co-autoria material e não perante uma situação de cumplicidade, conforme pretende a recorrente.
Assim, face a todo o exposto improcede o recurso no que respeita ao pretendido enquadramento jurídico dos factos e quanto à forma de comparticipação propugnados pela recorrente.
Prosseguindo, cumpre analisar a questão atinente ao concurso entre os vários crimes em causa, nomeadamente decidir se estamos perante uma situação de concurso real (conforme se decidiu no acórdão em crise) ou de concurso aparente de (conforme defende a recorrente).
No que a esta questão respeita, escreveu-se no acórdão recorrido:
“O concurso efectivo ou aparente de crimes
Verificando-se que as condutas dos arguidos integram os elementos objectivos e subjectivos de vários tipos legais de crimes, importa agora saber se a punição deve ocorrer relativamente aos vários crimes em presença, isto é, em concurso real (conforme consta da acusação/pronúncia), ou se uma valoração posterior obrigará a aplicar somente uma das várias normas em presença, excluindo as restantes.
A questão coloca-se no confronto entre o crime de tráfico de pessoas (de adultos e de menores) e o crime de lenocínio qualificado (de menores), mas estende-se à relação entre estes crimes e actos das respectivas condutas típicas que podem, eles próprias, integrar diversos tipos legais, nomeadamente e naquilo que ao caso em apreço interessa na coacção ou sequestro.
Os penalistas socorrem-se do instituto a que se deu o nome de concurso aparente – legal ou concurso de normas – para em último termo evitar a repetição insustentável da sanção.
O fundamento do concurso aparente (que, doutrinalmente, assume as modalidades de especialidade, subsidiariedade e consunção) reside assim no princípio ne bis in idem: os tipos em conflito cobrem, todos eles, total ou parcialmente, um mesmo segmento da realidade desvalorada.
A jurisprudência nacional tende a fazer passar a distinção entre o concurso efectivo e o concurso aparente pelo critério da identidade ou diferença dos bens jurídicos.
De modo um pouco divergente, Figueiredo Dias (“Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, 2007, pags. 1011 e 1012), desloca a questão para o plano da unidade de sentido autónomo de desvalor jurídico-social.
Assim, para este Autor, encontramos no âmbito da figura do concurso aparente aqueles casos em que, apesar da existência de uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global, deve concluir-se que os sentidos singulares de ilicitude típica aí presentes “se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de tal forma” que, em definitivo, se conclui ser aquele comportamento dominado por um único sentido autónomo de desvalor jurídico-social. E este sentido é de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes – dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas – que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o art. 77º do CP.
Num assumido esforço de compatibilização desta doutrina com o texto-norma previsto no nº 1 do art. 30º do CP, Figueiredo Dias defende que nos casos enquadráveis nesta figura do concurso aparente, verifica-se uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes “efectivamente cometidos”.
Voltando ao caso dos autos.
As mudanças que a Reforma Penal de 2007 operou na configuração do crime de tráfico de pessoas são susceptíveis de causar dificuldades interpretativas do novo tipo legal, como nos dão conta Paulo Sousa Mendes (“Tráfico de Pessoas”, in Revista do CEJ, Nº 8 – Especial (1º Semestre de 2008)) e Pedro Vaz Patto (obra já citada).
Falamos da alteração sistemática do tipo legal de crime (deixa de estar previsto na secção do Código Penal relativa aos crimes contra a liberdade sexual, passando a estar previsto no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal), questão da acima analisada, e também do desaparecimento do preceito incriminador da expressão “país estrangeiro”, donde se conclui que o legislador terá querido agora deixar claro que fica abrangida também a deslocação de pessoas para dentro do território nacional.
As apontadas dificuldades prendem-se com a distinção e autonomização deste tipo legal de crime diante de outras figuras, penalmente relevantes, como o crime de auxílio à imigração clandestina e o crime de lenocínio, no caso de exploração sexual.
Como refere Paulo Sousa Mendes, as fronteiras entre todas estas infracções turvam-se quando tomamos em consideração os meios de praticar o tráfico de pessoas, que a lei descreve nas diversas alíneas do nº 1 do art. 160º do CP revisto, dado que são comuns, por exemplo, ao crime de lenocínio qualificado.
Também Pedro Vaz Patto admite que pode haver dificuldades na distinção entre o crime de tráfico de pessoas, o de lenocínio simples e o de lenocínio qualificado.
Não admira, portanto, que antes da Reforma Penal de 2007, havia o entendimento de que o “tráfico” nacional era punido pelo crime de lenocínio ou, dito de outro modo, que a diferença entre o crime de tráfico de pessoas e o crime de lenocínio, nas várias modalidades, seria de ordem territorial (cfr. Anabela Miranda Rodrigues, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I”, 1999, pag. 515; cfr. t.b. Ac. RC, de 12/04/2011; relator: Brízida Martins; in www.dgsi.pt).
Aliás, entre 1998 e 2001, os crimes de lenocínio e de tráfico de menores estavam regulados no mesmo artigo (art. 176º) do Código Penal.
Estas dificuldades na distinção das figuras transmitem-se para a matéria do concurso de infracções.
Consideramos, contudo, que a Reforma Penal de 2007, se por um lado veio clarificar que a punição do tráfico de pessoas para exploração sexual não se confunde com a punição do lenocínio, pois se trata de dois tipos de condutas substancialmente diferentes quanto à gravidade das penas correspondentes a cada um deles, por outro lado, essa mesma clarificação deu um contributo decisivo para a matéria do concurso de crimes.
Torna-se agora clara uma hierarquia entre os tipos legais, medida pelo grau de instrumentalização da vítima.
Como refere Pedro Vaz Patto (ob. cit.), ainda que se considere que tal instrumentalização se verifica sempre na prostituição (e por isso se justifica a punição do lenocínio de menores simples, com pena de prisão de um a cinco anos), tal instrumentalização será mais acentuada no lenocínio qualificado (punível com pena de prisão de 2 a10 anos) e mais ainda no tráfico de pessoas para exploração sexual (punível com pena de prisão de três a dez anos). Neste sentido, a “exploração sexual” a que se destina o tráfico de pessoas representa um “mais” em relação ao exercício da prostituição. O tráfico de pessoas aproxima-se daquele ápice de instrumentalização da pessoa que representa a escravatura.
A distinção entre estas figuras é, em muitos casos, difícil.
Mas a coexistência das mesmas também permite evitar que tais dúvidas, ou dificuldades de prova, se traduzam numa injustificada impunidade, restando sempre, no caso de condutas atentatórias da dignidade humana, a punição pelo crime de lenocínio, simples ou qualificado.
Voltando ao caso concreto e centrando-nos nos crimes de tráfico de pessoas e de lenocínio, há que esclarecer que esta questão se coloca com grande premência quando, como sucedeu nos próprios autos, o próprio agente que pratica o crime de tráfico, também explora sexualmente ou laboralmente a vítima.
Ora, nessas situações a doutrina não se tem entendido, havendo duas posições antagónicas, uma defendendo o concurso aparente e outra advogando a existência de um concurso real.
A primeira posição é perfilhada por autores como Paulo Albuquerque, entendendo que o agente deve ser punido pelo crime de tráfico de pessoas, por ter moldura penal mais grave, estando-se perante uma consunção impura, pois o agente vai ser punido pela prática do crime-meio e não pelo crime-fim.
No entanto, não perfilhamos desta tese, antes adoptando a posição defendida pelo Dr. Figueiredo Dias de que estamos perante um concurso real de crimes.
Na verdade e desde logo recorrendo à analogia, há que referir que no concerne à relação entre o crime de rapto e o crime de lenocínio ou violação, a doutrina e jurisprudência são unânimes em afirmar a existência de um concurso real de crimes, não fazendo, desta forma, sentido que se trate de forma diferente situações com muitas similaridades.
Por outro lado, entendemos ser bastante diferente a conduta de alguém que transportou ou alojou uma vítima para fins de exploração sexual ou laboral por parte de outrem, da conduta de alguém que transporta esse pessoa e posteriormente a explora, sendo muito mais grave e censurável esta última. Ora, perante estas duas possíveis condutas, não faz sentido distingui-las apenas na determinação da moldura da pena, sendo que o seu intervalo, apesar de amplo, não é suficiente para efectuar essa distinção. Acresce que os bens jurídicos protegidos, apesar de próximos, são distintos, pois que enquanto o crime de tráfico protege a dignidade da pessoa humana, o crime de lenocínio já visa proteger a liberdade e a auto-determinação sexual, pelo que também temos um argumento a favor da tese que perfilhamos.
Por sua vez, o facto do crime meio se consumar independentemente do crime fim ser ou não cometido pela mesma pessoa, também aponta claramente para o concurso aparente.
Por fim e recorrendo à legislação estrangeira, o código penal espanhol prevê concretamente este tipo de situações, consagrando expressamente um concurso real de crimes.
Ora, somando todos estes argumentos não temos dúvida em perfilhar a tese do concurso real, nomeadamente no que concerne aos crimes de lenocínio de menores e tráfico de pessoas.
Já quanto ao concurso entre o crime de lenocínio e o crime de coacção, entendemos existir um concurso aparente entre os mesmos, relação de consunção, devendo o agente ser apenas punido pelo crime fim e não pelo crime meio.
Na verdade, a privação de liberdade a que as queixosas F… e E… foram sujeitas, através da ameaça e do uso de violência, e a consequente imposição de determinada conduta apenas foi efectuada com o intuito de as obrigarem a suportarem uma determinada actividade, designadamente a actividade de prostituição. Além disso, o crime de lenocínio que os arguidos praticaram foi cometido na forma qualificada, sendo que o uso da violência e a ameaça foram elementos qualificativos do crime. Ou seja foi a coação usada pelos arguidos, através da violência da ameaça a e do aproveitamento de situação de especial vulnerabilidade das vítimas conforme supra referimos, que determinou e possibilitou a prática da prostituição por parte das queixosas, pelo que o crime meio foi consumido pelo crime fim.
Logo, há concurso aparente de crimes, devendo os arguidos apenas serem punidos pelo crime mais grave (só relativamente aos crimes em que foram vítimas F… e E…, pois que relativamente à D… os arguidos não cometeram o crime de lenocínio).”
Argumenta a recorrente no sentido de que “uma vez verificados os pressupostos objectivos dos crimes de Tráfico de Pessoas e Lenocínio de Menor imputados à arguida/recorrente, crê-se que, tal materialidade apurada e os valores protegidos pelas normas enfocados no interesse geral da comunidade, estaremos perante um caso de unidade criminosa independentemente do número de pessoas traficadas ou sujeitas ao lenocínio”.
Não podemos concordar que tal posição e já explicámos porquê: Considerando que estarmos perante um crime de natureza eminentemente pessoal, então haverá tantos crimes de tráfico de pessoas quanto os indivíduos alvo dessa actividade, com o que se tutela de modo mais intenso o bem jurídico e as possíveis vítimas: o agente comete tantos crimes de tráfico quantas as pessoas traficadas, havendo concurso efectivo de crimes. Por outro lado e, atento o facto de que o que está em causa ser a diminuição da esfera de autonomia da vontade da pessoa que se prostitui – a sua liberdade sexual – bem como a autodeterminação sexual do menor então haverá tantos crimes de lenocínio quanto as pessoas alvo de exploração sexual, com o que se tutela de modo mais intenso o bem jurídico e as possíveis vítimas.
Neste sentido, entre outros, se pronunciaram:
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.2.86, BMJ, 354º, 350: Se o agente, em sucessivos momentos decide recrutar diferentes mulheres, aliciando-as ao exercício da prostituição para viver do rendimento dos actos sexuais delas, torna-se autor de múltiplas infracções (concurso real).
- Em sentido idêntico o Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 7.6.89, CJ XIV Tomo III, pág. 232, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.4.83 BMJ 326º 322.
- O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Março de 1990, BMJ 395º 312, onde se decidiu que: Quem explorar, profissionalmente e lucrativamente, o ganho imoral de prostitutas, vivendo, total ou parcialmente, dessa actividade, constitui-se autor de um crime de lenocínio. O aliciamento, nas sobreditas condições e em momentos sucessivos, de diferentes mulheres para o exercício da prostituição, tendo em vista viver à custa do rendimento dos actos sexuais por elas praticados, faz incorrer o agente na autoria de um número plural de infracções (concurso real).
- No Acórdão de 23 de Outubro de 1985, do Tribunal da Relação de Coimbra, BMJ 350º, 396, quanto à questão do concurso decidiu-se, também, que: Há tantos crimes de lenocínio, em acumulação real, quantas as mulheres cuja prostituição o agente explora (e não é configurável a continuação criminosa, por estarem em jogo interesses eminentemente pessoais das ofendidas).
Defende também a recorrente que o crime de Lenocínio consome o crime de Tráfico de Pessoas: alega que as condutas associadas aos crimes em questão, estão num estrito relacionamento instrumental entre os dois tipos de crime, ou seja, em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu alcance e os seus efeitos.
Vejamos.
Comecemos por dizer que concordamos com a posição assumida pelo tribunal a quo.
A recorrente segue um sector da doutrina que defende que o agente deverá responder apenas pelo “crime-fim” (lenocínio qualificado), uma vez que o crime de tráfico de pessoas (“crime-meio”) é meramente instrumental em relação àquele. Defende, portanto, a existência de um concurso aparente entre tais crimes, devendo responder apenas pelo crime de lenocínio.
Não sufragamos tal posição. Entendemos que, no caso em apreço, há um concurso efectivo entre o crime de tráfico de pessoas e o crime de lenocínio.
Efectivamente, “apesar de estarmos perante a protecção, em ambos os casos, do bem jurídico “liberdade da pessoa”, protegem-se manifestações/expressões diferentes dessa liberdade pessoal: num caso, a liberdade de acção ou decisão; no outro, a liberdade sexual. (…) o sentido de ilicitude revelado pela conduta do agente (um mesmo agente!) é plúrimo: a deslocação, sob coacção (típica) de uma pessoa, e o favorecimento da prostituição sob coacção (típica) dessa pessoa”.
E continua “A coacção que representa a situação de vulnerabilidade em que a vítima se encontra terá de existir sempre, em qualquer dos casos, podendo ser maior ou menor, mas tal não interessando ao tipo de crime cometido. O que releva para identificar o crime cometido é saber se a coacção atinge a liberdade de acção ou decisão, ou se atinge a liberdade sexual, ou se atinge ambas – caso em que estaremos perante um concurso efectivo de crimes” (cfr. Anabela Rodrigues, A incriminação do tráfico de pessoas no contexto da política criminal contemporânea, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 584).
Também na defesa da existência de um concurso efectivo, vd. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 687 a 689.
Efectivamente, no caso em apreço, considerada a factualidade assente, entendemos que a coacção atingiu, para além da liberdade de acção ou decisão das vítimas menores, a liberdade sexual das mesmas, pelo que estamos perante um concurso efectivo de crimes, respondendo a arguida pelo crime de tráfico de pessoas e pelo crime de lenocínio qualificado que efectivamente cometeu.
Pelo que, bem andou o tribunal a quo ao condenar a arguida B… pela prática, em co-autoria (com o arguido C…), de um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, previsto e punível pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do Código Penal (vítima D…), de um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, previsto e punível pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do Código Penal (vítima F…), de um crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, previsto e punível pelo art.º 160º, n.º 1, al.s b) e d) do Código Penal (vítima E…), de um crime de lenocínio de menor, previsto e punível pelo art.º 175º, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e d) do Código Penal (vítima E…), de um crime de lenocínio de menor, previsto e punível pelo art.º 175º, n.ºs 1 e 2, als. a), b) e d) do Código Penal (vítima F…) e de um crime de coacção simples, previsto e punível pelo art.º154.º, do Código Penal.
Aqui chegados passamos a analisar a questão atinente à dosimetria das penas.
Argumenta a recorrente que a pena deveria ser especialmente atenuada.
Quid juris?
Dispõe o artigo 40º, nº 1, do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
A medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto, assumindo a protecção de bens jurídicos um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade, na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade das normas infringidas (prevenção geral positiva ou de integração que decorre do princípio político criminal básico da necessidade da pena – art. 18.°, n.° 2 da Constituição da Republica Portuguesa).
É a prevenção geral positiva ou de integração que fornece um “espaço de liberdade ou de indeterminação”, mais precisamente “uma moldura de prevenção”, (Prof. Figueiredo Dias, in ‘’Consequências Jurídicas do crime”, Direito Penal 2, Parte Geral, pág. 283).
Na referida “moldura de prevenção” a função da culpa é a de estabelecer o limite máximo da pena concreto e como tal a pena nunca a pode ultrapassar, uma vez que a culpa constitui o pressuposto e limite da pena. O limite mínimo resulta do quantum de pena imprescindível, no caso concreto, e ainda comunitariamente suportável de medida da tutela de bens jurídicos e de estabilização das expectativas comunitárias da validade das normas violadas.
Na determinação da pena deve ter-se em conta, nos termos do art. 71º do Código Penal, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, fixando-se o limite máximo daquela de acordo com a culpa do mesmo; o limite mínimo, de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso convenham.
Assim, a determinação da pena concreta far-se-á em função da culpa do agente, atendendo às necessidades de prevenção de futuros crimes e a todos os elementos exteriores ao tipo legal que deponham a favor ou contra o arguido, nos termos do disposto art.º. 71º do Código Penal.
Desta norma se retira o critério norteador da tarefa de que nos ocupamos, e que se pode sintetizar da seguinte forma: a medida concreta da pena deverá ser encontrada, entre o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos da comunidade e o limiar mínimo em que essa tutela ainda é eficaz (“moldura de prevenção”), através do recurso a considerações de prevenção especial de socialização, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa do arguido. Aquela “moldura de prevenção” é fornecida pela prevenção geral positiva ou de integração, que, tal como já foi aflorado, se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade e vigência da norma infringida.
Os fins das penas encontram-se estabelecidos no já citado artigo 40.º do Código Penal.
O requisito da culpa traduz a vertente pessoal do crime entendido como um juízo de censura pela personalidade manifestada no facto, fixando-se através dela o limite máximo da pena, sendo pressuposto da mesma, limitando de forma inultrapassável as exigências da prevenção (Neste sentido, Figueiredo Dias, “Direito Penal, Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 255 e ss).
Como já se disse, complementarmente à medida da culpa - dentro da margem de variação por esta consentida - intervêm as necessidades de prevenção.
Assim mesmo se têm pronunciado a doutrina, maxime: Figueiredo Dias in "Direito Penal Português", pag. 227/228; Robalo Cordeiro In "Jornadas de Direito Criminal", CEJ, vol. I, pag. 265/270; Maia Gonçalves in "Cod. Penal Português" em anotação ao art.º. 71º e Leal Henriques e Simas Santos in "Cod. Penal", vol. I, pag. 550/558) e a jurisprudência do STJ (maxime Ac. de 21/9/94, proc. 46290/3ªsec e de 20/5/95, proc. 47386/3ªsec).
A individualização da pena concreta aplicada pelo tribunal em cada caso não depende de uma qualquer opção discricionária por um qualquer número. Tem, pois, o tribunal de fixar o quantum da pena dentro das regras postuladas pelo legislador, impondo-se-lhe que objective os critérios que utilizou e que fundamente a quantificação que decidiu -vd. artigo 71º n.º 3 do Código Penal.
Certamente que não se pode pensar em critérios de quantificação matemática. O direito não é uma ciência exacta. No entanto, os critérios legais, funcionando comparativamente, podem permitir estabelecer relações quantitativas de grandeza (maior/menor).
Assim, na graduação da pena atender-se-á aos critérios fornecidos pelos artigos 40° e 71° do Código Penal.
Analisemos o caso concreto, tendo em conta que as molduras penais abstractas aplicáveis aos crimes em questão.
Revertendo para o acórdão recorrido dele consta:
“Começando pela ilicitude e gravidade dos factos temos que a mesma é muito elevada, pois estamos perante menores que foram trazidas de um país estrangeiro para Portugal e foram obrigadas a prostituir-se ou a trabalhar sem auferir rendimentos (D…), sendo privadas igualmente da sua liberdade, estando impedidas de regressar ao seu país ou de comunicar com os seus familiares, de forma a poderem denunciar a situação.
Porém, esclareça-se que relativamente ao arguido C… a sua participação nos factos é muito superior à da arguida B…, denotando-se um certo ascendente do mesmo sobre a arguida.
Acresce que o arguido não se limitou a ter uma participação superior, praticando inclusivamente os factos mais graves, pois era ele quem ameaçava e batia nas queixosas (com excepção da D… que apenas ameaçava), tendo sido ele quem se deslocou a Itália para as trazer para Portugal, não se limitando a acolher as menores como fez a arguida. Logo a ilicitude dos factos é muito superior.
Por sua vez, as necessidades de prevenção geral são muito prementes e se fazem sentir com muita acuidade, sendo que este tipo de crime, além do grande alarme social que causa, tem crescido exponencialmente nos nossos dias, existindo uma grande vontade internacional de o combater.
Já as necessidades de prevenção especial também são elevadas, pois que não obstante a ausência de antecedentes criminais dos arguidos, entendemos que quem pratica este tipo de ilícito revela uma personalidade propensa a delinquir, apresentando os seus agentes um desprezo pelos mais elementares valores e princípios da natureza humana, agravado pelo facto de estarmos perante menores.
Além disso, o crime foi perpetrado durante um longo período de tempo, o que além de agravar a sua ilicitude também é demonstrativo da personalidade dos arguidos, pois que em tempo algum demonstraram arrependimento e pararam com a execução do ilícito.
Por fim, o dolo é directo, sendo que no caso em questão o arguido beneficia apenas do facto da ofendida lhe dever dinheiro.
(…)
Quanto à arguida B… e atenta a sua menor participação nos factos, bem como ao facto de se ter apresentado em Tribunal e de aparentemente ter uma vida estabilizada, entendemos ser de lhe aplicar a pena de 3 anos e 3 meses pela prática de cada um dos 3 crimes de tráfico de pessoas, a pena de 3 anos e 3 meses de prisão pela prática de cada um dos 2 crimes de lenocínio e a pena de 9 meses de prisão pela prática do crime de coação.”

Ora, ponderadas todas as circunstâncias que depõem a favor e contra a recorrente, elencadas no acórdão em crise, tendo igualmente em conta as já referidas prevenção geral e especial, entende-se que as penas parcelares e única encontradas pelo tribunal recorrido, se mostram adequadas e proporcionais.
Se não vejamos.
Importa desde já considerar que a arguida/recorrente actuou com a modalidade mais intensa de dolo, que se mostra directo.
Também a ilicitude dos factos é muito elevada, considerando o modo de execução e actuação da arguida, “explorando” três menores da mesma nacionalidade da sua, que se encontram longe do seu país e da sua família. Há também a considerar o período de tempo durante o qual perdurou a conduta da arguida.
Quanto às exigências de prevenção geral, as mesmas são muito elevadas, pois para além do grande alarme social que este crime causa, a sua prática tem crescido exponencialmente nos nossos dias, não obstante a vontade de pôr cobro a tais situações. Se por um lado, se propugna uma cada vez maior circulação de pessoas, por outro, abre-se o caminho à exploração e aproveitamento abusivo dos imigrantes, dos cidadãos provenientes de países mais carenciados economicamente.
As exigências de prevenção especial revelam-se menos acentuadas, dada a ausência de antecedentes criminais por parte da arguida. No entanto, não se pode escamotear que quem pratica factos do tipo em causa revela profundo desprezo pelos mais elementares valores e princípios da natureza humana.
Releva a favor da arguida a sua inserção social, laboral e familiar, bem como “um certo ascendente” do arguido sobre a arguida, aliás, já considerados pelo tribunal a quo.
Pelo que, considerando a factualidade apurada no acórdão recorrido e, atendendo a todas as circunstâncias a que alude o artigo 71º do Código Penal, tudo ponderado, entende-se (como se disse) que as penas parcelares e única encontradas pelo tribunal recorrido, se mostram ajustadas e perfeitamente adequadas às necessidades de prevenção geral e especial, não excedendo a culpa.
Improcede, também o recurso, nesta parte.
Aqui chegados, abordar a última questão elencada, e que contende com a suspensão da execução da pena de prisão, propugnada pela recorrente.
Sem necessidade de tecer grandes considerações diga-se desde já que o conhecimento de tal questão se mostra prejudicado desde logo porque o pressuposto formal de aplicação do instituto da suspensão da execução da pena - que a pena aplicada seja de prisão em medida não superior cinco anos (artigo 50º do Código Penal, na redacção da Lei nº 59/2007, de 04.09), não se mostra preenchido.
Improcede, pois, na totalidade o recurso.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela arguida B…, mantendo integralmente a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s.
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Porto, 14 de Maio de 2014
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva
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[1] A este propósito vide Acórdão STJ 27/02/03, in www.dgsi.pt.
[2] Vide C. Penal Anotado, de Simas Santos e Leal Henriques, 3.º edição, 2.º, volume, pág. 315.
[3] Vide C. Penal Anotado de Maia Gonçalves, comentário ao art.º 154.º.