Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
840/14.3TBMTS-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
PAGAMENTO
RECUSA
RECURSO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RP20181105840/14.3TBMTS-F.P1
Data do Acordão: 11/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ART.º 643º DO CPC
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º683, FLS.283-291)
Área Temática: .
Sumário: I – Para além dos casos em que o recurso é sempre admissível, por regra, só é admissível recurso de uma decisão se o valor da causa ou do incidente em que se insere exceder o valor da alçada do tribunal de que se recorre e se o valor da sucumbência exceder metade dessa mesma alçada.
II – Com a definição da recorribilidade em função da sucumbência o legislador pretendeu compatibilizar o interesse da segurança jurídica garantida pelos múltiplos graus de jurisdição com outros interesses ligados à celeridade processual, à racionalização dos meios humanos e materiais alocados ao sistema de justiça e a dignificação e valorização da intervenção dos tribunais superiores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECLAMAÇÃO N.º 840/14.3TBMTS-F.P1
Juízo de Comércio de Santo Tirso – J4
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Des. Maria de Fátima Andrade
2º Juiz Adjunto: Des. Fernanda Almeida.
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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I. RELATÓRIO:
1. No processo de insolvência atinente a B… e em que foi nomeada como Administradora de Insolvência C… foi proferido com data de 12.01.2018 despacho que recusou o pagamento à aludida Administradora da remuneração variável prevista no artigo 23º, n.º 2, do Estatuto do Administrador Judicial [Lei n.º 22/2013 de 26.02], no montante de €2.603, 33.
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2. Inconformada com o dito despacho dele veio interpor recurso a Srª Administradora de Insolvência, conforme consta a fls. 4/18 deste apenso, pugnando a mesma pela revogação do despacho antes referido e consequente pagamento da aludida remuneração variável – tendo por referência o montante pecuniário apreendido para a massa insolvente no valor de €29.303,28 -, ou seja, o pagamento do aludido montante de €2.603, 33, determinado em função das regras de cálculo previstas na tabela anexa à Portaria n.º 51/2005 de 20.01.
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3. Na sequência deste recurso foi proferido despacho datado de 11.05.2018 – despacho ora sob reclamação – em que, considerando-se como valor do incidente em apreço, atinente à fixação do valor da remuneração devida ao Administrador de Insolvência, o valor de €2.603,33 (quantia correspondente à remuneração variável a que a Srª Administradora teria direito em função das regras de determinação dessa remuneração previstas na citada Portaria n.º 51/2005) -, foi recusado o recurso interposto pela Srª Administradora, por força da regra contida no artigo 629º, n.º 1 do CPC e, em particular, quanto à exigência consignada neste normativo de que a causa/incidente em que se insere o recurso tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, ou seja, valor superior a €5.000,00, correspondente ao valor da alçada do Tribunal de 1ª instância.
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4. Deste último despacho de não admissão do recurso, veio então a Srª Administradora deduzir a reclamação e em cujo âmbito formulou as seguintes.
CONCLUSÕES
a) A Recorrente impugna desde logo, não só o valor da causa atribuído pelo Tribunal “ a quo” no montante de €2.603,99, por entender, que esse não é o valor correcto a atribuir à acção/incidente, MAS também e independentemente do valor da acção, conforme infra demonstrará, entende a Recorrente que sempre o Recurso que interpôs para o TRP, deveria ter sido aceite…
b) Com efeito, em 14.05.2018, foi a Recorrente notificada do seguinte despacho: “(…) Pelo que, neste caso, em que o que se discute é a remuneração de €2.603,99 (que o tribunal entendeu que não era devida porque o produto da liquidação era o resultado da venda já feita no âmbito de outro processo – de natureza fiscal - e que para o processo de insolvência tinha sido apenas já transferido tal produto), é aquele valor que fixa o valor desta causa. (…) Ora, em causa está um incidente referente ao valor a fixar a título de remuneração a um dos intervenientes no processo e o seu conteúdo está limitado pelo valor relativamente ao qual a Srª Administradora da Insolvência entende ser devido, no total de €2.603,99. Ou seja, atendendo ao valor do incidente e ao valor da alçada, tal decisão é insusceptível de recurso (…) Em face do exposto, não admito o recurso interposto pela recorrente”.
c) Não se conformando com tal douto despacho, vem a Recorrente apresentar a seguinte Reclamação, não podendo aceitar tal despacho que atribuiu à acção o valor de €2.603,99 e, consequentemente, não admitiu o recurso apresentado para o Tribunal da Relação do Porto pela Recorrente.
d) Com efeito, e a título de breve exposição (melhor explicitado no articulado desta Reclamação), tal recurso apresentado para o TRP, incidia sobre um despacho datado de 12.01.2018, que determinou não dever ser considerado o montante apreendido no processo de execução fiscal para o cálculo da remuneração variável devida à Sr.ª Administradora de Insolvência.
e) Sendo que, no entender da Recorrente o douto despacho de que se recorreu ao decidir da forma como decidiu, ao considerar que não é devida qualquer remuneração variável à Sr.ª Administradora de Insolvência, por não dever ser considerado o montante apreendido no processo de execução fiscal para o cálculo da mesma, violou as disposições constantes nos artigos 60º do CIRE,22º e 23º da Lei 22/2013 de 26 de Junho e o art.º 2º da Portaria 51/2005 de 20 de Janeiro.f) Ora, conforme se alcança do exposto, o valor a fixar a título de remuneração variável à Sr.ª Administradora de Insolvência está intrinsecamente relacionado com o valor que é considerado como o produto da venda (29.303,28€), ou seja o montante apurado para a massa insolvente, e que o Sr. Juiz entendeu não poder ser considerado como produto da venda de bens apreendidos ou que, de todo o modo, tenha sido determinado em funções de actos por ele praticados e em função do qual é calculada remuneração variável devido à Sr.ª Administradora de Insolvência, ou seja sem a consideração do produto da venda/liquidação (29.303,28€), não pode alcançar-se/obter-se/calcular-se o valor da remuneração variável devida à Sr.ª Administradora de Insolvência. Sendo assim, o vertido no despacho datado 12/01/2018 é, aliás, deturpador quer da lei quer do espírito de todo o processo de natureza e raiz executiva, sendo, aliás, inovadora na panóplia da insolvência – desde o processo falimentar com Síndico no antigo CPC, passando pelo CPEREF (quer o de 96, quer o de 98) e, ainda, ao atual CIRE, o qual transpôs de forma literal o elemento histórico, na medida do conceito de remuneração, sem esquecer todos os usos e costumes relativos a essa matéria.
g) Assim, não pode a ora Recorrente aceitar que não obstante o objecto do recurso seja a remuneração variável devida à Sr.ª Administradora de Insolvência, o mesmo não pode dissociar-se do facto de tal se dever à decisão que determinou que não deve ser considerado o montante apreendido em processo de execução fiscal para o cálculo de tal remuneração variável, pois que esta não existe sem aquele.
h) ASSIM, o valor a atribuir à acção/incidente não deve ser o montante de €2.603,99 (conforme foi determinado no douto despacho de que ora se recorre), mas antes o mencionado valor de €29.303,28, correspondente ao produto da venda, sobre o qual se calculará a remuneração variável do Administrador de Insolvência.
i) Até porque a ser assim, os Srs. Administradores de Insolvência viam o seu direito ao Recurso ser na maioria das vezes coartado com fundamento que o valor é inferior à alçada e/ou não cumpre o requisito da sucumbência, o que não pode aceitar-se sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, também designado de princípio da “proibição do excesso”, que é o corolário do princípio da confiança inerente à ideia de Estado de Direito democrático, cfr. artigo 18, nº 2.º da Constituição da República Portuguesa, pelo que o douto despacho de que ora se recorre, violou claramente igualmente entre outros o artigo 18, nº 2 da nossa CRP.
j) Aliás, no recente Acórdão n.º 277/2016 o Tribunal Constitucional reitera o entendimento segundo o qual “A proibição do excesso constitui, tal como o princípio da proibição do arbítrio, uma componente elementar da ideia de justiça, razão por que aquele princípio pode reclamar uma validade geral”.
k) Assim, ao atribuir erroneamente o valor à acção de €2.603,99, em vez do valor de €29.303,28, o “Tribunal a quo”, não só faz uma incorrecta interpretação da Lei e do Direito, como em consequência está a prejudicar a Recorrente, limitando o seu direito a uma reanálise por um Tribunal Superior.
l) Assim, e porque estamos perante uma decisão - a de não admissibilidade do Recurso – que impede a Sr.ª Administradora de Insolvência de receber uma importância, que por regra é quase sempre inferior ao valor da alçada da 1ª instância deve a mesma ser considerada como uma situação análoga à prevista no art.º 27º n.º6 do RCP para as condenações em multa, penalidades ou taxas de justiça, com a consequente admissibilidade do Recuso independentemente do valor do incidente.
m) A decisão proferida em 1ª instância que recusou o pagamento da remuneração variável da Sr.ª Administradora de insolvência e posteriormente aquela que fixou o valor da acção em €2.603,99 e que limitou o seu direito ao acesso a uma 2ª análise no TRP, constitui uma verdadeira sanção processual. Pelo que, enquadrável na previsão do disposto no art.º 644º n.º 2 al. a) do CPC, não estando assim sujeita às restrições de valor e sucumbência fixadas no art.º 629º n.º 1 do CPC (CFR. ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 16/06/2015 no Proc. n.º 1008/07.7TBFAR.D.E1.S1 e de 26/03/2015 no Proc. n.º 2992/13.0TBABF.A.E1.S1.)
n) Igualmente, o entendimento constante do despacho de que ora se reclama, correspondendo a que nunca fosse permitida a reapreciação em Recurso, de decisões que recusem o pagamento de remunerações variáveis de valor inferior a 5.000,00€, está a inviabilizar a uniformização processual que o legislador pretendeu implementar ao prever as hipóteses de recurso constantes das als. b) e d) do art.º 629º do CPC.
o) Assim, tal douto despacho datado de 14.05.2018, de que ora se recorre, violou para além de todas as normas anteriormente mencionadas, igualmente o disposto no art.º 304º n.º 1 do CPC e mostra-se em oposição com o já decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.01.2015, no Proc.2465/13.ITBVCT-G-GI-A.SI, no qual consignou que “ salvo expressa disposição que determine o contrário, o incidente depende da causa, e integrado na causa, deve seguir o regime processual da causa em que se integra ou de que é dependente, nomeadamente em matéria de recurso”.
p) Mais acresce que, da referida decisão da 1ª instância também é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, por força do disposto no artigo 629º, nº 2 al. b) do CPC, dado que estamos perante situação em que se discute o valor de um incidente, e só a possibilidade de recurso permitirá evitar o factor de bloqueio condicionante da alçada e da sucumbência, a fim de não inviabilizar a finalidade de uniformização de jurisprudência, violando não só o mencionado artigo 629º do CPC como o artigo 644º, nº 2 al. e) e g) do CPC.
q) Bem como, tal douto despacho viola claramente o artigo 20º da CRP, que assegura que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como o artigo 18º, nº 2 da CRP, que prescreve o principio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que é o corolário do princípio da confiança inerente à ideia de Estado de Direito Democrático.
r) Pelo que, requer-se que a apresente Reclamação seja aceite e decidido que o processo deva prosseguir para apreciação do Recurso interposto para o TRP.
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5. Remetidos os autos a este Tribunal, foi proferido despacho singular pelo ora Relator a indeferir a dita reclamação, mantendo, pois, o despacho de não admissão do recurso interposto.
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6. Inconformada com a decisão singular proferida, veio a apelante apresentar reclamação para a conferência, mantendo a sua posição inicial e requerendo que seja proferido acórdão sobre a matéria da decisão.
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7. Foram cumpridos os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
A questão colocada traduz-se em saber, se in casu, o recurso interposto pela apelante observa os requisitos formais estabelecidos na lei adjectiva para a sua admissibilidade, mormente o requisito do valor.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
Os factos com relevo para a decisão são os que constam do relatório que antecede.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
A apelante insurge-se contra o despacho do relator que indeferiu a reclamação do despacho proferido em 1ª instância e que, sequencialmente, confirmou a inadmissibilidade do recurso de apelação por si interposto, sustentando, no essencial, que o valor atribuído em 1ª instância no despacho que indeferiu a interposição do recurso não é o correcto, pois que deveria ter sido considerado como tal o valor de €29.303, 28 e não o valor de €2.603,33, questão que, em seu ver, justificaria, ao invés, do decidido pelo Tribunal a quo e confirmado pela decisão singular ora sob escrutínio, a admissibilidade do dito recurso sobre tal despacho proferido pelo Tribunal de 1ª instância.
Não se nos afigura, contudo, que o mencionado despacho singular proferido pelo ora Juiz Relator mereça a censura que lhe vem apontada, posto que as questões que nele foram decididas obtiveram solução jurídica que reputamos como acertada.
Como assim, não se vislumbrando razões para divergir do antes decidido, renovamos e fazemos nossos os argumentos em que se ancorou a aludida decisão singular e que passamos a transcrever nos seus termos essenciais:
Neste conspecto, a primeira referência que se impõe fazer é a de que não constitui objecto da reclamação a apreciação da legalidade do despacho judicial proferido a 12.01.2018 e que não reconheceu à ora reclamante o direito à remuneração variável a que a mesma se julga com direito à luz do preceituado no artigo 60º, n.º 1 do CIRE, em conjugação com o preceituado no artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei n.º 22/2103 de 26.02, e tabela anexa à Portaria n.º 51/2005.
Com efeito, esse constitui o objecto do próprio recurso de apelação interposto pela Srª Administradora de Insolvência e o seu conhecimento depende de outra questão, essa sim objecto desta reclamação, qual seja a de saber se o dito despacho (de 12.01.2018) admite ou não recurso e, em consequência, se, ao invés do decidido no despacho reclamado (de 11.05.2018), deveria a Srª Juiz a quo ter admitido esse recurso.
Dito isto, e excluindo, portanto, do “ thema decindendum “ desta reclamação a questão do mérito substantivo da decisão proferida a 12.01.2018 – que só será conhecido no recurso de apelação interposto e se este último for admissível -, a primeira discordância invocada pela reclamante quanto ao despacho em reapreciação - o despacho de 11.05.2018 - radica no valor que nesse mesmo despacho foi atribuído ao incidente de fixação da remuneração variável a favor da Srª Administradora de Insolvência, concretamente ao valor ali fixado de €2.603,33, sustentando, nesta matéria, a reclamante que o dito valor deveria ser antes o valor de €29.303,28, pois que a fixação do montante da sua remuneração variável depende aritmeticamente, em função dos critérios previstos na tabela anexa à Portaria n.º 51/2005, desse valor, enquanto montante apreendido em favor da massa insolvente – vide conclusões formuladas em a) a h) da reclamação.
Nesta matéria, e com o devido respeito, não pode, no entanto, colher procedência a questão suscitada pela reclamante.
Como decorre do despacho proferido a 11.05.2018 e resulta evidenciado do próprio teor da reclamação deduzida e das antes citadas conclusões da mesma reclamação, o despacho em apreço contém em si mesmo dois segmentos decisórios distintos ainda que interligados, quais sejam: - fixação do valor do incidente de determinação da remuneração variável a favor da Srª Administradora da Insolvência; e - rejeição, em função desse valor ali fixado e da regra prevista no artigo 629º, n.º 1 do CPC, do recurso interposto do despacho de 12.01.2018 que negou o pagamento à Srª Administradora do valor dessa remuneração variável, remuneração essa que, como se mostra indiscutido, se cifra no máximo no montante de €2.603,33 e por cujo pagamento a reclamante pugna no âmbito do recurso que oportunamente interpôs.
Ora, sendo assim, como é, tal significa que, quanto ao segmento decisório contido no despacho de 11.05.2018 atinente à fixação do valor do incidente em €2.603,33, a discordância da Srª Administradora quanto ao mesmo e no sentido de que o valor do incidente era antes de €29.303,28 – como invoca na reclamação - teria que ser invocada em sede de recurso de apelação a interpor deste último despacho.
Com efeito, fixando, no despacho de 11.05.2018, a Srª Juiz a quo o valor do incidente no montante de €2.603,33, a Srª Administradora de Insolvência, discordando desse valor e pugnando no sentido de que o mesmo era superior, designadamente superior ao valor da alçada do Tribunal de 1ª instância (como é o caso), teria que dele interpor recurso de apelação (a par com a dedução de reclamação pela não admissão do mesmo contida no mesmo despacho) [1], esgrimindo na apelação – e não na reclamação, como ora sucede – a questão prévia (e prejudicial) do valor do incidente e que o mesmo é superior ao valor da alçada do tribunal de 1ª instância.
É que, como decorre do preceituado no artigo 629º, n.º 2 al. b) do CPC, da decisão respeitante ao valor do incidente, com fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre (como sustenta a ora reclamante), cabe sempre recurso de apelação – tendo por objecto a legalidade do valor atribuído pelo Juiz ao incidente ou à causa -, recurso esse que subirá imediatamente, em separado e com efeito devolutivo – cfr. artigos 644º, n.º 1 al. a), 645º, n.º 2 e 647º, n.º 1, do CPC. Note-se, neste particular, que no recurso cuja admissibilidade se aprecia no âmbito da presente reclamação - que versa sobre o despacho de 12.01.2018 e cujos fundamentos constam das alegações a fls. 4-18 deste apenso - não se mostra invocado como fundamento o valor do incidente e que o mesmo é superior ao valor da alçada do tribunal de 1ª instância, não se lhe aplicando, pois, ao contrário do que sustenta a reclamante, o regime do artigo 629º, n.º 2 al. b) do CPC.
Destarte, não constando dos presentes autos que do despacho de 11.05.2018 tenha sido interposto recurso de apelação pela ora reclamante quanto à questão do valor do incidente em apreço ali fixado com fundamento em que o valor do incidente ultrapassa o valor da alçada do Tribunal de 1ª instância e extravasando essa concreta matéria/questão o objecto da reclamaçãoque não se destina a conhecer se o valor do incidente foi correctamente fixado pelo Tribunal a quo - tal significa, logicamente, que o valor do incidente em que se insere o presente recurso se mostra definitivamente fixado em €2.603,33, o que decorre do trânsito em julgado de tal decisão e do respectivo caso julgado formal formado quanto a tal matéria – cfr. artigo 620º, n.º 1 do CPC.
Por conseguinte, partindo-se deste princípio, as questões suscitadas pela reclamante nas citadas alíneas a) a h) das conclusões da reclamação deduzida quanto ao valor do incidente e quanto à sua fixação no valor de €29.303,28, terão que improceder, pois que através da reclamação, enquanto meio de reacção ao despacho de não admissão do recurso, não é possível a este Tribunal superior apreciar da legalidade do segmento decisório que fixou como valor do incidente a quantia de €2.603,99, designadamente alterando-o para o valor de €29.303,28, que, na perspectiva da reclamante, seria o devido e, nesse outro pressuposto prévio (que só poderia ser esgrimido em sede de recurso de tal decisão), admitir o recurso por si interposto.
O que significa que improcedem as conclusões a) a h) da mesma reclamação quanto ao valor do incidente e, consequentemente, o valor do incidente em que se insere o presente recurso será, para efeitos da decisão a proferir no âmbito da reclamação, a quantia de €2.603,99, fixado pelo despacho de 11.05.2018 e do qual, tanto quanto consta destes autos , não foi interposto no prazo legal recurso de apelação.
Dito isto, preceitua o artigo 629º, n.º 1 do CPC que “ o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.“
Em suma, como é pacífico, sendo a alçada o limite de valor até ao qual o tribunal julga sem recurso ordinário, em princípio, a parte vencida na decisão apenas poderá recorrer da decisão se o valor do respectivo processo ou incidente em que se insere o recurso exceder a alçada do tribunal que proferiu a decisão recorrida (no caso, €5.000,00, valor da alçada dos Tribunais de 1ª instância – cfr. artigo 44º, n.º 1 da LOSJ) e se, além disso, se verificar o seu decaimento/sucumbência em, pelo menos, metade dessa alçada.
Vale, pois, por dizer que, estando em causa uma decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância é suposto para que seja admissível recurso ordinário da decisão recorrida que a causa ou incidente em que se insere o recurso tenha valor superior a € 5.000,00 e que a decisão seja desfavorável ao recorrente em, pelo menos, mais de metade daquele valor, ou seja, €2.500,01. [2]
Nesta perspectiva, possuindo o incidente em apreço – de fixação da remuneração variável a favor do Administrador de Insolvência - o valor já referido de €2.603,33, o recurso interposto pela ora reclamante, inserindo-se e tendo por objecto a legalidade do despacho de 12.01.2018 que rejeitou o pagamento desse montante à ora reclamante/Administradora de Insolvência, não consente recurso ordinário por falta do pressuposto acima referido, qual seja o de o incidente onde se insere o recurso possuir valor superior ao tribunal de que se recorre - €5.000,00.
A questão, no entanto, tal como se mostra colocada em função das demais conclusões da presente reclamação, é saber se, por um lado, esta solução ora exposta e sufragada no despacho reclamado confronta, por um lado, os princípios constitucionais da proporcionalidade ou da “ proibição do excesso “ ínsitos no princípio da confiança inerente à ideia de Estado de Direito Democrático (artigo 18º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa) ou, ainda, o princípio do acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20º da mesma Constituição da República) e, também, se será de aplicar ao caso, por analogia, a regra que emerge do preceituado no artigo 27º, n.º 6 do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
Relativamente a esta última solução sustentada pela reclamante, com o devido respeito, não vemos que exista entre a decisão de negação do pagamento da remuneração variável reclamada pela Srª Administradora de Insolvência (cujo montante não pode, no caso concreto dos autos, exceder o valor de €2.603,33, em função dos critérios legais previstos para a sua fixação) qualquer paralelismo com a decisão que aplique a qualquer das partes ou interveniente processual uma multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional.
Na verdade, no caso em apreço e no despacho cuja reapreciação se visa com o recurso interposto (cuja admissibilidade ora se conhece), não está em causa a aplicação de uma multa, penalidade ou taxa sancionatória à ora reclamante – o que supõe um juízo de censura sobre a conduta processual da parte/interveniente e a aplicação de uma cominação prevista na lei -, mas apenas e só a decisão denegatória sobre uma determinada pretensão com expressão pecuniária formulada pela Srª Administradora de Insolvência (pagamento da remuneração variável a que a mesma se julga com direito), em tudo similar ou idêntica à pretensão pecuniária que é formulada por qualquer parte no processo e que vê afastada ou negada tal pretensão por falta dos seus alegados fundamentos por meio de decisão judicial.
Ora, é indiscutido e pacífico que se o pedido formulado pela parte é inferior ao valor da alçada do Tribunal de 1ª instância (e o processo tem, portanto, valor inferior a essa alçada), da decisão que negue essa pretensão não cabe recurso ordinário.
É certo que, assim sucedendo, os interesses económicos da parte que vê afastada a sua pretensão são afectados, mas daí não decorre que esteja em causa a aplicação de uma qualquer “ sanção processual “, pressuposto específico de aplicação da norma prevista no artigo 27º, n.º 6 do RCP e que não ocorre na situação ora em apreço.
Por conseguinte, não existem, em nosso ver, razões para equiparar o despacho de que a ora reclamante pretende recorrer – despacho que afastou o pagamento da remuneração variável reclamada pela Srª AI no montante de € 2. 603, 99 – a um despacho de “ condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional “ e, logicamente, não lhe é aplicável, em nosso ver, por analogia, como pretende a ora reclamante, a regra consagrada no citado artigo 27º, n.º 6, segundo a qual cabe sempre recurso em um grau da decisão que aplique uma multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, independentemente do valor da causa ou do valor da sucumbência.
É certo, diga-se, como invoca a reclamante, que, daí decorre que sempre que o valor da remuneração variável reclamada pelo Sr. Administrador de Insolvência se situe dentro do valor da alçada do Tribunal de 1ª instância (€5.000,00), essa decisão judicial será irrecorrível; Todavia, essa é também a consequência que decorre, em termos inelutáveis, da regra do artigo 629º, n.º 1 do CPC em qualquer outro processo ou incidente em que o valor do pedido formulado se situe dentro dessa mesma alçada do Tribunal de 1ª instância e em que a pretensão formulada seja julgada improcedente, obstando à interposição de recurso ordinário e à reapreciação de tal decisão por um tribunal superior; Com efeito, em qualquer outra acção ou incidente, cujo valor seja inferior a €5.000,00, a respectiva decisão de improcedência ou de negação da pretensão formulada, será sempre irrecorrível.
E será esta solução, como invoca a reclamante, desproporcionada, excessiva, colocando em causa os princípios constitucionais invocados, nomeadamente o princípio da proporcionalidade, da confiança ou o princípio da tutela efectiva e do acesso ao direito?
Com o devido respeito, não cremos que a solução antes descrita – e que decorre da fixação do valor da alçada do Tribunal que proferiu a decisão de que se pretende recorrer enquanto factor delimitador da admissibilidade de recurso ordinário para uma outra instância - ponha em causa os citados comandos constitucionais e a torne ilegal.
O legislador ordinário, como é consabido, dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe designadamente, ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente protegidos relevantes – seja os interesses das partes, sejam os interesses públicos subjacentes à organização e racionalização do próprio sistema judicial – e, em conformidade com os mesmos, disciplinar o próprio processo, estabelecendo regras e condições para a prática de determinados actos, nomeadamente fixando as condições de admissibilidade dos recursos ordinários; O que releva é que essas condições se mostrem funcionalmente adequadas aos fins do processo e conformes ao princípio da proporcionalidade, estando, portanto, o legislador ordinário autorizado, nos termos dos artigos 13º e 18º, n.º 2 da CRP, a estabelecer condições para a admissibilidade dos recursos ordinários, desde que estas não se apresentem como arbitrárias ou desproporcionados à luz de uma equilibrada e racional ponderação de todos os interesses em causa.
Como salienta A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 38, “ na orgânica dos tribunais judiciais, em que existem três níveis hierárquicos, não se verificam obstáculos constitucionais à admissibilidade de alçadas que condicionem o direito de interposição de recursos. Contudo o legislador ordinário não pode arbitrariamente definir o seu valor, se daí resultar uma drástica, desproporcionada ou injustificada redução do número de processo em que é admissível a interposição de recursos ordinários. Como refere Lopes do Rego, as “ limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais. “ [3]
De facto, como referem também, em idêntico sentido, Jorge Miranda, Rui Medeiros [4], “ é jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Por maioria de razão, a Constituição não exige a consagração de um sistema de recurso sem limites ou ad infinitum (Ac. n.º 125/98). “
E acrescentam, ainda, os mesmos Autores “ a existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou a esmagadora maioria) das acções aos diversos patamares de recurso (Acs. n.º 72/99, 431/02 e 106/06). [5]
O que significa, pois, que se é legítimo que qualquer interveniente processual, que se vê confrontado com uma decisão desfavorável aos seus interesses legalmente protegidos, a pretenda ver reapreciada por um outro tribunal, é, apesar disso, conforme à Constituição, que, sendo o sistema de justiça uma organização com meios humanos e materiais limitados, o legislador ordinário estabeleça condições para a admissibilidade dos recursos ordinários, nomeadamente consignando que esse recurso só será de admitir se os interesses em causa assumirem um determinado significado ou relevo, aferido este em função do interesse económico posto em causa pela decisão, concretamente se esse interesse ultrapassar o valor da alçada do tribunal que proferiu a decisão e da qual se recorre.
É precisamente esta a razão pela qual, por princípio, só é admissível recurso ordinário das decisões de 1ª instância se o valor da acção ou do incidente em que o mesmo se insere for superior a €5.000,00 (e o decaimento seja igual ou superior a €2.500,01), assim como, por princípio, só será admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça se a acção onde foi proferida decisão pelo Tribunal da Relação tiver valor superior a €30.000,00 (e o decaimento seja igual ou superior a €15.000,01).
Ora, sendo assim, estando em causa um incidente cujo valor ascende a €2.603,99 e estando em causa uma decisão judicial que representa para o recorrente o decaimento nesse estrito montante pecuniário, não se nos afigura excessivo ou arbitrário o obstáculo ao recurso de tal decisão que decorre da regra do artigo 629º, n.º 1 do CPC, sendo certo que, como já se expôs, a nossa Constituição não consagra um princípio de recorribilidade irrestrita de todas as decisões judiciais, independentemente do seu valor e da sucumbência que as mesmas assumam para a parte vencida, antes consente, pelo contrário, numa ponderação de todos os interesses envolvidos, a restrição do direito ao recurso por parte do legislador ordinário, em casos específicos, como é o caso da presente decisão, que representa para a parte vencida uma afectação menor ou menos significativa dos seus interesses, no sentido de que essa afectação não ultrapassa, no caso, o valor da alçada do tribunal de 1ª instância (€5.000,00), antes se cifra em €2.603.99.
Por conseguinte, não confrontando a decisão proferida os princípios constitucionais invocados pela reclamante, nem integrando tal decisão qualquer das hipóteses em que o legislador consente o recurso ordinário independentemente do valor da causa, não podem colher os argumentos invocados pela ora reclamante, sendo, pois, de desatender a reclamação deduzida pela mesma, mantendo-se o despacho que não admitiu o recurso interposto pela ora reclamante e proferido a 11.05.2018.
Ora, em face do exposto e das razões alinhadas na decisão singular e ora transcritas, não se vislumbra razão ou razões válidas para divergir do sentido decisório nele acolhido relativamente às concretas questões que nela foram objecto de apreciação.
Destarte será, pois, de confirmar e manter tal decisão singular.
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V. DECISÃO:
Destarte, em razão do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em não atender a reclamação, mantendo, pois, a decisão singular na qual se confirmou o despacho proferido pelo Tribunal de 1ª instância de não admissão do recurso interposto pela Srª Administradora de Insolvência.
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Custas da reclamação pela recorrente, pois que ficou vencida – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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DN.
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Porto, 5.11.2018
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Fernanda Almeida
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[1] Reclamação que, em razão da interposição do recurso de apelação quanto ao valor do incidente em apreço, ficaria suspensa até à prolação de decisão (pelo Tribunal superior) que definitivamente fixasse o valor do incidente, atenta a sua natureza de questão prejudicial para a própria decisão sobre a admissibilidade do recurso, a proferir na reclamação.
[2] Sobre o pressuposto do valor da causa e sucumbência para efeitos de recurso, vide A. ABRANTES GERALDES, “ Recursos no Novo Código de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 37-40 e F. FERREIRA de ALMEIDA, “ Direito Processual Civil ”, II volume, 2015, pág. 416-417.
[3] CARLOS LOPES do REGO, “ O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil ”, in “ Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues ”, pág. 764, citado por A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 38.
Vide, ainda, no mesmo sentido, A. RIBEIRO MENDES, “ Recursos em Processo Civil “, Lex, 1992, pág. 152-154.
[4] Constituição Portuguesa Anotada, I volume UCP, 2ª edição (2017), pág. 329.
[5] Os acórdãos do Tribunal Constitucional que vimos citando por referência à obra em apreço podem ser consultados em texto integral in www.tribunalconstituciona.pt.
(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)