Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4675/11.7TBSTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
PROVA COMPLEMENTAR
Nº do Documento: RP201501294675/11.7TBSTS-A.P1
Data do Acordão: 01/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O título executivo não se confunde com a exigibilidade da obrigação.
II - A obrigação é exigível quando se encontra já vencida ou quando o seu vencimento depende da mera interpelação ao devedor.
III - Não resultando a exigibilidade da obrigação exequenda directamente do título executivo, impõe-se que seja feita a prova complementar do título.
IV - Assim, perante uma obrigação sujeita a condição suspensiva, onde a obrigação exequenda não resulta directamente do título exequendo, importa que seja feita a prova complementar do aludido titulo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 4675/11.7TBSTS-A.P1 – 3ª Secção (Apelação)
Oposição à Execução Comum – 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santo Tirso

Rel. Deolinda Varão (828)
Adj. Des. Freitas Vieira
Adj. Des. Madeira Pinto

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B… deduziu oposição à execução comum para pagamento de quantia certa que contra ele movem C…, D…, F… e G….
Como fundamento, alegou, em síntese, que deve apenas € 10.000 correspondentes ao preço da quota cedida, que ainda não pagou porque não foi outorgada a escritura de cessão de quotas como mencionado na declaração de dívida dada à execução.
Os exequentes contestaram, impugnando os factos alegados pelo executado e alegando que a cedência da quota não está sujeita a escritura pública e que já foi registada.
Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que julgou a oposição procedente e declarou extinta a execução.

Os exequentes recorreram, formulando, em síntese, as seguintes

CONCLUSÕES
1ª – O artº 363º do CC deveria ter sido interpretado no sentido de considerar a acta um escrito particular, daí ter sido cumprido o objecto negocial pretendido por ambas as partes.
2ª – O artº 263º do CC deveria ter levado a que a interpretação do negócio jurídico no seu todo e as declarações negociais consubstanciadas pelas duas declarações de dívida em particular fossem interpretadas com o sentido de que as partes quiseram estabelecer um prazo de pagamento da contraprestação de trinta dias a contar da data em que, face aos elementos trazidos aos autos, com segurança, a validade formal do negócio está assegurada e essa data é no mínimo a data do registo.
3ª – Sem prescindir, se dúvidas houvesse, o disposto no artº 237º do CC teria, se devidamente interpretado pelo Mº Juiz, conduzido a uma solução que inevitavelmente conduziria a um maior equilíbrio entre as prestações.

Juntaram um documento com as alegações de recurso.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. Os exequentes acordaram com o executado ceder-lhe uma quota da qual eram titulares na sociedade H…, Lda., pelo valor de € 25.000,00.
2. O executado assinou os dois documentos juntos ao requerimento executivo, com data de 26.10.09, que têm a seguinte redacção:

DECLARAÇÃO DE DÍVIDA
Eu, B…, (…) declaro que no prazo máximo de 30 dias após a data da escritura de cessão de quotas da firma H…, Lda, (…) liquidarei o valor de € 15.000,00 (quinze mil euros) referente a um empréstimo obtido, a C… (…), F…, G… (…) D… (…).

DECLARAÇÃO DE DÍVIDA
Eu, B…, (…) declaro que no prazo máximo de 30 dias após a data da escritura de cessão de quotas liquidarei o valor de € 10.000,00 (dez mil euros) referente à quota cedida na firma H…, Lda,, a C… (…), F…, G… (…) D… (…).
3. Após ser interpelado para o referido pagamento, pela mandatária dos exequentes, por carta registada, não procedeu a qualquer pagamento.
4. Em 27.08.09, os exequentes declararam na acta da assembleia geral realizada nesse dia, pretender sair da sociedade cedendo ao executado uma quota no valor nominal de € 10.000,00, de que eram titulares na sociedade H…, pelo preço de € 10.000,00.
5. Ainda não ocorreu a outorga da escritura de cessão de quotas.
6. Em momento algum, os exequentes mutuaram ao executado a quantia aludida no documento 1 junto ao requerimento executivo, nada lhes sendo devido a esse título.
7. A cessão de quotas foi registada na CRC em 03.12.09.

Com interesse para a decisão do recurso está ainda provado pelo teor da certidão permanente junta a fls. 28 e seguintes que o registo da cessão de quotas foi requerido pelo executado.
*
III.
A questão a decidir – delimitada pelas conclusões da alegação dos apelantes – é a seguinte:
- Exigibilidade da obrigação exequenda.

A acção executiva tem por finalidade a reparação efectiva de um direito violado (artº 4º, nº 3 do CPC, na versão anterior à aprovada pela Lei 41/13, de 26.06 – cfr. artº 6º, nº 3 daquela Lei – pertencendo ao CPC e àquela versão todas as normas adiante citadas sem outra menção) e tem por base um título, pelo qual se determinam o seu fim e limites (artº 45º, nº 1).
São pressupostos específicos da acção executiva: a) o título executivo (pressuposto de carácter formal), que, extrinsecamente, condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva; b) a certeza, exigibilidade e liquidez da prestação (pressupostos de carácter material), que, intrinsecamente, condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coactiva da prestação[1].
O título executivo, em qualquer uma das espécies elencadas no nº 1 do artº 46º pode definir-se, aproximadamente, como o documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servirem de base ao processo executivo[2].
Diz o artº 46º, al. c) que à execução apenas podem servir de base à execução os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.
Os documentos particulares, para se configurarem como títulos executivos, devem, pois, obedecer aos requisitos mencionados no citado artº 46º, al. c):
- conterem a assinatura do devedor;
- importarem a constituição ou reconhecimento de obrigações;
- as obrigações reportarem-se ao pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, à entrega de coisas móveis ou à prestação de facto.

Com o título executivo não se confunde a exigibilidade da obrigação exequenda que, como dissemos, é também um pressuposto material específico da acção executiva.
A obrigação é exigível quando se encontra já vencida, ou quando o seu vencimento depende, seja por estipulação das partes, seja por aplicação do nº 1 do artº 777º do CC, de mera interpelação dirigida ao devedor.
Ao invés, a obrigação é inexigível quando, não tendo ocorrido o vencimento, este não está dependente de mera interpelação. É este o caso quando:
- tratando-se de uma obrigação de prazo certo, este ainda não decorreu (artº 779º do CC);
- o prazo é incerto e a fixar pelo tribunal (artº 777º, nº2 do CC);
- a constituição da obrigação foi sujeita a condição suspensiva, que ainda não se verificou (artºs 270º do CC);
- em caso de sinalagma, o credor não satisfez a contraprestação (artº 428º do CC)[3].
Não resultando a exigibilidade da obrigação exequenda directamente do título executivo, impõe-se que seja feita a prova complementar do título a que se refere o artº 804º.
Segundo Lebre de Freitas[4], os nºs 1 a 4 daquele preceito têm alcance geral, pelo que se aplicam, para além dos casos neles especialmente previstos (obrigação dependente de uma condição suspensiva ou duma prestação por parte do credor ou de terceiro) a todos aqueles em que a certeza e a exigibilidade não resultam do título executivo, mas já se verificavam antes da propositura da acção executiva, assim como ainda àqueles em que, sendo a prestação exigível em face do título, o credor queira provar que ocorreu o vencimento e a mora do devedor, para evitar a condenação em custas.
Caso o exequente disponha de documento comprovativo da exigibilidade da obrigação, deve apresentá-lo perante o agente de execução (nº1 do citado artº 804º).
Caso seja necessário fazer prova extradocumental, seguem-se os termos previstos nos nºs 2 a 5 do mesmo preceito.
Se o exequente não oferecer com o requerimento executivo a prova complementar do título ou se não requerer as diligências destinadas a tornar a obrigação exigível, deve ser convidado pelo juiz a fazê-lo (artº 812º-E, nº3) e, caso o não faça, será indeferido o requerimento executivo (nº4 do mesmo preceito).
Havendo lugar a despacho liminar (artº 812º-D), é neste que a apreciação judicial deve ser feita; não havendo lugar a despacho liminar, pode tal apreciação ser feita até à primeira transmissão de bens penhorados (artº 820º, nº1).
Porém, tendo a execução prosseguido os seus termos sem que essa prova tivesse sido feita, pode a inexigibilidade da obrigação exequenda ser discutida em sede de oposição à execução (artº 814º, nº 1,al. e), sem perder de vista que o ónus da prova dos factos que acarretam a exigibilidade da obrigação pertence ao exequente[5].

No caso, foi dado à execução um documento assinado pelo executado, em que este declarou que, no prazo máximo de 30 dias após a data da escritura de cessão de quotas liquidaria aos exequentes o valor de € 10.000,00 referente à quota cedida na firma H…, Lda.
Aquele documento recorta o reconhecimento pelo executado de uma obrigação de pagamento de uma quantia determinada, reunindo assim as condições para ser título executivo enquanto documento particular, nos termos do artº 46º, al. c).

Porém, a obrigação ali recortada (correspondente ao preço de uma cessão de quota de sociedade comercial) foi subordinada à celebração da escritura pública que titularia aquela cessão.
Estamos, portanto, perante uma obrigação sujeita a condição suspensiva nos termos do artº 270º do CC.
Por estar dependente dessa condição suspensiva, a obrigação exequenda não resulta directamente do título executivo.
Impunha-se assim que tivesse sido feita a prova complementar do título a que se refere o artº 804º, ou seja, a prova de que a escritura de cessão de quotas já tinha sido celebrada.
Como é óbvio, essa prova só poderia ter sido feita através da apresentação ao agente de execução de cópia da referida escritura, nos termos do nº 1 do citado artº 804º.
Essa prova complementar não foi feita e nunca o poderia ter sido porque, como se provou na presente oposição à execução, a escritura pública de cessão de quota nunca chegou a ser celebrada.
No entanto, tendo a execução prosseguido os seus termos, veio o executado, em sede da presente oposição, invocar precisamente o fundamento da inexigibilidade da obrigação exequenda por não ter sido formalizada a escritura de cessão de quota, ou seja, por não ter sido cumprida a condição suspensiva a que estava sujeita obrigação exequenda – o que pode aqui ser discutido.

O artº 228º, nº 1 do CSC foi alterado pelo DL 76-A/06, de 29.03, no sentido de a transmissão de quotas entre vivos dever ser apenas reduzida a escrito, eliminando-se a exigência de escritura pública que constava da redacção anterior do preceito.
Assim, quer à data da realização da assembleia-geral da sociedade H… (27.08.10), quer à data da emissão da declaração de dívida dada à execução (26.10.10), já não era necessária a celebração de escritura pública para formalizar a transmissão pelos exequentes ao executado da quota que detinham naquela sociedade.
Apesar disso, na declaração de dívida dada à execução, o pagamento do preço da quota foi condicionado à celebração da escritura pública.
E, pese embora tal declaração esteja subscrita apenas pelo executado, a verdade é que foi por ele entregue aos exequentes (o que se depreende do facto de estar em poder destes, que nela fundaram a execução) e, por isso, teve o seu assentimento.
Não é possível concluir-se se exequentes e executado acordaram em fazer a escritura pública porque queriam submeter o negócio de transmissão da quota a uma forma mais solene do que a exigida por lei (estaríamos assim perante a forma convencional prevista no artº 223º do CC) ou se o fizeram por estarem induzidos em erro acerca da forma legalmente exigida para o mesmo.
Porém, tal situação acaba por ser irrelevante face à conduta posterior do executado.
A verdade é que, em 03.12.09, sem que a escritura pública tivesse sido celebrada, a transmissão da quota da sociedade acima identificada dos exequentes para os executados foi registada na CRC.
E tal registo foi feito a requerimento do executado.
Tendo o registo sido requerido pelo executado, só o pode ter sido com fundamento na acta da assembleia geral de 27.08.10, pois que era este o único documento que continha declarações de vontade das partes no sentido de, pelo menos, pretenderem ceder a quota e aceitar a respectiva cessão, pelo que, sem aquela acta, o registo não teria sido feito (cfr. artº 32º do Código de Registo Comercial).
Aliás, os apelantes juntaram, com as alegações de recurso, cópia do requerimento subscrito pelo executado em que este indica como documento necessário ao registo precisamente a referida acta.
Mas, pelas razões acima expostas, não precisamos sequer de atender a tal documento (sendo duvidosa a admissibilidade da sua junção apenas com as alegações de recurso, pois que a questão decidida na sentença já estava debatida nos articulados – cfr. artº 425º, na versão introduzida pela Lei 41/13, aqui aplicável, por força do disposto no artº 7º da mesma Lei), para chegarmos à conclusão de que foi nessa acta que o registo se baseou.
O registo assim efectuado é válido, não se vislumbrando que padeça de qualquer um dos vícios previstos nas diversas alíneas do nº 1 do artº 22º do CRC que acarretariam a sua nulidade.
Mostrando-se, pois, a transmissão da quota já inscrita no registo comercial, torna-se irrelevante e mesmo inviável a celebração da respectiva escritura pública.
Por isso, a condição a que estava sujeito o cumprimento da obrigação de pagar o preço da transmissão, mostra-se cumprida.
Sendo assim, tal obrigação venceu-se, passando a ser exigível e, podendo, como tal, ser executada.

Ainda que assim não se entendesse, sempre teríamos de considerar haver contradição entre o comportamento do autor, ao registar a transmissão de quota com fundamento na acta da assembleia-geral da sociedade e o seu comportamento ao invocar a inexigibilidade da obrigação de pagar o preço da transmissão por não se ter celebrado a escritura pública – o que configura uma situação de abuso de direito na manifestação de venire contra factum proprium, acolhida na norma do artº 334º do CC.

Por todas as razões expostas, há que julgar a oposição à execução improcedente na parte respeitante à quantia de € 10.000,00 correspondente ao preço da transmissão da quota da sociedade comercial H…, Ldª, e respectivos juros de mora.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se, em parte, a sentença recorrida e, em consequência:
- Julga-se a oposição parcialmente procedente, reduzindo-se a quantia exequenda ao montante de € 10.000,00, acrescida dos juros de mora peticionados.
Custas da apelação pelo executado/apelado.
Custas da oposição pelos exequentes e pelo executado, na proporção do decaimento.
***
Porto, 29 de Janeiro de 2015
Deolinda Varão
Freitas Vieira
Madeira Pinto
__________
[1] Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4ª ed., pág. 29.
[2] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 58.
[3] Cfr. Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5ª ed., pág. 83.
[4] Obra citada na nota 4, pág. 94.
[5] Cfr. Lebre de Freitas, obra citada, pág. 96 e Ac. desta Relação de 19.10.93, www.dgsi.pt.