Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
187/08.4FBAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DONAS BOTTO
Descritores: ERRO SOBRE A ILICITUDE
ERRO SOBRE AS CIRCUNSTÂNCIAS DE FACTO
Nº do Documento: RP20160427187/08.4FBAVR.P1
Data do Acordão: 04/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1000, FLS. 82-90)
Área Temática: .
Sumário: I – A falta de consciência do ilícito é não censurável sempre que o engano ou erro da consciência ética (que se exprime no facto) não se fundamente numa atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais pelos quais o agente deve responder.
II – A falta de consciência da ilicitude é censurável quando revela uma atitude de indiferença pelos valores jurídico-penais.
III – Se não ficou provado que a eventual falta de esclarecimento e de conhecimento se tenha ficado a dever a uma qualquer qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade dos arguidos, a uma indiferença perante o bem jurídico protegido pela norma ou que seja consequência de uma omissão do cuidado exigível forçoso é concluir que os arguidos atuaram sem consciência da ilicitude do facto e que o erro sobre a ilicitude não lhes é censurável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 187/08.4FBAVR.P1
Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto

Os arguidos B… e C… foram absolvidos dos crimes de fraude sobre mercadorias; contrafacção, imitação e uso ilegal de marca e venda; circulação ou ocultação de produtos ou artigos.
Inconformada, veio a assistente D…, S.A. interpor recurso da sentença que os absolveu, alegando que os factos dados como provados sob os n.º s 14. e 15. não são, por si só, susceptíveis de constituir causa para afastar a culpa dos arguidos no que respeita aos crimes pelos quais se encontravam acusados, dizendo que o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém.
Refere ainda que, dos elementos factuais considerados provados, se impunha considerar também como factos provados que os arguidos agiram visando criar no consumidor final a convicção de as peças referidas em 1) dos factos provados serem originais da D1… e que os mesmos agiram bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e punidas criminalmente, devendo por outro lado considerar-se como não provado o facto n.º 15, sendo o mesmo eliminado.
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Nesta Relação, foi proferida decisão sumária, que confirmou a decisão de 1ª Instância, com o MP a concordar com a absolvição dos arguidos.
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Desta decisão sumária, veio a assistente D1… reclamar para a Conferência, onde volta a colocar as mesmas questões do recurso inicial.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Relatório

A requerimento do Ministério Público foram julgados nos presentes autos, em processo comum e perante o tribunal singular:
B…, casado, comerciante, actualmente aposentado, nascido em 19.06.1948, natural de …, Ílhavo, filho de E… e de F…, residente na Rua …, n° .., …, Ílhavo, e de C…, casada, …, nascida em 14.03.1955, natural de …, Aveiro, filha de G… e de H…, residente na Rua …, n° .., …, Aveiro, pela prática, como autores materiais, na forma consumada e em concurso real, de:
- um crime de fraude sobre mercadorias previsto e punido pelo art. 23°, n° 1, al. a) do DL n° 28/84, de 20 de Janeiro,
- um crime de contrafacção, imitação e uso ilegal de marca previsto e punido pelo art. 323°, als. a), b), c) e f) do Código da Propriedade Industrial, e,
- um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos previsto e punido
pelo art. 324° do Código da Propriedade Industrial - cf. acusação pública de fls. 413 e segs.
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O Ministério Público requereu igualmente o julgamento de I….
Posteriormente, promoveu se considerasse extinto o procedimento criminal por via da sua prescrição (fls. 692), o que veio a suceder por despacho de 25.06.2014 (fls. 700).
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D…, S.A., veio requerer a sua constituição como assistente, acompanhando a acusação pública e deduzindo pedido de indemnização civil contra os arguidos (fls. 450 e 457 e segs.).
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Notificados do despacho que, recebendo a acusação, agendou a realização da audiência de discussão e julgamento, os arguidos apresentaram a sua defesa (fls. 483 e segs. e fls. 500 e segs.).
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Por despachos de fls. 570, 619 e 627, foi determinada a realização de uma perícia aos objectos descritos na acusação, vindo o relatório pericial a ser entregue a fls. 669 e 676 e segs.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, em conformidade com a documentação de fls. 782 e segs., 812 e segs., 826 e segs. e 838 e segs.
A instância mantém-se válida e regular, inexistindo questões prévias de que cumpra conhecer.
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II- Fundamentação de facto:
Discutida a causa, apuraram-se os seguintes factos:
1- No dia 24 de Junho de 2008, pelas 14H30, o arguido B… tinha exposto para venda ao público nas prateleiras do seu estabelecimento comercial denominado "J… ", sito na Urbanização …, em Ílhavo, as seguintes peças de louça:
- quatro conjuntos de chá, cada um formado por um pires e uma chávena modelo K…;
- quatro conjuntos de chá, cada um formado por um pires e uma chávena modelo K…;
- quatro conjuntos de chá, cada um formado por um pires e uma chávena modelo K…;
- catorze conjuntos de chá, cada um formado por um pires e uma chávena modelo K..;
- sete conjuntos de chá, cada um formado por um pires e uma chávena modelo K…;
- nove conjuntos de chá, cada um formado por um pires e uma chávena modelo L…;
- dez conjuntos de chá, cada um formado por um pires e uma chávena modelo L….;
- uma chávena de chá modelo K…;
- um pires de café modelo K…;
- oito pratos n° 1 modelo K…;
- quatro pratos n° 1 modelo L…;
- sete pratos n° 3 modelo K…;
- dois pratos n° 3 modelo L…;
- dois pratos n° 4 modelo L…;
- um prato n° 4 modelo K…;
- um conjunto de almoçadeira composto por um pires e uma chávena modelo K…;
- uma leiteira com um pires modelo K…;
- um serviço de café composto por doze chávenas, doze pires, uma cafeteira, uma leiteira e um açucareiro;
- um serviço de café modelo M…t, composto por doze chávenas, doze pires, uma cafeteira, uma leiteira e um açucareiro;
- um serviço de chá modelo L…, composto por doze chávenas, doze pires, um bule, uma leiteira e um açucareiro;
- um bule modelo L…;
- uma cafeteira modelo K…;
- uma leiteira modelo K…;
- um açucareiro modelo L…;
- uma concha n° 2 modelo K…; e,
- cinco conchas n° 3 modelo K….
2 - As peças de louça descritas em 1 ostentavam a marca D1….
3 - As peças de louça descritas em 1 tinham decorações pintadas à mão.
4 - As peças de louça descritas em 1 tinham a inscrição pintado à mão, aplicado por decalque ou escrito à mão.
5 - As peças de louça descritas em 1 apresentavam:
- decorações nunca realizadas pela D1…;
- decorações que deixaram de ser executadas pela D1…;
- decorações colocadas em modelos diferentes daqueles em que a D1… os colocava; e,
- decorações pintadas à mão que a D1… não executava à mão e sim por decalque.
6 - Das peças referidas em 1, a arguida C… pintou quatro chávenas de café e respectivos pires e uma de chá e respectivo pires; cinco pratos; uma leiteira e respectivo pires; e, quatro conchas, tudo em modelo K….
7 - As peças referidas em 6 foram assinadas pela arguida C…, sendo sua prática habitual.
8 - O arguido B… adquiriu as peças referidas em 1, em branco, nos estabelecimentos comerciais N…, S.A. e O…, S.A.
9 - As peças referidas em 6 foram entregues à arguida C… para que as pintasse com motivos da sua autoria.
10 - As demais peças foram entregues a pintor não determinado para que as pintasse.
11 - O estabelecimento do arguido identificado em 1 situava-se no mercado de …, tendo uma dimensão aproximada de 20 a 25 m2.
12 - O estabelecimento do arguido oferecia diversas utilidades para o lar, como sejam, cerâmicas diversas, tachos e panelas, velas para o cemitério, esponjas.
13 - Além da louça referida em 1, o arguido tinha para venda no seu estabelecimento muita louça da D1… branca e pintada genuinamente.
14 - É prática usual há décadas em Ílhavo mandar pintar peças da D1…, adquiridas em branco, ou comprar peças da D1… pintadas fora das instalações da D1….
15 - Os arguidos actuaram no contexto descrito em 14, na convicção de poderem pintar e comercializar a louça descrita em 1.
16 - O arguido B… está reformado auferindo uma pensão de reforma de cerca de 735€ mensais.
17 - O arguido é casado, vivendo com a mulher em casa própria.
18 - O arguido e a mulher são pessoas doentes, gastando mensalmente uma quantia global aproximada de 300€ na sua saúde.
19 - A arguida C… é pintora há décadas, pintando, designadamente, lenços, almofadas e louças.
20 - A arguida C… vive da reforma do marido, no valor de 1.084€.
21 - A arguida C… vive com o marido em casa própria.
22 - Os arguidos não têm antecedentes criminais.
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Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão a tomar, não se provando, designadamente, a seguinte factualidade:
a) - as decorações da D1… encontram-se registadas;
b) - as peças referidas em 1 têm um valor global de pelo menos 1.840€ (mil oitocentos e quarenta euros);
c) - os arguidos agiram visando criar no consumidor final a convicção de as peças referidas em 1 serem originais da D1…; e,
d) - os arguidos agiram bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e punidas criminalmente.
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O tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, conjugando as declarações dos arguidos, que se afiguraram honestas, com as declarações das demais testemunhas, no confronto com o auto de apreensão e o relatório pericial.
O tribunal teve por merecedoras de crédito as declarações dos arguidos, quer por fazerem sentido, quer por serem confirmadas pela demais prova testemunhal produzida, de que se destacam as testemunhas da acusação, logrando-se comprovar a factualidade acima elencada.
Na verdade, as testemunhas da acusação foram essenciais a alicerçar a convicção do tribunal no tocante à factualidade descrita acima nos pontos 14 e 15 e que excluiu, por destituída de sentido, a factualidade descrita na acusação que não se considerou demonstrada sob as alíneas c) e d).
Assim, as testemunhas P… e S…, ambos militares da Guarda Nacional Republicana, explicaram que nunca tinham participado numa acção deste tipo na sua carreira, nunca tendo procedido à apreensão de louça alegadamente contrafeita, fosse da D1…, fosse de outra marca. Tais testemunhas também confirmaram que o arguido B… foi colaborante e amável, apesar de se mostrar surpreendido com a apreensão. Estas testemunhas explicaram que as peças de louça em causa estavam expostas para venda espalhadas pela loja do arguido B… e que ficaram convencidas que o arguido ignorava que não podia vender aquela louça.
Por seu turno, as testemunhas T… e U…, respectivamente vendedores de N…, S.A., e de O…, S.A., tendo um profundo conhecimento do mercado da louça, esclareceram que o arguido B… era comprador regular de louça D1…, branca ou decorada, sabendo ambas que era prática corrente em Ílhavo, há décadas, comprar-se louça branca da D1… e mandar pintar fora das respectivas instalações, sendo comum as lojas locais oferecerem esse tipo de louça.
Acresce que estas testemunhas referiram que, para além daquele contexto específico de Ílhavo e daquela prática arreigada nos hábitos dos locais, o arguido B… é pessoa honesta e respeitada, não acreditando que enganasse os clientes.
A testemunha V…, embora de forma mais hesitante, o que talvez se prenda com a circunstância de ser actualmente funcionário da D1…, acabou por confirmar a existência daquele particular contexto.
Note-se que as testemunhas W… e X…, ambas trabalhadoras da D1… afirmaram desconhecer a referida prática. Contudo, as suas declarações não convencem, sendo certo que nenhuma delas é originária de Ílhavo e ambas declararam não usar o comércio local.
Em face da demonstração da factualidade descrita no ponto 14 e, consequentemente, no ponto 15 da fundamentação de facto, impunha-se considerar como não provados, designadamente, os pontos de facto sob as alíneas c) e d) em relação a ambos os arguidos.
Relativamente à não prova do facto descrito em a), assim resulta de não se ter feito prova do registo mencionado na acusação.
No que respeita à não prova da matéria contida na alínea b), assim resulta de não ter sido produzida prova consistente quanto ao valor das louças em causa.
A factualidade dos pontos 16 a 21 resulta das declarações dos arguidos, inexistindo motivos para se duvidar das mesmas.
Finalmente, o tribunal atendeu ao teor do certificado de registo criminal dos arguidos de fls. 774 e 775.
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- Decisão:
1- Pelo exposto, julga-se a acusação pública improcedente por não provada, e, por conseguinte, decide-se:
- absolver o arguido B… dos crimes de que vinha acusado de fraude sobre mercadorias punido pelo art. 23°, n° 1, al. a) do DL n° 28/84, de 20.01, de contrafacção, imitação e uso ilegal de marca previsto e de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos punidos, respectivamente, pelos arts. 323°, als. a), b), c) e f) e 324° do Código da Propriedade Industrial;
- absolver a arguida C… dos crimes de que vinha acusada de fraude sobre mercadorias punido pelo art. 23°, n° 1, al. a) do DL n° 28/84, de 20.01, de contrafacção, imitação e uso ilegal de marca previsto e de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos punidos, respectivamente, pelos arts. 323°, als. a), b), c) e f) e 324° do Código da Propriedade Industrial;
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2- Mais se decide julgar improcedente, por não provado, o pedido indemnizatório formulado pela assistente/demandante D…, S.A., dele se absolvendo os arguidos.
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A assistente D…, S.A. veio interpor recurso da sentença que absolveu os arguidos B… e C… dos crimes de fraude sobre mercadorias; contrafacção, imitação e uso ilegal de marca e venda; circulação ou ocultação de produtos ou artigos, recorrendo, pois, da matéria de facto e de direito.
Alega que os factos dados como provados sob os n.º s 14. e 15. não são, por si só, susceptíveis de constituir causa para afastar a culpa dos arguidos no que respeita aos crimes pelos quais se encontravam acusados, dizendo que o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém.
Refere ainda que, dos elementos factuais considerados provados, se impunha considerar também como factos provados que os arguidos agiram visando criar no consumidor final a convicção de as peças referidas em 1) dos factos provados serem originais da D1… e que os mesmos agiram bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e punidas criminalmente, devendo por outro lado considerar-se como não provado o facto n.º 15, sendo o mesmo eliminado.
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O MP em 1ª Instância é de parecer que o recurso deve improceder, devendo ambos os arguidos serem absolvidos.
Nesta Relação, a Ex.ma Sr.ª PGA é de parecer que há erro notório na apreciação da prova, atentos os factos provados sob os n.º s 14 e 15, devendo ser alterada a matéria de facto objecto do recurso.
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Cumpre decidir.
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A recorrente fundamenta o seu recurso, essencialmente, no facto de o Tribunal a quo ter dado como provados os factos constantes dos números 14 e 15 da sentença quando, no entender dela, tais matérias deveriam ter sido dadas como não provadas, ou, ainda que provadas, não deveriam constituir fundamento bastante para, só por si, afastar a ilicitude dos factos praticados.
Ora, na sentença recorrida deu-se como provado o seguinte:
“14 - É prática usual há décadas em Ílhavo mandar pintar peças da D1…, adquiridas em branco, ou comprar peças da D1…, pintadas fora das instalações da D1….”
“15 - Os arguidos actuaram no contexto descrito em 14, na convicção de poderem pintar e comercializar a louça descrita em 1”.
O Tribunal a quo deu como não provado que “os arguidos agiram visando criar no consumidor final a convicção de as peças referidas em 1) serem originais da D1…” e que “os arguidos agiram bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e punidas criminalmente”.
A recorrente impugna, pois, a matéria que foi dada como provada no ponto 15 da sentença recorrida e a matéria dada como não provada nas alíneas c) e d) { c)- os arguidos agiram visando criar no consumidor final a convicção de as peças referidas em 1) serem originais da D1…; e, d)- os arguidos agiram bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e punidas criminalmente}.
Porém, não invoca nenhum meio de prova que seja susceptível de impor uma decisão diferente a esse propósito.
De facto, devia indicar os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e indicar as provas concretas que, em seu entender, impunham uma decisão diversa – cfr, artigo 412 n.º 3 alíneas a) e b) do CPP.
Assim, a recorrente não só não invoca qualquer dos vícios previstos nas alíneas do art 410. n.º 2., do Código de Processo Penal (mas que são de conhecimento oficioso) como também não cumpre as exigências do art. 412° ,n.º 3. do Código de Processo Penal, limitando-se a dizer que dos factos que foram dados como provados resultava necessariamente que os arguidos agiram visando criar no consumidor final a convicção de as peças referidas em 1 dos factos provados eram originais da VA e que os mesmos agiram bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e punidas criminalmente, nada dizendo sobre o que é que justificaria tal facto.
Porém, sempre diremos o seguinte:
Vimos que a recorrente alega que a factualidade apurada não traduz uma real e concreta valoração dos factos provados em sede de Audiência, por, no fundo, terem sido fundamentados através de um juízo errado.
Os vícios constantes do art 410 n° 2 do CPP, para relevarem, têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Efectivamente, os vícios relativos à matéria de facto, referidos nesta disposição, pressupõem que os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum, e que conste em «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada», em «contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão», ou se verifique «erro notório na apreciação da prova».
O tribunal, por sua vez, deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção. Aliás, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (art.374 nº2 do CPP).
Assim, se a decisão for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela foi proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção, pelo que só nos casos de evidente desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, se deve alterar a convicção alcançada pelo tribunal da lª instância.
Sempre que a posição do julgador se centraliza nos elementos que se prendem, directamente, com a imediação da prova testemunhal, o tribunal de recurso não tem possibilidade de sindicar tal convicção, excepto se a mesma se mostrar contrária às regras da experiência, da lógica ou dos conhecimentos científicos.
Neste sentido, veja-se o Ac. do STJ de 11-10-2007(www.dgsi.pt), onde se diz:
“Vem entendendo, sem discrepância, este Supremo Tribunal de Justiça que o recurso em matéria de facto (“quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto”) não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os “pontos de facto” que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham “decisão diversa” da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) – art. 412.°, n.º 3, al. b), do CPP-, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer (AcSTJ de 31-05-2007, proc. n.º 1412/07-5, com o mesmo Relator)” .
Por outro lado, diz-se ainda no Ac. do STJ de 9-2-05, in www.dgsi.pt, que o erro notório na apreciação da prova, constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
Os vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP não podem, ainda, ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127° do CPP.
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade (ou impressionismo) da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
Relevantes neste ponto, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349° do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios, ou a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c). – cfr. os acórdãos do STJ, de 7 de Janeiro de 2004, proc.3213/03, e de 24 de Março de 2004, proc. 4043/03, conclui aquele acórdão do STJ.
No caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, que o recorrente usou, deve-se especificar nas conclusões, os pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e as provas que devem ser renovadas – art. 412.º, n.º 2. als. a), b) e c), do CPP.
Quando as provas tenham sido gravadas, dispõe o n.º 4 do art. 412.°, as especificações previstas nas als. b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição: esta disposição separa inteiramente dois momentos, partindo do pressuposto e da função da gravação da prova e dos respectivos suportes técnicos e da função e finalidade da transcrição das provas gravadas (cfr. Ac. do STJ de 3 de Março de 2005).
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Vejamos agora o caso em apreço.

Consta da matéria de facto dada como provada, que as peças de louça descritas em 1) dos factos provados, apresentavam decorações nunca realizadas pela D1…; decorações que deixaram de ser executadas pela D1…; decorações colocadas em modelos diferentes daqueles em que a D1… os colocava; e, decorações pintadas à mão que a D1… não executava à mão e sim por decalque.
Das citadas peças referidas em 1), a arguida C… pintou quatro chávenas de café e respectivos pires e uma de chá e respectivo pires; cinco pratos; uma leiteira e respectivo pires; e, quatro conchas, tudo em modelo K…, sendo assinadas pela arguida C…, como era sua prática habitual.
As demais peças foram entregues a pintor não determinado para que as pintasse.
Além da louça referida em 1), o arguido tinha para venda no seu estabelecimento muita louça da D1… branca e pintada genuinamente.
É prática usual há décadas em Ílhavo, mandar pintar peças da D1…, adquiridas em branco, ou comprar peças da D1… pintadas fora das instalações da D1….
Por isso, é referido que os arguidos actuaram na convicção de poderem pintar e comercializar a louça descrita em 1), sendo a arguida C… pintora há décadas, pintando, designadamente, lenços, almofadas e louças.
Ambos os arguidos não têm antecedentes criminais.
Ficou ainda dado como não provado que as decorações da D1… se encontrassem registadas e que os arguidos agiram visando criar no consumidor final a convicção de as peças referidas em 1) serem originais da D1….
Para dar como provada e não provada a matéria acima transcrita, o tribunal a quo fundamentou-se, além do mais, no teor das declarações das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, nomeadamente, nas testemunhas P… e S…, militares da GNR, que referiram que nunca tinham participado numa acção deste tipo na sua carreira, nem procedido à apreensão de louça alegadamente contrafeita, fosse da D1…, fosse de outra marca. Disseram que o arguido B… foi colaborante e amável, apesar de se mostrar surpreendido com a apreensão, e que as peças de louça em causa estavam expostas para venda espalhadas pela loja do arguido B…, ficando convencidas que o arguido ignorava que não podia vender aquela louça.
Também as testemunhas T… e U…, respectivamente vendedores de N…, S.A., e de O…, S.A., com profundo conhecimento do mercado da louça, esclareceram que o arguido B… era comprador regular de louça D1…, branca ou decorada, sabendo ambas que era prática corrente em Ílhavo, há décadas, comprar-se louça branca da D1… e mandar pintar fora das respectivas instalações, sendo comum as lojas locais oferecerem esse tipo de louça e que o arguido B… é pessoa honesta e respeitada, não acreditando que enganasse os clientes.
A testemunha V…, embora de forma mais hesitante, o que talvez se prenda com a circunstância de ser actualmente funcionário da D1…, acabou por confirmar a existência daquela pratica.
As testemunhas W… e X…, ambas trabalhadoras da D1… afirmaram desconhecer a referida prática, mas nenhuma delas é originária de Ílhavo e ambas declararam não usar o comércio local.
Assim, a arguida não pintava para a D1…, assinava as suas pinturas, sendo certo que nunca pintou para a D1….
Por outro lado, tais decorações ou nunca foram realizadas pela D1…, ou deixaram de ser executadas por esta, e eram colocadas em modelos diferentes daqueles em que a D1… os colocava; e, acima de tudo, as decorações pintadas à mão eram diferentes das da D1…, pois não as executava à mão, mas por decalque.
Também não ficou provado que os arguidos agiram visando criar no consumidor final a convicção de as peças referidas em 1 dos factos provados, serem originais da D1…, nem que as decorações da D1… se encontrassem registadas.
Por outro lado, vimos que a arguida assinava as peças e nunca trabalhou na D1…, pintava com um método diferente do utilizado na D1…, o que desde logo, revela a sua boa fé.
Também não se provou (aliás, ninguém o disse, nem se intui, tão pouco), que o arguido quisesse enganar os clientes, dizendo que as ditas peças eram pintadas na D1…, sendo considerado como pessoa séria e honesta, sabendo que era comum naquela zona mandar pintar a louça branca, genuína, da D1…, muitas vezes a mando dos clientes (alguns eram funcionários da D1…), sendo certo que tais decorações, ou pinturas, nunca haviam sido realizadas pela D1…, ou se o foram, deixaram de ser executadas pela D1…, ou então eram colocadas em modelos diferentes daqueles em que a D1… os colocava, e acima de tudo, as mencionadas decorações eram pintadas à mão, quando a D1… não executava pinturas à mão, mas sim por decalque, sendo certo que não foi dado como provado que as decorações da D1… se encontrassem registadas.
Constatou-se que os arguidos, nas suas declarações em julgamento, referiram que a própria Fábrica da D1… sabia e permitia que pintores seus pintassem em casa, para eles e para fora (ninguém provou o contrário), e que tudo isto se fez em Ílhavo, ao longo dos anos e que nunca pensaram que não o poderiam fazer; que toda essa louça estava em exposição na loja, sem qualquer preocupação em a esconder; não sabiam nem nunca pensaram que essa sua conduta pudesse ser proibida por lei.
Ou seja, dos depoimentos prestados, resulta, claramente que, há largas décadas, é usual, em Ílhavo, mandar-se pintar peças genuínas da D1…, adquiridas em branco ou comprar peças da D1… e pintá-las fora das instalações da Fábrica da D1….
Assim, a matéria dada como provada sob o número 14 da sentença recorrida, resulta dos diversos depoimentos, atrás, indicados, pelo que o número 15 da matéria de facto dada como provada, está na consequência lógica daquele.
Por isso, a decisão recorrida, está fundamentada, e usou um processo de raciocínio lógico, assente no senso comum e com recurso ás regra da experiência, que conduz necessariamente á conclusão a que chegou, explica as provas em que se apoiou, efectuando um exame crítico das mesmas, mencionado as razões de credibilidade das declarações e depoimentos, expondo as razões (lógicas, de ciência e de experiência comum) que tornam “objectivavél” o processo decisório.
Ora, analisada a prova testemunhal, dela nada resulta que nos permita concluir ter errado o tribunal na sua apreciação, nem a recorrente o demonstra, que impusesse qualquer alteração à factualidade provada, nem existem provas que imponham decisão diversa da recorrida.
Por isso, o tribunal recorrido, analisando criticamente todas as provas e explicitando as razões pelas quais conferiu mais credibilidade a umas declarações que a outras, fundamentou devidamente a sua decisão, permitindo o controlo do processo lógico-dedutivo que o conduziu ao decidido e a razão de ser da decisão tomada.
Assim, o recurso terá de improceder.
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Mesmo que assim não se entendesse, por mera hipótese teórica, os arguidos teriam sempre de ser absolvidos.
O dolo como elemento subjectivo pressupõe a vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas.
É precisamente o elemento subjectivo do crime, conhecimento do carácter ilícito da conduta, à vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, e ao conhecimento do carácter proibido da conduta, que permite estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.
Assim, se os elementos objectivos, constituem a materialidade do crime, o elemento subjectivo traduz a atitude interior do agente na sua relação com o facto material, pelo que o dolo surge como conhecimento (momento intelectual), e vontade (momento volitivo) de realização do facto.
Ora, é entendimento comum que é matéria de facto saber se o agente age com erro e sem consciência da ilicitude, mas é já matéria de direito a questão de saber se tal erro é ou não censurável.
Assim, no caso dos autos, face ao que consta da matéria de facto (provada e não provada), teríamos sempre de admitir como válida a ilação de que os arguidos actuaram sem consciência da ilicitude do facto, embora não estejamos impedidos, por se tratar de matéria de direito, de verificar se o erro sobre a ilicitude é, ou não censurável.
A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material ainda não esteja devidamente sedimentada na consciência ético-social, quando a concreta questão “se revele discutível e controvertida”, cfr. Ac. RP de 7.11.2002 in www. dgsi.pt..
O mesmo se diz, entre outros, no Ac. da RP de 25/02/2015, in www.dgsi.pt:
- Aos crimes cuja punibilidade se pode presumir que seja conhecida por todos os cidadãos, o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao artº 17º CP, em caso em que a culpa só é afastada se a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável.
- A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético social.
A este propósito, diz-se no Ac. STJ de 11-06-2015, in www.dgsi, o seguinte:
- Sabendo que apenas há punição quando o agente atua com dolo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo, para que este se possa afirmar é ou não necessário que aquele conhecimento e vontade abranja a circunstância qualificativa?
- Perante o mesmo problema, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça afirma simplesmente:
«Porém, a questão que o arguido suscita não é essa. O que verdadeiramente questiona, quando afirma não se verificar o elemento subjectivo do tipo agravado, é, em última análise, que esteja demonstrada a representação da circunstância qualificativa. (...) Ora, como ensina Figueiredo Dias, "Textos de Direito Penal, Doutrina Geral do Crime" - Lições ao 3° ano da FDUC, 2001, págs. 89 e segs.,«… para que se possa afirmar o elemento intelectual do dolo do tipo, importa que o agente represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenchem o tipo de ilícito objectivo, conforme, aliás, resulta do n° 1 do art° 16° do CPenal - doutrina que vale não apenas para as circunstâncias que fundamentam o ilícito, mas também para todas aquelas que o agravam e para a aceitação errónea de circunstâncias que o atenuam. Precisa, no entanto, que não basta o conhecimento de meros factos, antes se tornando indispensável a apreensão do seu significado correspondente ao tipo. Sendo o tipo o portador da valoração de uma conduta como ilícita, o conhecimento de todos os seus elementos constitutivos (de facto ou de direito, positivos ou negativos, descritivos ou normativos, determinados ou indeterminados, "fechados " ou "abertos") é indispensável a uma concreta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito, escreve o mesmo Mestre em "Temas Básicos da Doutrina Penal", 298».
Efectivamente, como já referimos, para a prática de qualquer dos indicados crimes, além do elemento objectivo, sempre teria que existir o elemento subjectivo, o dolo. E, para que pudesse existir este elemento, tornava-se necessário que os arguidos tivessem conhecimento material dos elementos circunstanciais do tipo legal, bem como tivessem vontade de adoptar a conduta ilícita, sendo matéria de facto, como atrás dissemos, saber se o agente age com erro e sem consciência da ilicitude, embora a questão de saber se tal erro é ou não censurável, seja matéria de direito.
«A censurabilidade da falta de consciência da ilicitude assenta na atitude pessoal de contradição ou indiferença ao direito…a falta de consciência da ilicitude não censurável assenta na atitude pessoal de fidelidade ao direito» – Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 103.
A imputação do erro sobre a ilicitude ao agente é, pois, fundamentalmente decidida por um juízo sobre as características da atitude pessoal do agente, isto é, no apuramento de uma atitude de fidelidade ou de contradição ou indiferença ao Direito.

A este tema, se referem os artigos 16º e 17º do CP.
Refere o Artigo 16.º (Erro sobre as circunstâncias do facto), que o erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo (n.º 1).
O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente (n.º 2).
Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais (n.º 3).
Estatui o art.º 17º do C. Penal sobre a epígrafe: “Erro sobre a ilicitude”, que age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável (n.º 1).
Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada (n.º 2).
Figueiredo Dias (Pressupostos da Punição, pág. 73), distingue, assim, estes dois preceitos legais: «No primeiro deles estamos ainda – tal como no caso de erro sobre elementos do tipo - perante uma falta de conhecimento que deve ser imputada a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, conforma o especifico tipo de censura da negligência. Pelo contrário, no segundo caso, estamos perante uma deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente, que não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais, e que por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura do dolo».
Assim, enquanto no erro sobre as circunstâncias do facto, faltando ao agente o conhecimento de circunstâncias tipicamente relevantes, a culpa e a censura fundam-se em falta de conhecimento, ao nível da consciência, psicológica ou intencional, conhecimento indispensável para orientar o agente correctamente para o problema da ilicitude, no erro sobre a ilicitude, havendo conhecimento de todas as circunstâncias típicas, mas faltando a consciência da ilicitude, a culpa e a censura fundam-se em falta da própria consciência ética, na deficiente qualidade para apreender os valores que ao direito penal cumpre proteger e, assim, em uma desconformidade da personalidade do agente com a suposta pela ordem jurídica (F. Dias, ob. cit., pág. 244).
O primeiro consiste num erro de conhecimento, um erro intelectual e o segundo num erro de valoração, erro moral. Um exclui o dolo, ficando ressalvada a negligência nos termos gerais (artigo 16.º, do Código Penal), enquanto o outro, exclui a culpa, se for não censurável, constituindo causa de exclusão da culpa, mantendo-se a punição a título de dolo se for censurável, embora com pena especialmente atenuada (artigo 17.º, do Código Penal).
O erro sobre a ilicitude (art. 17º) deixa intocado o dolo do tipo, mas pode integrar, quando não é censurável, uma forma de exclusão da culpa.
Continuando neste tema e a seguir o raciocínio do Prof. Figueiredo Dias (O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, pág. 341-342), a propósito da distinção entre estes dois preceitos, diremos:
“ A. Se lograr comprovar-se que a falta de consciência de ilicitude ficou a dever-se, directa e imediatamente, a uma qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade do agente, aquela deverá sem mais considerar-se censurável.
B. Se, pelo contrário, não se logrou tal comprovação, a falta de consciência da ilicitude deverá continuar a reputar-se censurável, salvo se se verificar a manutenção no agente, apesar daquela falta, de uma consciência ético-jurídica, fundada em uma atitude de fidelidade ou correspondência a exigências ou pontos de vista de valor juridicamente relevante.
C. São, por seu turno, requisitos daquela rectitude e da respectiva atitude:
1) Que a questão da licitude concreta (seja quando se considera a valoração em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação) se revele discutível e controvertida; e isto, não porque nos outros casos se pretenda reverter à velha ideia jusnaturalista do inatismo e evidência de certas valorações, mas porque a questão há-de ser uma daquelas em que se conflituem diversos pontos de vista de estratégica ou oportunidade, estas também juridicamente relevantes.

2) Que a solução dada pelo agente à questão da ilicitude corresponda a um ponto de vista de valor juridicamente reconhecido, por forma a poder dizer-se que ele conduziria à ilicitude da conduta se não fosse a situação de conflito anteriormente aludida.
3) Que tenha sido o propósito de corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante ou, quando não o propósito consciente, pelo menos o produto de um esforço ou desejo continuado de corresponder às exigências do direito, para prova do qual se poderá lançar mão dos indícios fornecidos pelo conhecimento do seu modo-de-ser ético-jurídico adquirido - o fundamento da falta de consciência da ilicitude”.
Também Teresa Beleza in “Direito Penal”, 2.º vol., ensina:
Na problemática do erro sobre a ilicitude, “o que está em causa é saber-se se, numa situação concreta, a pessoa tinha a obrigação de suspeitar que aquele acto realmente fosse ilícito ou lícito e, em consequência disso, intentar verificar se assim era ou não”.
Por isso, “o agente não tem de conhecer a norma violada, bastando-lhe uma consciência da ilicitude material que, normalmente, se presume. E quando o facto, para além de ser uma infracção do Direito, constitui também uma violação da ordem moral e ética, o erro é normalmente evitável, já que a valoração normativa pode surgir do próprio sentimento jurídico com um maior ou menor esforço da consciência” – Teresa Beleza, in “Problemática do erro sobre a ilicitude”, pág. 71)”.
Prosseguindo com o pensamento de Figueiredo Dias: “o erro excluirá o dolo (a nível do tipo) sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito; diversamente, o erro fundamentará o dolo (da culpa) sempre que, detendo embora o agente todo o conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, actua todavia em estado de erro sobre o carácter ilícito do facto.
Neste último caso o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência-intencional), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger.
Por outras palavras: no primeiro caso estamos perante uma deficiência da consciência psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, revela uma atitude interna de específico da culpa negligente.
Diferentemente, no segundo caso estamos perante uma deficiência da própria consciência ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico da culpa dolosa.
É esta a concepção básica sobre o dolo do tipo, a consciência do ilícito e a culpa dolosa que está mesmo na base do regime constante dos artigos 16.º e 17.º”.
…. “o critério que nos permitirá dizer quando e onde pode falar-se de uma falta de consciência do ilícito não censurável há-de decorrer, na sua expressão mais geral, do que se entender sobre o conteúdo material do conceito de culpa jurídico-penal e do sentido da falta de consciência do ilícito àquela luz.
O erro excluirá o dolo sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência-ética do agente para o desvalor do ilícito. Caso em que estaremos perante uma deficiência da consciência-psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, conforma o tipo específico de censura da negligência”.
Relativamente aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida e se tem de exigir que seja conhecida, de todos os cidadãos normalmente socializados, crimes naturais, crimes em si ou mala in se, seja os previstos, desde logo, no C Penal, ou mesmo em legislação avulsa, mas sedimentados pelo decurso do tempo, é inaplicável aquele normativo, sendo que o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao artigo 17º C Penal, caso em que o afastamento da culpa só ocorre quando a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável” (Figueiredo Dias, in Direito Penal, parte geral, I, 503, 585/587).
Também Taipa de Carvalho (Direito Penal, Parte Geral, II, pág. 330), a propósito, refere: “ou a conduta em causa é suficientemente grave, de modo que, para a consciência da sua ilicitude, é irrelevante o conhecimento da proibição legal, ou não é, e então o conhecimento da proibição legal é relevante para que o agente tome consciência da ilicitude do facto que pratica”.
Assim, existem proibições que todos devem conhecer, pelo que o conhecimento destas proibições configura a “consciência da ilicitude”, cujo erro vem regulado no art.º 17.º do C. Penal. Por outro lado, existem outras proibições, cujo conhecimento é razoavelmente indispensável para haver consciência da ilicitude e que exigem uma especial falta de informação ou esclarecimento, sem o qual a consciência jurídica comum não as terá como proibições penais.
Por isso, nos casos previstos no art.º 16.º, 1 (erro sobre a proibição cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude), o erro afasta o dolo, mesmo que censurável; Nos casos previstos no art.º 17.º, o erro não censurável afasta a culpa, tendo o efeito de uma causa de exclusão da culpa; se o erro for censurável, há culpa (culpa dolosa) e o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso (Taipa de Carvalho, ob. cit. pág. 329).
O erro sobre a ilicitude verifica-se quando o agente não conhece a norma de proibição que respeita ao facto, ou, conhecendo-a, tem-na por não válida, ou, em consequência de uma interpretação incorrecta, representa defeituosamente o seu âmbito de validade, considerando, em consequência disso, o seu comportamento como juridicamente admissível (cfr. Teresa Serra, Problemática do Erro sobre a Ilicitude, 1991, pág. 67).
Numa primeira situação, a qual é usual denominar de erro directo ou sobre a norma punitiva, o agente não conhece – ou, conhecendo-a, considera-a revogada ou interpreta-a erradamente – a norma proibitiva que concerne directamente ao facto, tomando o seu comportamento como permitido e aprovado pelo Direito.
Numa segunda situação, a qual é comum designar-se de erro indirecto ou erro de permissão, o agente, conhecendo embora o desvalor jurídico que implica o preenchimento do tipo, erra sobre a intervenção de uma norma permissiva. Trata-se, neste caso, de um erro se proibição indirecto, na medida em que o agente não pensa, sem mais, que o facto é lícito. Ele pensa, isso sim, que o facto é lícito em virtude de estar a agir ao abrigo de uma causa de justificação que, no caso, não pode ser reconhecida pela ordem jurídica (erro sobre a existência de uma causa de justificação) ou, sendo-o, a conduta não está abrangida pelos limites da norma permissiva (erro sobre os limites de uma causa de justificação) - Cfr. Teresa Serra, ob. cit., 69 e 79.
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Assim, a falta de consciência do ilícito será não censurável sempre que o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamente numa atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deva responder. A personalidade que erra sobre o sentido de uma valoração jurídica, mantém-se responsável, devendo arcar com a culpa pelo ilícito-típico cometido. Porém, apesar do erro de valoração em que incorreu, se a personalidade do agente vier a revelar-se essencialmente conformada e exigida pela ordem jurídica, fica excluída a censurabilidade da falta de consciência do ilícito e, por aí, a culpa do agente (art.17.º-1). A falta de consciência da ilicitude será, assim, censurável quando revela uma atitude de indiferença pelos valores jurídico-penais.
O referido critério de distinção sugerido por Figueiredo Dias, atende ao facto de determinada conduta não envolver uma imediata valoração moral, social ou cultural independente de uma proibição, de essa conduta ser, portanto, axiologicamente neutra abstraindo dessa proibição (caso em que estaremos perante o campo de aplicação do artigo 16º, nº 1 e 3, do Código Penal); ou, pelo contrário, essa conduta envolver imediatamente essa valoração moral, social ou cultural independentemente dessa proibição (caso em que estaremos perante o campo de aplicação do artigo 17º, nº 1 e 2, do mesmo Código).
No primeiro caso, o erro traduz-se numa falta de conhecimento que deve ser imputada a uma falta de informação ou de esclarecimento, numa falta de cuidado que pode ser censurável do mesmo modo que o são outras violações de deveres de cuidado qualificáveis como negligência (e por isso o a conduta só será punível se a sua prática negligente o for).
No segundo caso, o erro traduz-se num erro de valoração, numa falta de consonância da consciência ética com os critérios de valor da ordem jurídica; dai que possa ser censurável do mesmo modo em que o será uma conduta dolosa (e por isso o erro censurável não exclui o dolo). Há que distinguir, pois, o erro psicológico, intelectual ou de conhecimento do erro de valoração ética.
Está em causa um erro por desconhecimento desse regime legal, não um erro de valoração ética, um erro que traduza alguma dissonância entre os critérios de valoração ética do agente e os da ordem jurídica.

Ora, no caso concreto, não se pode de forma alguma dizer, em face da matéria de facto dada como provada e não provada, e respectivo contexto, que a eventual falta de esclarecimento e de conhecimento, se tenha ficado a dever a uma qualquer qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade dos arguidos, a uma indiferença perante o bem jurídico protegido pela norma ou que seja consequência de uma omissão do cuidado exigível, pelo que também nesta hipótese, teríamos de concluir que os arguidos actuaram sem consciência da ilicitude do facto, e que o erro sobre a ilicitude não lhes é censurável.
Assim, os arguidos teriam sempre de ser absolvidos.
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Quanto ao pedido civel
Analisada a factualidade apurada nos autos, concordamos com a decisão recorrida, quando refere que as conclusões retiradas em sede de responsabilidade criminal se repercutem no âmbito da responsabilidade civil dos arguidos, ou seja, verificando-se o não preenchimento dos pressupostos da responsabilidade criminal dos arguidos, devem também estes ser absolvidos do pedido indemnizatório contra eles formulado.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela assistente D1…, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 Ucs.

Porto, 27-4-2016
Donas Botto
José Carreto