Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8031/14.7T8PRT-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: EXECUÇÃO CONTRA UM DOS CÔNJUGES
DIVÓRCIO
PENHORA DE BENS COMUNS
CITAÇÃO DO EX-CÔNJUGE
PARTILHA
INEFICÁCIA EM RELAÇÃO Á EXECUÇÃO
Nº do Documento: RP201806138031/14.7T8PRT-E.P1
Data do Acordão: 06/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º676, FLS.8-16)
Área Temática: .
Sumário: I - No artigo 740.º, nº 1 do CP Civil (antigo 825.º, nº 1) estão contemplados, para além dos casos de sociedade conjugal em vigor, também aqueles em que o executado tenha sido membro de uma tal sociedade e já o não seja por a mesma se ter dissolvido, desde que permaneça o património comum do casal, por ausência de partilha.
II - A extinção do vínculo conjugal não faz operar automaticamente a alteração do regime de bens, após a extinção do casamento os bens comuns do casal mantêm-se nessa qualidade até à sua divisão e partilha.
III - A partilha, não tendo carácter constitutivo de direitos, mas essencialmente declarativo, apresenta-se também com a natureza de acto modificativo, na medida em que altera, quanto ao objecto, a situação jurídica anterior, pelo que não sendo embora a partilha, abstractamente, meio de aquisição, ao cônjuge ou ao herdeiro é permitida a efectivação do domínio e posse sobre os bens em concreto na pessoa de cada um dos interessados.
IV - A partilha de uma fracção autónoma pertencente ao património comum do ex - casal adjudicada na proporção de ½ para cada um dos cônjuges caso seja posterior ao registo da respectiva penhora, não é oponível ao exequente, por força do disposto no artigo 819.º do Código Civil, ainda que a dívida seja da exclusiva responsabilidade do ex - cônjuge marido e, à data do registo da penhora, o casamento já se encontrasse dissolvido por divórcio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 8031/14.7T8PRT-E.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Execução do Porto-J9
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, residente na Rua …, .., …, Vila do Conde instaurou a presente execução comum contra C…, residente na Rua … nº … - …, ….
Tendo a execução seguido os seus regulares termos, datado de 16/02/2018, foi proferido nos autos o seguinte despacho:
D…, ex-cônjuge do executado, veio requerer que os presentes autos prossigam para venda de apenas ½ do prédio penhorado nos autos invocando a partilha efectuada por acordo perante a notária E… em 11 de Janeiro de 2018 e nos termos da qual o referido imóvel foi atribuído em partes iguais a ambos os outorgantes.
Como resulta dos autos a requerente foi citada nos termos e para os efeitos do disposto no art°. 740.°, n° 1 do CPC vindo requerer a separação de bens tendo, em 19 de Março de 2014, sido proferida decisão a declarar incompetente este tribunal para conhecer do incidente de separação requerido, decisão que, notificada às partes, transitou em julgado.
Transitada em julgado a referida decisão e nada tendo sido requerido pela mesma prosseguiram os autos de execução os seus termos.
Como resulta do disposto nos art°s. 786.°, n°. 1 al. a) e 740.º, n°. 1 do CPC (antes arts 864.° e 825.°) concluída a fase da penhora deve ser citado o cônjuge do executado quando a penhora tenha recaído sobre bens comuns do casal “para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns”, dispondo o n°. 2 que “Apensado o requerimento de separação, ou junta a certidão, a execução fica suspensa até à partilha;” “Dispõe ainda com interesse o art°. 819°. do CC que "Sem prejuízo das regras registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.
Temos assim que, tendo a requerente conformado-se com a decisão que julgou incompetente o tribunal para conhecer do incidente de separação que deduziu, e não tendo, no prazo de vinte dias subsequente ao trânsito em julgado daquela decisão, interposto o competente inventário e documentado nos autos tal interposição, prosseguiram os autos, em obediência ao disposto na parte final do n°. 1 do referido art°. 740.°, sobre o bem comum penhorado, sendo a partilha agora efectuada, inoponível à execução, como decorre claramente do disposto no art°. 819.º do CC, pois que se trata de um ato de disposição.
Pelo exposto, indefere-se o requerido, devendo os autos prosseguir para venda do imóvel penhorado.
Notifique”.
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Não se conformando com o assim decidido, veio o ex-cônjuge do executado, D…, interpor o presente recurso concluindo pela forma seguinte:
1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida em 20.02.2018, notificada com a referência 389895456, na parte em que ordenou a prossecução da venda do prédio penhorado nos autos, indeferindo o requerimento apresentado pela Recorrente mediante o qual requer que seja realizada a venda de ½ do prédio penhorado nos autos, em virtude da partilha efectuada no processo de inventário que correu termos sob o n.° 4886/17 no Cartório Notarial da Doutora E…, inventário este instaurado pela Recorrente para partilha dos bens comuns do dissolvido casal, e no qual lhe foi adjudicado ½ indiviso do imóvel em causa por decisão de 11 de Janeiro de 2018, transitada em julgado, sendo que a outra metade indivisa foi atribuída ao ex-cônjuge da Recorrente - que fez incorrectamente no entender da ora Recorrente e salvo o devido respeito por melhor opinião.
2. A fundamentação dada pelo Dig° Tribunal "a quo" para a douta decisão recorrida foi de que concluída a fase da penhora deve ser citado o cônjuge do executado quando a penhora tenha recaído sobre bens comuns do casal “para, no prazo de 20 dias, requerera separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns” e que, tendo a requerente se conformado com a decisão que julgou incompetente o tribunal para conhecer do incidente de separação que deduziu, e não tendo, no prazo de vinte dias subsequente ao trânsito em julgado daquela decisão, interposto o competente inventário e documentado nos autos tal interposição, prosseguiram os autos, em obediência ao disposto na parte final do n° 1 do art°. 740.°, sobre o bem comum penhorado, sendo a partilha efectuada pela Recorrente e Executado, inoponível à execução, como decorre do disposto no art°. 819.° do CC, pois que se trata de um ato de disposição, tendo determinado que os autos deveriam prosseguir para venda do imóvel penhorado.
3. A Recorrente e o Executado divorciaram-se, por mútuo consentimento, em 28 de Setembro de 2012-muito antes dos presentes autos, pelo que, aquando da citação, e até mesmo aquando da entrada da acção executiva, o executado já não era casado com a Recorrente motivo pelo qual estava vedada, em abstracto, à Recorrente a possibilidade de pedir a separação de patrimónios.
4. Em sede de processo de divórcio foi apresentada relação de bens comuns e a casa de morada de família, que posteriormente foi penhorada nestes autos, foi atribuída à Recorrente.
5. A Recorrente instaurou processo de inventário para partilha de bens comuns do casal que correu termos no Cartório Notarial da Dra. E… sob o n.° 4886/17, no qual a Recorrente e o Executado transigiram sobre o objecto da causa, mediante o qual o prédio penhorado nos presentes autos ficou atribuído em ½ para cada um dos outorgantes, tendo a partilha sido homologada por despacho de 08/02/2018 proferido no processo n.° 151/18.5T8VCD que corre os seus termos no Juiz 1 do Tribunal de Vila do Conde da Comarca do Porto e já transitado em julgado.
6. Nos presentes autos, não está em causa a aplicação do disposto no artigo 740.° do C.P.C, nem tampouco o disposto no artigo 819.° do Código Civil porque:
a. aquando do início destes autos, a aqui Recorrente já se encontrava divorciada do Executado e existiam outros bens próprios do Executado e
b. inexistiu, por parte da Recorrente e Executado um ato de disposição ou oneração dos bens penhorados pois que, o prédio ficou atribuído em partes iguais à Recorrente e ao Executado.
7. Assim, como não se verifica qualquer acto de alienação de bens penhorados, tal é oponível em relação à execução, devendo a mesma prosseguir quanto à venda da parte propriedade do Executado e não quanto a parte da Recorrente, sob pena de venda de bens alheios, nula nos termos do artigo 892.° do Código Civil.
8. Com o divórcio dissolve-se o casamento: extingue-se a relação matrimonial e cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges (arts. 1688.°, 1788.° e 1789.° do C.C.) e, no que concerne às relações patrimoniais, com o divórcio, os bens não passam imediatamente ao regime de compropriedade-tal só acontecerá se ao procederem à partilha, os cônjuges pretenderem ficar com os bens em comum. Assim, após o divórcio e antes da partilha, o património permanece em situação de Propriedade Colectiva ou de "mão comum" mas equiparada à compropriedade-art. 1404.° do C.C., regulando-se não pelas normas do direito da família, mas antes pelas dos direitos das coisas que disciplinam a comunhão de bens ou direitos e após o divórcio e antes da partilha, os ex-cônjuges são titulares do direito a uma fracção ou quota ideal, de metade, no património comum do casal.
9. Na data da penhora a recorrente era titular do direito a uma quota ideal de metade do património comum do casal, onde se inclui o imóvel em causa nos presentes autos e a penhora só pode atingir bens do devedor/executado.
10. A exequente, apenas poderia penhorar a quota-parte que cabe ao executado no património comum e não poderia penhorar qualquer bem ou fracção de qualquer bem integrante da massa comum.
11. A exequente, em contradição com o seu título dado à execução (a recorrente não é executada), penhorou a totalidade do prédio e mesmo que fosse a Recorrente cônjuge do executado, faltaria demonstrar a comunicabilidade da divida, facto que é ausente do processo executivo e da sentença que constitui o título da divida, hipótese em que o registo era nulo e ilegal, pois que, a penhora nos moldes em que foi realizada pela exequente, ou seja, sobre a totalidade do imóvel em questão, ofende a posse e o direito de propriedade da recorrente.
12. Assim, foi penhorado um bem comum do ex-casal, apesar da dívida ser da exclusiva responsabilidade do ex-cônjuge executado.
13. A penhora não pode subsistir após os ex-cônjuges terem procedido à partilha do património comum e de o bem penhorado ter ficado a pertencer ao executado e recorrente em partes iguais.
14. O conjunto patrimonial denominado “bens comuns do casal” ou “património comum” não assume a natureza de compropriedade, nem é um património autónomo, mas sim um património colectivo, no sentido de que cada um dos cônjuges é titular de um e mesmo direito indivisível sobre o todo patrimonial e não de um direito correspondente a uma fracção (no caso ½) desse conjunto patrimonial, susceptível de ser alienada, como ocorre na compropriedade.
15. Ora, esta natureza de património colectivo não se altera pelo facto dos cônjuges se terem divorciado, e, além disso, de acordo com o disposto no artigo 1404.° do Código Civil, onde se determina que “As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles”, é aplicável ao património comum do casal após a dissolução do casamento.
16. Com efeito, o legislador distinguiu nos artigos 740.° e 743.° do Código de Processo Civil, a massa patrimonial constituída pelos bens comuns dos cônjuges (artigo 740.°), de outras situações em que existem patrimónios autónomos ou ocorrem fenómenos jurídicos de indivisão de bens (artigo 743.°). Assim, a ordem jurídica previu um regime específico a seguir em caso de penhora, quando a penhora atinge bens que integram o património comum dos cônjuges, caindo na excepção prevista na parte final do mencionado artigo 1404.° do Código Civil.
17. Assim, nos autos, releva é a natureza do património penhorado, a qual não se altera enquanto não houver partilha.
18. A partilha de bens constitui um acto de “disposição de bens”, pois implica a emissão de uma declaração de vontade por parte dos intervenientes nesse acto, que a lei tutela, e que determina a alteração do estatuto jurídico dos bens no que respeita à sua natureza patrimonial e titularidade. No entanto no caso sub judicie, o acto de disposição é inexistente, pois o bem passou da titularidade de ambos os ex-cônjuges para a titularidade de ambos os cônjuges, a ora Recorrente e o Executado!
19. Por conseguinte, esta partilha do prédio pertencente ao património comum do casal e registo em partes iguais em nome da ex-cônjuge mulher e do executado, mesmo sendo posterior ao registo da respectiva penhora, é oponível ao exequente, por força do disposto no artigo 819.° do Código Civil, pois que além de a dívida ser da exclusiva responsabilidade do ex-cônjuge marido e, à data do registo da penhora, o casamento já se encontrar dissolvido por divórcio, existiu uma partilha posterior que estabeleceu a propriedade do bem penhorado.
20. Assim, andou mal o Tribunal recorrido ao, indeferir a pretensão da recorrente e consequentemente ao manter a penhora com a extensão com que foi realizada.
21. O despacho recorrido fez pois incorrecta interpretação e aplicação das disposições contidas nos artigos 786.º, n°. 1 al a) e 740.°, n°. 1 todos do Código de Processo Civil, nos artigos 819.°, 1688.°, 1722.°, 1723.° e 1724.°, al. b) e ss. 1788.° e 1789.° do C.C., pelo que, deverá ser revogado e substituído por outra, que julgue procedente a pretensão da recorrente e ordene a prossecução da venda de 14 do prédio penhorado nos presentes autos, pois além do que se acaba de alegar, se eventualmente fosse nos autos alienado um bem pertença de outrém que não o executado e registado na Conservatória de Registo Predial a favor desse terceiro estar-se-ia a vender bens de terceiro, alienação essa que seria nula.
22. Termos em que, deve o presente recurso ser recebido, e a final considerado procedente, revogando-se como pedido o despacho recorrido, assim se fazendo, justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a) - saber se a execução deve prosseguir para venda da totalidade do bem imóvel penhorado nos autos ou de apenas ½ do mesmo.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria a ter em conta para a apreciação do presente recurso é a que conta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida e ainda a seguinte:
1º)- Foi penhorado nos autos, com data de 28/06/2013, o seguinte imóvel: “Prédio urbano, correspondente a casa de habitação de cave, rés-do-chão e andar, com logradouro, relativo ao Lote 11, com a área total de 358 m2, área coberta de 140 m2 e área descoberta de 218 m2, sito na Rua …, n.° …, na freguesia e concelho da …, está descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o número 1679 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 9617”;
2º)- À data da referida penhora o mencionado imóvel era bem comum do executado e da sua mulher D… ora recorrente;
3º)- Com data de 02/07/2013 foi a ora recorrente citada para os efeitos do artigo 825.º, nº 1 do CPCivil;
4º)- A recorrente e o executado divorciaram-se, por mútuo consentimento, em 28 de Setembro de 2012;
5º)- A Recorrente instaurou processo de inventário para partilha de bens comuns do casal que correu termos no Cartório Notarial da Dra. E… sob o n° 4886/17, no qual a recorrente e o executado transigiram sobre o objecto da causa, tendo o prédio penhorado nos presentes autos ficado atribuído em ½ para cada um dos outorgantes, partilha que foi homologada por despacho de 08/02/2018 proferido no processo n° 151/18.5T8VCD que correu os seus termos no J1 do Tribunal de Vila do Conde da Comarca do Porto e já transitado em julgado.
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III- O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma questão colocado no recurso e que consiste em:
a)- saber se a execução deve prosseguir para venda da totalidade do bem imóvel penhorado nos autos ou de apenas ½ do mesmo.
Como se evidencia dos autos no âmbito da execução foi penhorado o bem imóvel identificado no ponto 1º) da fundamentação factual que era um bem comum do executado e da sua ex-mulher ora recorrente.
Ora, quando na execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns (cfr. artigo 740.º, nº 1 do CPCivil- antigo 825.º, nº 1).
E foi isso que aconteceu no caso presente.
Efectivamente, tendo a execução sido movida apenas contra o cônjuge marido e tendo sido penhorado um bem comum do casal, foi a recorrente citada para requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tivesse sido requerida.
Na sequência dessa citação, a recorrente veio requerer a separação de bens.
Todavia, em 19 de Março de 2014, foi proferida decisão a declarar incompetente o tribunal para conhecer do incidente de separação, decisão que, notificada às partes, transitou em julgado.
Transitada em julgado a referida decisão e nada tendo sido requerido subsequentemente pela recorrente, prosseguiram os autos de execução os seus termos.
Objecta a este respeito a recorrente que estando já dissolvido o casamento à data da penhora do referido bem imóvel, em abstracto, estava-lhe vedada a possibilidade de pedir a separação de patrimónios.
Não se sufraga, salvo o devido respeito, esta asserção.
É certo que à data da penhora o casamento entre o executado e a ora recorrente já se havia dissolvido por ter sido decretado o divórcio entre ambos [cfr. ponto 4º) da fundamentação factual], porém, essa circunstância não era impeditiva de pedir a referida separação de patrimónios.
Na verdade, apesar de no citado artigo 740.º, nº 1 (antigo 825.º, nº 1) se aludir apenas à citação do cônjuge do executado, cremos que o espírito da lei adjectiva contempla, para além dos casos de sociedade conjugal em vigor, também aqueles em que o executado tenha sido membro de uma tal sociedade e já o não seja por a mesma se ter dissolvido, desde que permaneça o património comum do casal, por ausência de partilha.
Como ensina Oliveira Ascensão[1], “O princípio absoluto é o da preferência do espírito sobre a letra” com a única limitação de “que se não pode falar de um espírito que não encontre na letra um mínimo de correspondência verbal”, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil).
Como assim, nessas hipóteses, não terá aplicação o artigo 743.º, nº 1 do CPCivil, concretamente, o segmento que, no seu n.º 1, dispõe que “na execução movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fracção de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso”, porquanto o que ocorre é a existência de uma comunhão conjugal, mantida apesar do divórcio entre os cônjuges.
Na verdade, “Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”-cfr. artigo 1403.º, n.º 1 do CCivil, sendo que “As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um dele”-vd. artigo 1404.º do mesmo diploma legal.
Entre as modalidades de comunhão de bens assume especial relevo “a comunhão que se estabelece entre os cônjuges, após a dissolução da sociedade conjugal e enquanto se não faz partilha, nos regimes de comunhão”.[2]
O património conjugal é integrado pelos bens comuns do casal, afectado por lei ao escopo de servir de suporte económico à sociedade conjugal, sendo que tal comunhão de mão comum se caracteriza e distingue da compropriedade, além do mais, pelo “facto de o direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário (…)”.[3]
Na verdade, o conjunto patrimonial denominado “bens comuns do casal” ou “património comum” não assume a natureza de compropriedade, nem é um património autónomo, mas sim um património colectivo, no sentido de que cada um dos cônjuges é titular de um e mesmo direito indivisível sobre o todo patrimonial e não de um direito correspondente a uma fracção (no caso ½) desse conjunto patrimonial, susceptível de ser alienada, como ocorre na compropriedade.[4]
Ora, fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados-cfr. artigo 1714.º, n.º 1 do CCivil, constituindo excepção a tal regra, nomeadamente, a separação judicial de bens-vd. Artigo 1715.º do mesmo diploma-e isto na pendência do casamento.
Após a extinção do casamento, os bens comuns do casal mantém-se nessa qualidade até ocorrer a sua divisão e partilha.
Como referem Antunes Varela e Henrique Mesquita em comentário ao acórdão do STJ de 7/10/1993[5] a comunhão só termina com a partilha dos bens, até lá aplicam-se-lhes todas as regras legais que os pressupõem, designadamente as insertas nos artigo 740.º, nº 1 (antigo 825.º, nº 1 do CPCivil.
Com efeito, não é a simples extinção do vínculo conjugal que automaticamente opera a alteração do regime de bens, legal ou contratualmente fixado para o casamento, nem a retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio–cfr. artigo 1789.º, n.ºs 1 e 2 do CCivil-implica que o regime dos bens deixe de ser o da comunhão, se foi esse o adoptado, para passar ao da propriedade em comum, enquanto se não tiver procedido à partilha.
O regime prescrito no citado artigo 1789.º tem a ver com as relações entre os cônjuges e os respectivos e correlativos direitos/obrigações, visando evitar que um deles “seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção, sobre valores do património comum.”[6]
Só a partilha põe termo à comunhão podendo, ou não, dar lugar à compropriedade.
Enquanto aquela não ocorrer, o regime legal de bens mantém a imutabilidade que lhe é natural, podendo terceiros valer-se das normas legais que o pressupõem, como é o caso dos citados normativos do Código de Processo Civil e, concretamente, a possibilidade de penhora de bens singulares compreendidos no património comum do casal.
Esta solução, diga-se, é a única que respeita a aludida regra da imutabilidade dos regimes de bens e defende eficazmente terceiros que com algum dos membros do casal entraram em relacionamento jurídico-económico.
Se a dívida é daquelas que nasceu num tempo, antes ou depois do divórcio, em que por ela respondiam os bens comuns do casal, assim continua a ser enquanto se não operar a divisão/partilha. A passagem, sem mais, ao regime de compropriedade, como efeito do divórcio, tornava a posição do terceiro credor instável e menos consistente, dificultando-lhe a realização prática do direito.
Na realidade, se assim não fosse, ficava-lhe vedado o acesso ao instrumento consubstanciado no aludido artigo 740.º, nº 1 (antigo 825.º, nº 1) obrigando-o à penhora de metade indivisa do prédio, sem que o ex-cônjuge não executado ficasse sujeito à consequência de não requerer a separação de bens, isto é, de prosseguir a execução nos bens comuns penhorados.
Aliás, a interpretação propugnada permite definir a situação do cônjuge ou ex-cônjuge do executado relativamente à penhora e subsequente venda, de forma que o património comum seja separado e o não responsável pela dívida seja poupado a qualquer prejuízo, já que pelo cumprimento da obrigação, em princípio, apenas responde o património do devedor-cfr. artigo 601.º do CCivil.
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Diante do exposto resulta, assim, que não obstante se aludir no citado artigo 740.º, nº 1 (antigo 825.º) apenas à citação do cônjuge do executado, não se pode fazer uma interpretação meramente literal, já que o texto da lei adjectiva não abrange exclusivamente os casos de sociedade conjugal em vigor, mas também aqueles em que o executado tenha sido membro de uma tal sociedade e já o não seja por a mesma se ter dissolvido, pois que, o que releva, é a natureza do património onde se insere o bem penhorado.
Como assim, apesar de o vínculo conjugal entre a recorrente e o executado já se encontrar dissolvido à data da penhora isso não constituía obstáculo a que aquela pudesse requerer a separação de bens nos termos estatuídos no já citado artigo 740.º, nº 1 do CPCivil (antigo 825.º, nº 1).
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Acontece que, no caso concreto, a recorrente não veio exercer o referido direito de separação de bens, já que, tendo intentado a acção para o efeito, acabou por, perante a declaração de incompetência do tribunal, deixar transitar em julgado tal decisão não tendo intentado nova acção para o efeito.
Bom, mas obtempera a recorrente que a penhora não pode subsistir após os ex-cônjuges terem procedido à partilha do património comum e de o bem penhorado ter ficado a pertencer à recorrente e ao executado em partes iguais, já que neste caso, inexistiu um ato de disposição ou oneração dos bens penhorados pois que, o prédio ficou atribuído em partes iguais a ambos.
Não se acompanha, salvo o devido respeito, este entendimento.
Como já supra se referiu, autorizando a lei a penhora de bens singulares compreendidos no património comum do casal, mesmo que o casamento já se encontre dissolvido, a questão que agora importa dilucidar é qual a força jurídica da penhora efectuada nestas circunstâncias.
Ora, a esta questão responde o artigo 819.º do Código Civil, onde se dispõe que “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.
Consagra-se aqui, como referem os autores Pires de Lima/Antunes Varela[7], “(…) o princípio da ineficácia em relação ao credor dos actos de disposição ou oneração dos bens penhorados, ressalvadas as regras do registo”.
Não há dúvida que após a penhora do referido imóvel (bem comum) teve lugar partilha dos bens comuns no âmbito do inventário que correu termos no Cartório Notarial sob o n.° 4886/17, no qual a recorrente e o executado transigiram sobre o objecto da causa, tendo o citado imóvel ficado atribuído em ½ para cada um dos outorgantes.
Cremos, porém, que o referido acto não é oponível a execução.
A propriedade de imóveis adquire-se por contrato, sucessão, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei - cfr. artigo 1316.º C. Civil.
A enumeração legal não é taxativa.[8]
Não se questiona que o bem imóvel em causa eram pertença do casal constituído pela recorrente e executado, donde que não interesse aqui o modo de aquisição dos bens por esse casal, mas apenas os efeitos do negócio jurídico da partilha entre eles outorgado no sequência do divórcio.
Relativamente aos bens, o divórcio tem os mesmos efeitos da dissolução do casamento por morte, razão pela qual esta cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges conduz à partilha dos bens do casal, se eles não pretenderem manter-se na indivisão (artigo 1689.º, nº 1 do CCivil).
Assim, a partilha dos bens do casal é juridicamente equiparável à que se opera na sucessão por morte. É, sempre, o acto destinado a fazer cessar a indivisão de um património que pertence, na unidade, a duas pessoas.[9]
Cada um dos cônjuges já tinha o direito a uma parte ideal dos bens antes da partilha, sendo proprietário do património comum, pois que os bens comuns constituem uma massa patrimonial que pertence aos dois cônjuges que são, ambos, titulares de um único direito sobre ela.
Pela partilha o direito preexistente em propriedade colectiva concretiza-se em bens certos, continuando os adjudicatários na respectiva titularidade agora individualizada pelo termo da indivisão. Deste modo, o direito a bens determinados existente depois da partilha é o mesmo direito a bens indeterminados que existia antes dela; é o mesmo direito, apenas modificado no seu objecto.[10]
Temos, consequentemente, que a partilha, não tendo carácter constitutivo de direitos, mas essencialmente declarativo, se apresente também com a natureza de acto modificativo, na medida em que altera, como referido, a situação jurídica anterior.[11]
Daí decorre que, não sendo, embora, a partilha, abstractamente, meio legítimo de aquisição - efectivamente, o cônjuge ou o herdeiro nada adquire do outro, apenas se modificando o direito de que era titular-, aqueles efeitos declarativos-modificativos permitem a efectivação do domínio e posse sobre os bens em concreto na pessoa de cada um dos interessados.
A partilha representa, então, o título modificativo do direito preexistente através do qual ficam definidos os contornos e se “molda o direito na sua realidade concreta”[12] que é, no caso, o reconhecimento da propriedade da recorrente sobre ½ do imóvel objecto da penhora que pela partilha lhe foi adjudicado.
Como atrás se deixou dito, não se levantam quaisquer dúvidas sobre a efectiva propriedade do casal sobre os bens partilhados.
Assim, aplicando os princípios expostos, parece ter de concluir-se que, por via da dita partilha, o domínio sobre o bem imóvel adjudicado ½ a cada um dos cônjuges se efectivou na respectiva titularidade passando, desde então, a ser-lhe reconhecida a propriedade exclusiva da respectiva ½ e ficando a exercer sobre ela os mesmos direitos que antes detinham em conjunto.
Daqui resulta que a partilha de bens, mesmo com os contornos que no caso se verificaram quanto à partilha do imóvel penhorado, constitui um acto oneroso[13] e é, sem dúvida, como tal, um acto de “disposição de bens”, pois implica a emissão de uma declaração de vontade por parte dos intervenientes nesse acto que a lei tutela e que determina a alteração do estatuto jurídico dos bens no que respeita à sua natureza patrimonial e titularidade.
No caso concreto e ao contrário do que defende a recorrente o acto de disposição é claro já que cada um dos ex-cônjuges passou a ser titular de ½ do referido imóvel quando antes pertencia, no seu todo, ao património comum que, como supra se referiu, era um património colectivo, no sentido de que cada um dos cônjuges era titular de um e mesmo direito indivisível sobre o todo patrimonial e não de um direito correspondente a uma fracção susceptível de ser alienada.
Daqui decorre, que o referido acto de partilha sendo um acto de disposição não é oponível à execução face ao estatuído no já citado artigo 819.º do CCivil e, como tal, a execução tem de prosseguir para venda na sua totalidade do bem imóvel como foi decidido, sendo, para estes efeitos, irrelevante que a dívida exequenda seja apenas da responsabilidade do executado.
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Improcedem, desta forma todas as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente por não provado e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 13 de Junho de 2018.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] In “O direito. Introdução e teoria geral”, 13ª ed., Almedina, 2006, pág. 416.
[2] Cfr. P. Lima e A. Varela, in “Código Civil, Anotado”, Vol. III, 2ª Ed., pág. 350.
[3] Pires de Lima e A. Varela obra citada pág. pág. 350.
[4] Neste sentido ainda o Ac. da RL de 12.7.01 in www.dgsi.pt, nº convencional JTRL00036865. Em sentido contrário, ou seja de que passam a ser-lhes aplicáveis as normas da compropriedade, vide Acs da RC de 7.3.89, da RE de 2.2.84 in CJ 1984, 1º, 288, do STJ de 19.1.95, da RC de 12.1.02 e da RL de 30.11.90 in www.dgsi.pt nºs convencionais JSTJ00029845, JTRC01830 e JTRL00002566.
[5] In R.L.J, Ano 126.º-311.
[6] Cfr. P. Lima e A. Varela, in “Código Civil, Anotado”, Vol. IV, Coimbra Editora, 1992, pág. 561.
[7] Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª edição. Coimbra Editora, 1986, pág. 91.
[8] Cfr. Oliveira Ascensão, Sc.ia Iur., 21º-371.
[9] Cfr. Galvão Telles, “Direito das Sucessões”, 3ª ed., 207.
[10] Cfr. P. Coelho, “Direito de Família”, 1970, pp. 121 e ss. e “Sucessões”, 1968, 247/248.
[11] Cfr. Oliveira Ascensão, “Sucessões”, pag. 501.
[12] Cfr. Oliveira Ascensão, “Reais”, 5ª ed., pág. 320.
[13] “A partilha é um acto a título oneroso, porque cada um dos condividentes cede o direito indiviso que tem sobre os bens em geral em troca do direito exclusivo sobre aqueles que lhe são assinados, ou, se há apenas uma coisa, cede o direito indiviso que tem sobre essa coisa, em troca do direito exclusivo sobre a parte que lhe for assinada”-Vaz Serra, B.M.J. n.º 75, pág. 248.
5Neste sentido, embora referindo-se à penhora da meação, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1 de Julho de 1960, onde se decidiu que a penhora sobre bens comuns do casal, já dissolvido por divórcio, produz efeitos em execução contra um dos ex-cônjuges, quando a penhora seja anterior ao registo da partilha- Jurisprudência das Relações, ano VI (1960), pág. 773.
No mesmo sentido, Batista Lopes quando referiu que “(…) produz efeitos a penhora, em execução contra um dos ex-cônjuges, sobre bens do casal, já dissolvido pelo divórcio, quando essa penhora seja anterior ao registo da partilha dos bens em virtude de dissolução de casamento”- In “A Penhora”, Livraria Almedina, 1967, pág. 106.