Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0541016
Nº Convencional: JTRP00038230
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: BURLA PARA ACESSO A MEIOS DE TRANSPORTE
Nº do Documento: RP200506290541016
Data do Acordão: 06/29/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: A dívida contraída, para efeitos do artigo 220, n.1 alínea c) do Código Penal de 1995, corresponde ao preço do bilhete que deve ser emitido sempre que o passageiro viaje sem título de transporte, acrescido da sobretaxa prevista para os casos de passageiros sem bilhete.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I

1. O Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum e perante tribunal singular, de B.........., imputando-lhe a prática de um crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. pelo artigo 220.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal (CP), porquanto, e em síntese:
- no dia 4 de Novembro de 2003, pelas 13h01, entrou na Estação de S. Romão, no comboio da CP, que circulava entre Porto e Famalicão, e fez-se transportar sem que para tal tivesse adquirido o respectivo bilhete;
- ao ser detectado pelo revisor do comboio, que lhe emitiu bilhete, no valor de € 50, correspondente ao mínimo de cobrança, o arguido recusou pagar;
- o arguido foi, ainda, informado de que tinha o prazo máximo de 8 dias para efectuar o pagamento da quantia de € 50, sob pena de, não o fazendo, ficar sujeito ao pagamento do décuplo daquela importância;
- o arguido não solveu a dívida nem no prazo de 8 dias nem posteriormente;
- o arguido agiu livre e conscientemente com a intenção concretizada de utilizar aquele meio de transporte, sem efectuar o pagamento do preço do respectivo serviço, bem sabendo que a prestação de tal serviço pressupunha o pagamento de um preço, tendo-se recusado a solver a dívida;
- o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
2. Distribuído o processo ao .. juízo criminal do Tribunal de Santo Tirso, com o n.º .../04.4TASTS, por despacho de 18/11/04, foi a acusação rejeitada, nos termos da alínea a) do n.º 2 e da alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal (CPP), por a matéria descrita na acusação não configurar a prática de qualquer crime, por falta do elemento típico do crime em apreço relativo à recusa em solver a dívida contraída.
Fundamenta-se esse entendimento no seguinte:
«Tal como resulta da acusação, ao arguido não foi exigido o preço do bilhete necessário à viagem que efectuava, mas o valor correspondente ao “mínimo de cobrança” fixado pela CP, no montante de € 50, sendo que o não pagamento daquele montante (que acarreta, desde logo, uma sanção, conforme refere a própria acusação: o pagamento do décuplo de tal importância) não corresponde à recusa em solver a dívida contraída, que apenas se reporta ao preço do bilhete (título de transporte) necessário à realização de determinada viagem (...)».
3. O Ministério Público veio interpor recurso desse despacho, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões:
«1. No despacho recorrido o Sr. Juiz "a quo" não recebeu a acusação deduzida contra o arguido a quem é imputada a prática do crime de burla para obtenção de serviço de utilização de meio de transporte, p. e p. pelo artigo 220º, n.º 1, c) do Código Penal.
«2. E isso por entender que não se encontra preenchido o tipo legal de crime respectivo sempre que ao arguido que viaje sem título não tenha sido solicitado o pagamento do bilhete por preço igual ao que pagaria se o tivesse prévia e normalmente adquirido na estação de caminhos de ferro em que embarcou.
«3. Situação em que entende não existir a prática deste tipo de crime, relativamente ao qual se não encontrariam preenchidos todos os elementos do tipo penal, sobejando a recusa em solver a dívida.
«4. Diversamente, entendemos que a recusa em solver a dívida contraída, no presente caso, não ocorreu quando o arguido foi encontrado dentro do comboio, sem qualquer título que o habilitasse a tal, mas antes e desde logo no momento em que ultrapassou o local adequado à compra do título de transporte, que é o cais de embarque, e embarcou, sem efectuar a compra daquele título e solver a sua dívida para com a CP, correspondente ao preço do bilhete em singelo, uma vez que se tratava de um serviço pré-pago.
«5. De facto, estabelece o artigo 7º da Portaria n.º 403/75 de 30 de Junho, alterada pela Portaria n.º 1116/80 de 31 de Dezembro, que "Desde a sua entrada no cais de embarque (...) o passageiro deve munir-se de um título de transporte válido (..). Não cumprindo com as disposições acima, o passageiro é considerado como passageiro sem bilhete e sujeito ao disposto no artigo 14º" (sublinhado nosso).
«6. Ao não comprar o bilhete no cais de embarque, o arguido recusou-se a solver a dívida para com a CP, preenchendo, deste modo, todos os elementos típicos do artigo 220º, n.º 1 do Código Penal, e sujeitando-se à disciplina do nº 1 do artigo 14º da referida portaria - "(..) passageiro que viaje sem bilhete (...) pagará o preço da viagem acrescido de uma sobretaxa (..)"
«7. No caso concreto, depois de ter optado por utilizar o serviço de transporte sem efectuar qualquer pagamento, o arguido reafirmou a sua intenção criminosa, ao não proceder ao pagamento (apesar de instado para o efeito) do preço do bilhete acrescido da sobretaxa a que estava legalmente obrigado por não se ter munido de um título de transporte no local adequado.
«8. Não se pode sequer sustentar ter existido uma conduta negligente por parte do arguido, uma vez que, a colocar-se esta hipótese, aquela se resumiria ao esquecimento de se munir do título de transporte válido, mas nunca se traduziria na ulterior recusa de pagamento do preço da viagem acrescido da aludida sobretaxa, para que foi instado pelo funcionário da CP, como na não efectivação de tal pagamento no prazo de oito dias de que foi informado dispor ainda para o efeito,
«9. Prazo esse aliás em que por nenhuma forma se manifestou sequer disposto ou interessado em proceder ao pagamento do preço em singelo atrás referido, que corresponderia em todo o caso a parte do que lhe era exigido e que, mesmo em caso de recusa a qualquer título do seu recebimento, sempre poderia enviar ou depositar à ordem de quem lhe fazia aquela exigência.
«10. A sobretaxa em causa é uma parte do preço do bilhete de comboio, nele incluída pela única razão de o passageiro não ter efectuado a compra o bilhete no local adequado.
«11. Constituindo realidade diversa da "multa" com referência a situações similares previstas no artigo 3º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 108/78 de 24 de Maio, que regula as viagens por outros meios de transporte, em que o pagamento do serviço pode ser efectuado no princípio, a meio ou no fim da viagem.
«12. Diferentemente do que ocorre nos comboios, nos quais o pagamento do serviço, em singelo, é, em condições normais, sempre efectuado no princípio da viagem.
«13. A dívida a que se refere o artigo 220º, n.º 1 do Código Penal é "(..) aquela que resultar das disposições legais que sejam aplicáveis no caso concreto, é aquela que vier a concretizar-se após a competente hermenêutica das normas aplicáveis à situação concreta verificada e ocorrida".
«14. No caso, as acima referidas e a do nº 2 do artigo 14º da Portaria n.º 403/75 de 30 de Junho, alterada pela Portaria n.º 1116/80 de 31 de Dezembro, que sujeita qualquer passageiro não detentor de bilhete válido ao pagamento do valor do mesmo acrescido de uma sobretaxa de 50%, com o mínimo de cobrança fixado na tabela anexa àquele diploma legal.
«15. Ou seja, a contraída quando o arguido, não comprando um bilhete no cais de embarque e embarcando, ficou sujeito ao pagamento do aludido preço acrescido de uma sobretaxa, que passou a ser o montante global do preço do bilhete, por não ser adquirido antes daquele embarque.
«16. Assim sendo, os factos descritos na acusação preenchem todos os pressupostos típicos do ilícito penal p. e p. pelo artigo 220º, n.º 1, c) do Código Penal.
«17. Por isso, o despacho recorrido, por violador do disposto nos artigos 220º, nº 1, c), do Código Penal, interpretado em conformidade com o disposto nos artigos 7º e 14º da Portaria n.º 403/75 de 30 de Junho, alterada pela Portaria n.º 1116/80 de 31 de Dezembro e do art. 311, nº 3, al. c) do CPP, deverá ser revogado e substituído por outro em que receba a acusação deduzida contra o arguido e marque datas para a realização de audiência de discussão e julgamento.»
4. Notificado da admissão do recurso, o arguido não respondeu.
5. Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto foi de parecer de que o recurso merece provimento.
6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta.
7. Colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo decidir.
II

1. O crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, descrita no artigo 220.º do CP, integra uma burla privilegiada, que tem de preencher todos os elementos constitutivos do tipo legal do artigo 217.º.
«Acresce que, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 220.º, o crime apenas se encontra perfeito quando o agente “(...) se negar a solver a dívida contraída”. A respectiva consumação observa-se, assim, quando o sujeito activo - depois de instado para o efeito ou, em alternativa, no momento adequado segundo os usos do sector - adopte uma atitude que signifique a recusa efectiva em proceder à liquidação do débito.» [A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 324].
A acusação contém todos os factos necessários ao preenchimento do tipo objectivo e do tipo subjectivo:
- o arguido utilizou o comboio, sem que tivesse adquirido o respectivo bilhete;
- o arguido sabia que a utilização desse meio de transporte pressupunha o pagamento de um preço;
- o arguido agiu, dessa forma, com a intenção de utilizar aquele meio de transporte sem efectuar o pagamento do preço do respectivo serviço;
- quando lhe foi passado o bilhete correspondente ao mínimo de cobrança fixado para o percurso entre a estação em que tinha entrado no comboio e a estação seguinte, o arguido recusou-se a pagar o bilhete.
2. No despacho recorrido, de rejeição da acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime (artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do CPP), sustenta-se o entendimento de que a recusa do arguido a pagar o bilhete que foi emitido não pode significar que o arguido se negou a solver a dívida contraída, já que esta compreende, apenas, o preço do bilhete que o arguido não adquiriu antes de utilizar o comboio, ou seja, o preço do bilhete correspondente à viagem que efectuava.
Não ignorámos que a posição sustentada no despacho recorrido tem apoio jurisprudencial [Cfr., v. g., entre os mais recentemente publicados, o acórdão da Relação de Coimbra, de 3 de Novembro de 2003 (recurso n.º 2642/03), publicado na Colectânea de Jurisprudência, Tomo V/2003, p. 39 e ss., onde, a dado passo, se escreveu, sem, todavia, se extraírem quaisquer conclusões no plano de não preenchimento do tipo: «De avivar, desde já, que a dívida contraída é o preço do bilhete e, nunca, os acréscimos previstos, pois que estes são já a sanção para a contravenção.»].
Todavia, não a acolhemos.
E concordamos, inteiramente, com a argumentação desenvolvida - muito bem, aliás -, no recurso, a qual goza, também de apoio jurisprudencial [Cfr., para além do acórdão citado no recurso (acórdão da Relação de Coimbra, de 23/09/1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Tomo IV/1993, p. 77 e ss.), o acórdão da Relação do Porto, de 8 de Janeiro de 2003, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Tomo I/2003, p. 207 e ss].
O artigo 7.º da Portaria n.º 403/75, de 30 de Junho, alterada pela Portaria n.º 1116/80, de 31 de Dezembro, estabelece que, desde a sua entrada no cais de embarque, o passageiro deve munir-se de um bilhete de transporte válido. Não o fazendo, o passageiro é considerado como passageiro sem bilhete e sujeito ao disposto no artigo 14.º da mesma Portaria.
Ora, o referido artigo 14.º estabelece que o passageiro que viaje sem bilhete pagará o preço da viagem acrescido de uma sobretaxa.
A sobretaxa tem, assim, a natureza de uma parte do preço do bilhete devido sempre que o passageiro não adquira, previamente, o título de transporte.
Por isso, a dívida contraída, para efeitos do artigo 220.º, n.º 1, alínea c), do CP, corresponde ao preço do bilhete que deve ser emitido sempre que o passageiro viaje sem título de transporte.
A dívida contraída é, para esse efeito, não só o preço da viagem mas ainda a da sobretaxa que àquele acresce.
3. Neste entendimento, a acusação deduzida contém todos os elementos do tipo-de-ilícito (consumado) por que foi requerido o julgamento do arguido.
III

Termos em que, na procedência do recurso, revogamos o despacho de rejeição da acusação recorrido e determinamos que seja substituído por outro que, no reconhecimento de que os factos objecto de acusação constituem o crime por que o arguido foi acusado, designe dia para julgamento.
Não há lugar a tributação.

Porto, 29 de Junho de 2005
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
Agostinho Tavares de Freitas