Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4038/24.4T8VLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO TAVEIRA
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENDAS EM DÍVIDA
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RP202507104038/24.4T8VLG-A.P1
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O título executivo complexo formado nos termos do artigo 14º-A do NRAU abrange não apenas o arrendatário, mas também o fiador, cabendo no seu âmbito todas as rendas devidas e demais encargos até à restituição do respectivo locado, desde que este seja notificado directamente dos montantes em dívida, como decorre do disposto no artigo 1041.º, n.ºs 5 e 6, do Código Civil (aditados pela Lei n.º 13/2019).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º[1] 4038/24.4T8VLG-A.P1

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Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo de Execução de Valongo - Juiz 2

RELAÇÃO N.º 246

Relator: Alberto Taveira

Adjuntos: Alexandra Pelayo

Maria Eiró


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES


Exeqte.: A..., Lda.

Execdos.: B..., Lda,

AA e

BB.


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A[2] Exeqte deduziu a presente ação executiva para pagamento de quantia certa contra os Exedos, reclamando o pagamento da quantia de € 25.088,56 dando à execução o contrato de arrendamento celebrado em 30 de junho de 2021 e as cartas registadas com aviso de receção enviadas aos executados em 11 de março de 2024 a comunicar a resolução do contrato de arrendamento por estarem em dívida as rendas aí indicadas.

Mais alegou que os 2.º e 3.º Execdos outorgaram o contrato de arrendamento “na qualidade de fiadores e principais pagadores, assumindo solidariamente com a segunda outorgante a obrigação do fiel cumprimento de todas as cláusulas do presente contrato de arrendamento, aditamentos e todas as suas renovações, na qualidade de fiadores e principais pagadores, conf. cit. doc. nº 2.

Alega a exequente que para além da comunicação à arrendatária, 1.ª executada, comunicou aos fiadores, aqui 2.º e 3.º executados, “11. Por cartas registadas e com aviso de recepção datadas de 8 de Março de 2024, o exequente comunicou o montante em dívida, conforme se alcança dos documentos que aqui se juntam sob os números 3, 4 e 5 e se dão por integralmente reproduzidos. 12. As cartas referidas no número anterior foram recebidas pelos executados, conf. cit. docs. nºs 3 a 5.


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DA DECISÃO RECORRIDA


Após requerimento inicial de execução, foi proferida DECISÃO, nos seguintes termos:

Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos artº. 726º. nº. 2 al. a) e 734º. do CPC:

- indefiro liminarmente o requerimento executivo na parte respeitante à pretensão deduzida contra os executados AA e BB.”


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DAS ALEGAÇÕES

A Exequente, vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento da execução contra os fiadores.”


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A apelante, Exequente, apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

1. Vem o presente recurso do douto despacho que indeferiu liminarmente o requerimento executivo na parte respeitante à pretensão deduzida contra os executados AA e BB.

2. O despacho recorrido fundamentou-se no seguinte:

• Do princípio da tipicidade decorre a proibição do recurso à analogia ou à interpretação extensiva para atribuir valor executivo a um documento que a lei não qualifica como título.

• O título executivo é complexo e, por isso, pressupõe a reunião conjunta de dois documentos, se o fiador não consta de um deles não existe título executivo contra ele.

• Somente o arrendatário está em condições de controlar a veracidade do seu conteúdo da comunicação do senhorio e de deduzir alguma eventual oposição.

• A alteração do NRAU (Lei nº 6/2016 de 27 de Fevereiro) pela Lei n.º Lei n.º 31/2012, de 14/08, deixou intocado o texto quando a questão já se discutia num sinal de que o legislador não pretendeu tornar claro que o fiador também pode ser executado.

• O Decreto-Lei n.º 1/2013, de 7 de Janeiro, denuncia essa intenção legislativa ao consagrar expressamente que só o arrendatário pode ser objecto do procedimento especial de despejo quando nele está compreendido a execução das rendas em dívida.

3. O artigo 14.°-A do NRAU tem por finalidade permitir ao senhorio a obtenção de título executivo para pagamento das quantias em dívida a título de rendas, sem necessidade de intentar acção declarativa prévia, tendo em vista o reconhecimento do seu direito de crédito.

4. Conforme resulta da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 34, o legislador pretendeu cumprir o princípio da agilização processual consagrado na reforma do CPC de 2013. E, para tal, foram ampliados os títulos executivos, permitindo a criação de títulos mediante simples comunicação enviada pelo senhorio.

5. Assim, do ponto de vista do espírito do legislador há que dar primazia ao entendimento de que, também o fiador pode ser incluído na criação de título executivo mediante comunicação extrajudicial, nos termos do artigo 14.º do NRAU.

6. Por outro lado, o artigo 14.°-A do NRAU não visa determinar a legitimidade daqueles que podem vir a figurar como executados no âmbito de uma acção executiva para pagamento de quantia certa mas sim enunciar os requisitos cuja observância se mostra necessária para que se forme titulo executivo.

7. E, no âmbito da definição dos requisitos para a constituição de título executivo complexo, o preceito enuncia:

4. O contrato de arrendamento e;

5. O comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida.

8. Ora, tanto no primeiro como no segundo, os fiadores tiveram intervenção, o primeiro porque assinaram o contrato nessa qualidade e o segundo porque receberam do senhorio a comunicação do montante em dívida.

9. Não procedendo o argumento invocado pelo despacho recorrido de “pressupõe a reunião conjunta de dois documentos, pelo que se o fiador não consta de um deles não existe título executivo contra ele…” porque sendo a comunicação dos montantes sido enviada para o arrendatário, este também não consta da mesma.

10. O entendimento de que o título executivo não abrange o fiador viola o regime das obrigações contratuais que impendem sobre o fiador.

11. A fiança prestada no âmbito de um contrato de arrendamento passou a estar sujeita às regras gerais constantes dos artigos 627.° e ss. do C.C.

12. Qualquer fiança, e em especial a prestada no âmbito de um contrato de arrendamento contém as características de acessoriedade e de subsidiariedade.

13. O conteúdo da responsabilidade do fiador, sendo própria e autónoma, molda- se sobre o da pessoa afiançada, nos termos gerais dos artigos 627º, nº 1 e 634º do Código Civil.

14. Acresce que não pode colher o argumento de que admitir que o fiador fosse demandado no âmbito de uma acção executiva levaria a que este ficasse onerado por um regime processual especialmente gravoso.

15. Porque ao outorgar num contrato na qualidade de fiador, sabe este (ou deve saber) quais as consequências de tal outorga, em particular, a sua vinculação a cumprir as obrigações do seu afiançado, nos termos prescritos no artigo 634.° do C.C.

16. Não podem os fiadores ignorar a (provável) possibilidade de virem a ser chamados a cumprir as obrigações do seu afiançado, à custa do seu património.

17. A circunstância de a vinculação do fiador ficar inteiramente dependente da vontade e do cumprimento do afiançado, neste caso o inquilino, constitui uma característica absolutamente natural na lógica do regime jurídico inerente ao funcionamento da figura da fiança.

18. É precisamente isso o que significa ser garante do cumprimento da obrigação de outrem.

19. No caso dos presentes autos o conhecimento dessa realidade é ainda mais evidente porque os fiadores são os representantes legais da sociedade arrendatária, não podendo dessa forma ignorar o risco e as consequências decorrentes do incumprimento desta.

20. Além do mais, ao fiador assistem os direitos de usar os meios de defesa próprios e ainda os que competem ao devedor.

21. Não pode deixar de se considerar totalmente inócuo que a anterior disposição legal aplicável previsse, no respectivo artigo 15.°, nº 2: O contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em divida.

22. A alteração introduzida pelo artigo 14º-A limitou-se a acrescentar, no âmbito da abrangência da norma, os encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, sem alterar no essencial a sua previsão, isto é, a possibilidade do senhorio, após haver notificado o devedor ou devedores, partir de imediato para a acção executiva, sem as delongas associadas à instauração prévia da acção declarativa com vista ao reconhecimento do seu crédito.

23. Assim, não é pelo facto da norma se ter tornado mais abrangente, reforçando a tutela dos direitos do locador face ao incumprimento do locatário, que daí vem a resultar qualquer tipo de exclusão de responsabilidade, em sede executiva, do fiador do inquilino.

24. É perfeitamente normal que o Decreto-lei nº 1/2013, de 7 de Janeiro, no seu artigo 7º, obrigue a que o pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas em atraso só possa ser deduzido contra o arrendatário e não contra o fiador.

25. Note-se que o objectivo fundamental desse diploma de natureza especial é a cessação do arrendamento e a desocupação célere do locado, em termos particularmente simples e eficazes, procurando-se obstar a invocação de qualquer matéria que inviabilize ou dificulte esse concreto desiderato.

26. Pelo que, não pode deixar se se seguir as enumeras decisões que consideram que o título executivo constituído nos termos do artigo 14.º-A do NRAU abrange o fiador.

27. O despacho ora recorrido violou o disposto nos artigos os artigos 53.° do CPC, 14.°-A do NRAU, 627.°, 631.°, 634.°, 637.°, n.° 1. 641.°, n.° 1 todos do C.C.

28. Termos em que deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento da execução contra os fiadores.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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II-FUNDAMENTAÇÃO.


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, a questão a decidir, diz respeito à existência do título executivo: contrato de arrendamento, fiador.


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OS FACTOS


Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório, e que aqui se dão por reproduzidos.

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DE DIREITO.


Dispõe o artigo 14.º-A do NRAU, com a epígrafe, “Título para pagamento de rendas, encargos ou despesas”, o seguinte:

1 - O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário.

2 - O contrato de arrendamento, quando acompanhado da comunicação ao senhorio do valor em dívida, prevista no n.º 3 do artigo 22.º-C do regime jurídico das obras em prédios arrendados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de agosto, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente à compensação pela execução de obras pelo arrendatário em substituição do senhorio.

Foi dado à execução como título executivo contrato de arrendamento celebrado entre a exequente e a 1.ª executada; a comunicação a esta do montante em dívida a título de rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora (21.852,45€ + 3.236,11€).

Alega a exequente que para além da comunicação à arrendatária, 1.ª executada, comunicou aos fiadores, aqui 2.º e 3.º executados, “11. Por cartas registadas e com aviso de recepção datadas de 8 de Março de 2024, o exequente comunicou o montante em dívida, conforme se alcança dos documentos que aqui se juntam sob os números 3, 4 e 5 e se dão por integralmente reproduzidos. 12. As cartas referidas no número anterior foram recebidas pelos executados, conf. cit. docs. nºs 3 a 5.

A M.ma Juíza, liminarmente, indeferiu o requerimento executivo quanto aos fiadores, 2.º e 3.º executados, em suma por entender que, quanto a estes, não existe título executivo. Afirma que a alteração legislativa de 2013 consagrou o entendimento de “que só o arrendatário pode ser objecto do procedimento especial de despejo quando nele está compreendido a execução das rendas em dívida.

Tendo concluído “que o contrato de arrendamento, acompanhado ou não de comunicação do valor das rendas em dívida, nunca constitui título executivo contra o fiador, do que resulta que a presente execução não pode prosseguir contra os executados AA e BB.

Sobre esta questão a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça desde o ano de 2014 tem vindo a firmar o entendimento diverso do subscrito pela M.ma Juíza na decisão objecto do recurso.

Em recente aresto o Supremo Tribunal de Justiça veio reafirmar tal entendimento jurisprudencial. No Acórdão Supremo Tribunal de Justiça 9443/20.2T8SNT-A.L1.S1, de 21.06.2022, relatado pela Cons MARIA OLINDA GARCIA, é dada notícia do seguinte:

O STJ já se pronunciou sobre a matéria em três acórdão, cujos sumários se transcrevem:

- Acórdão do STJ, de 26.11.2014 (relator Granja da Fonseca) [2 https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0fbd71584ac864bb80257d9d00553ba0?OpenDocument], no processo n. 1442/12.4TCLRS-B.L1.S1:

«I - O art. 15.º, n.º 2, do NRAU, conjugado com o art. 46.º, n.º 1, al. d), do CPC, confere força executiva ao contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida.

II- A comunicação ao arrendatário, a que alude o art. 15.º, n.º 2, do NRAU, funciona como requisito complementar de exequibilidade do título

III- O título executivo referido em I, tendo natureza complexa, integra dois elementos: (i) o contrato onde a obrigação foi constituída; (ii) a demonstração da realização da comunicação ao arrendatário da liquidação do valor das rendas em dívida.

IV - A identidade do obrigado pelo título resulta do próprio contrato de arrendamento e abrange quem nele se obrigou, perante o senhorio, ao pagamento das rendas em dívida.

V - Não obstante o art. 15.º, n.º 2, do NRAU apenas fazer referência à comunicação ao arrendatário, a mesma – por identidade de razões e enquanto condição de exequibilidade do título – deve ser feita também aos fiadores.

VI - Constitui título executivo, tanto em relação ao arrendatário como em relação aos fiadores, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação referida em V.

VII - A força executiva referida em VI abrange as rendas indicadas na comunicação, como sendo rendas em dívida, e já não as rendas vincendas, as não mencionadas na comunicação, bem como as demais obrigações imputadas, como sejam a indemnização pela mora.» [3 Este acórdão foi proferido na vigência do art. 15º, n. 2 da Lei 6/2006 (na sua redação originária), o qual consagrava a solução que passou para o art. 14º-A por força da Lei n.31/2012.]

- Acórdão do STJ, de 17.11.2020 (relatora Fátima Gomes) [4 https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4ab8ddf80b9764e780258646004c5766?OpenDocument], no processo n. 3794/18.3T8SNT-A.L1.S1:

«I- O contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida.

II- Tendo os embargantes sido fiadores dos arrendatários, figurando a fiança no contrato de arrendamento e não tendo aqueles sido notificados das rendas em atraso, nem da resolução do contrato pelo senhorio, ainda que este tenha notificado o arrendatário, não pode a execução avançar contra os embargantes, por falta de título.»

Acórdão do STJ, de 20.05.2021 (relator Manuel Capelo) [5 https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/99ccbe3eb6519593802586e0004da80d?OpenDocument], no processo n. 8520/20.4T8PRT-B.P1.S1:

«I- Em contrato de arrendamento em que os executados intervieram como terceiros contraentes e declararam-se solidariamente como principais pagadores de todas as obrigações emergentes do referido contrato, renunciando ao benefício de excussão prévia, esse contrato e a sua interpelação constitui título executivo para poderem ser accionados nos termos do art. 14.º-A do NRAU.

II- A notificação do fiador para permitir a obtenção contra ele de título justifica-se por razões de equilíbrio e proporcionalidade, atendendo à natureza das próprias obrigações tripartidas e ao facto de se tratar da criação de um título executivo cuja norma refere esse requisito para o arrendatário garantido.»

A jurisprudência do STJ encontra-se alinhada, assim, num único sentido.

Diferentemente, na jurisprudência dos tribunais da Relação têm sido seguidos entendimentos divergentes. Para além de se encontrarem decisões em sentido coincidente com o que tem sido sustentado pelo STJ, ou seja, entendendo que o art. 14º-A também se aplica ao fiador desde que este tenha sido diretamente notificado, encontram-se acórdãos que vão mais além nesse alinhamento, dispensando até a notificação ao fiador (considerando suficiente a notificação ao arrendatário para que exista também título executivo contra o fiador). E encontram-se decisões em sentido contrário, ou seja, entendendo que o titulo executivo previsto no art.14º-A da Lei n.6/2006 não poderá formar-se contra o fiador.

Também na doutrina publicada sobre o tema se identificam teses em sentidos diversos, coincidindo, em maior ou menor medida, com o argumentário que tem sido sustentado nas diferentes correntes jurisprudenciais.

A diversidade de entendimentos, tanto jurisprudenciais como doutrinais, sobre a aplicação do art. 14º-A da Lei n.6/2006 encontra-se profusamente exposta no supra referido acórdão do STJ de 17.11.2020 (relatora Fátima Gomes), para o qual se remete, sem necessidade, portanto, de aqui se reproduzir expressamente toda essa informação.

3.3. Nenhuma das soluções que têm sido defendidas sobre a interpretação do art. 14º-A é isenta de dúvidas, na medida em que, por um lado, o elemento literal parece favorecer uma interpretação, mas, por outro lado, o elemento teleológico parece abrir caminho à interpretação oposta.

Porém, tendo-se a jurisprudência do STJ firmado em determinado sentido, como no presente caso, em matéria de natureza essencialmente adjetiva, os valores da segurança e da previsibilidade decisória merecerão ser preservados quando a solução interpretativa não conduza a um resultado injusto do ponto de vista da tutela dos interesses do recorrente. (…)

Concluiu-se, assim, que o facto de o fiador ser demandado numa ação executiva tendo por base o título executivo formado nos termos do art.14º-A não implicará uma significativa afetação dos seus direitos de defesa, por confronto com a tutela que lhe caberia numa ação declarativa.

3.4. Tem-se argumentado que a inclusão do fiador no âmbito dos sujeitos em relação aos quais o título executivo previsto no art. 14º-A da Lei n.6/2006 poderá ser feito valer constituiria uma violação do numerus clausus dos títulos executivos previstos no art.703º do CPC.

Porém, em rigor, o referido art.14º-A não enuncia, em termos excludentes, o sujeito em relação ao qual o título executivo pode ser feito valer. Essa norma define a estrutura constitutiva do título (integrado por dois documentos: contrato de arrendamento e comunicação do montante em dívida) e delimita a tipologia de débitos relativamente aos quais tal título se torna normativamente operativo (rendas, encargos, despesas que corram por conta do arrendatário).

Sendo óbvio que o sujeito responsável pelo pagamento desses valores é o arrendatário, por constituir a sua obrigação principal, como previsto no art.1038º, alínea a) do CC, será lógico que a comunicação dos montantes em dívida seja dirigida ao devedor – o arrendatário, até para que este, querendo, proceda ao pagamento voluntário dos montantes reclamados, evitando a propositura da ação executiva. Por outro lado, terá o arrendatário a possibilidade de discutir extrajudicialmente a exatidão dos valores reclamados pelo locador ou, eventualmente, a possibilidade de invocar a compensação, caso tenha algum crédito face ao locador, evitando-se o recurso a tribunal (com os inerentes custos).

Estando o pagamento dos débitos referidos no art. 14º-A garantido por fiador, tem-se entendido que a comunicação referida nessa norma também tem de ser dirigida a este sujeito por identidade de razões face ao arrendatário e porque, nos termos do art. 631º do CC, o fiador não deverá ficar em condições mais onerosas do que as do devedor principal.

Porém, a jurisprudência mais recente que se tem pronunciado sobre a matéria não tem tido em conta as alterações que a Lei n. 13/2019 introduziu no art. 1041º do CC, com o propósito de tutelar a posição do fiador[6].

Dispõe o art.1041º, números 5 e 6, do CC (aditados pela Lei n.13/2019):

«5-Caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora nos termos do n.º 2, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida.

6 - O senhorio apenas pode exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efetuar a notificação prevista no número anterior.»

Tendo presente que nos termos do art.12º, n. 2, 2ª parte, do CC a lei nova se aplica às relações em curso, esta nova definição dos critérios de exigibilidade do pagamento dirigido ao fiador tem aplicação em qualquer hipótese em que o locador o pretenda demandar, depois da entrada em vigor da Lei n.13/2019.

Os números 5 e 6 do art. 1041º do CC vieram, assim, conferir uma tutela específica ao fiador do arrendatário que, na medida da sua especificidade, afastam a aplicação das regras gerais da fiança. Por outro lado, não sendo feita qualquer distinção quanto ao meio processual a usar pelo locador, deverá concluir-se que se aquela notificação prévia vale quando o locador pretenda demandar o fiador numa ação declarativa, por identidade de razão (ou até por maioria de razão) deverá valer quando o locador pretenda mover ação executiva contra o fiador com base no art. 14º-A da Lei n. 6/2006.

No caso dos presentes autos não existem elementos factuais para se saber qual o âmbito de exigibilidade da notificação dirigida ao fiador (porque, obviamente, a execução não continuou contra ele), mas encontra-se assente (e o fiador recorrente não o nega) que foi notificado pelo senhorio credor para proceder aos pagamentos reclamados.

Assim, do ponto de vista da estrutura constitutiva do título, é possível concluir que se verificam em relação ao fiador os dois elementos formais exigidos pelo art. 14º-A da Lei n.6/2006, ou seja, existe contrato de arrendamento escrito no qual o recorrente se constituiu como fiador garante do pagamento das rendas devidas pela sociedade arrendatária, e existe notificação que lhe foi dirigida pelo locador.

Tal é suficiente para se concluir que se encontra formalmente constituído título executivo com base no qual o fiador pode ser demandado e, consequentemente, para se concluir que a execução deve continuar contra ele, cabendo-lhe, depois, exercer os direitos que a lei lhe confere na ação executiva.

Em igual sentido, neste Tribunal da Relação do Porto podemos assinalar os seguintes arestos: Acórdão Tribunal da Relação do Porto 309/22.2T8VLG-A.P1, de 11.10.2022, relatado pelo Des FERNANDO VILARES FERREIRA, sumariado “O título executivo configurado pelas disposições conjugadas dos artigos 703.º, n.º 1, al. d), do Código Civil, e 14.º-A, n.º 1, do Novo Regime do Arrendamento Urbano, é suscetível de justificar a propositura de ação executiva não só contra o arrendatário mas também contra o fiador, desde que este, tal como aquele, seja previamente notificado quanto ao montante em dívida, e desde que esta se mostre abrangida pelo âmbito obrigacional da fiança prestada.”, Acórdão Tribunal da Relação do Porto 1413/21.0T8VLG-A.P1, de 15.09.2022, relatado pelo Des CARLOS PORTELA, sumariado “I - A situação do fiador, enquanto executado, é similar à do próprio arrendatário, pois ambos figuram no contrato de arrendamento, ambos são responsáveis pelo pagamento das rendas vencidas e de ambos pode o credor/senhorio exigir tal pagamento. II - O título executivo complexo formado nos termos do artigo 14º-A do NRAU abrange não apenas o arrendatário, mas também o fiador, cabendo no seu âmbito todas as rendas devidas e demais encargos até à restituição do respectivo locado. III - Para fazer valer o título executivo contra o fiador, impõe-se que sejam cumpridas também quanto a ele as formalidades da comunicação previstas no artigo 10º do NRAU.”, Acórdão Tribunal da Relação do Porto 3566/19.8T8LOU-A.P1, de 16.12.2020, relatado pelo Des CARLOS PORTELA e Acórdão Tribunal da Relação do Porto 9785/21.0T8VNG.P1, de 28.09.2023, relatado pelo Des PAULO DUARTE TEIXEIRA, onde se pode ler “Podemos, por isso concluir que a responsabilidade dos fiadores inclui as consequências legais do incumprimento contratual, sendo que algumas destas podem produzir efeitos (como a simples mora no pagamento das rendas), em data posterior à cessação do contrato e ao âmbito temporal inicial da fiança.

Esta é a corrente jurisprudencial mais consentânea com a letra e o espírito da Lei. Desta feita, respigando a fundamentação dos atrás citados arestos, é de refirmar o seguinte.

O fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor. A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.

A situação do fiador, enquanto executado, é neste contexto, precisamente similar à do próprio arrendatário: ambos figuram no contrato de arrendamento; ambos são responsáveis pelo pagamento das rendas vencidas; de ambos pode o credor senhorio exigir tal pagamento.

Por isso, também sufragamos o entendimento segundo o qual, a ausência de referência expressa à figura do fiador na letra do artigo 14º-A do NRAU, não pode, só por si, obstar à formação de título executivo contra o garante dada a referida característica dessa obrigação de garantia.

Resulta claro que do ponto de vista substantivo, para que exista título executivo é necessário que haja um contrato de arrendamento e uma dívida, certa, exigível e liquida. Ou seja, estamos perante condições processuais de exequibilidade intrínseca, sendo certo que aqui a documentação da comunicação ao arrendatário do montante em dívida é um pressuposto processual específico de exequibilidade.

Pelo exposto, procede a apelação, com a consequente revogação da decisão proferida pela primeira instância.


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III DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, devendo os autos de execução prosseguir os seus termos.

Custas pelos apelados, 2.º e 3.º executados, que desta decisão retiram proveito (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, 10 de Julho de 2025
Alberto Taveira
Alexandra Pelayo
Maria Eiró
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Juiz.