Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2430/22.8T8VLG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
OMISSÃO
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RP202402082430/22.8T8VLG-B.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No caso de ser proferido saneador sentença que conheça do mérito da causa não pode ser dispensada a audiência prévia ao abrigo do disposto, nos artigos 591º nº 1, 593 nº1, alínea d) e) e f) e 595 nº 1 a) e b), todos do Código de Processo Civil, mesmo quando foi dada ao autor oportunidade de discutir as excepções e demais questões pertinentes ao mérito, nos articulados respectivos.
II - A omissão da audiência prévia no caso em que é obrigatória, constitui nulidade processual e simultaneamente nulidade do despacho saneador posteriormente proferido nos termos conjugados dos artigos. 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC e 195º, ambos do Código de Processo Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2430/22.8T8VLG-B.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução de Valongo


Relator: Carlos Portela
Adjuntos: Isabel Silva
António Carneiro da Silva




Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto



I. Relatório:
Por apenso à execução que lhes é movida por Banco 1..., S.A., vieram os executados AA e BB, deduzir incidente de oposição à execução, mediante embargos, invocando, em suma o seguinte:
a) A inexigibilidade e iliquidez da obrigação exequenda, por falta de interpelação dos avalistas para o pagamento e não apresentação das livranças a pagamento;
b) O preenchimento abusivo das livranças;
c) A nulidade do aval;
d) A prescrição do crédito cambiário.
A exequente/embargada apresentou contestação, pugnando pela não verificação das excepções invocadas, assim como pela improcedência dos presentes embargos de executado, por carecerem de fundamento legal.
Os autos prosseguiram os seus termos, emitindo-se sem mais despacho onde se justificou a não realização de audiência prévia e após saneamento do processo se passou de imediato a proferir-se decisão de mérito onde se proferiu a seguinte decisão de facto:
Factos provados
Com relevância para a decisão da presente causa, resultou provado que:
1.A exequente/embargada é dona e legítima portadora de duas livranças preenchidas, subscritas pela sociedade “A..., S.A.”, atualmente sujeita a Processo Especial de Revitalização, e avalizadas pelos executados/embargantes.
2. As referidas livranças, emitidas em 05/05/2022 e com data de vencimento em 17/05/2022, mostram-se preenchidas pelos seguintes pelos seguintes valores:
- Livrança n.º ...4/2022, no montante global de €359.104,36 (trezentos e cinquenta e nove mil, cento e quatro euros e trinta e seis cêntimos);
- Livrança n.º ...5/2022, no montante global de €344.609,38 (trezentos e quarenta e quatro mil, seiscentos e nove euros e trinta e oito cêntimos).
3. Por carta datada de 11/06/2013 e remetida à exequente/embargada, a sociedade subscritora das livranças referidas em 1. e 2. e os aqui executados/embargantes, na qualidade de avalistas, declararam o seguinte:
“ (…) enviamos uma livrança em branco, por nós subscrita e avalizada pelas pessoas abaixo identificadas, destinada a garantir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em dívida a V.ª Ex.ª, por crédito concedido e/ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados, até ao limite de €500.000,00 (quinhentos mil euros),, acrescido dos respectivos juros, despesas e encargos, desde já autorizando V.ª Ex.ª a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento (Banco 1... – Lisboa) e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização. (…)”
4. Por carta datada de 02/08/2013 e remetida à exequente/embargada, a sociedade subscritora das livranças referidas em 1. e 2. e os aqui executados/embargantes, na qualidade de avalistas, declararam o seguinte:
“ (…) enviamos uma livrança em branco, por nós subscrita e avalizada pelas pessoas abaixo identificadas, destinada a garantir o pagamento de todos os valores que por nós se mostrarem em dívida a V.ª Ex.ª, por via de Remessas Documentárias à Exportação (RDE’s) por nós solicitadas, até ao limite de €350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros), acrescido dos respectivos juros, despesas e encargos, desde já autorizando V.ª Ex.ª a completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento (Banco 1... – Lisboa) e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização. (…)”
5. Aquando a assinatura das livranças referidas em 1. e 2., na qualidade de avalistas, os executados/embargantes, casados entre si, estavam relacionados com a sociedade subscritora “A..., S.A.”, sendo que o executado/embargante AA era membro do respetivo conselho de administração, função que renunciou em novembro de 2019.
Factos não provados
Inexistem.
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O Tribunal não se pronunciou quanto à demais matéria alegada pelas partes nos articulados, por ser desprovida de interesse e relevância para a decisão da causa.
Na sequência, decidiu-se do seguinte modo:
1º) Julgando como não verificadas as excepções dilatórias de inexigibilidade e iliquidez da obrigação exequenda;
2º) Julgando a oposição totalmente improcedente, por não provada e, consequentemente, determinando-se o prosseguimento da execução para cobrança das quantias peticionadas.
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Os executados/embargantes vieram interpor recurso desta decisão, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos as suas alegações.
A exequente/embargada respondeu.
Foi proferido despacho no qual se apreciou e se teve como improcedente a nulidade que decorre da não realização da audiência prévia invocada pelos executados/embargantes e se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso como sendo o próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelos executados/embargantes nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor dessas mesmas conclusões:
I. O presente recurso tem como objecto a matéria de Direito da decisão proferida nos presentes autos que julgou a oposição à execução apresentada pelos Recorrentes totalmente improcedente, determinando o prosseguimento da execução.
II. Considerou o Tribunal a quo que as partes exerceram o contraditório nos articulados, não se justificando a realização de audiência prévia, dispensando a sua realização.
III. No entanto, as normas aplicáveis à audiência prévia e utilizadas pelo Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão não permitem a sua dispensa quando o Tribunal pretenda conhecer de imediato do mérito da causa – o que, in casu, se verificou.
IV. Desde logo, o artigo 593.º do Código de Processo Civil, permite a dispensa da audiência prévia quanto às acções que hão-de prosseguir os seus termos.
V. Tendo a Mm.ª Juíza conhecido do mérito da causa em fase de saneador-sentença, colocou termo ao processo.
VI. Falhando, assim, o pressuposto previsto no já referido artigo 593.º.
VII. Nos casos em que se pretende conhecer o mérito da causa, a realização da audiência prévia apresenta-se como obrigatória.
VIII. Veja-se, neste sentido, o decidido em Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 128/14.0T8PVZ.P1: “I - Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, deverá convocar audiência prévia para o fim previsto no artigo 591º, nº1, b) do Código de Processo Civil. (…)”
IX. Por sua vez, outro dos artigos utilizados pelo Tribunal a quo foi o artigo 597.º do Código de Processo Civil.
X. Artigo esse que apenas diz respeito a acções de valor não superior a metade da alçada da relação, quando não é esse o caso dos autos, cujo valor é de 708.755,46€.
XI. Portanto, não se encontram verificados os pressupostos necessários para a dispensa da audiência prévia.
XII. Assim, sendo obrigatória a realização da audiência prévia, a sua dispensa configura uma nulidade processual enquadrável no regime do artigo 195.º do Código de Processo Civil e uma nulidade de sentença prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do mesmo código.
XIII. Isto porque, por um lado o Tribunal a quo omitiu um ato que a lei prescreve e que influi, necessariamente, no exame ou na decisão da causa.
XIV. Por outro lado, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre o mérito da causa, o que, sem a realização da audiência prévia, não poderia conhecer.
XV. Neste sentido, veja-se o entendimento de Miguel Teixeira de Sousa “A falta desta audição prévia (e, portanto, a violação pelo tribunal do dever de consulta) implica que o despacho saneador que venha a ser proferido é nulo por excesso de pronúncia (cf. art.º 615.º, n.º 1, al. d), NCPC): o tribunal conhece de matéria que, nas circunstâncias em que o faz (omissão do dever de consulta), não pode conhecer.”
XVI. Assim, ao decidir como decidiu – i. e., pela dispensa da audiência prévia – o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 591.º, 593.º, 595.º. e 597.º do Código de Processo Civil, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que a realização da audiência prévia se apresentava como obrigatória.
XVII. Sendo a decisão de que ora se recorre nula por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
XVIII. Ainda, ao dispensar a audiência prévia sem audição das partes, o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório previsto no artigo 3.º do Código de Processo Civil e 20.º da Constituição da República Portuguesa.
XIX. Veja-se, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no Processo n.º 128/14.0T8PVZ.P1, de acordo com o qual “II – (...) Sobre o propósito de dispensar a audiência prévia deverá, porém, ouvir as partes, de acordo com o disposto nos artigos 6º, nº1 e 3º, nº3, ambos do Código de Processo Civil.”
XX. Ademais, a não realização da audiência prévia impediu os Recorrentes de discutir as questões de facto e de direito que se mostravam relevantes para a boa decisão da causa.
XXI. Assim, ao decidir como decidiu – i. e., dispensa a realização da audiência prévia e fazê-lo sem a prévia audição das partes – o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 3.º, nº 3 do Código de Processo Civil e artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que às partes deveria ser permitida a discussão da matéria de facto e de direito em sede de audiência prévia e, caso se entendesse pela sua dispensa, serem as mesmas ouvidas a esse respeito.
XXII. Aliás, os artigos 3.º, 591.º e 593.º do CPC interpretados no mesmo sentido do Tribunal a quo, violam o consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, por não permitirem, nessa circunstância, uma tutela jurisdicional efectiva.
XXIII. Inconstitucionalidade essa que ad cautelam se deixa, desde já, invocada.
XXIV. Conclui, ainda, o Tribunal a quo pela improcedência das exceções de nulidade e preenchimento abusivo da livrança arguidas pelos Recorrentes.
XXV. Desde logo, não se verificou um incumprimento que facultasse à Recorrida o direito de preencher e executar a livrança.
XXVI. Porquanto, a Recorrida recebe no âmbito do plano especial de revitalização os pagamentos dos valores em dívida.
XXVII. Ademais, da análise do requerimento e dos títulos executivos, não é possível extrair com clareza e exactidão qual o raciocínio subjacente aos cálculos efectuados pela Recorrida com vista à liquidação das quantias finais em dívida.
XXVIII. Carecendo as livranças de exequibilidade intrínseca.
XXIX. Sendo que o acordado entre os Recorrentes e a Recorrida era de que a última deveria informar os primeiros de que iria apresentar a livrança a pagamento e qual o valor em dívida.
XXX. Pacto que foi incumprido.
XXXI. Preenchendo a Requerida a livrança quando entendeu e com o valor que entendeu.
XXXII. Assim, ao decidir como decidiu – i. e., pela improcedência das excepções de nulidade e preenchimento abusivo das livranças – o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 280.º do Código Civil.
XXXIII. Ainda, o Tribunal a quo considerou que o prazo prescricional previsto no artigo 70.º da LULL corre a partir do vencimento inscrito pelo portador desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento e que não existia obrigação dos Recorridos preencherem a livrança com a data do incumprimento contratual dos Recorrentes ou, ainda, com a data de resolução do contrato.
XXXIV. Entendendo, por tais motivos, que “não é possível sustentar-se que as livranças em apreço se encontram prescritas”.
XXXV. Tal posição sustentada pelo Tribunal a quo coloca os Recorrentes numa posição de desvantagem e desigualdade em relação aos Recorridos.
XXXVI. Consideram os Recorrentes que os Recorridos deveriam ter preenchido a livrança em 2016, altura em que resolvem o contrato e em que o crédito se venceu na sua totalidade.
XXXVII. Não obstante, os Requeridos optaram por esperar até 17-05-2022 para preencher a livrança com essa data e executar a mesma.
XXXVIII. O facto de o legislador não estabelecer um limite temporal para o preenchimento de uma livrança, não pode significar que a Recorrida a possa preencher quando entender.
XXXIX. Defender tal posição seria inverter a finalidade da prescrição e colocar em causa a segurança e certeza jurídicas.
XL. Como referem Heinrich Ewald Hörster e Maria Emília Teixeira, in “Aval e prescrição” (Revista de direito comercial, 23-01-2022, disponível em www.revistadedireitocomercial.com): “Se se considerar, sem mais, que o Banco pode escolher o momento em que preenche a livrança e, ao fazê-lo, pode inserir de forma arbitrária o momento de vencimento da letra, sem ter em conta outros critérios, os quais são até de índole legal, isto seria equivalente a dizer que o Banco pode, se assim o quiser, contornar o prazo de prescrição previsto no artigo 70.º, n.º 1 da LULL, mesmo sabendo-se que esta norma tem natureza imperativa. Todavia, não cabe na vontade do Banco decidir sobre a aplicação daquela norma, pelo que, conceder-se que o prazo de três anos apenas começa a contar a partir da data de vencimento que o Banco escolhe colocar na livrança, é dizer que o prazo de três anos de prescrição começa a contar a partir da manifestação de vontade do Banco. Com isto fica desvirtuado de forma completa e grosseira o instituto legal da prescrição e a ratio legis daquela norma, concebida toda ela em função da celeridade dos processos cambiários. A admitir-se tal tese, seria o mesmo que dizer que o Banco pode decidir tornar os seus créditos imprescritíveis e dar como letra morta o estipulado no artigo 70.º, n.º 1 da LULL.”
XLI. Ademais, de acordo com a regra prevista no artigo 236.º do Código Civil, não se vislumbra como possível que a Recorrida, colocada na posição do real declaratário, possa concluir que a vontade manifestada pelos aqui Recorrentes é, justamente, a de ficar obrigados para além do prazo prescricional de 3 anos.
XLII. Pelo que, o crédito da Recorrida se encontra prescrito.
XLIII. E, aliás, ao contrário do entendido pelo Tribunal a quo, o facto de os Recorridos aguardarem mais de 6 anos para preencherem e executarem a livrança constitui abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil) nas modalidades de venire contra factum proprium e supressio.
XLIV. Pelo exposto, ao decidir como decidiu – i. e., considerando que as livranças executadas pelos Recorridos não se encontravam prescritas– o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 70.º da LULL e 263.º e 344.º do Código Civil, preceito este que deveria ter sido interpretado no sentido de que tais factos se encontravam não provados.
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Por seu turno a exequente/embargada conclui as suas contra alegações pugnando, em síntese, pela não verificação da nulidade invocada e sugerindo a improcedência do recurso interposto e a confirmação da decisão proferida.
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Perante o antes exposto, resulta claro serem as seguintes as questões suscitadas no presente recurso:
1ª) A nulidade da decisão por preterição da realização de audiência prévia;
2ª) A violação do princípio do contraditório;
3ª) A procedência da oposição por preenchimento abusivo e pela inexigibilidade das livranças;
4º) A prescrição do crédito exequendo.
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Em face do antes referido resulta claro que a questão da nulidade da decisão proferida é aquela que, desde logo, dever ser aqui objecto de apreciação e decisão.
Para tanto, importa considerar as seguintes circunstâncias processuais:
Como já ficou dito, o Tribunal “a quo” entendeu dispensar a realização da audiência prévia, consignando as seguintes razões:
“Findos que se encontram os articulados, verifica-se que as excepções deduzidas pelos embargantes foram objecto de contraditório exercido no competente articulado de contestação, não se justificando, por isso, a realização de audiência prévia para a renovação de actos já praticados nos articulados (artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil).
Assim, pelos motivos indicados, a que acresce a ausência de risco de prolação de decisões que constituam surpresa para as partes, dispenso a realização de audiência prévia (artigo 593.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) do Código de Processo Civil.
Considerando que, em face dos factos alegados e comprovados nos autos, o estado do processo permite, sem necessidade de mais provas ou exercício do contraditório, a apreciação total do mérito da presente oposição à execução, mediante embargos, passa-se a decidir imediatamente a causa, o que se faz ao abrigo do disposto nos artigos 597.º, n.º 2, alínea a) e 595.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil.”
Como antes já ficou visto, tal despacho foi proferido logo após a dedução dos articulados, petição e contestação, pelas partes e antecedeu (imediatamente), a decisão que agora é objecto do presente recurso.
E tendo em conta tal circunstancialismo, pode concluir-se que a decisão aqui a proferir deve seguir as razões que estiveram na base da fundamentação que sustentou o Acórdão desta Relação do Porto de 15.12. 2021, no processo nº2577/20.5T88AGD-A.P1, relatado pela Desembargadora Isoleta Almeida Costa e no qual foi segundo Adjunto o Relator dos presentes autos, publicado em www.dgsi.pt.
Assim:
“Posto isto, quanto ao regime legal da obrigatoriedade da audiência prévia nos casos em que o tribunal profere saneador sentença, vejamos.
Na economia do actual código de processo civil o artigo 591º veio estabelecer a regra da realização da audiência prévia.
Os preceitos seguintes ocupam-se das excepções: o artigo 592.º da definição dos casos em que pura e simplesmente a audiência prévia não tem lugar, o artigo 593.º da definição dos casos em que a audiência prévia pode ser dispensada.
A norma prescreve que, findos os articulados ou após as diligências ordenadas no despacho pré-saneador se a ele houver lugar, é convocada audiência prévia destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
a) realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;
b) facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;
e) determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
f) proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes; g) programar, após audição dos mandatários, os actos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respectivas datas.
São os artigos 592º e 593º que consagram as excepções àquele princípio geral quer elencando os casos em que pura e simplesmente a audiência prévia não tem lugar, quer definindo os casos em que a audiência prévia pode ser dispensada.
O tribunal como as partes estão sujeitas ao princípio da legalidade nos actos processuais, o que vale por dizer, que a audiência prévia só pode ser dispensada nos casos em que a lei admite expressamente esta dispensa e no uso da faculdade da gestão processual, aqui, respeitado sempre, o princípio do contraditório (artigo 6º nº 1 e 547º).
Em todas as demais situações a lei prevê a audiência prévia, pelo que em regra a mesma deve ser realizada só podendo deixar de o ser nos casos em que a própria lei permite a sua dispensa (artigo 593.º).
O conhecimento do mérito da causa está incluído na alínea b) do artigo 591º, não podendo por isso ser a audiência prévia em tal caso dispensada ao abrigo das alíneas e), d) e f) do mesmo preceito como fez o tribunal recorrido.
A lei é expressa, taxativa e clara permitindo sem margem para duvidas concluir que quando a acção deva findar no saneador por outra causa que não seja a procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados, logo, quando o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.
Isto é assim, seja pelo que dispõem os artigos 592.º e 593.º, seja pela não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º.
Se o Tribunal entender que está habilitado para decidir de mérito de todo ou parte do pedido, já não funciona a norma do artigo 593º, antes funcionando a norma do artigo 591º, nº 1 b) norma esta que estabelece a regra ou princípio geral, de que é obrigatória em tal caso a audiência prévia.
A excepção do art.º 592º nº 1 b) apenas tem lugar quando a acção finda pela procedência de excepção dilatória, isto é por razões de ordem formal. Neste caso não há conhecimento do mérito.
Nesta matéria há uma alteração legislativa relativamente ao anterior código.
Efectivamente, Como explica Lebre de Freitas in A Acão Declarativa Comum”, 3ª edição, pág. 172 “, No cpc de 1961 posterior à revisão de 1995-1996, exceptuava-se o caso em que os fundamentos da decisão a proferir tivessem sido já discutidos pelas partes, não havendo insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto a corrigir e revestindo-se a apreciação da causa de manifesta simplicidade. No novo código esta excepção desaparece: o juiz não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, às partes”.
O julgamento da prescrição é julgamento de mérito porquanto decide de uma excepção peremptória que é extintiva do direito reclamado, pelo que, antes de proferir saneador sentença o tribunal está vinculado a realizar a audiência prévia conforme o artigo 591º nº 1 b) Em face do exposto reconhecemos a razão da apelante na invocação da nulidade processual e do saneador sentença a qual tem influência na decisão da causa.
A jurisprudência é uniforme neste entendimento.”
No mesmo sentido e para além das várias decisões citadas no supra identifica Acórdão, tem-se por relevante o Acórdão da Relação de Guimarães de 20.01.2022, no processo nº1167/20.7T8VRL-G1, relatado pelo Desembargador José Alberto Moreira Dias, publicado em www.dgsi.pt., onde se consignou o seguinte:
“Note-se que a obrigatoriedade de realizar audiência prévia sempre que o juiz se proponha conhecer de mérito, funda-se na dimensão positiva do princípio do contraditório, vertida no n.º 3 do art.º 3º do CPC, e que é postulada pelo direito a um processo equitativo que decorre do art.º 20º, n.º 4 da CRP, princípio esse que aquele deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito decidir qualquer questão de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, salvo em casos de manifesta desnecessidade.
Com efeito, mediante a consagração deste dispositivo legal consagra-se, no âmbito do processo civil, o princípio constitucional da proibição da indefesa, associada à regra do contraditório, visando-se conferir às partes uma efectiva participação no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão a proferir.
Como tal, fica proibido ao juiz proferir qualquer decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferido às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar (…).
Nessa concepção ampla do princípio do contraditório, o escopo principal desse princípio, contrariamente ao que acontece com a sua concepção tradicional (que continua a ter consagração legal no n.º 1 do art.º 3º do CPC), deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito das partes de influírem activa e decididamente no desenvolvimento e no êxito do processo (…).
Essa dimensão positiva do princípio do contraditório apenas pode ser afastada nos casos de “manifesta desnecessidade”, isto é, quando essa desnecessidade seja patente, evidente, ou inquestionável para o comum dos aplicadores da lei, dotados de comum bom senso e da comum razoabilidade.
A observância do princípio do contraditório, na sua actual dimensão positiva, impõe-se mesmo naquelas situações em que aparentemente se prefigura ao juiz ser desnecessária a audição dos interessados, posto que essa não audição prévia das partes apenas é de admitir relativamente a questões cuja decisão não tenha, ainda que reflexamente, qualquer repercussão sobre o desenvolvimento da instância.
Por seguinte, sendo a audiência prévia uma fase normal da tramitação da acção declarativa comum, cuja realização o juiz apenas pode afastar nos casos, expressa e taxativamente, enunciados na lei, em que é a própria lei que determina a sua não realização (art.º 592º), ou nos casos em que faculta ao juiz a decisão de a realizar ou não (art.º 593º, n.º 1), e não constando desse elenco os casos em o juiz se proponha conhecer, total ou parcialmente, do mérito da causa, compreende-se que, a vertente positiva do princípio do contraditório, lhe imponha a realização dessa audiência sempre que se proponha conhecer do mérito da causa, incluindo naquelas situações em que as partes já tenham debatido nos seus articulados a questão jurídica que se propõe conhecer, de imediato, em sede de saneador-sentença.”
Regressando aos autos, verificamos que na decisão recorrida, para além do mais, se considerou improcedente, por não provada, a excepção peremptória da prescrição do direito cambiário invocada pelos embargantes/executados.
E a ser assim valem aqui, sem quaisquer dúvidas, todos os argumentos que sustentam as duas decisões que acabamos de citar.
Nestes termos, cabe anular o despacho que decidiu dispensar a realização de audiência prévia e a decisão de mérito que, subsequentemente foi proferida.
Face ao acabado de decidir, mostra-se claramente prejudicada a apreciação das duas outras questões objecto do presente recurso.
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Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
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III. Decisão:
Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso de apelação aqui interposto, anulando-se o despacho que dispensou a realização de audiência prévia e a decisão de mérito proferida de imediato, determinando-se a baixa dos autos à 1ª Instância, para que seja designada data para realização de audiência prévia.
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Custas pela parte vencida a final (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.




Porto, 8 de Fevereiro de 2024
Carlos Portela
Isabel Silva
António Carneiro da Silva