Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
595/16.7IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: CRIME DE FRAUDE FISCAL QUALIFICADA
PENA DE PRISÃO
JUÍZO DE PROGNOSE
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADMINISTRADOR
Nº do Documento: RP20240221595/16.7IDPRT.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O juízo de prognose a que se reporta o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2012 pressupõe que o crime tributário seja punível com pena de multa alternativa à pena de prisão, pelo que não é aplicável ao crime de fraude fiscal qualificada.
II - A responsabilidade do administrador/gerente no crime de fraude fiscal, praticado em comparticipação com o sujeito passivo do imposto – o ente coletivo – tem como fundamento o prejuízo que causou à autoridade tributária com o seu comportamento nos termos da lei civil e não nos termos da Lei Geral Tributária.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º595/16.7IDPRT.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

No processo comum n.º595/16.7IDPRT do Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 3, foram submetidos a julgamento os arguidos AA e A... Unipessoal, Lda e, a final, foi proferida sentença, de cujo dispositivo consta:

“Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelo artigo 103.º, n.º 1, al. c) e 104.º, n.ºs 1 e 2, al. a) e b), do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, suspensa por igual período, suspensão essa que fica sujeita à condição de o arguido proceder ao pagamento, no período em que durar a suspensão, das prestações tributárias e acréscimos legais correspondentes ao montante dos benefícios indevidamente obtidos, referentes ao IRC de 2013 e 2014, e que à data da informação prestada aos autos pela AT em 23/01/2023 se contabilizam em 16.070,14€ e 43.117,75€, e do que deverá juntar comprovativo aos autos durante o referido período.

2. Condenar a sociedade arguida A..., Unipessoal, Ld.ª pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos art.ºs 6.º, n.º 1, 7.º, n.º 3, 10.º a 12.º, 103.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, 104.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), todos do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 300 (trezentos dias) de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), perfazendo a quantia global de €3.000,00(três mil euros).

3. Declarar perdida a favor do Estado a vantagem obtida através do crime, e que à data se computa em €24.073,90 (vinte e quatro mil, e setenta e três euros, e noventa cêntimos), condenado os arguidos no seu pagamento solidário.”

Inconformado com a decisão, o arguido AA interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões (transcrição):

I – Não foram convenientemente fundamentadas e valoradas pelo Tribunal a quo as circunstâncias que determinaram a razoabilidade do arguido poder cumprir com a pena concretamente aplicada no que diz respeito à obrigação de proceder ao pagamento ao estado da quantia em dívida de Eur. 59.187,89, acrescida dos respetivos juros de mora, no prazo de um dezoito meses enquanto condição de suspensão da pena de prisão por igual período”, não estando em causa a escolha da medida da pena mas tão só a definição dos termos da suspensão decretada,

II - A aplicação do nº 1 do artigo 14.º do R.G.I.T. não derroga o nº 2 do artigo 51º do Código Penal (ou seja, o pagamento da quantia em causa deve ser razoavelmente exigível em face da situação económica do condenado), constituindo apenas uma especialidade em relação ao regime facultativo previsto no nº1 deste último preceito; tal especialidade impõe que a suspensão seja sempre sujeita ao pagamento de quantias indevidamente obtidas.

III – A fixação do montante concreto do condicionamento da prestação tributária com sujeição ao regime previsto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal (isto é, que o pagamento de tal montante seja exigível em face da situação económica do condenado) terá de cumprir o princípio geral da humanidade das penas e da proporcionalidade, impondo que o regime de suspensão não seja condicionado por medidas ou deveres irrealizáveis, sob pena de os fins da suspensão perderem racionalidade, tornando-se inoperantes.

IV - Deste modo, ponderando as condições pessoais do arguido que apresentando um quadro económico limitado não poderá deixar de se lhe exigir o esforço de pagamento parcial, que sem embargo de ser razoável, há-de sempre significar um sacrifício, mas nunca no valor constante da decisão proferida pelo Tribunal a quo.

V - Assim, o montante a sujeitar o arguido ao pagamento no prazo de 18 meses de suspensão e em caso de se manter integralmente em dívida os valores constantes da sentença proferida, não pode ser superior a Eur. 5.000 (cinco mil euros), sem prejuízo do alegado e constante da conclusão VII infra, devendo nestes termos ser alterado o regime de suspensão da execução da pena concretamente cominada ao arguido aqui recorrente.

VI – Sem prescindir e atendendo a que o arguido é apenas responsável subsidiário relativamente à dívida de IRC, assiste-lhe o benefício da excussão prévia do devedor principal, ou seja, “(…) é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito.” (vide artigo 638º do Código Civil);

VII - Nesta conformidade, o arguido só poderá ser obrigado pagamento das quantias em que vier a ser-lhe agora fixadas na decorrência do presente recurso, por douto Acórdão a proferir pelos Venerandos Desembargadores, se o produto da venda dos bens propriedade da sociedade responsável originária não forem suficientes para o pagamento das mesmas e em montante adequado à sua situação económica, conforme explicitado supra em V, condição que deverá constar expressamente do teor da decisão a proferir.

VIII – Sob pena de violação do nº 2 do artigo 23º da LGT e do nº2 do artigo 153º do CPPT.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, o Exmo.Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.

Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Decisão recorrida

A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, a que se seguiu a respetiva fundamentação:

“III.1.Factos provados

1) A arguida A..., UNIPESSOAL, LDA. é uma sociedade comercial por quotas, unipessoal, com o número único de matrícula e de pessoa coletiva ..., que tem como objeto comercial a “importação, exportação, comercialização, representação, manutenção e reparação de materiais e equipamentos médicos e hospitalares”.

2) O arguido AA exerceu gerência de forma contínua e ininterrupta desde a constituição daquela sociedade, em 23.09.2002, até à presente data, da qual é o único sócio, devidamente registado sob a Ap. ....

3) Ao arguido coube, durante todo o período desde a constituição da sociedade arguida, em especial, no que ora releva, durante os exercícios económicos de 2012 a 2014, a decisão de toda a atividade diária de gestão, designadamente proceder aos pagamentos a fornecedores, determinar ou autorizar a realização de pagamento a fornecedores, dar ordens e instruções para serem feitos pagamentos e recebimentos/cobranças de/a clientes, assinar documentos de vinculação da sociedade, proceder a contratações, proceder à venda e aquisição de mercadorias, bens e serviços, gerir as contas bancárias e dar instruções relativamente à execução da documentação comercial e fiscal.

4) Por Ordem de Serviço n.º ..., foi realizada ação inspetiva tributária à arguida A..., UNIPESSOAL, LDA., a qual respeitou aos exercícios económicos de 2012, 2013 e 2014 e que decorreu entre 05.11.2015 e 28.04.2016.

5) Na sequência daquela Ordem de Serviço foram emanadas as Ordens de Serviço n.ºs ... e ..., nas quais se determinou ação inspetiva tributária à arguida A..., UNIPESSOAL, LDA., respeitante aos mesmos exercícios económicos de 2012, 2013 e 2014, as quais decorreram entre 16.12.2015 e 28.04.2016.

6) O que veio a verificar-se porquanto tinha a Autoridade Tributária tido informação de um significativo decréscimo do volume de negócios declarado pela sociedade arguida desde 2011.

7) Por outro lado, motivou também tal atividade inspetiva a constatada desconformidade da base tributável declarada em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado, o qual se apresentava sistemática e significativamente superior ao volume de negócios.

8) No âmbito das indicadas ações inspetivas tributárias foram detetadas desconformidades entre os valores efetivamente tributáveis em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) e em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), este quanto a retenção na fonte, por parte dos arguidos, os quais conduziram a retificações às liquidações de lucros tributários.

Assim, a título de IRC:

9) Em sede de IRC, a sociedade arguida tinha, à data dos factos, enquadramento como sujeito passivo que exerce, a título principal, atividade de natureza comercial industrial ou agrícola, sujeita, como tal, para efeitos da determinação da matéria coletável, às regras constantes do artigo 15.º, n.º 1, al. a) e artigos 17.º e ss. do CIRC.

10)No que respeita ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), a sociedade arguida encontrava-se desde a sua constituição, mantendo à data dos factos, sujeita ao Regime Normal de periodicidade mensal.

11)Durante os exercícios económicos de 2012, 2013 e 2014, a sociedade arguida, através do arguido AA, procedeu à emissão de diversos recibos para apresentação aos seus clientes aquando dos pagamentos.

12)Sendo que os pagamentos em causa eram efetuados na sua quase totalidade através de cheques sacados sobre a conta bancária dos clientes e, em detrimento de serem depositados na conta bancária da arguida sociedade comercial eram apresentados a pagamento na conta bancária do arguido com o número ... sediada no Banco 1..., S.A.

13)Após o que, o arguido AA procedia à mobilização de parte dos valores recebidos dos clientes para a conta da arguida sociedade comercial, o que efetuava através de cheques sacados sobre a indicada conta pessoal daquele, apresentando-os a pagamento junto da conta da arguida A..., Unipessoal, Ld.ª.

14)Assim é que ao valor integralmente depositado, o arguido subtraía uma determinada verba, que não depositava na conta da sociedade, e que fez verter documentalmente na elaboração de novas faturas-recibos que entregou à contabilidade e que serviam de base para a entrega das declarações obrigatórias e, bem assim, para as demonstrações financeiras e apresentação de contas.

15)Concretamente, o arguido emitiu os seguintes documentos – recibos de quitação – que utilizou como documentos contabilísticos e através dos quais foram elaboradas e prestadas as informações financeiras contabilísticas:

(…)

16)No ano de 2013:

(…)

17)No ano de 2014:

(…)

18)Sucede que de tais elementos é possível verificar que os arguidos registaram como “descontos financeiros”, no total, o valor de 444.755,27Eur no ano de 2012, o valor de 452.647,32Eur no ano de 2013 e o valor de 353.296,25Eur no ano de 2014.

19)Todavia, tais descontos não se verificaram, de facto, nunca dos mesmos tendo beneficiado os clientes da aqui arguida A..., Unipessoal, Ld.ª.

20)Assim é que os arguidos registaram contabilisticamente tais valores em sede de “descontos e abatimentos em vendas”, na respetiva conta ... quando, a terem existido – mas que não existiram – deveriam ter sido registados como “descontos de pronto pagamento” na respetiva conta SNC ...82.

21)Tais descontos financeiros indevidamente registados ascenderam, em cada um dos indicados exercícios económicos, às quantias seguintes:

22)Sendo que a contabilidade dos arguidos compreendia valores distintos daqueles que constavam da escrita dos referidos clientes, os quais lançaram os movimentos dos pagamentos na sua totalidade, ou seja, sem qualquer desconto (porque este não tinha correspondência real).

23) Acresce, ainda, que a sociedade arguida imputou nas suas declarações demonstrativas de resultados dos anos de 2012, 2013 e 2014, na rubrica de gastos, as depreciações referentes ao veículo automóvel com a matrícula ..-IL-.., adquirido em 2009 ao abrigo de um contrato de locação financeira celebrado com o Banco 1..., S.A., pelo valor de 46.000,00Eur.

24)Tais depreciações foram calculadas à taxa de 12,5%.

25)Porém, em detrimento de haver a sociedade arguida declarado o montante de depreciação não dedutível em 2.009,02Eur como se impunha, declarou, em cada um dos exercícios 2012, 2013 e 2014, apenas o montante de 750,00Eur.

26)Ficando, pois, por declarar o montante, em cada um dos exercícios económicos de 2012, 2013 e 2014, de 1.259,02Eur.

27)Valores esses indicados em 26) que também deviam ter sido sujeitos a tributação em sede de IRC, mas que, em face de tal omissão nas declarações de rendimentos modelo 22, o não foram, não pagando a sociedade arguida o correspondente tributo aos cofres do Estado.

28)Com o que, importou, pois, proceder à retificação da matéria coletável em cada um dos indicados exercícios económicos nos seguintes montantes:

29)As quantias indicadas em 28) deveriam ter constado das declarações de rendimentos modelo 22 de IRC dos anos de 2012, 2013 e 2014, entregues, respetivamente em 21.05.2013, 29.05.2014 e 26.05.2015.

30)Importando tais retificações o apuramento das seguintes quantias devidas aos cofres públicos de acordo com a tributação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas para aqueles exercícios económicos:

31)Tendo sido, pois, esse o montante indevidamente apropriado pelos arguidos através da sua não entrega aos cofres do Estado.

32)O arguido AA agiu, por si e em representação da respetiva sociedade comercial aqui sociedade arguida, da qual era sócio único e gerente, no interesse da mesma, com a pretensão de, assim, conseguir para si e para a sociedade em causa vantagens patrimoniais em prejuízo dos cofres do Estado, conhecendo os arguidos a forma como se desenvolvia a incidência fiscal.

33)Visou, pois, o arguido falsear a transparência e verdade contabilística com a intenção de obter benefícios fiscais não pagando os impostos respetivos e, assim, produzir um resultado lesivo sobre o património fiscal.

34)Sabiam os arguidos, ademais, que usavam de documentos forjados, designadamente os recibos com aposição de descontos que inexistiram e que não tinham correspondência fáctica real e que eram, assim, manipulados ao consagrarem operações contabilísticas que não existiam.

35)Dessa forma sabiam os arguidos que se apresentassem na contabilidade da empresa tais informações, reduziriam aos lucros tributáveis e, dessa forma, procediam ao pagamento de menos impostos, induzindo em erro a Administração Fiscal e desse modo, à custa do Estado e da comunidade contribuinte, acediam a vantagens patrimoniais indevidas através da dedução indevida de custos.

36)Mais sabiam os arguidos que ao fazerem o registo dos descontos (inexistentes) da forma como fizeram, diminuíam a base tributável, o que queriam com o propósito de enganar a Autoridade Tributária e pagarem menos tributo.

37)Assim como sabia o arguido AA que, sendo o único sócio da sociedade arguida, todos os proveitos desta que entrassem na esfera daquele teriam de ser considerados lucros por não corresponderem a qualquer pagamento de custos por este suportados.

38)Ademais, sabiam os arguidos que os documentos em que basearam aquelas operações contabilísticas inexistentes, porque por meio de fatura, gozavam de uma força probatória de especial importância no quadro legal relativo a factos e valores relevantes para efeitos tributários.

39)Agiram, pois, os arguidos de forma livre, consciente, voluntária e deliberada, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, bem sabendo também que a sociedade comercial A..., Unipessoal, Ld.ª seria responsável criminalmente por tais atos.

40)Na pendência dos autos, os arguidos vieram a proceder ao pagamento das quantias devidas a título de IRC referentes ao período de 2012, acrescidas de juros moratórios, compensatórios e custas.

41)Assim como procederam ao pagamento do imposto devido a título de IRC de 2013, mantendo-se em dívida apenas o valor de 16.070,14€, referente a juros moratórios, compensatórios e custas, que se encontra a ser cobrado no âmbito do acordo de pagamento em prestações no âmbito do processo executivo com o número ....

42)E procederam ao pagamento de parte do imposto devido a título de IRC de 2014, mantendo-se em dívida o valor de 24.073,90€, acrescido do demais referente a juros moratórios, compensatórios e custas, que se encontra a ser cobrado no âmbito do acordo de pagamento em prestações no âmbito do processo executivo com o número ....

43)Os arguidos em face das correções efetuadas pela Autoridade Tributária apresentaram reclamação graciosa em 05.08.2016, tendo como objeto a impugnação das liquidações a título de IRS, a qual foi considerada totalmente improcedente por despacho de 02.03.2017.

44)Em 06.04.2017 os arguidos intentaram ação administrativa de anulação de ato tributário, a qual correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto sob o processo número 1332/17.4BEPRT, que veio por sentença de 20.09.2019 e transitada em julgado em 27.09.2019, a ser julgada totalmente improcedente, por não provada, mantendo-se a liquidação retificativa efetuada pela Autoridade Tributária

45)Durante os anos de 2012 a 2014, o arguido efetuou uma prospeção de mercado em Angola e tentou introduzir o seu negócio neste mercado, tentativa que se reveliu gorada.

46)Para o efeito, efetuou várias deslocações a esse país e nele efetuou gastos de montante não concretamente apurado.

47)Pelo menos parte dos montantes que ficaram na sua conta bancária pessoal, emergente dos pagamentos dos clientes da sociedade arguida, e que não foram enquanto tal declarados, servira, para prover a tais gastos.

Mais se apurou, quanto ao arguido AA, que:

48)Trabalha como comercial da sociedade B..., auferindo de vencimento a quantia mensal líquido de €1.200,00.

49)Vive com mulher e filho, com 21 anos de idade e estudante do ensino superior

50)Vivem em casa própria, pagando de prestação relativa ao crédito à habitação a quantia mensal de €322,00.

51)A mulher trabalha como administrativa, auferindo cerca de €1300,00 de vencimento líquido mensal.

52)É licenciado.

53)É tido pelos amigos como pessoa empreendedora, honesta e dedicada à família e ao trabalho.

54)Não tem antecedentes criminais.

Ficou também provado quanto à sociedade arguida que:

55)Não tem atividade comercial.

56)É proprietária dos seguintes imóveis (arrestados preventivamente nestes autos):

a. o prédio urbano correspondente a fracção autónoma designada pela letra «K», com o artigo matricial ...... da freguesia ... (... e ...), com o valor patrimonial de 34.785,45 Eur;

b. o prédio urbano correspondente a fracção autónoma designada pela letra «L», com o artigo matricial ...-L da freguesia ... (... e ...), com o valor patrimonial de 28.885,63Eur; e,

c. o prédio urbano correspondente a fracção autónoma designada pela letra «M», com o artigo matricial ...... da freguesia ... (... e ...), com  valor patrimonial de 27.842,68Eur.

57)Não tem antecedentes criminais.

III.2.Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa, não se apuraram quaisquer outros factos, tendo resultado os seguintes factos não provados:

a) Em face do que o arguido integrou na sua esfera pessoal, como sócio gerente, os seguintes montantes respeitantes às vendas e respetivos recebimentos:

a) Sendo que de tais montantes percebidos na conta pessoal do arguido AA, todos respeitantes aos indicados pagamentos dos clientes, aquele apenas fez integrar parte dos mesmos na sociedade A..., Unipessoal, Ld.ª, aqui arguida, resultando o seguinte diferencial:

b)Tais quantias que foram recebidas pelo arguido AA e deviam ter sido depositadas na conta bancária da sociedade arguida, não pertenciam àquele mas sim à sociedade em questão.

c) Tais verbas retidas/apropriadas pelo arguido AA não respeitavam a quaisquer pagamentos, por parte da sociedade arguida, de uma qualquer despesa suportada por aquele, nem respeitavam sequer a restituições de suprimentos prestados.

d) Eram, pois, adiantamentos por conta de lucros e, como tal, sujeitos a tributação através da retenção na fonte, a título definitivo, pela arguida A..., Unipessoal, Ld.ª, ou seja, pela entidade pagadora de tais lucros.

e) Tais quantias referidas em 35.) supra eram tributadas de acordo com as seguintes taxas liberatórias, sendo devido tal tributo no momento do pagamento ou colocação à disposição dos lucros distribuídos e devendo ser entregue aos cofres estaduais até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que é devido:

f) Não obstante tal facto, a sociedade arguida não efetuou a devida retenção na fonte do imposto que, de acordo com as ditas taxas liberatórias, se impunha.

g) Assim, a sociedade A..., Unipessoal, Ld.ª, ora arguida, omitiu a declaração de tais rendimentos e, com isso, não procedeu ao seu pagamento aos cofres públicos, dos respetivos tributos, os quais ascendem aos seguintes montantes:

h) Montantes esses referentes às seguintes verbas:

i) Encontrando-se, pois, tal entidade arguida em falta quanto ao pagamento dessas quantias devidas aos cofres do Estado, pelo menos, desde os dias 20.01.2013, 20.01.2014 e 20.01.2015, respetivamente por referência ao último dia de cada um dos exercícios económicos de 2012, 2013 e 2014.

j) Todavia, penalmente relevante encontram-se por liquidar e entregar aos cofres do Estado as seguintes verbas a título de retenção na fonte de IRS por lucros distribuídos ao sócio gerente aqui arguido AA, nos períodos e montantes seguintes:

III.3.Motivação

Na formação da sua convicção o Tribunal analisou de forma livre crítica e conjugada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento de acordo com o preceituado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Antes de mais, importa referir que o arguido AA esteve presente, por si e em representação da sociedade arguida, durante a audiência de discussão e julgamento [tendo apenas faltado à sessão de 05/01/2023, tendo estado impedido por doença].

Assim, valorámos as declarações que prestou durante o julgamento. Mas também, à luz do mesmo princípio da livre apreciação da prova, as declarações que prestou ao juiz de instrução criminal, durante a fase instrutória, com respeito pelo disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b), e 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, e que foram reproduzidas durante a audiência de discussão e julgamento, em obediência ao acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 5/2023 (entretanto publicado no DR 1.ª Série, n.º 111, página 11 e seguintes, de 09/06/2023) – cf. auto de declarações de 22/02/2022.

Nas suas declarações, o arguido afirmou ter sido, desde a fundação da sociedade arguida até à presente data, o único sócio e gerente, de direito e de facto, da mesma, tendo também confirmado os elementos comerciais e fiscais identificativos e regimes tributários da sociedade arguida (cf. factos provados 1) a 3)).

Admitiu também que esta sociedade foi alvo de ações inspetivas levadas a cabo pela AT, nas quais referiu ter colaborado, e que, no que diz respeito ao IRC referente aos períodos tributários de 2012, 2013 e 2014, aceitou as retificações que dali resultaram às liquidações de lucros tributários, na sequência do que pagou a quase integralidade dos tributos.

Confessou os factos objetivos que teriam estado na génese das desconformidades detetadas pela AT no que ao IRC de 2012, 2013 e 2014 diz respeito, designadamente a circunstância de, nas declarações de IRC dos referidos anos, não ter declarado o recebimento de todas as quantias que os clientes da sociedade arguida lhe pagou pelos serviços prestados. Admitiu ainda o método utilizado para o efeito, designadamente o facto de os pagamentos dos clientes terem sido integralmente depositados numa conta bancária pessoal, apenas tendo feito entrar uma parte dos mesmos no património da sociedade arguida, já que, relativamente a tais serviços, elaborou recibos nos quais falseou que haviam concedido ao respetivo cliente um desconto financeiro, facto que não havia acontecido. O valor do desconto financeiro correspondia ao valor que o arguido manteve na sua conta bancária, e que não declarou nas declarações de IRC dos anos a que diziam respeito.

Admitiu ter assim atuado relativamente aos recibos mencionados nos pontos 15), 16) e 17).

Mais admitiu ter percebido que ao atuar dessa forma, nesses anos, o rendimento tributável da sociedade arguida declarado era inferior ao real e que, com isso, a mesma pagava menos IRC. Explicou depois que os montantes que manteve na sua conta bancária corresponderam a empréstimos que a sociedade lhe fez (e não quaisquer adiantamentos por conta de lucros), com vista a fazer novos investimentos, designadamente na introdução do seu negócio no mercado angolano, para o que necessitava de liquidez e numerário, atendendo às características desse país. Para tanto, tais empréstimos foram formalizados através dos contratos que foram juntos aos autos.

Por fim, explicou que todas estas operações, incluindo os descontos e os mútuos lhe foram sugeridos pela contabilidade da sociedade arguida, com o objetivo de ter a liquidez e o dinheiro que necessitava para investir no mercado angolano, por não lhe ter sido concedido pela banca o financiamento de que necessitava para esse efeito, sendo seu objetivo devolver as quantias mutuadas à sociedade arguida, altura em que restituiria tais quantias ao Estado. Assim, afirmou não ser sua intenção lesar o Estado, desconhecendo a ilicitude da sua conduta.

Ora, as declarações confessórias do arguido, no que concerne: à identificação comercial e aos regimes de tributação fiscal da sociedade arguida; ao exercício da gerência de facto da sociedade arguida; às inspeções tributárias de que foi alvo relativamente aos anos de 2012, 2013 e 2014, e retificações efetuadas; assim como à factualidade relativa à omissão nas declarações de IRC de 2012, 2013 e 2014, de parcelas de quantias pagas pelos clientes à sociedade arguida, tendo-as retido na sua conta bancária pessoal, através da falsificação dos recibos emitidos pela sociedade arguida, aplicando um desconto financeiro a esses seus clientes, desconto esse que não correspondia à verdade, e integrando tais recibos na contabilidade da sociedade, assim diminuindo o rendimento tributável da mesma, e consequentemente, o valor do imposto a pagar, foram corroboradas pela prova documental e pela prova testemunhal analisada em audiência de julgamento.

No que concerne à prova documental, consideramos:

- certidão permanente do registo comercial de fls. 5/8;

- auto de notícia, de fls. 30/31;

- informação da AT e anexos (aqui se incluindo, listagens dos recibos emitidos pela sociedade arguida, nos anos de 2012, 2013, 2014, mencionando a existência de um desconto financeiro; listagem dos clientes beneficiários de tais recibos; listagem dos depósitos na conta de depósitos à ordem da sociedade provenientes da conta do arguido; recibos originais, recibos mencionando desconto financeiro, e comprovativo do pagamento pelo preço do recibo original (remetidos pelos clientes – cf. circularização); extratos da conta pessoal do arguido; listagem do cruzamento dos recibos emitidos com desconto com o depósito dos cheques na conta bancária do arguido), de fls. 32/180;

- relatório de inspeção tributária e anexos, de fls. 209/265;

- declarações de IRC de 2012, 2013 e 2014, e respetivas retificações, constantes de fls. 375/434;

- parecer de fls. 435/446.

No que diz respeito à prova testemunhal, consideramos:

- o depoimento seguro, lógico, isento e esclarecedor da inspetora tributária BB. Levou a cabo as inspeções tributárias em causa à sociedade arguida, tendo descrito de modo muito contextualizado e concretizado, os factos que logrou apurar, designadamente quanto ao apuramento do lucro tributável da sociedade, no que se refere aos anos de 2012, 2013 e 2014, divergindo daquele que foi por esta declarado, tendo constatado que a divergência se devia aos valores contabilizados pela empresa como descontos (incidindo negativamente sobre o lucro) e que não existiram efetivamente (o que constatou quando em contacto com as faturas e recibos originais e com documentos comprovativos de tais pagamentos enviados pelos clientes). De modo igualmente isento explicou a divergência existente no que concerne ao cálculo das depreciações referentes ao veículo automóvel com a matrícula ..-IL-.., adquirido em 2009, ao abrigo de um contrato de locação financeira celebrado com o Banco 1..., S.A., pelo valor de €46.000,00, realçando que esse erro se devia ao facto de o preço do veículo ultrapassar os €25.000,00. Explicou depois qual a incidência dos falsos descontos e do erro no valor das depreciações relativas ao veículo no cálculo do lucro tributável, e consequentemente, no montante do ORC a pagar em cada um desses anos;

- o depoimento da testemunha CC, TOC da sociedade arguida desde 2005. Assumiu a consideração dos recibos-desconto na contabilidade da sociedade e nas declarações modelo 22 de IRC dos anos de 2013, 2014 e 2015, assim como o erro no cálculo do valor das depreciações do veículo automóvel.

Foi, por isso, com base nas declarações prestadas pelo arguido AA que demos como provada a factualidade constante dos pontos 1) a 31), a qual para além de não ter sido infirmada pela demais prova produzida, foi aliás corroborada pelos elementos documentos acima referidos e pelos depoimentos das testemunhas BB e CC.

A factualidade dada como provada nos pontos 32) a 39) – dolo e consciência da ilicitude por parte do arguido – resulta da análise dos factos objetivos retirados dos elementos probatórios acima referidos, à luz do princípio da livre apreciação da prova, e bem assim das declarações prestadas pelo próprio arguido, perante o juiz de instrução.

Comecemos por este último elemento. Apesar da posição revelada durante o julgamento, defendendo não ter tido qualquer intenção de lesar o Estado e desconhecer que os factos que praticava eram ilícitos, perante o Mm.º Juiz de Instrução, o arguido admitiu ter tido noção de que nestas operações “poderia haver uma situação mais dúbia”.

Digamos que a posição que assumiu na fase instrutória é bem mais razoável do que aquela que veio agora defender em julgamento.

Vejamos.

O arguido é o único sócio e gerente da sociedade arguida, desde a constituição desta em 2002. Ainda que de pequena dimensão (por ser uma unipessoal e ter tido um só trabalhador), das IES juntas pela sociedade arguida resulta que a mesma tinha um considerável volume de negócios, que apesar da conhecida rentabilidade da área de negócio em que se move, não podia deixar de resultar também da capacidade empreendedora do arguido, que fora sempre o seu líder. É licenciado pela Escola Superior ..., E, como percebemos das declarações prestadas durante o julgamento e do que a imediação nos permitiu, tem capacidade intelectual muito acima daquela que consideramos como a mínima do padrão do cidadão médio.

Conjugando essas caraterísticas com o comportamento objetivo do arguido, não  podemos deixar de concluir que o mesmo atuou com consciência e vontade de praticar tais atos, bem sabendo que com os mesmos prejudicava o Estado e praticava factos ilícitos.

Pese embora tivesse serviços de contabilidade, enquanto sócio e gerente único, o arguido tem necessariamente que ter tido um papel decisório nos descontos fictícios que fez constar dos recibos falsos que emitiu a favor dos seus clientes, e tal falsidade, que constou novamente da contabilidade da sociedade e das declarações de IRC em causa, não poderiam ter tido outro decisor que não o arguido. Se o arguido teve ou não quem lhe sugerisse esta atuação, como referiu, embora o admitamos como possível (contrariando o depoimento prestado pelo TOC da sociedade, CC), afigura-se-nos irrelevante para

apurar do conhecimento e da vontade que teve em atuar desse modo.

O que o arguido fez - declarar à Administração Tributária, através das declarações modelo 22 de IRC de 2012, 2013 e 2014, valores de descontos financeiros inexistentes, reduzindo com base nessa falsidade o valor do lucro tributário e, consequentemente o valor do IRC a pagar -, é reconhecido pela generalidade dos cidadãos nacionais com capacidade intelectual mínima, senão como crime, como uma ilegalidade. Se a isto juntarmos o facto (que ocorreu) de ter falsificar recibos (que integrou na contabilidade e que titulavam os declarados descontos), deles fazendo constar um desconto financeiro aos respetivos clientes, absolutamente inexistente, já que os clientes não o tiveram, tendo pago o valor do recibo original por inteiro, a evidência dessa ilegalidade é de tal modo grosseira, que mal se compreende que o arguido tenha querido convencer o Tribunal desta sua tese.

O que referiu em julgamento quanto ao TOC da sociedade lhe ter garantido que esta operação não correspondia a um ilícito não colhe, não só por tal ter sido expressamente rejeitado por aquele contabilista, CC, mas essencialmente porque a ilegalidade é de tal modo evidente que não poderia deixar de a saber, e porque, em sede de instrução, já havia admitido tudo isto poder representar uma situação dúbia.

Igualmente irrelevante se nos afigura a circunstância de o arguido ter sempre colaborado com a AT e/ou de ter declarado todos os rendimentos (sem declarar os descontos) para efeitos de IVA.

Nem todos os arguidos que cometem crimes têm comportamentos omissivos ou dificultosos. Corresponde, umas vezes, ao exercício de uma obrigação moral que se autoimpõem. E outras, ao reconhecimento de que essa atuação o pode vir a beneficiar numa futura apreciação dos factos.

O mesmo se diga relativamente à circunstância de o arguido ter declarado os valores reais em sede de IVA. Trata-se de um imposto indireto e com períodos declarativos mensais (contrariamente ao IRC, que é anual, fazendo-se a declaração no ano seguinte ao do período tributário). Além disso, nele se permite a dedução dos valores pagos pela sociedade do mesmo imposto. Quer isto dizer que o momento em que o arguido decidiu declarar tais descontos em sede de IRC, há muito tinha decorrido o prazo para declaração do respetivo IVA, desconhecendo-se aliás se nesses períodos chegou efetivamente a pagar IVA, ou se apresentou crédito do mesmo imposto.

A factualidade dada como provada nos pontos 40) a 42) decorre da valoração da informação prestada pela AT em 05/01/2023 (e que já reproduzia a informação prestada durante a fase de instrução).

Os factos dados como provados nos pontos 43) e 44) resultam da valoração do teor da reclamação graciosa de fls. 362/366 e da sentença do TAF do Porto de fls. 671/700.

No que concerne à factualidade dada como provada nos pontos 45) a 47), a nossa convicção resulta da valoração conjugada do teor dos documentos juntos aos autos (cf. fls. 334/354), com as declarações prestadas pelo arguido AA, e com os depoimentos objetivos, isentos e credíveis das testemunhas DD,

EE e FF. São todos amigos do arguido. Todos referiram saber que o arguido viajou várias vezes para Angola, com o objetivo de internacionalizar o seu negócio para esse país. A primeira testemunha, por ter morado largos anos em Angola, tendo estado com o arguido nalgumas dessas viagens, atestou o interesse que o mesmo tinha de implementar o seu negócio nesse território, e as tentativas de contacto de efetuou ara o efeito. Mais descreveu, embora de modo mais abstrato, os tramites negociais seguidos habitualmente nesse território, então, designadamente no que concerne aos gastos que necessitava de efetuar e à volatilidade das declarações pré-negociais, assim      como     a mudança sentida nesse país, designadamente quanto à escassez de divisas no mercado. A par das restantes referidas testemunhas, atestou também pelo caráter do arguido.

A factualidade relativa às condições pessoais do arguido e as condições económicas da sociedade arguida foram descritas na audiência por aquele. Estas declarações afiguraram-se-nos objetivas, claras e consistentes, não tendo sido infirmadas pela demais prova produzida.

A ausência de antecedentes criminais dos arguidos resulta dos CRC atualizados e juntos aos autos.

A factualidade não provada, toda ela respeitante à falta de declaração dos valores respeitantes à retenção na fonte das quantias que o arguido manteve na sua conta bancária, emergentes dos pagamentos de clientes, e não declaradas para efeitos de IRC, a nossa convicção resulta da ausência de prova produzida em seu sentido.

Na realidade essas quantias deveriam ter sido declaradas em sede de IRC e pertencem à sociedade arguida, apesar de erradamente constarem da conta bancária pessoal do arguido.

A Autoridade Tributária entendeu que tais quantias deveriam ser tributadas em sede de IRC, presumindo que as mesmas foram adiantadas ao arguido, único sócio e gerente da sociedade arguida, a título de lucros. Fê-lo até por decisão judicialmente confirmada, com trânsito em julgado.

No entanto, como bem se escreveu na informação de fls. 715/719 (prova expressamente referida no despacho de acusação, sem que dela se tenha retirado qualquer tipo de conclusão), “os montantes depositados na conta bancária do sócio, valores que se destinavam à empresa para pagamento dos bens vendidos aos seus clientes, e que foram considerados como adiantamentos por conta de lucros, teve como fundamento o factos de a IT ter lançado mão da presunção relativa a rendimentos de Categoria E – rendimentos de capitais, prevista no n.º 4 do art.º 6.º do Código do IRS, pois não logrou provar que tais recebimentos pelo sócio AA, não tinham a natureza de mútuo, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais. (…) Ora, tratando-se de uma presunção, esta decisão, expressa uma dúvida razoável sobre a verdadeira natureza da operação em causa, uma vez que não existem elementos que justifiquem tais movimentos. Apesar de estarmos perante uma omissão de retenção de IRS na fonte, de valor superior a 15.000,00€, referente aos períodos referidos supra, os factos em apreço não serão subsumíveis na previsão legal do crime de fraude fiscal p. e p. pelo art. 103.º nº 1al. b) do RGIT, por entendermos que subsiste uma dúvida razoável sobre a verdadeira natureza da operação em causa. Em nosso entender, estamos perante uma situação de “não prova” ou, no máximo, perante uma dúvida razoável. (…) É, pois, forçoso concluir que os elementos que sustentam a tributação sobre a qual o TAF se pronunciou – retenções na fonte de IRS, à taxa liberatória, sobre rendimentos considerados como adiantamentos por conta dos lucros – são manifestamente insuficientes para que os autos possam prosseguir, nesta parte.”.

Ora, no caso, não só não foi feita qualquer prova da existência dos referidos adiantamentos de lucros, como se mostram juntos aos autos os contratos de mútuo titulando tais quantias (cf. 980/1047), mútuos esses que foram descritos pelo arguido, nesta sede e em sede instrutória, o que foi confirmado pelo depoimento prestado pelo TOC da sociedade arguida, CC.

Apreciação

É entendimento uniforme da jurisprudência dos tribunais superiores que o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios da sentença previstos no art.410.º, n.º2, do C.P.Penal.

Atentas as conclusões apresentadas, as questões trazidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:

- condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão,

- responsabilidade subsidiária do arguido no pagamento da dívida relativa a IRC, assistindo-lhe o benefício da excussão prévia do devedor principal

1ªquestão: o recorrente não questiona a pena de 1 ano e 8 meses de prisão e que seja suspensa na sua execução, mas insurge-se por ter sido subordinada ao pagamento da quantia global de € 59187,89, correspondente às prestações tributárias e acréscimos legais devidos, devendo tal montante ser reduzido para um valor compatível com a sua situação económica.

Invoca para tanto que a aplicação do nº 1 do art.14.º do R.G.I.T. não derroga o n.º 2 do art. 51.º do C. Penal (ou seja, o pagamento da quantia em causa deve ser razoavelmente exigível em face da situação económica do condenado), constituindo apenas uma especialidade em relação ao regime facultativo previsto no nº1 deste último preceito ao impor que a suspensão seja sempre sujeita ao pagamento de quantias indevidamente obtidas.  Porém, a fixação do montante concreto terá de cumprir o princípio geral da humanidade das penas e da proporcionalidade, não podendo o regime de suspensão ser sujeito a uma condição irrealizável (conclusões II e III).

O art.14.º do RGIT (Suspensão da execução da pena de prisão) preceitua no seu n.º1 que “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento da quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.

Nos casos abrangidos pelo art. 14.º n.º1 do RGIT, como o presente, esta norma impõe a sujeição da suspensão de execução da pena de prisão relativa a crimes tributários ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, bem como dos montantes indevidamente obtidos, independentemente da situação económica do condenado ou do juízo de razoabilidade a que alude o artigo 51.º do C.Penal. Como bem salienta o Ac.R.Porto de 30/4/2018[1], “sendo o art. 14.º n.º 1, uma incriminação de natureza especial, afasta neste particular - “sujeição a deveres” -, o plasmado no ordenamento penal geral, i. e, a norma substantiva traduzida pelo art. 51.º n.º 1. E, porque assim é, em sede de ilícitos fiscais esta aplicação automática da sujeição da pena de prisão cuja execução é suspensa, ao pagamento do valor global em dívida, ainda que fora do condicionalismo gizado pelo mencionado art. 51.º n.ºs 1 al. a) e 2, não contende com os princípios da necessidade das sanções penais, igualdade e proporcionalidade, pelo que não é inconstitucional o dispositivo do art. 14.º, n.º 1, quando interpretado desse modo.”[2]

O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado pela não inconstitucionalidade do art.14.º do RGIT, enquanto condiciona obrigatoriamente a suspensão da execução da pena ao pagamento das quantias em dívida, salientando, em apoio desta posição, o facto de ser sempre possível a alteração para melhor da situação económica do condenado e, sobretudo, o facto de a possível revogação da suspensão da pena pelo não pagamento nunca ser automática, mas depender sempre de uma avaliação judicial da culpa do condenado, não podendo um incumprimento não culposo ser fundamento de revogação dessa suspensão  – v., entre outros, Acórdão n.º256/03, 29/07, 61/07, 556/09, 587/09, 237/11 e 51/20, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.

No caso em apreço, se é certo que, face à atual situação económica do arguido recorrente, se afigura muito difícil o pagamento da quantia global de €59.187,89 por ele devida, as consequências de uma eventual falta de pagamento sobre a suspensão da execução da pena dependem de um juízo futuro a respeito do caráter culposo, ou não, dessa falta de pagamento.

De salientar que a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º8/2012, publicado no Diário da República nº 206, Iª série, de 24/10/2012, no sentido de que «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105º, nº 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º, nº 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14º, nº 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado de prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade por omissão de pronuncia.» diretamente aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.105º, nº 1, do R.G.I.T. - crime punível com pena de prisão  ou pena de multa -, poderá ser aplicável a outros crimes tributários também puníveis com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa.

Porém, não é aplicável no caso vertente, uma vez que a necessidade do juízo de prognose a que se refere o AFJ só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução nos termos do artigo 14º, nº 1, do RGIT) ou outra pena não privativa da liberdade.

Seguimos neste aspeto muito de perto o Ac.R.Porto de 20/2/2013[3], por concordarmos inteiramente com o raciocínio no mesmo explanado. “O que resulta do acórdão [referindo-se ao AFJ n.º8/2012] é, antes, que, a prévia opção por pena de prisão suspensa na sua execução (com o que isso implica de obrigatória sujeição dessa suspensão ao pagamento das quantias devidas, nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) em face da opção por outra pena (deve subentender-se, pena não privativa da liberdade), designadamente a pena de multa, está dependente de um juízo de prognose sobre a capacidade de o condenado pagar tais quantias, tendo em conta a sua situação económica presente e futura. Esta jurisprudência, diretamente aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do R.G.I.T. – crime punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa –, poderá ser aplicável a outros crimes tributários também puníveis com pena de prisão (também eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa. No caso em apreço, em que está em causa um crime de fraude fiscal tributária, punível apenas com pena de prisão, não se coloca a possibilidade de opção entre pena de prisão suspensa na sua execução e pena de multa”.

Pelas razões expostas, soçobra este fundamento do recurso.

2ªquestão: alega o recorrente  que é responsável subsidiário pelas dívidas da sociedade  arguida, pelo que nessa qualidade, face ao disposto no n.º2 do art.23.º da LGT e do n.º 2 do art.153.º do CPPT, o arguido só é chamado ao pagamento em substituição da devedora principal quando se verifique a efetiva insuficiência de bens para o pagamento da dívida. Ora, in casu, tal não sucede porquanto o valor dos bens arrestados preventivamente nos autos - três frações autónomas com o valor patrimonial global de € 91.513,76 -, pertencentes à sociedade arguida, é, no mínimo, suficiente para o pagamento das quantias em falta referentes a IRC.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, não assiste razão ao recorrente.

Vejamos.

Dispõe o art.24.º da LGT, sob a epígrafe Responsabilidade dos membros de corpos sociais e responsáveis técnicos:

“1 - Os administradores, diretores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.

2 – (…)

3 – (…)”

A responsabilidade subsidiária dos administradores dos entes coletivos pela dívida do imposto tem como fundamento o não pagamento da dívida por parte do devedor originário – o ente coletivo – devido a culpa do administrador, independentemente da sua participação na prática do crime. Por isso, a sua responsabilidade é subsidiária.

Já a responsabilidade do administrador/gerente no crime de abuso de confiança fiscal ou crime de fraude fiscal, como ocorre in casu, praticado em comparticipação com o sujeito passivo do imposto – o ente coletivo – tem como fundamento o prejuízo que causou à administração tributária com o seu ato, nos termos da lei civil.

Por isso, nas palavras de Germano Marques da Silva[4] “Pelos danos causados pelos crimes tributários respondem os agentes do crime e respondem não nos termos da Lei Geral Tributária, mas nos termos da lei civil.

Assim, o administrador da empresa que seja também agente do crime, não responderá subsidiariamente, mas solidariamente, como solidariamente respondem todos os demais agentes (…) A dívida tributária mantém-se a cargo do sujeito passivo, mas relativamente ao terceiro comparticipante é aplicável o regime comum do art.129.º do Código Penal: o comparticipante responde para com a administração tributária pelo prejuízo que lhe cause com o seu acto, nos termos da lei civil”.[5]

Na mesma linha de entendimento, refere o citado Ac.R.Porto de 20/2/2013 a propósito de uma situação similar, “o arguido recorrente foi condenado a pagar a quantia correspondente aos benefícios indevidamente obtidos não na qualidade de sujeito passivo da relação jurídica de imposto (pois sujeito passivo dessa relação não é ele, mas a sociedade de que era sócio-gerente), mas como responsável pelo crime de fraude fiscal qualificada por ele praticado, de onde decorre também a responsabilidade civil pelos danos emergentes da prática desse crime.

E a sujeição da suspensão da pena de prisão em que o arguido foi condenado à condição do pagamento da quantia em causa decorre obrigatoriamente do citado artigo 14º, nº 1, do RGIT”.

Não colhe, assim, a pretensão do recorrente em pretender que a sua responsabilidade civil nos presentes autos seja meramente subsidiária por força da aplicação da LGT, quando é certo que a sua responsabilidade civil decorre dos prejuízos resultantes da prática do crime, prejuízos que coincidem quantitativamente com a prestação tributária em dívida, mas a sua causa é autónoma.

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando em 4 Uc a taxa de justiça.

(texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)

Porto, 21/2/2024
Maria Luísa Arantes
Nuno Pires Salpico [com a seguinte declaração: Muito embora vote a decisão, à semelhança do que já apreciei em outros acórdãos enquanto relator, continuo a entender que "in casu" seria ponderável a situação económica do arguido nos termos do art.51º nº2 do CP para conformar os termos da suspensão da pena, a isso não obstando o disposto no art.14º do RGIT".]
Donas Botto
___________________
[1] Proc. n.º7815/15.3T9PRT.P2, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo.
[2] Neste sentido, entre outros, v. Ac. R.Porto de 22/2/2023, proc. n.º 1/15.4IDPRT.P2, relatado pela Desembargadora Maria Joana Grácio, Ac.R.Porto de 20/2/2013, proc. n.º 131/08.9IDPRT.P1, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Patto, Ac.R.Coimbra de 19/5/2021, proc. n.º 30/19.9IDVIS-C1, relatado pela Desembargadora Ana Carolina Cardoso, Ac.R.Guimarães de 3/7/2017, proc.n.º 471/12.2IDBRG.G2, relatado pela Desembargadora Maria dos Prazeres Silva.
[3] proc. n.º 131/08.9IDPRT.P1, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Patto
[4] Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes, pag.456/457
[5] Neste sentido, Ac.R.Porto de 30/9/2009, proc. n.º 16/05.0IDBGC.P1, relatado pelo Desembargador Francisco Marcolino