Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4926/12.0TBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES
EXTINÇÃO POR DESNECESSIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP201411114926/12.0TBVFR.P1
Data do Acordão: 11/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Os sinais visíveis e permanentes que provam a existência da servidão constituída por destinação do pai de família e que relevam para aferir qual a utilização que o pai de família dava à água (artº 1549º CCiv), são, no caso de sucessão mortis causa, os sinais do tempo da abertura da sucessão do antecessor comum, e não os que venham a existir ao tempo da partilha, se divergirem dos primeiros.
II – A existência de um caminho público situado entre os prédios dominante e serviente, caminho por cujo subsolo passa um aqueduto de condução de águas, não obsta à constituição da servidão por destinação do pai de família, já que a precariedade do direito, em certos troços do exercício, se não opõe à permanência dos sinais, na medida em que estes sejam permanentes e a fim de que fique salvaguardada a boa fé no comércio jurídico.
III – A servidão constituída por destinação do pai de família não cabe no conceito de servidão legal do artº 1569º nº3 CCiv e, por isso, não pode ser julgada extinta por desnecessidade.
IV - Não se pode conceber o abuso de direito da parte (artº 334º CCiv), se tiver na sua base uma disposição da contraparte, violadora de uma norma jurídica (tu quoque).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec. 4926/12.0TBVFR.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Desembargadores Maria Eiró e João Proença Costa. Decisão de 1ª instância de 15/4/2014

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Súmula do Processo
Recurso de apelação interposto na acção com processo sumário nº4926/12.0TBVFR, da actual Instância Local de Stª Mª da Feira.
Autores – B… e mulher C….
Réus – D… e mulher E….

Pedido
Que os Réus sejam condenados:
a) Os AA. são proprietários do prédio identificado em 1º e 2º da P.I.;
b) a reconhecer que, para o prédio dos AA. identificado em 1º, lhes assiste o direito à água da mina, situada no prédio dos RR., para uso doméstico, rega e merugem, durante todo o ano, por servidão constituída por destinação do pai de família;
c) a reconhecer que, sobre o prédio dos RR e em benefício do prédio dos AA, se encontra constituída uma servidão de aqueduto e, subsidiariamente, uma servidão de passagem a pé, para limpeza, condução e acompanhamento de água, desde a nascente, até à estrema do prédio dos RR;
d) a reconhecer que assiste aos AA o direito de entrar no prédio dos RR para acesso à mina, a fim de fazer as obras que forem julgadas necessárias à conservação das infra-estruturas de captação e condução da água até ao lugar de consumo;
e) a demolirem as obras que fizeram com vista a tapar a boca da mina e todo o espaço, desde a boca da mina até à via pública, bem como a abrir no muro de vedação do prédio dos RR uma passagem, para os AA acederem à mina;
f) a repor a mina no estado que as mesma tinha à data em que foi obstruída, nela instalando o ancoradouro, o tubo de condução de água, canalizando-a para os canos subterrâneos que conduziam a água ao destino no prédio dos AA;
g) a indemnizarem os AA em € 3.600,00 e em € 100,00 mensais, , até que seja reposto o funcionamento da mina.
Pedido Reconvencional
Na hipótese de improcedência da impugnação e das excepções deduzidas, deve declarar-se a inexistência ou, subsidiariamente, a extinção das servidões de aqueduto e passagem, já que da respectiva existência não advém qualquer utilidade para o prédio dos AA – não transporta água de nascente, nem existe consumo humano da água ou uso para rega e merugem.

Tese dos Autores
Os AA. são donos de um prédio composto de casa e quintal e os RR são donos de outro prédio, com casa e pinhal, prédios que pertenceram aos pais dos AA. e à herança destes.
Nesse tempo, foi rasgada uma mina, com a boca voltada à casa hoje dos AA. e uma represa no chão da mina. Da represa, a água segue em tubo para a casa hoje dos AA., seja para rega e merugem, seja para gastos domésticos.
Em 2000, os RR proibiram os AA de entrar no prédio deles RR para procederem à limpeza da mina.
Desde 2004 que os RR taparam a boca da mina e cobriram com terra o rego por onde a água seguia para o tubo de condução de águas para a casa dos AA.
A ilicitude do comportamento dos RR causou aos AA o prejuízo computado no pedido.
Tese dos Réus
A captação de águas vai muito além dos limites do prédio dos RR, pelo que deveriam ter sido demandados outros proprietários para que a acção produzisse o respectivo efeito útil normal.
As obras invocadas são subterrâneas, pelo que não são visíveis.
Os antepossuidores dos RR. (irmã da Autora mulher) acordaram com os AA., no momento da partilha, fazer cessar o aproveitamento das águas a favor do prédio dos AA e retirando os canos do local.
Os prédios em causa não são contíguos – interpõem-se-lhes vias públicas, pelo que sobre tais vias não é possível constituir-se qualquer direito de servidão – artº 202º nº2 CCiv.
O prédio dos AA. possui água em abundância, ao contrário do prédio dos RR.

Sentença
Na sentença proferida pela Mmª Juiz “a quo”, a acção foi julgada parcialmente procedente e os RR. condenados a:
a) reconhecerem que para o prédio dos Autores, B… e mulher C.., composto por casa e quintal, sito em …, …, que confina de norte, sul, nascente e poente com F…, inscrito na matriz predial urbana da freguesia … sob o artigo 84º, assiste aos Autores o direito à água da mina, situada no prédio rústico dos Réus, de pinhal, eucaliptal e mato, sito no …, …, a confinar de norte com caminho, de nascente com G…, de sul com H… e de poente com sucessores de H…, descrito sob o nº695 da freguesia … e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo nº1679º, para uso doméstico, rega e merugem durante todo o ano, por servidão constituída por destinação de pai de família;
b) reconhecerem que sobre o referido prédio dos Réus e em benefício do referido prédio dos Autores se encontra constituída uma servidão de aqueduto e uma servidão de passagem a pé, para limpeza, condução e acompanhamento de água, desde a nascente até à estrema do prédio dos Réus;
c) reconhecerem que assiste aos Autores o direito de entrarem no prédio dos Réus para acesso à mina a fim de fazerem as obras necessárias à conservação das infra-estruturas de captação e condução da água até ao lugar de consumo;
d) demolirem as obras que fizeram com vista a tapar a boca da mina e todo o espaço desde a boca da mina até à via pública, bem como a abrir no muro de vedação do prédio dos Réus uma passagem para os Autores acederem à mina;
e) reporem a mina no estado que a mesma tinha à data em que foi obstruída.
Os Réus foram absolvidos do demais peticionado.
Igualmente foi julgado improcedente o pedido reconvencional e os AA. do mesmo absolvidos.

Conclusões do Recurso de Apelação:
1- A Mª Juiz a quo errou na apreciação da prova produzida, na atribuição de força probatória às diferentes provas, errou na sua decisão e respectiva fundamentação.
2- No que concerne à matéria de facto, encontram-se incorrectamente julgados os factos vertidos na “fundamentação de facto” sob os pontos 28, 33, 34, 43, 45 no excerto “na parte em que se encontrava a céu aberto”, 46, 48, 49 (factos provados), e 58, 60, 61, 62 e 65 (factos não provados) da sentença recorrida.
3- No que concerne ao facto 48, cuja prova se baseia no documento junto a fls.137, mais não se pode retirar dele do que a existência de uma licença referente a um tubo subterrâneo com 70 metros de extensão, cuja vigência durou apenas e só durante o ano de 1977.
4- O entendimento expresso, neste ponto, na sentença recorrida colide com as normas constantes dos artigos 5.º, n.º1 e 7.º, n.º1 do Regulamento de Publicidade e Ocupação do Espaço Público do Município ….
5- Sob o ponto 48 só pode julgar-se provado que “os autores requereram e obtiveram licença para um tubo de 70 metros de extensão no ano de 1977”, pois que se ignora, do teor do documento, de onde, para quê e para onde vai o referido tubo.
6- No que diz respeito aos pontos 49 (provado), 60, 61, 62 (não provados), julgando-se credível, como a M.ª Juiz julgou, o depoimento da testemunha I…, e confrontando o seu depoimento registado no @habilus, de 3:43 a 10:29, cuja transcrição consta do corpo destas alegações, tem que se concluir que a entrada na mina e retirada dos tubos por parte desta testemunha, se deu na pendência do inventário n.º 10/73, na ocasião da partilha, não após elas, não após o seu termo.
7- Por se tratar de um depoimento claro, inequívoco, linear no tom de voz, e por ter sido considerado credível para julgar provado o que a testemunha I… efectivamente não disse, nem se pode extrair minimamente do conteúdo das suas palavras, tem que considerar-se credível para julgar como não provado o facto 49 e provados os factos 60 a 62.
8- No que concerne aos factos 28, 33, 43, 45 no excerto “e na parte em que se encontrava a céu aberto”, e 46, postergou a M.ª Juiz a quo as regras mais elementares da força probatória dos diferentes meios de prova.
9- Olvidou, com efeito, que no auto de inspecção judicial constante de acta de audiência de julgamento do Processo 117/2000, de 12-01-2004, junto a estes autos em audiência de julgamento de 03-02-2014, conforme acta, verteu o M.º Juiz que não vislumbrou “qualquer entrada de mina ou vestígios de mina no terreno dos réus, não correndo água dos tubos indicados pelos Autores”.
10- Tal auto de inspecção ao local faz prova plena quanto aos factos verificados, e as constatações nele vertidas colidem frontalmente com a factualidade provada nos pontos supra referidos.
11- Sem prescindir, e caso assim se não entenda quanto à força probatória de tal documento, ainda assim devem ser os factos referidos dados como não provados, observados, não só esse documento, como também o relatório pericial do Perito J…, que, igualmente, se deslocou ao local, senão antes, em Março de 2004, e ainda os depoimentos das testemunhas I…, registado no @habilus, de 11:52 a 13:02, K…, depoimento este acoplado, tal como os que se seguem, no depoimento de I…, registado no @habilus de 21:14 a 41:05, interessando, para este efeito, o excerto de 24:25 a 27:50, L…, cujo gravação @habilus consta de 41:52 a 57:39, assumindo, para este efeito, particular relevância, o excerto de 44:58 a 47:22 e de 53:02 a 57:39, M…, cuja gravação de depoimento no @habilus consta de 58:22 e 1:08:51, assumindo particular relevância o excerto constante de 1:02:30 a 1:04:20 e N…, cujo depoimento de gravou em @habilus, de 1:09:37 a 1:21.28, assumindo particular relevo, nesta sede, o referido de 1:13:35 a 1:21:28.
12- Devem os factos referidos transitar para os factos não provados.
13- Por fim, inquina a fundamentação subjacente ao facto 43 (provado) e 65 (não provado), o depoimento da testemunha K…, acima referida, de sensivelmente 28:24 a 29:17, de 37:07 a 39:20 e de 40:17 a 41:30, registado no @habilus, acoplado ao depoimento da testemunha I…, conforme acima se referiu, valorado conjuntamente com o auto de inspecção judicial constante de acta de 14-02-2014.
14- De tal auto deve extrair-se tão só o que a M.ª Juiz viu, dois poços, e não as considerações que a mesma verteu, sustentada em considerações tecidas pelos Autores (doação a uma filha de parte do prédio em que se encontrava um dos poços), matéria essa só susceptível de ser provada por documento.
15- Deve considerar-se provado o facto 65 e não provado o facto 43.
16- Reposto, assim, o acerto das respostas à matéria de facto com as provas produzidas, tem a acção que ser julgada improcedente.
17- Os AA. não alegaram, nem provaram que, na ocasião da separação da dominialidade sobre ambos os prédios existiam sinais visíveis, permanentes, inequívocos, reveladores de serventia do prédio dos RR. relativamente ao deles.
18- A alegação deste facto e a sua prova são essenciais para poder decidir-se pela existência da alegada servidão de aqueduto, pelo que a omissão de alegação e a inexistência de prova desse facto impõe a improcedência da acção.
19- Existe consenso entre as partes quanto à localização da mina no subsolo do prédio dos RR., quanto à localização do(s) tubo(s), alegadamente condutores de água, no subsolo do prédio dos RR., no das duas vias públicas que separam ambos os prédios no subsolo do prédio dos AA. que os tornam escondidos e invisíveis às pessoas em geral.
20- A prova produzida foi também concordante.
21- Por conseguinte, inexistem sinais visíveis, permanentes, inequívocos, reveladores de serventia do prédio dos RR. relativamente ao dos AA. e, por conseguinte, não se constituiu a alegada servidão de aqueduto por destinação de pai de família.
22- Não é suficiente para a constituição da pretendida servidão que se considere provado que havia um rego confinado ao prédio dos RR. e duas saídas de tubo num tanque existente no prédio dos AA – sem sinais de água, porque se não pode determinar a existência de qualquer relação ou interligação entre eles, pelo que sempre tinha a acção que improceder.
23- Entre o prédio dos RR., pretensamente serviente, e o dos AA. pretensamente dominante, interpõem-se duas vias públicas.
24- A natureza dominal, pública, de tais terrenos que constituem essas duas estradas, torna-os insusceptíveis de apropriação individual, isto é, não podem sobre eles constituir-se servidões de direito privado.
25- Situação esta que não pode confundir-se com a existência de direitos privados constituídos nesses terrenos antes deles serem inseridos no domínio público, como parece ter feito a M.ª Juiz a quo ao chamar à colação os autores citados na sentença recorrida, mormente ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ na sua obra “O Domínio Público O Critério e o Regime Jurídico da dominialidade”.
26- Esta autora bem refere, a fls.426 que “Questão diversa da incidência de direitos reais administrativos sobre coisas públicas (que mesmo entendidos na perspetiva francesa, não contendem com o princípio da inalienabilidade) é a da aferição da possibilidade de constituição de direitos reais privados (de gozo ou de garantia sobre bens de domínio: diversamente do que sucede com os direitos reais administrativos, estão em causa direitos reais submetidos a uma disciplina jurídico-privatística. A posição tradicional inclina-se no sentido de interditar a constituição de quaisquer direitos privados a favor dos particulares sobre bens do domínio público – cf., entre nós, o artigo 202.º, n.º2 do Código Civil”, posição onde se enquadram JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra Editora, 2006, p. 88, e por GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 4.ª Edição Revista, anotação ao artigo 84.º, p. 1005.
27- Entendendo, porém, que, fls. 427, “Assim, as possibilidades de aproveitamento de bens dominiais pelos particulares reconduzir-se-ão a figuras jurídico-publicistas (concessão), pressupondo a atribuição de um título jurídico-público, do qual devem constar as faculdades de que gozam os particulares sobre tais bens”.
28- Não obstante, os AA. não demonstraram que a Administração Pública, por título válido desde a separação dominial até ao presente, lhes tenha conferido direito de transportar água de prédio terceiro para o deles, através de via(s) pública(s) e, sem esse título, nenhum direito podem invocar, nenhum direito se constituiu.
29- Se constituída a servidão, alegadamente por destinação do pai de família, sempre ela deve ser considerado como servidão legal, observados os ensinamentos de RUI PINTO DUARTE, “Curso de Direitos Reais”, 3.ª edição, Princípia Editora, p. 221, JOSÉ ALBERTO R. L. GONZALEZ em “Código Civil Anotado”, Volume IV, Direito das Coisas, artigos 1251.º a 1575.º, em anotação ao artigo 1549.º, p. 481 e, ao abrigo do Código Civil de Seabra, do Professor CUNHA GONÇALVES.
30- E, como tal, é extinguível por desnecessidade.
31- Conclusão – extinguibilidade por desnecessidade – que não deve ser afastada ainda que se considere que esta servidão reveste natureza diferente da legal, o que não se concede e apenas se coloca como mera questão de raciocínio, observados os argumentos aduzidos por MÁRIO TAVARELA LOBO, no seu Manual do Direito das Águas, volume II, Coimbra Editora Limitada, p.312 e 313.
32- Ora, a desnecessidade resultou provada nos autos pelas respostas dadas à matéria de facto, ainda que improceda as conclusões 12 a 15, pelos factos 43, 53, 54 e 55.
33- Pelo que, considerada constituída, o que não concedemos face às conclusões 1 a 28, ainda assim tem a servidão que ser declarada extinta por desnecessidade.
34- A servidão deve ainda ser extinta por aplicação do instituto do abuso de direito, na modalidade do desequilíbrio do exercício de posições jurídicas.
35- Na verdade., é extraordinariamente superior o prejuízo que, da sua existência, advêm para o prédio dos RR. do que o benefício que dela advém para o prédio dos AA., que é nulo – respostas dadas à matéria de facto dos itens 43, 53, 54, 55 dos factos provados.
36- A douta decisão recorrida violou, entre outros, os artigos 5º, 493º do C. P. C., 202.º, 334.º, 363º, nº 2, 364.º, n.º1, 371º, nº 1, 396º, 1549º, 1547.º, 1568.º, 1569º, nº 1 a 3, do Código Civil, 84º da C. R. Portuguesa e artigos 5.º, n.º1 e 7.º, n.º1 do Regulamento de Publicidade e Ocupação de Espaço Público do Município ….

Em contra-alegações, os Apelados pugnam pela confirmação do julgado.

Factos Apurados
1 – Os Autores são donos e senhores exclusivos do prédio composto por casa e quintal, sito em …, …, que confina de norte, sul, nascente e poente com F…, inscrito na matriz predial urbana da freguesia … sob o artigo 84º.
2 – Os Réus compraram e são donos de um prédio rústico de pinhal, eucaliptal e mato, sito no …, …, a confinar de norte com caminho, de nascente com G…, de sul com H… e de poente com sucessores de H…, descrito sob o nº695 da freguesia … e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo nº1679º.
3 – Nesse prédio os Réus construíram uma casa destinada a habitação, a qual se acha inscrita na matriz predial urbana de ….
4 – Os prédios descritos em 1. e 2. faziam parte da herança deixada pelos pais da Autora.
5 – No tempo em que os dois prédios (a casa e quintal dos Autores e o mato e pinhal comprado pelos Réus) pertenciam ao mesmo dono, foi rasgada uma mina no prédio rústico com a altura de dois metros e com a largura de 70 centímetros.
6 – A mina ficou com a boca voltada ao sítio onde se encontrava a casa, hoje dos Autores, e na mina foi feita escavação com vista a captar água.
7 – Brota água em mais do que um ponto da mina, ainda que de pequeno caudal.
8 – Essa água tem uma coloração ferruginosa aligeirada.
9 – O comum antecessor dos prédios, a 31,5 metros da boca da mina e no seu interior fez uma barragem destinada a represar a água (chamada ancoradouro) e a alguns centímetros do chão da mina nessa barragem foi aberto um furo em que foi introduzido um cano.
10 – Essa barragem da água ficou designada por ancoradouro e destinava-se a represar a água e a reter a deposição de alguns detritos que se acumulassem.
11 – Do cano instalado no ancoradouro, a água foi conduzida em tubo até ao final da mina e dali pela borda do caminho e pela valeta da estrada seguiu entubada no subsolo até à casa referida em 1.;
12 – Espaçadamente, os antecessores dos prédios descritos em 1. e 2. procediam à limpeza da mina por forma a eliminar o “raposo” e os detritos.
13 – Para o efeito, após levantar o ancoradouro, as pessoas seguiam até ao final da mina e, com enxadas e outras alfaias, arrastavam até à boca da mina os resíduos, removiam-nos e voltavam a repor o ancoradouro.
14 – No prédio referido em 1. existiam duas saídas desta água que vinha encanada desde a mina: uma para gastos domésticos e outra junto ao alpendre da casa, onde caía num tanque para rega e merugem, durante todo o ano.
15 – Saídas estas que ainda se mantêm.
16 – Com a separação dos prédios nada ficou contratado ou escrito a propósito da água, da mina, do rego, dos canos ou do acesso.
17 – Após a separação dos prédios, em 1973, os Autores continuaram em cada dia, em cada mês e em cada ano a utilizar a água, a entrar no prédio onde se acha a mina, a limpar a mina sempre que necessário, a vigiar a condução da água através dos tubos instalados na via pública.
18 – Continuadamente, à vista de todos e no exercício do direito que era inerente ao seu prédio, mantendo a mina, os tubos de condução da água e a mesma a correr pelos canos e a cair no imóvel referido em 1.
19 – Jamais alguém deduziu alguma oposição a esta prática.
20 – A irmã da Autora mulher vendeu o prédio referido em 2. e os Autores continuaram a utilizar a água para gastos domésticos e rega, a entrar e sair do prédio dos Réus para aceder à mina, a fazer a limpeza da mina, tudo como sempre vinha a ser fruído desde os tempos em que o prédio pertencia ao mesmo antecessor comum.
21 – Os Réus decidiram construir uma casa de habitação no seu prédio.
22 – No ano de 1997 os Réus começaram a construção dum muro de vedação ao prédio referido em 2., a cerca de oito metros de distância da boca da mina, e o acesso à mina ficou dificultado.
23 – Apesar dessas obras, a água continuou a pingar no prédio referido em 1.
24 – Os Autores instauraram acção contra os aqui Réus, que correu termos sob o nº117/2000 no 1º Juízo deste Tribunal, pedindo a condenação dos Réus a reconhecerem que sobre o prédio dos Réus e em benefício do prédio dos Autores se encontra constituída uma servidão de aqueduto constituída por usucapião.
25 – Tal acção foi julgada improcedente por sentença proferida em 9 de Dezembro de 2011 e confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 26 de Junho de 2012.
26 – Os Autores, no prédio referido em 1., desde o tempo que pertencia com o prédio referido em 2. ao mesmo dono e a partir da separação dos prédios (em 1973), consumiam a água da mina que se encontrava entubada, estando os tubos enterrados.
27 – Fazendo-o à vista de todos, diariamente e sem oposição.
28 – Em data não concretamente apurada, mas antes do mês de Março de 2004, os Réus taparam a boca da mina, bem como cobriram com terras o rego que da boca da mina existia até à via pública e por onde se achava o tubo de condução de águas e por onde escoava qualquer excedente de água da mina.
29 – Para que a água continue a ser utilizada no prédio referido em 1. é necessário reabrir a mina e o rego de condução de água entre a boca da mina e a via pública, entrar na mina, fazer a limpeza e velar pelo encaminhamento da água.
30 – Os Autores, até à altura referida em 28., utilizavam diariamente a água e quando o caudal diminuía ou a água surgia em sua casa mais turbada, entravam na mina e procediam à limpeza da mesma, removendo os detritos acumulados, arrastando-os para fora da boca da mina e repondo a mina em funcionamento, à vista de todos, sem oposição e no convencimento de que exerciam um direito que lhes competia.
31 – No âmbito da acção referida em 24. a mina foi reaberta por duas vezes para exame pericial e os Réus voltaram a tapar a mina, a fechar o prédio e a impedir o restabelecimento do funcionamento da mina e fornecimento de água ao prédio referido em 1.
32 – Foi cortado o cano de condução da água no prédio aludido em 2., o que ocorreu com as obras de desobstrução da boca da mina para efectivação das peritagens realizadas no âmbito da acção referida em 24.
33 – Os Réus, no ano de 2004, taparam a boca da mina e o rego por onde se achava o cano que conduzia a água e por onde escorriam as águas excedentes.
34 – Após o referido em 33., os Autores deixaram de ter água em casa e de poder regar o quintal e o terreno anexo à casa de habitação.
35 – A mina referida em 5. é subterrânea.
36 – O leito da mina está situado a vários metros de profundidade relativamente ao nível do solo.
37 – As suas águas, o seu fluxo só circulam subterraneamente, quer pela galeria subterrânea da mina, quer por tubos enterrados no subsolo.
38 – Para se chegar desde o prédio referido em 2. até ao prédio referido em 1. têm que se percorrer vários metros pela Rua … e pela Avenida …, da freguesia ….
39 – A circulação da água desde o prédio referido em 2. até ao prédio referido em 1. era efectuada através de tubos implantados no subsolo, enterrados e escondidos da visão das pessoas.
40 – A separação dominial dos prédios referidos em 1. e 2. consumou-se com a partilha efectuada por óbito dos pais da Autora mulher, a qual foi homologada por sentença proferida em 17 de Novembro de 1973, transitada em julgado.
41 – Os prédios referidos em 1. e 2. não são contíguos, entre eles se interpondo a Rua … e a …, da freguesia ….
42 – Encontrando-se os tubos de condução de água desde a mina até ao prédio referido em 1. enterrados nessas duas vias públicas.
43 – Os Autores têm um poço no quintal.
44 – Os Réus abriram um poço no prédio referido em 2. e não encontraram água.
45 – A mina, apesar de tapada na boca e na parte em que se encontrava a céu aberto, ainda existe e pode ser vista desde que sejam removidas as terras que os Réus ali colocaram para a tapar.
46 – O aqueduto e o carreiro de passagem que da boca da mina ligava ao exterior do prédio referido em 2. foram parcialmente eliminados pelos Réus, que fizeram muro de vedação do prédio e colocaram portão.
47 – Ao prédio referido em 1. chegam os tubos de condução da água e ali se acham os depósitos de recolha da mesma, as torneiras desses tubos e as derivações dos tubos.
48 – Os Autores requereram e obtiveram licença para instalar e manter esses tubos, válida até 31/12/77 (facto modificado nesta instância, de acordo com a fundamentação infra).
49 – Um sobrinho da Autora mulher, quando o prédio referido em 2. pertencia à sua mãe, foi àquele prédio retirar parte dos tubos de condução de água.
*
Com relevância para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos e, designadamente, que:
50 – No final do ano de 1999 os Autores sentissem necessidade de proceder a uma limpeza da mina e pretenderam entrar na mina, pelo que solicitaram a abertura dos portões e não obtiveram resposta;
51 – No ano de 2000 os Réus tivessem proibido os Autores de proceder à limpeza da mina;
52 – Os Réus tivessem cortado um tubo de condução de água desde a “barragem ou ancoradouro” existente no interior da mina até ao exterior do prédio referido em 2.;
53 – Especialmente no Verão, a falta de água no prédio referido em 1. tivesse conduzido a um abaixamento na produção de cereais, hortaliças e outros legumes de consumo doméstico;
54 – Os Autores tivessem andado à procura de fontes públicas para abastecimento de água para gastos domésticos;
55 – Os Autores tivessem um aumento de despesa e diminuição de receita em € 100,00 mensais.
56 – Nos últimos 3 anos, esse prejuízo ascenda a € 3.600,00.
57 – Nunca se tivessem avistado no prédio referido em 2. sinais de passagem a favor do prédio descrito em 1. fosse para que fins fosse.
58 – Não tivessem existido sinais de entrada na mina.
59 – Jamais fosse visível, na Rua … e na Avenida …, circulação de água desde o prédio referido em 2. até ao prédio descrito em 1.
60 – Aquando da realização da partilha referida em 40. não existissem canos de condução de água para o exterior da mina.
61 – Entre os Autores e a sua irmã e cunhada, O…, tivesse sido convencionado que, com a adjudicação do prédio referido em 2. à referida irmã da Autora, O…, a mina e suas águas ficar-lhe-iam a pertencer exclusivamente, como parte integrante e componente desse prédio.
62 – Na execução desse acordo, os canos tivessem sido retirados previamente à realização da conferência de interessados do respectivo processo de inventário, tornando desnecessário fazer qualquer menção escrita à mina e à água.
63 – Os Réus, desde que foram conhecedores da existência da mina, logo se opusessem a que outrem, que não eles, a utilizassem.
64 – Desde que o prédio referido em 2. foi vendido pela irmã da Autora, os Autores jamais tivessem entrado nele, fosse para o que fosse, e sempre tivessem sido disso impedidos quando o tentaram fazer com conhecimento dos seus proprietários.
65 – Os Autores tenham dois poços no quintal para regar e tenham água da rede pública para o seu consumo.
66 – A água da mina seja prejudicial para os Autores e para o seu prédio por ser imprópria para uso na rega, merugem e consumo humano.
67 – Os Autores e os seus antepossuidores, desde muito antes de 1973 e desde há mais de 30 anos e mais anos, não usassem a mina nem a água dela proveniente.
68 – Desde há mais de 30 e mais anos que não haja água na mina, água de nascente, susceptível de consumo humano e para fins agrícolas, nem sistema de transporte dessa água para o prédio referido em 1.
69 – A nascente tenha secado há 30 e mais anos.
70 – Os Réus tivessem mandado abrir um furo no prédio referido em 2. e só a mais de 100 metros de profundidade tivesse surgido uma água turva, barrenta, que não serve para consumo humano, nem para lavar os dentes.
71 – Os Réus vão buscar água a casa da mãe do Réu.
72 – As águas que escorrem para a mina sejam de pequena quantidade, não atingindo volume e nível que lhes permita correr, perdendo-se, absorvidas, no leito da mina.

Fundamentos
As questões colocadas pelas doutas alegações de recurso dos autos são as de saber se:
- foram incorrectamente julgados, por deverem ter sido considerados “não provados”, os pontos de facto nºs 28º, 33º, 34º, 43º, 45º (no excerto “na parte em que se encontrava a céu aberto”), 46º, 48º e 49º, e se deveriam ter sido julgado “provados” (ao invés de “não provados”) os pontos de facto nºs 58º, 60º, 61º, 62º e 65º, aludidos na sentença recorrida;
- da alteração propugnada para a matéria de facto se deve concluir que não se encontra demonstrado que, na ocasião da separação da dominialidade dos prédios, existiam sinais visíveis, permanentes e inequívocos reveladores de serventia do prédio dos RR, relativamente ao prédio dos AA;
- não é suficiente para a constituição da pretendida servidão que se considere provado que havia um rego confinado ao prédio dos RR. e duas saídas de tubo num tanque existente no prédio dos AA – sem sinais de água, porque se não pode determinar a existência de qualquer relação ou interligação entre eles;
- entre o prédio dos RR, pretensamente serviente, e o dos AA, pretensamente dominante, interpõem-se duas vias públicas, pelo que, em face da natureza dominial pública de tais terrenos, não podem sobre eles constituir-se servidões de direito privado; mesmo assim, os AA. não demonstraram que a administração lhes tenha concedido o direito de transportar a água através do subsolo das vias públicas;
- a desnecessidade da servidão resultou provada nos autos pelas respostas dadas à matéria de facto, pelo que, mesmo que considerada constituída, ainda assim tem a servidão que ser declarada extinta por desnecessidade;
- a servidão deve ainda ser extinta por aplicação do instituto do abuso de direito, na modalidade do desequilíbrio do exercício de posições jurídicas, pois é superior o prejuízo que, da sua existência, advêm para o prédio dos RR, do que o benefício que dela advém para o prédio dos AA, nulo.
Vejamos então.
I
Em primeiro lugar, cumpre percorrer a matéria de facto impugnada, para o que foi ouvido na íntegra o suporte CD relativo à audiência de julgamento efectuada.
Começando pelos factos que se invoca deverem ter sido julgados “não provados” e retirados que foram da Petição Inicial.
No ponto 28, julgou-se provado que “em data não concretamente apurada, mas antes do mês de Março de 2004, os Réus taparam a boca da mina, bem como cobriram com terras o rego que da boca da mina existia até à via pública e por onde se achava o tubo de condução de águas e por onde escoava qualquer excedente de água da mina”.
Pensamos que a matéria foi bem decidida como provada. Nesse sentido, andaram os depoimentos de P…, que conhece o local, trabalhou na mina e detalhou com pormenor o respectivo depoimento, por forma livre e não meramente conclusiva – o depoente situou “há 10 anos” o momento em que a água deixou inteiramente de correr. Apoiaram este depoimento outros, também prestados sobre a matéria, avultando o de Q…. Também no mesmo sentido os depoimentos das filhas dos AA., S… e T…, as quais, pese embora a próxima relação familiar com os AA., souberam detalhar com acentuados pormenores factuais as suas declarações, por forma a não deixarem dúvida sobre a realidade da afirmação efectuada nos autos.
Não há dúvida, pois, de acordo com estes testemunhos, que a água sempre correu até 2004 (embora com menor caudal a partir de 97), altura em que os AA. reagiram e em diligência pericial e inspecção judicial ao local, efectuadas noutros processos que já correram entre as partes, se logrou verificar a entrada da mina coberta com terra e a represa nela existente cheia de água.
Contra, alinharam os depoimentos das testemunhas apresentadas pelos RR., de teor vago, conclusivo, escassamente caracterizadores da realidade, sem possibilidade de abalar a convicção que resulta dos primeiros citados depoimentos.
Depois, no ponto 33 exarou-se que “os Réus, no ano de 2004, taparam a boca da mina e o rego por onde se achava o cano que conduzia a água e por onde escorriam as águas excedentes”. Por razões e meios de prova idênticos àqueles que foram já expostos a propósito do ponto nº 28, confirmamos inteiramente a resposta provado a este ponto.
No seguimento, em 34 julgou-se provado que “após o referido em 33., os Autores deixaram de ter água em casa e de poder regar o quintal e o terreno anexo à casa de habitação” – é muito claro que o ponto de facto em causa se reporta à água que provinha da mina existente no prédio hoje propriedade dos RR, e nada mais.
Quanto ao aproveitamento da referida água, em casa e como água de rega, registou-se o depoimento das duas filhas dos AA. que, nesse ponto não contrariadas por qualquer outro meio de prova, sublinharam que o represamento era dúplice, destinando-se uma parte (tanque) para aproveitamento agrícola, e a outra parte, que caía numa pia, era aproveitada na residência dos AA. Confirma-se a resposta.
No ponto de facto nº43 exarou-se que “os Autores têm um poço no quintal” – nada mais conforme com a prova produzida e o depoimento das testemunhas inquiridas – Q…, U…, P…, para além das citadas filhas dos AA.
Apesar de referirem a existência de um outro poço no prédio dos AA., as testemunhas apresentadas pelos RR. não esclareceram se o mesmo tinha água, ou se foi atuído pelos próprios AA. – na verdade, as testemunhas dos AA., que convenceram, também aludiram a um outro poço, quiçá mais próximo da estrada, mas que se não encontra em condições de exploração de água. Confirma-se a resposta.
No ponto de facto nº 45 fixou-se que a mina possuía uma parte, a seguir à “boca”, que se encontrava a céu aberto. Na verdade, dos depoimentos de U… e de P…, conhecedores do local, que nele trabalharam, com memória viva e detalhada, não contraditados por outros meios de prova, resulta que a mina, enquanto túnel, acabava bastante antes da estrema do prédio dos RR., prosseguindo a condução de águas, por 8/9 metros a céu aberto; de forma coincidente com estes depoimentos, depuseram também as filhas dos AA.
Em suma, confirma-se a resposta adoptada.
No ponto 46, considerou-se provado que “o aqueduto e o carreiro de passagem que da boca da mina ligava ao exterior do prédio referido em 2. foram parcialmente eliminados pelos Réus, que fizeram muro de vedação do prédio e colocaram portão” – nada de mais conforme com a prova produzida: em primeiro lugar, do depoimento de Q… resultou logo que foi a construção do muro que impediu os AA. de tratarem a mina, por forma a limpá-la, única forma de a água continuar a correr para os tubos que abasteciam a casa e prédio dos AA.
Este depoimento foi completado, no mesmo sentido, pelas filhas dos AA., que assinalaram a perda notória de caudal de água quando da construção do muro de vedação da casa dos RR., em depoimentos não contraditados convincentemente. Em resumo, confirma-se a resposta adoptada.
Quanto à inspecção ao local realizada em 2014, da mesma não se pode retirar a ocorrência de factos que não se verificaram no decurso da própria inspecção, limitando-se o juiz a comprovar o estado actual dos prédios – melhor exemplo de prova é a pericial, junta aos autos, e constante do processo anterior que correu entre as partes.
No ponto 48 fixou-se que “os Autores requereram e obtiveram alvará de licença para instalar e manter esses tubos, tendo pago a licença durante os anos em que a Câmara a cobrou”. Salvo o devido respeito, neste ponto a única prova positiva relacionou-se com o documento de licença municipal para a passagem de tubo subterrâneo, junta a fls. 137 e datada de Janeiro de 1977.
Portanto, e em consequência, entendemos que se deve restringir a matéria, da seguinte forma: “os Autores requereram e obtiveram licença para instalar e manter esses tubos, válida até 31/12/77”. Da modificação desta matéria provada demos já nota supra, no elenco dos “factos provados”.
O evento fixado em 49 (“um sobrinho da Autora mulher, quando o prédio referido em 2. pertencia à sua mãe, foi àquele prédio retirar parte dos tubos de condução de água”) resultou do depoimento não contraditado de I…. Não existe a pretendida prova, que fosse extraída das declarações desta testemunha, de que tal retirada se processou durante o inventário por morte do antecessor comum, pelo que nada existe a alterar no facto fixado – não existiu alusão a esse momento contemporâneo do inventário em que o tubo tivesse sido retirado. Confirma-se assim o dito facto fixado.
II
Vejamos agora o elenco dos factos “não provados” cuja efectiva prova se pretende, por via das doutas alegações.
Em primeiro lugar, contesta-se a não prova do facto 58, que “não tivessem existido sinais de entrada na mina”. Ora, até em função do que atrás deixámos exposto, este facto encontra-se amplamente “não provado”. A derivação da água fazia-se através de um passador, a água tinha de ser limpa com regularidade, porque ganhava limos, bem como o seu caudal era perturbado pela vegetação e pelas raízes; por seu turno, a mina, face às suas dimensões, foi construída para o acesso de pessoas de pé – foi o que resultou do depoimento não contraditado das testemunhas U…, P… e das filhas dos AA., pelas razões já supra apontadas. Confirma-se a resposta adoptada.
Alude-se também ao facto nº60, onde se exarou não provado – “aquando da realização da partilha referida em 40. não existiam canos de condução de água para o exterior da mina”. Por razões idênticas às da prova do facto nº49, confirma-se a não prova desta matéria. O mesmo raciocínio se aplica à não prova do facto nº 62, cuja não prova por igual se confirma.
No facto 61, julgou-se não provado que “entre os Autores e a sua irmã e cunhada, O…, tivesse sido convencionado que, com a adjudicação do prédio referido em 2. à referida irmã da Autora, O…, a mina e suas águas ficar-lhe-iam a pertencer exclusivamente, como parte integrante e componente desse prédio”. Para além do apoio no facto provado nº 49, este facto não provado possui uma demonstração muito ténue, resultante de declarações singelas de I… (filho dos antecessores dos RR.) e sobre factos recuados no tempo, e ademais não foi convencionado no inventário, como lhe competia. Confirma-se a não prova desta matéria.
No facto 65 alude-se à não prova de que “os Autores tenham dois poços no quintal para regar e tenham água da rede pública para o seu consumo”. Trata-se de matéria cuja não prova se impõe, em paralelo com a prova do facto 43, e pelas razões aí expostas, quanto a essa dita prova. Quanto à questão da ligação à rede pública de abastecimento de água, é matéria não abordada no processo; pese a sua plausibilidade, não é deste grau de probabilidade que pode resultar a prova de um facto que não foi simplesmente aludido no processo. Confirma-se pois a resposta adoptada.
III
Vejamos agora, em primeiro lugar, a questão do tempo da separação dos prédios, para efeitos de saber se, nessa altura, existiam os sinais visíveis e permanentes da servidão, requisito indispensável à constituição de uma servidão por destinação do pai de família.
Os autos denunciam a existência de uma mina no prédio dos RR., com represamento de águas e condução das mesmas para o prédio dos AA. – prédio não contíguo, porque separado do primeiro por via pública, mas prédio não murado, de acesso livre pelo proprietário – condução através de passador e tubo em matéria plástica ou “pvc”. Por sua vez, no prédio dos AA., tais águas eram represadas uma outra vez, para rega e merugem, bem como, noutra saída, eram recolhidas através de um recipiente e daí seguiam para gastos domésticos.
E assim era porque, à data da abertura da sucessão, há mais de 40 anos, não existia no local outra casa de habitação que não fosse a casa que hoje pertence aos AA. e que era a casa de habitação do “pai de família”, isto é, do antecessor de AA. e RR., quem, no prédio hoje dos AA., efectuava o aproveitamento das águas que explorava no prédio hoje dos RR.
Eram esses os sinais visíveis e permanentes que provavam a existência da servidão, conforme o disposto no artº 1549º CCiv, ao tempo da abertura da sucessão do antecessor comum, o momento que releva para aferir qual a utilização que o pai de família dava à água (cf. artº 2119º CCiv, o princípio da retroactividade da partilha e seu efeito meramente declarativo ou modificativo, e o Ac.R.P. 17/4/08 Col.II/202, relatado pelo Desemb. Manuel Capelo) – nesse sentido, sempre irrelevaria a existência ou inexistência de tubo no momento da partilha (apenas “mais um” sinal da relação de serventia), pois que outros elementos de facto, visíveis e permanentes, permitiriam concluir (sem restrições de prova – cf. artºs 1395º e 1390º nº2 CCiv e Ac.R.P. 16/10/90 Bol.400/739, relatado pelo Consº Martins Costa) da existência da referida relação de servidão.
Por outro lado, quanto aos sinais de água, a prova efectuada é antes a de que a ausência de tais sinais se ficou a dever às obras efectuadas pelos RR. no respectivo prédio, sobretudo as efectuadas no ano de 2004, pelo que daí nenhuma conclusão relevante se pode assumir para afastar o direito dos AA. à água explorada no prédio dos RR.
IV
Coloca-se depois a seguinte questão:
- entre o prédio dos RR e o dos AA, interpõem-se duas vias públicas, pelo que, em face da natureza dominial pública de tais terrenos, não podem sobre eles constituir-se servidões de direito privado; mesmo assim, os AA. não demonstraram que a administração lhes tenha concedido o direito de transportar a água através do subsolo das vias públicas.
Vejamos. Como resulta dos autos, a administração concedeu já aos AA, e ao menos em determinado período temporal, licença para a utilização de aqueduto subterrâneo atravessando a estrada municipal que separa os dois prédios, serviente e dominante.
Como se escreveu já no Ac.S.T.J. 15/1/81 Revista Decana 115º/215, relatado pelo Consº Campos Costa, em primeiro lugar, se a servidão é um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio, pertencente a dono diferente (artº 1543º CCiv), não há razão que justifique qualquer restrição quanto à distância que separa os prédios dominante e serviente.
E tal raciocínio é de aplicar quer se trate da existência de prédios particulares, entre os prédios dominante e serviente, quer se trate de caminhos públicos – na verdade, mesmo até a natureza do direito ou a ausência do mesmo, relativamente à forma como o aproveitamento das utilidades do prédio serviente onera os prédios que se encontram de permeio, não é decisiva para caracterizar a visibilidade ou a permanência dos sinais reveladores de serventia, conforme exigência do artº 1549º CCiv.
Isto é, como tal, aplicável ao atravessamento subterrâneo, por aqueduto, de vias públicas, pois que, apesar de se tratar de um uso especial ou excepcional do domínio público, ainda assim tal uso pode ser compatível com o uso normal ou ordinário do bem público, “sendo as entidades a quem pertence a propriedade e a administração das coisas públicas que devem verificar se existe ou não essa compatibilidade” (cf. Prof. Guilherme Moreira, As Águas no Direito Civil Português, II/220).
O Regulamento Geral das Estradas e dos Caminhos Municipais (Lei nº 2110 de 19/8/61) permite-o, de resto, no seu artº 66º (corpo da norma), pelo que a denegação do uso especial ou excepcional da coisa pública não é discricionário e só pode basear-se no interesse público (Prof. Guilherme Moreira, op. cit., pg. 221).
O Dr. Barbosa de Magalhães (Gazeta da Relação de Lisboa, 51º/216, cit. in Ac.S.T.J. 15/1/81 cit.) sustentou, porém, que a precariedade do exercício jurídico era incompatível com o requisito da permanência dos sinais – tradicionalmente, porém, a doutrina opõe-se-lhe, se por precariedade se entender a dependência de licenças administrativas ou de vínculos obrigacionais com terceiros (cf. Prof. Antunes Varela, Revista Decana, 115º/222, nota 3, e demais elementos de doutrina e jurisprudência aí citados), já que, em suma, a precariedade do direito, em certos troços do exercício, se não opõe à permanência dos sinais, na medida em que estes o sejam e a fim de que fique salvaguardada a boa fé no comércio jurídico.
Desta forma, também não era de exigir aos AA. que demonstrassem a actualidade da vigência das licenças que eventualmente terão recebido da administração, ao longo dos anos.
V
Vejamos agora se “a desnecessidade da servidão resultou provada nos autos pelas respostas dadas à matéria de facto, pelo que, mesmo que considerada constituída, ainda assim tem a servidão que ser declarada extinta por desnecessidade”.
Como é doutrina corrente, a desnecessidade (artº 1569º nºs 2 e 3 CCiv) ocorre quando a servidão tenha deixado de ter qualquer utilidade para o prédio dominante – e não é isso que flui dos factos provados.
Mas ainda que assim não fosse, note-se que a servidão constituída por destinação do pai de família habitualmente se não integra no conceito de servidão legal a que alude o artº 1569º nº3 CCiv – permitindo a extinção por desnecessidade destas servidões legais.
Como sublinha o Prof. Mota Pinto, Direitos Reais, pg. 344, “este regime apenas se compreende para as servidões legais, em que a lei sancionou a possibilidade de se constituírem por haver uma necessidade nesse sentido e para as servidões adquiridas por usucapião, porque também aí não se verificou um facto voluntário na sua constituição; já aquelas servidões que têm por base um facto voluntário, permitindo a lei que se constituam mesmo quando não são estritamente necessárias, não podem extinguir-se por desnecessárias, porque então nem se poderiam constituir; a desnecessidade não é portanto causa de extinção de uma servidão constituída por destinação do pai de família (…)”. Da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, veja-se o Ac.S.T.J. 14/5/09 Col.II/60, relatado pelo Consº Fonseca Ramos.
VI
Finalmente, o invocado abuso no exercício do direito por parte dos AA., em face da desproporção de benefícios e prejuízos, sendo notório o prejuízo resultante para o prédio dos RR.
Sob o prisma da boa fé, cumpre salientar que não foram os AA. quem criou o ónus que pode impender sobre o prédio dos RR., por via da procedência da acção, limitando-se, como se limitam, ao exercício de um direito. Foram os RR. quem lhe deu origem – e nunca se poderia conceber o abuso de direito dos AA. (artº 334º CCiv), quando tivesse na sua base uma disposição dos próprios RR. violadora de uma norma jurídica (allegans propriam turpitudinem non auditur, na base de abuso de direito por tu quoque – cf. Prof. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, II/837).
Fere a sensibilidade jurídica, diz o Autor, quando, por via de se desrespeitar um comando, se exige de outros o acatamento dessa conduta.
Por tais motivos também, não acolhemos nesta instância o conteúdo das doutas alegações de recurso.

Para resumir a fundamentação:
I – Os sinais visíveis e permanentes que provam a existência da servidão constituída por destinação do pai de família e que relevam para aferir qual a utilização que o pai de família dava à água (artº 1549º CCiv), são, no caso de sucessão mortis causa, os sinais do tempo da abertura da sucessão do antecessor comum, e não os que venham a existir ao tempo da partilha, se divergirem dos primeiros.
II – A existência de um caminho público situado entre os prédios dominante e serviente, caminho por cujo subsolo passa um aqueduto de condução de águas, não obsta à constituição da servidão por destinação do pai de família, já que a precariedade do direito, em certos troços do exercício, se não opõe à permanência dos sinais, na medida em que estes sejam permanentes e a fim de que fique salvaguardada a boa fé no comércio jurídico.
III – A servidão constituída por destinação do pai de família não cabe no conceito de servidão legal do artº 1569º nº3 CCiv e, por isso, não pode ser julgada extinta por desnecessidade.
IV - Não se pode conceber o abuso de direito da parte (artº 334º CCiv), se tiver na sua base uma disposição da contraparte, violadora de uma norma jurídica (tu quoque).

Dispositivo (artº 202º nº1 da Constituição da República):
Julga-se improcedente, por não provado, o recurso de apelação interposto pelos RR. e, em consequência, confirma-se integralmente a douta sentença recorrida.
Custas pelos Apelantes.

Porto, 11/XI/2014
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença