Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
106/17.7PAVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MARTINS
Descritores: REVOGAÇÃO DA PENA SUSPENSA
NOVO CRIME
Nº do Documento: RP20240221105/17.7PAVLG.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A condenação pela prática de um crime no decurso do período de suspensão da execução da pena só implica a revogação da suspensão se a prática desse crime infirmar definitivamente o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 106/17.7PAVLG.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de Valongo – Juiz 2

Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO
I.1. A arguida AA veio interpor recurso do despacho proferido em 12.309.2023 que revogou a suspensão da execução da pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão em que tinha sido condenada por sentença transitada em julgado.
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I.2. Recurso da decisão (conclusões que se transcrevem integralmente)
1. O presente recurso vem interposto do Despacho judicial proferido em 12 de Setembro de 2023 que decide revogar a suspensão da execução da pena de prisão de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses aplicada à arguida, determinando em consequência o seu cumprimento efectivo em meio prisional.
2. Por sentença transitada em julgado em 18 de Março de 2019, foi a arguida condenada na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão suspensa na sua execução, por igual período de tempo, acompanhada de regime de prova, para o efeito devendo os serviços da DGRSP elaborar PRS.
3. No passado dia 29 de Junho de 2023 procedeu-se à audição da arguida e da técnica da DGRSP.
4. Conforme resultou da audição da técnica da DGRSP que fez o acompanhamento da arguida no âmbito dos presentes autos, a mesma esteve sempre a trabalhar, o que a técnica pode assegurar por disso ter tido conhecimento pessoal e presencial.
5. As declarações que foram prestadas pela técnica da DGRSP foram todas muito favoráveis à arguida.
6. O crime cometido durante a suspensão da pena dos presentes autos, ocorreu num contexto de vivência de pares, com muita influência por parte do seu companheiro sobre a arguida, a qual teve uma participação diminuta.
7. O período de reclusão que a arguida tem vivenciado, que acarreta estar afastada dos seus filhos, família e amigos, tem-lhe provocado um sofrimento inimaginável e a certeza absoluta de que não voltará, nunca mais, a cometer qualquer crime, seja de que natureza for.
8. Havendo ainda um juízo positivo sobre a possibilidade de serem alcançadas, em liberdade, as finalidades da punição.
9. Sendo possível esperar fundadamente que a condenada se afastou, para sempre, de outros crimes.
10. A arguida não tem outros antecedentes criminais e encontra-se muito arrependida pelo sucedido, verificando-se o juízo de prognose favorável que determinou o decretamento da suspensão da execução da pena de prisão.”
Pugna pela revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que prorrogue o período de suspensão da execução da pena de prisão ou, em alternativa, que ordene o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação.
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I.3. Resposta do Ministério Público
O Ministério Público, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, concluindo que:
“1. Não assiste qualquer razão à recorrente, devendo a decisão recorrida ser mantida em toda a linha.
2. No âmbito dos presentes autos, foi a arguida AA condenada, por douta sentença de 14.02.2019, transitada em julgado em 18.03.2019, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art°s 203°, n° 1, e 204°, n° 2, alínea e), ambos do Código Penal, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova.
3. Compulsados os autos, designadamente o teor da certidão junta em 24.05. 2023 e do CRC atualizado, constata-se que, a aqui condenada incorreu, em Julho - Outubro de 2020, na prática de novo crime de furto qualificado, tendo sido condenada, por douto acórdão de 16.05.2022, transitado em julgado em 21.12.2022, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão efetiva.
4. Ouvida presencialmente a condenada a propósito da sobredita condenação, a mesma não apresentou qualquer justificação plausível.
5. O comportamento criminal da arguida ocorrido durante o período de suspensão da execução da pena que aqui lhe foi aplicada denota um total desprezo pela condenação sofrida nestes autos, revelando comprometido o juízo de prognose que esteve subjacente à suspensão da execução da pena que aqui lhe foi aplicada.
6. Este comportamento da arguida, traduzido na prática de factos do mesmo jaez dos que estão em causa nestes autos e a ausência de quaisquer circunstâncias justificativas e atenuantes, torna patente a frustração da vocação simultaneamente ressocializante e dissuasiva do instituto da suspensão da execução da pena, não se vislumbrando em que medida uma solene advertência, a exigência de garantias de cumprimento das obrigações impostas, a imposição de novos deveres ou regras de conduta ou a prorrogação da suspensão da execução da pena de prisão possa ter resultado diferente.
7. Ora, no caso em análise, verifica-se que a aqui recorrente, totalmente indiferente à condenação sofrida nestes autos, praticou um ilícito do mesmo jaez, durante o período de suspensão da execução da pena de prisão, tendo sido condenada, por douto acórdão de 16.05.2022, transitado em julgado em 21.12.2022, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão efetiva.
8. Cumpre, ainda, questionar, se será de permitir à arguida o cumprimento da pena de 2 anos e 8 meses de prisão em regime de permanência na habitação, mediante vigilância eletrônica. Sempre com o devido respeito por opinião diversa, parece-nos que não dada a importância de a arguida ser confrontada com o meio prisional, como derradeira forma de a alertar para um quadro de valores que preconiza em desacordo com os próprios da comunidade em que necessariamente se insere, sob pena de, familiarizada com a prática do ilícito em cotejo, se familiarize com o cumprimento em regime domiciliário de uma pena de prisão com a subsequente deturpação dos propósitos imanentes ao regime de permanência na habitação com vigilância eletrônica.
9. A ilicitude objetiva da conduta da arguida não é baixa e a pena que lhe foi aplicada não é curta ao ponto de se poder afirmar que deve ser evitada por não contribuir para a ressocialização da condenada.”
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I.4. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público acompanhou a argumentação constante na resposta ao recurso do Ministério Público junto do tribunal recorrido, pugnando pela improcedência do recurso.
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I.5. Resposta ao parecer
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
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I.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do CPP (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
Assim, da análise das conclusões da recorrente AA a única questão que importa apreciar e decidir é saber se a decisão recorrida aplicou criteriosamente os pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena de prisão estabelecidos no artigo 56º, n.º 1, al. b) do Código Penal (doravante CP) e, em caso afirmativo, se a pena deve ser cumprida em regime de permanência na habitação.
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II.2. Decisão recorrida (que se transcreve nas partes com relevo)
“I.
Por sentença proferida nestes autos em 14/02/19 e transitada em julgado em 18/03/19, foi a arguida AA condenada, entre o mais, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos arts. 203.°, n.° 1 e 204.°, n.° 2, al. e), ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, cuja execução então se suspendeu por igual período de tempo, subordinada a regime de prova - e, assim, até 18/11/21.
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Compulsado o teor das certidões judiciais posteriormente juntas aos presentes autos e, bem assim, o respectivo CRC, veio a atestar-se ter a arguida incorrido na comissão de um outro facto ilícito típico - durante a vigência do referido período de suspensão da execução da pena de prisão de que beneficiou e, com acrescido relevo, subsumível ao mesmo tipo de ilícito por que surpreende condenada. Com efeito, e no âmbito dos autos de PCC n.° 3122/20.8JAPRT [Juízo (J5) Central Criminal do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto], pela perpetração, em 15/10/20, de um crime de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos arts. 203.°, n.° 1 e 204.°, n.° 2, als. a) e e), ambos do Código Penal, foi-lhe infligida a pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva.
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Tomaram-se declarações à arguida.
Coligiram-se os elementos documentais pertinentes à boa decisão.
Promoveu a Digna Magistrada do Ministério Público a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, sendo que, notificado a arguida para, querendo, se pronunciar, se pronunciou no sentido da respectiva prorrogação, para o que aduziu, em suma, a favorabilidade das declarações prestadas pela técnica dos serviços da DGRSP, o impacto da sua reclusão e o seu arrependimento.
II.
Dispõe o art. 55.° do Código Penal que se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, pode o tribunal fazer uma solene advertência, exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão, impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção ou, finalmente, prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.° 5 do artigo 50.°. Já de acordo com o n.° 1 do art. 56.° do mesmo Código, a suspensão de execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de reinserção social [al. a)] ou cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas [al. b)]. Acrescenta o respectivo n.° 2 que a revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado.
(…)
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Revertendo ao caso concreto, encontra-se em causa o [cometimento de] crime pelo qual a arguida [veio] a ser [condenada], importando indagar se, por via desse comportamento, [revelou] que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, e, nessa esteira, se impõe o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença.
Vejamos.
Ora, "se a finalidade precípua desta pena de substituição é (...) a de afastar o delinquente da criminalidade" (cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, 355) -, facilmente se atesta que a prática, em momento posterior à decisão da suspensão da execução de pena de prisão, de um outro crime, consubstancia a circunstância com maior aptidão para questionar o prognóstico favorável que esteve na génese da escolha por aquela, enquanto [realização] de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, consideradas a personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste. Na verdade, o comprometimento da arguida - durante o período de tempo em que beneficia da suspensão - com demais feitos criminosos, não pode senão significar a sua falta de preparação para adoptar uma postura de conformidade com o Direito, denotando, em bom rigor, o seu desmerecimento com relação à oportunidade que, em tempo, lhe foi concedida pelo Tribunal, precisamente por crer que, no caso concreto, se adequariam e seriam bastantes a censura formal do crime perpetrado e a ameaça do cumprimento de pena de prisão.
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Debrucemo-nos sobre a suficiência da sua conduta posterior para efeitos de revogação da suspensão da execução da pena de prisão determinada no âmbito dos autos. Ora, no decurso do período de suspensão em análise, a arguida praticou - tendo vindo a ser condenado em pena de prisão efectiva - um outro crime de furto qualificado, cujos contornos, percorrido o correspondente acórdão condenatório, não podemos ter senão como impressivos, permitindo-se este Tribunal discordar do entendimento preconizado pela arguida no sentido de ter sido diminuta a sua intervenção no ilícito em causa. Assim, outro juízo não podemos tecer, que não o de que a arguida não interiorizou, de todo em todo, a advertência judicial ínsita à sentença condenatória proferida nestes autos, reincidindo na prática do mesmo crime por uma outra vez, durante o período de suspensão da execução da pena. Presente este quadro de circunstância, legitima-se, pois, a ilação de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão pecam por inadequação e insuficiência no caso vertente. Com efeito, o comportamento adoptado pela arguida é revelador do mais acentuado desrespeito para com as suas obrigações, sendo certo que estas lhe foram judicialmente impostas, importando ter presente que lhe incumbia, tão-só, abster-se da prática de ilícitos - exigência que, impondo-se a todos os membros da comunidade, se impunha àquela em especial. O que se não verificou. Por fim, mais consignaremos que o arrependimento igualmente ora aventado pela arguida peca, salvo o devido respeito, por tardio, encontrando-se sobremaneira associado à sua reclusão e consequências da mesma decorrentes.
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Tratando-se de incumprimento considerado culposo, e compulsadas as alternativas constantes do art. 55.° do Código Penal, verifica-se a inaplicabilidade in casu de qualquer uma delas. À arguida foram já feitas demasiadas solenes advertências, pelo menos tantas quantas as vezes em que foi julgada e condenada pela prática dos crimes a que vimos fazendo menção; atentas as condições de vida da mesma comprovadas nos autos, não se vislumbra que garantias de cumprimento possa prestar, ou em que medida seja eficaz a imposição de novas ou acrescidas exigências; por fim, prorrogar o período de suspensão não se nos afigura como uma alternativa eficaz, porquanto a arguida se alheou relativamente à condenação que lhe foi infligida nestes autos, presidindo à sua actuação um sentimento de impunidade que ao Tribunal cumpre pôr cobro, contribuindo para a afirmação e manutenção do já decidido, assim como para a pacificação social que lhe cabe salvaguardar e preservar. Conforme acima notado, o apregoado arrependimento da arguida não se divisa a montante da comissão criminosa que a condenou em pena de prisão efectiva, mas, na nossa perspectiva, a jusante, pois que apenas quando privada da sua liberdade em estabelecimento criminal se dignou a equacionar as correspondentes consequências. Por outro lado, notaremos que também o juízo favorável tecido pela Exma. Sra. Técnica dos serviços da DGRSP acerca do cumprimento da suspensão da execução da pena no âmbito destes autos não se nos afigura de molde a sustentar a suficiência da correspectiva prorrogação, na precisa medida em que a arguida praticou o novo ilícito durante o período da sua supervisão, o mesmo é dizer, frustrou as expectativas que também aqueles serviços depositavam no seu afastamento de comissões criminosas. Importa, pois, que a arguida perceba não se encontrar imune às consequências dos seus feitos, e, do mesmo passo, que as decisões judiciais se destinam a ser cumpridas.
III.
Termos em que, ao abrigo do art. 56.°, n.° 1, al. b) do Código Penal, decido revogar a suspensão da execução da pena de prisão de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses, aplicada à arguida AA em sede de sentença condenatória, em consequência do que determino o seu cumprimento efectivo e em meio prisional.”
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II.3. Apreciação do recurso
II.3.1. Com interesse para a apreciação da questão enunciada importa ter presente os seguintes elementos factuais e ocorrências processuais:
i) Por sentença proferida nestes autos em 14.02.2019 e transitada em julgado em 18.03.2019, a arguida AA foi condenada pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.°, n.° 1 e 204.°, n.° 2, al. e), ambos do CP, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, cuja execução se suspendeu por igual período de tempo, subordinada a regime de prova (referência 401172566).
ii) A DGRSP elaborou relatório final de execução datado de 15.02.2022 que juntou aos autos, o qual concluiu:
“AA, ao longo do período de acompanhamento, demonstrou vontade em resolver a situação jurídico penal, cumprindo com o estipulado no que concerne à comparência a entrevistas e obtenção de emprego. Não obstante, a condenada está indiciada pela prática de crime de furto qualificado.” (relatório junto aos autos com a referência 31374268).
iii) No período da suspensão decorrido entre 18.03.2019 a 18.11.2021 a arguida sofreu a seguinte condenação:
- No processo n.° 3122/20.8JAPRT [Juízo (J5) Central Criminal do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto], por decisão proferida em 16.05.2022 e transitada em julgado em 21.12.2022, a arguida AA foi condenada pela prática, em 15.10.2020, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.°, n.° 1 e 204.°, n.° 2, als. a) e e), ambos do CP, cometido em 15.10.2020, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão efectiva.
Tal condenação reporta-se aos seguintes factos (relevantes para a apreciação da questão aqui em apreço):
“- a arguida AA é companheira do arguido BB;
- a arguida trabalhava como empregada de limpeza na empresa "A...", que prestava serviços na residência sita na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, pertença de CC e DD;
- por causa das funções que exercia, a arguida AA era conhecedora da residência e do seu conteúdo/recheio, bem como dos sistemas de segurança ali instalados;
- nessa senda, a arguida AA facultou tal informação ao seu companheiro, o arguido BB, de forma a que este, juntamente com o arguido EE e outro indivíduo não identificado, materializassem o acordo conjunto e conseguissem aceder ao interior da habitação sem que acionassem qualquer daqueles dispositivos de segurança;
- no dia 15 de Outubro de 2020 os arguidos EE, BB e o outro indivíduo não identificado, dotados de toda a informação fornecida pela arguida AA de que os proprietários estariam ausentes em trabalho no Dubai, deslocaram-se à residência, tendo o arguido BB ficado no carro, de vigia, e o arguido EE e outro indivíduo não identificado efetuaram uma abertura (buraco) na parede posterior da habitação, do exterior para o interior, logrando aceder ao interior do armário existente no quarto dos ofendidos;
- do interior do armário do quarto dos ofendidos o arguido EE e o outro indivíduo não identificado retiraram e levaram consigo um cofre que estava fechado e bloqueado;
- do interior do referido cofre os arguidos EE e BB e outro indivíduo não identificado retiraram e fizeram seus diversos documentos, cerca de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) em notas do Banco Central Europeu, duas chaves de um veículo de marca BMW ..., duas chaves de um veículo de marca Maclaren, duas chaves de um veículo de marca Porsche e uma chave de um veículo de marca BMW- carrinha, que se encontravam estacionadas na garagem da residência, o comando do portão que dá acesso à garagem, um estojo/caixa com gravação do nome do ofendido que continha diversas pulseiras, bem como diversos outros artigos, no valor total de cerca de € 28.000,00;(…)
- os arguidos EE, BB e AA, mediante acordo prévio, em conjugação de esforços e intentos, agiram de forma livre e consciente, com a intenção de fazerem seus os bens que se encontrassem na residência de CC e DD, cientes de que os mesmos não lhes pertenciam e de que actuavam contra a vontade dos seus proprietários; (…)
- sabiam os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”
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No segmento da motivação da decisão de facto, na parte que para aqui releva, consta o seguinte:
(…)
“Os restantes arguidos [um deles a arguida AA] optaram, inicialmente, por não prestar declarações em audiência de julgamento, tendo depois os arguidos EE e BB resolvido prestar esclarecimentos sobre os factos.
(…)
Diga-se, ainda, em relação à arguida AA, que, conforme relatado pelo arguido BB, o assalto à moradia de ... foi pensado e combinado entre todos (arguidos AA, EE e FF), sendo inegável o papel determinante da arguida AA na concretização do mesmo. Com efeito, era esta arguida quem estava em condições de fornecer aos co-arguidos EE e FF todos os elementos e informações necessários ao cometimento do assalto: era esta arguida quem tinha acesso à casa dos ofendidos CC e DD, pois que lá executava serviços de limpeza; era esta arguida quem sabia dos horários e das rotinas dos ofendidos, designadamente, da ausência destes no estrangeiro na altura do assalto; foi esta arguida quem transmitiu aos co-arguidos FF e EE a informação de que os proprietários da moradia estavam ausentes no estrangeiro; era esta arguida a única que estava em condições de saber que os ofendidos tinham um cofre dentro do roupeiro do quarto, local por onde o arguido EE e outro indivíduo não identificado acederam ao interior da moradia.
A arguida AA era, pois, a pessoa melhor colocada para perpetrar este assalto posto que dispunha dos meios e da oportunidade, tendo acompanhado todo o seu planeamento e execução, querendo e conformando-se com o seu resultado, como abaixo melhor se explicitará.”
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No segmento da “Da eventual suspensão das penas de prisão aplicadas aos arguidos BB, GG e AA”” consta na parte relevante para o nosso caso:
“Quanto à arguida AA, a mesma já deu provas suficientes de que esse juízo de prognose favorável é de afastar totalmente atenta a sua condenação anterior em pena de prisão suspensa na sua execução por crime da mesma natureza do agora analisado (furto qualificado agravado), tendo cometido este segundo crime de furto qualificado agravado durante o período de suspensão da execução daquela pena de prisão.
Nessa conformidade, a pena de prisão aplicada aos arguidos GG e AA deverá ser de execução efectiva, só assim se cumprindo as finalidades da punição.” (acórdão junto aos autos com a referência 32668520).
iv) Designada data para audição da arguida, em 29.06.2023, a mesma prestou as seguintes declarações quanto à condenação sofrida no período da suspensão da pena de prisão:
- ter sido um bocado “arrastada”; não esteve mesmo envolvida no crime, pedindo uma segunda “chance” para não lhe revogar a pena (ficheiro 20230629135149_15332361_2871601).
v) Nessa mesma data foi ouvida a técnica da DGRSP, HH, que supervisionou a suspensão da pena de prisão aplicada à arguida, que referiu ter mantido contactos telefónicos e através de entrevistas, estando a arguida inserida em termos laborais (ficheiro 2023069135149_15332361_2871601).
vi) Em 03.07.2023, o Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da execução da pena de prisão em que a arguida foi condenado por entender que a condenação ocorrida no período da suspensão da pena de prisão revela estar comprometido o juízo de prognose que esteve subjacente à suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada, tornando patente a frustração da vocação simultaneamente ressocializante e dissuasiva do instituto da suspensão da execução da pena (referência 540044347).
vii) Notificada para se pronunciar, em 11.09.2023, a arguida pugnou pela prorrogação da suspensão da execução da pena (requerimento junto aos autos com a referência 366003701).
viii) Após a resposta da condenada foi proferido o despacho recorrido supra transcrito.
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II.3.2. Dos pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena de prisão
O artigo 50.º, n.º 1, do CP preceitua que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
As finalidades da punição são, nos termos do disposto no artigo 40º do CP, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Sobre a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, dispõe o artigo 56º, n.º 1, do CP:
A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.”
Em relação à alínea b), (única situação que está aqui em causa) resulta do citado preceito legal, que a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Assim, a lei não se basta com a mera prática de um ou mais crimes no período de suspensão da pena, é, ainda, necessário que essa prática demonstre a frustração do juízo de prognose favorável subjacente à suspensão da execução da pena de prisão, traduzido numa expectativa fundada, mas assente num compromisso responsável com o condenado, de que a mera censura do facto e a ameaça da prisão sejam bastantes para que não sejam cometidos novos crimes.
É, pois, necessário avaliar se face à natureza e circunstâncias do crime cometido, ao passado do condenado, às suas circunstâncias pessoais actuais, e às necessidades de protecção do bem jurídico violado, e de reintegração daquele na sociedade, é conveniente revogar a suspensão da pena, por ter sido infirmado de forma definitiva o juízo de prognose que alicerçou a convicção de que a suspensão se revelava suficiente para o afastar da criminalidade (cfr. Ac. do TRC de 22.11.2017, acessível em www.dgsi.pt).
Em suma: a condenação pela prática de um crime no decurso do período de suspensão da execução da pena só implica a revogação da suspensão se a prática desse crime infirmar definitivamente o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão, quer dizer, quando por via da nova condenação se demonstre que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão daquela suspensão.
Para esse efeito, importa ponderar a relação temporal entre a data da suspensão da execução da pena e a data em que foram praticados os novos factos, a relação entre os tipos de crime praticados, a análise das circunstâncias do cometimento do novo crime, ou seja, do quadro em que o condenado voltou a delinquir e o seu impacto negativo na obtenção das finalidades que justificaram a suspensão da pena, e bem assim a evolução das condições de vida do condenado até ao presente – num juízo reportado ao momento em que importa decidir -, em ordem à decisão de revogar ou não a suspensão da execução da pena (cfr. Ac. do TRL 23.04.2013, acessível em www.dgsi.pt).
Por outro lado, haverá que ter presente que a revogação da suspensão só terá lugar como ultima ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as restantes medidas previstas no artigo 55º do CP e que são as seguintes: “a) Fazer uma solene advertência; b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção; d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50º” (cfr., entre outros, na doutrina, Prof. Figueiredo Dias, in ob. e loc. cit. e, na jurisprudência, Ac. do TRC de 09.09.2015 e Acs. do TRE de 13.07.2021 e 12.10.2021, acessíveis em www.dgsi.pt).
A revogação da suspensão da execução da pena de prisão, atento o disposto no artigo 55º do CP, fica dependente de um juízo sobre a inadequação das medidas menos gravosas previstas naquela disposição legal, em respeito pelos princípios da proporcionalidade e da necessidade da pena que presidem a “todo o processo aplicativo e subsistem até à extinção da sanção imposta” (Cf. Ac. do TRE de 05.03.2013, acessível em www.dgsi.pt.
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II.3.3. Do cumprimento dos pressupostos da revogação da suspensão da execução da pena de prisão
Por sentença proferida nestes autos em 14.02.2019 e transitada em julgado em 18.03.2019, a arguida AA foi condenada pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.°, n.° 1 e 204.°, n.° 2, al. e), ambos do CP, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, cuja execução se suspendeu por igual período de tempo, subordinada a regime de prova.
No caso vertente, tendo a decisão recorrida determinado a revogação da suspensão da pena de prisão com fundamento na alínea b) – cometimento de novo crime no período de suspensão da execução da pena de prisão – do n.º 1 do artigo 56º do CP caberá aquilatar se estão verificados os enunciados pressupostos.
A recorrente argumenta, em síntese, em abono da prorrogação da suspensão da execução da pena de prisão: as declarações prestadas pela técnica da DGRSP foram muito favoráveis à arguida, assegurando que a mesma esteve sempre a trabalhar; o crime cometido durante a suspensão da pena dos presentes autos ocorreu devido à influência do seu companheiro, tendo a arguida uma participação diminuta; o período de reclusão que tem vivenciado tem-lhe provocado sofrimento e a certeza de que não voltará a cometer qualquer crime, encontrando-se muito arrependida pelo sucedido.
Adiantamos, desde já, que se verificam os pressupostos exigidos para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão previstos na al. b) do n.º 1 do citado artigo 56º.
Concretizemos.
Em primeiro lugar, o crime pelo qual a arguida veio a ser condenada no âmbito do processo n.º 3122/20.8JAPRT – crime de furto qualificado – é idêntico ao crime pelo qual a arguida foi condenada no âmbito dos presentes autos.
Em segundo lugar, ao contrário do que sustenta a arguida, a sua participação no crime pelo qual foi condenada no processo n.º 3122/20.8JAPRT não foi de todo diminuta.
A este propósito, transcrevemos um excerto do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 3122/20.8JAPRT elucidativo quanto à participação da arguida:
“Diga-se, ainda, em relação à arguida AA, que, conforme relatado pelo arguido BB, o assalto à moradia de ... foi pensado e combinado entre todos (arguidos AA, EE e FF), sendo inegável o papel determinante da arguida AA na concretização do mesmo. Com efeito, era esta arguida quem estava em condições de fornecer aos co-arguidos EE e FF todos os elementos e informações necessários ao cometimento do assalto: era esta arguida quem tinha acesso à casa dos ofendidos CC e DD, pois que lá executava serviços de limpeza; era esta arguida quem sabia dos horários e das rotinas dos ofendidos, designadamente, da ausência destes no estrangeiro na altura do assalto; foi esta arguida quem transmitiu aos co-arguidos FF e EE a informação de que os proprietários da moradia estavam ausentes no estrangeiro; era esta arguida a única que estava em condições de saber que os ofendidos tinham um cofre dentro do roupeiro do quarto, local por onde o arguido EE e outro indivíduo não identificado acederam ao interior da moradia.
A arguida AA era, pois, a pessoa melhor colocada para perpetrar este assalto posto que dispunha dos meios e da oportunidade, tendo acompanhado todo o seu planeamento e execução, querendo e conformando-se com o seu resultado, como abaixo melhor se explicitará.”
Em terceiro lugar, o último tribunal que condenou a arguida pela prática deste crime (processo n.º 3122/20.8JAPRT) e avaliou as possibilidades de reinserção social em liberdade concluiu que não existiam e veio a aplicar-lhe uma pena de prisão efectiva por considerar não ser possível formular um juízo de prognose favorável acerca do seu comportamento futuro.
Em quarto lugar, a posição adoptada pela arguida aquando da sua audição no âmbito dos presentes autos – afirmando que não esteve mesmo envolvida no crime em que foi condenada no processo n.º 3122/20.8JAPRT – revela que a mesma não demonstra ter interiorizado o desvalor da sua conduta criminalmente relevante, não quer entender a gravidade dos factos cometidos e muito menos o significado da oportunidade em que se traduziu a opção por uma pena substitutiva de prisão.
Note-se que o arrependimento manifestado pela arguida aquando da audição nestes autos mostra-se inverosímil. Por um lado, a arguida só decidiu verbalizar o seu suposto arrependimento após a sua actual reclusão em estabelecimento prisional, onde se encontra a cumprir a pena de prisão em que foi condenada no processo n.º 3122/20.8JAPRT. Por outro lado, o alegado arrependimento por parte da arguida nem sequer se coaduna com a sua atitude adoptada aquando da sua audição nestes autos que revela uma desresponsabilização dos factos cometidos em co-autoria com os demais arguidos no referido processo n.º 3122/20.8JAPRT e falta de capacidade de autocensura dos factos.
Em quinto lugar, no plano das circunstâncias pessoais da arguida não encontramos nada de significativo que dê confiança e fundamente uma previsão de êxito para uma ressocialização em liberdade. A sua inserção laboral, existente, à data dos factos, não foi suficientemente dissuasor para que a arguida não voltasse a delinquir neste tipo de criminalidade.
Não podemos olvidar que a arguida aproveitou-se precisamente da circunstância de trabalhar como empregada de limpeza na residência dos ofendidos, para dar todas as informações e indicações aos demais arguidos (um deles o seu companheiro), sem as quais o assalto a esta residência não se teria concretizado. Isto significa que a sua inserção laboral ocorrida no período de suspensão da execução da pena de prisão, corroborada pela própria técnica da DGRSP, impulsionou a prática dos factos cometidos no âmbito do processo n.º 3122/20.8JAPRT.
A pena de prisão teve a execução suspensa no pressuposto de que o propósito da arguida inverter o rumo de vida que tinha à data do julgamento era sério. Revelou-se que não era com o cometimento de novo crime idêntico ao dos presentes autos.
Assim, consideramos que o crime cometido no período de suspensão da execução da pena de prisão permite afirmar já não ser possível alcançar as finalidades que estiveram na base dessa suspensão.
Nesta conformidade, de acordo com as finalidades que presidiram à aplicação da pena de prisão, temos que concluir que, no caso presente, a revogação da suspensão da execução da pena de prisão constitui a única e última medida que àquelas responde eficazmente.
Por todo o exposto, mostram-se preenchidos os requisitos previstos no n.º 1, al. b) do artigo 56º do Código Penal, não merecendo qualquer censura a decisão recorrida.
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II.3.4. Do cumprimento da pena de prisão efectiva em regime de permanência na habitação
A recorrente entende que a pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão deve ser cumprida em regime de permanência na habitação.
A revogação da suspensão da execução da pena implica o cumprimento dos 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão fixada na sentença (cfr. artigo 56º, n.º 2 do CP), podendo ser cumprida em regime de permanência na habitação desde que verificado o pressuposto material enunciado no artigo 43º, n.º 1, al. c) do CP, a saber: pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade.
O que manifestamente não sucede no caso presente. A pena de prisão aplicada à recorrente é superior aos dois anos, pelo que, não é legalmente admissível o seu cumprimento em regime de permanência na habitação.
Improcede, pois, totalmente o recurso interposto.
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III- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS (artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III).
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Porto, 21.02.2024
Maria do Rosário Martins
Nuno Pires Salpico
José Quaresma