Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3681/15.7JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
PERDA ALARGADA DE BENS
BEM COMUM DO CASAL
Nº do Documento: RP202204063681/15.7JAPRT.P1
Data do Acordão: 04/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O arresto previsto no artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro não configura uma medida cautelar de pura natureza juscivilística destinada a assegurar ao credor (neste caso eventualmente o Estado) «a garantia patrimonial do seu crédito» (obrigacional) no caso de «justo receio de perd[a]» da mesma (artigos 619.º, n.º 1, do Código Civil, e 391.º, n.º 1, do Código de Processo Civil; havendo «fortes indícios da prática do crime», mesmo independentemente da existência desse receio de dissipação da garantia patrimonial; não se trata da (eventual) «cobrança» de «dívidas provenientes de crimes, indemnizações, restituições, custas judiciais ou multas devidas por factos imputáveis a cada um dos cônjuges» (artigo 1692.º, alínea b), do Código Civil), o que naturalmente seria da «exclusiva responsabilidade do cônjuge a que respeitam».
I - O arresto previsto no artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, é uma medida de índole jurídico-penal, que visa garantir o (eventual) futuro confisco (forçado, portanto) de um dado património que, porque incongruente com os rendimentos lícitos, se «presume», na aceção da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, e, na falta de prova bastante em contrário, se considera definitivamente constituir «vantagem de atividade criminosa» - artigo 7.º, n.º 1, do diploma legal em questão).
III - Não se trata de saber se o bem em causa provem diretamente da prática de qualquer crime ou mesmo quem obteve as vantagens patrimoniais ilícitas, bem podendo o arresto, destinado unicamente a garantir o valor do património incongruente, incidir sobre bens adquiridos licitamente.
IV - O que esse artigo 10º, nº1 e 2, permite é o arresto de bens do arguido, no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa, entendendo-se como património do arguido, para efeitos dessa lei, entre outros, o conjunto dos bens que “estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente (alínea a), nº2, do art.7º)
V - O confisco do valor incongruente é garantido através do arresto dos bens de que o arguido tem o seu domínio e beneficia, ainda que não de modo exclusivo, por estarem incluídos no património comum indiviso dos ex-cônjuges, independentemente de algum dos seus titulares ser ou não o agente da atividade criminosa e, assim, de poder ou não ser considerado autor dos correspetivos ilícitos típicos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 3681/15.7JAPRT-L.P2

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO
AA, recorrente nos autos, veio interpor recurso da sentença proferida em 20/12/2021, que decidiu:
a) reconhecer, como impetrado, que o imóvel melhor descrito, supra, no parágrafo 4.4), integra o património comum do (ex)casal constituído pela embargante e pelo 2.º embargado;
b) indeferir, no demais, os presentes embargos.
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Inconformado com esta sentença, dela interpôs recurso a embargante AA, para este tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
CONCLUSÕES:
1ª- Após o divórcio, cada um dos cônjuges passa a ser titular do direito à respetiva meação, pelo que todos os bens do ex-casal passam a ser partes integrantes e indissociáveis do património de ambos, sem que terceiros - ou eles mesmos, em separado - seja permitido onerar ou dispor de parte certa e determinada da “coisa” comum, ao contrário, portanto, do que se decidiu na decisão recorrida, ao decretar o arresto de um bem certo e determinado – casa de habitação do casal – à revelia do disposto no art.1689º- do CC.V.d. i.o., Pires de Lima e A. Varela, in CC.An. vol. III, 1984, p. 347, ss.
2ª- Apesar disso, quando já tramitava pelo Juízo de Família e Menores de Lamego o processo de inventário 315/20.1T8LMG para separação das respetivas meações, foi a apelante notificada do arresto preventivo decretado em 16/04/2020 no Ap. W dos autos principais, sobre a casa de habitação do casal dissolvido por divórcio - até ali constituido pela embargante e por BB - com vista à salvaguarda da garantia de 72.170,54€ que ficaria afeta àquele processo, motivo que a levou a interpor o competente processo de Embargos de tereciro, por tal atentar contra a sua posse, por ser ali que ela sempre vivera e continuara a viver, não tendo outra sequer onde se alojar.
3ª- Casa essa - inscrita na matriz urbana da freguesia e concelho de Lamego sob o art. ..., provinda do ... da extinta freguesia ... e descrita na CRP de Lamego sob o nº ... - que integra parte daquele património comum e cujo acervo, atenta a pendência do referido processo de inventário e o disposto nos arts 1717º e 1724º-b) do CC, ainda se encontra indiviso.
4ª- Pronunciando-se sobre o mérito dos interpostos Embargos, veio o Mmo Juiz decidir que o decretado arresto - malgrado a responsabilidade da pretensa dívida incidir exclusivamente sobre o cônjuge a quem é imputada a alegada atividade subjacente – deverá continuar a recair sobre o referido imóvel que, já se disse, integra o património comum do casal dissolvido, o que, sdr, viola o princípio de que tal ato confiscatório apenas pode onerar, em princípio, bens próprios do cônjuge arguido nos autos principais, e só, subsidiariamente, na sua falta ou insuficiência, ex vi do 1696º-1 do CC, a respetiva meação no acervo partilhando comum.
5ª- Mas, o entendimento em mérito também não se compagina com o disposto no art. 1692º-b) do CC, por não estarmos perante um simples normativo alheio à concreta questão decidenda, maxime quando a sua interpretação terá de articular-se, ex vi do art. 9º-1 e 2 do CC e atenta a unidade do sistema jurídico e a abrangência teleológica daquele dispositivo, com o direito que assiste à embargante – por não ser parte na ação onde o ato fora decretado - de enveredar e de se opor ao confisco dos seus bens, no que tange, por ora, à privação da sua posse.
6ª- A fortiori, quando esta se fez assentar na presunção de que a condenação de seu ex-marido será mais que certa e garantida, sem ter levado em conta que tal presunção, além de não partir sequer de factos já conhecidos e assentes, também não se mostra suportada por palpites, desconfianças, receios ou previsões não justificadas nem fundamentadas nos termos da lei, o que apenas se almejará com o eventual trânsito de sentença condenatória, que, no caso, inexiste, sendo pois, atentatória da dignidade e reputação de uns e causadora de indescritíveis restrições económicas e financeiras que a apelante, sozinha, tem vindo a enfrentar, sem causa fática ou jurídica que o justifique.
7ª- Deixa-se, pois, a embargante sob a espada de Dâmocles, apenas para garantir o pagamento de uma pretensa dívida - aliás, inexistente por ora, porque não fixada nem tida como certa ou, mesmo até, como provável, posto que, sem julgamento e sem decisão transitada em julgado, inexiste condenação alguma - estando, pois, vedado ao MP submeter sem título exequível quaisquer terceiros a provações bem escusadas, cerceando-lhes direitos que lhes assistem e onerando-lhes bens de que só eles podem dispor, sobretudo a impetrante, que nada ter a ver com o imbróglio em mérito nem tão pouco com o seu resultado final, salvo, é claro, em condições e situações muito especiais que, in casu , não ocorrem nem ocorrerão.
8ª- Acresce que recai sobre o MP, e tal não se mostra devidamente acatado nos termos da lei, o ónus de alegar factos objetivos – e não ater-se apenas a meros receios, para não dizermos, mesmo, de todo infundados no caso concreto – estando-lhe, pois, vedado, na ausência da atinente alegação, esgrimir com o tabular dever de acautelamento de situações que nos autos, desconhecemo-lo, poderão, até não se mostrar suficientemente indiciadas, não bastando, pois, atermo-nos à mera presunção, porque a de culpa inexiste antes de provada nos termos legais e sempre com respeito pelo contraditório, que, in casu, só ocorrerá em sede de julgamento e não antes.
9ª- De resto, o simples facto de a suplicante ter sido casada com o arguido nem sequer permite presumir que possa ter beneficiado de qualquer hipotético benesse provindo de uma imaginária atividade ilícita, designadamente no tocante ao erário conjugal comum, como se pretende insinuar na douta decisão recorrida, sendo inconstitucionais, por isso, além do 343º do CPC, também o art. 10º-3 e 4 da Lei 5/2002 de 11 janeiro, na interpretação que vem de lhe ser inculcada, por violação dos princípios consignados no 16º,17º,18º-2, 62º, 202º-2,204º e 205º-1, todos da nossa C.R.P.
10ª- Essas, pois, e muitas outras, as razões de que a nossa jurisprudência mais recente tem vindo a lançar mão, no sentido de que - v.d., p.f., i.o., os doutos Acs do TRP nºs 888/10.7TBVRL-A.P1, de 18/11/2013, e 14407/13.0TDPRT-D.P3, de 24/01/2018 - o cônjuge infrator é sempre o responsável por tais dívidas, ainda que tivesse atuado para ocorrer aos encargos normais da vida familiar ou em proveito comum do casal”. O que, diga-se, nem sequer é o caso.
11ª- O arrestado imóvel foi adquirido sete anos antes da alegada prática dos pretensos crimes imputados ao Rdo, que teriam tido início em junho de 2013, sendo que, para tal aquisição, foram contraídos em 2005 dois créditos junto do BANCO ..., para afiançarem o seu pagamento - cf descrição registral do imóvel e contratos de mútuo juntos aos autos - no valor global de 174.532,21€, encontrando-se, ainda, por liquidar, 15 anos após, mais de metade desse valor, ou seja, cerca de 77.807,31€.
12ª- Tendo sido a habitação adquirida há mais de vinte anos e a suposta ilicitude ter alegadamente decorrido durante ¼ desse período, mantendo-se de igual modo a dívida à Banca, por não ter sido deduzida nenhuma quantia excecional a esse título, a conclusão de que o arrestado imóvel resultara da imputada atividade de seu ex-marido mostra-se tirada a ferros, por não assentar em qualquer facto real e concreto, sobretudo porque:
a- Foi o pai da recorrente quem contribuíra com o valor que o casal dera de entrada para o imóvel, razão por que só pediram um empréstimo em 2005 e não em 2001, quando compraram o terreno onde implementaram a casa;
b- Os créditos bancários em causa ainda se encontram por liquidar, tendo sido pagos em prestações durante sete anos - período em que não é imputado qualquer presumido ganho “ilícito” ao arguido - com proventos do casal, vigorando aqui, nos termos do art. 516º do CC, a presunção de que ambos comparticiparam em partes iguais para esse pagamento.
c- Nos últimos anos, desde que se encontra separada de facto, a suplicante assumiu sozinha o pagamento das prestacões que foram vencendo na Banca, com recurso aos seus dinheiros pessoais e de familiares, que a têm ajudado a fazer face a tais obrigações, tendo-as até incluído na Rel. Bens do referido Inventario, enquanto dívidas ativas dela.
d- Vê-se pelo próprio arresto que a dívida cujo pagamento se visa ali garantir assenta na hipotética condenação do Rdo por aventados ilícitos, imputadamente ocorridos em datas anteriores à da sentença que decretara o divórcio, não permitindo, por isso, a lei arrestar bens comuns de casal divorciado como ato preventivo de qualquer crédito aleatório, ainda que o mesmo venha a ter-se por reconhecido e provado”.
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Por despacho proferido em 12.01.2022 foi o recurso regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito legal.
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Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que o recurso interposto pela embargante deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando os considerandos constantes da resposta do Ministério Público na 1ª instância, pugna pela improcedência do recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida.
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Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do CPP, a recorrente reiterou a reclamada revogação do arresto em crise.
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Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vêm considerando a doutrina e a jurisprudência de forma uniforme, à luz do disposto no art. 412º, nº 1, do Código Processo Penal (ao qual respeitam os normativos adiante indicados sem indicação da respetiva fonte legal), o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, em que resume as razões do pedido, sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
Das conclusões supra transcritas emergem as seguintes
questões a resolver:
- o arresto preventivo previsto no art.10º da Lei 5/2002 de 11 janeiro, não pode ser decretado até ao transito em julgado da sentença condenatória do arguido e sem indicação dos factos que o fundamentam;
- inadmissibilidade do âmbito do arresto: o arresto preventivo previsto no art.10º da Lei 5/2002 de 11 janeiro, não pode abranger, até à partilha, um bem que integra o património comum do ex-casal, antes dissolvido por divorcio, nem incluir um imóvel que não resulta da imputada atividade ilícita do ex-marido;
- da inconstitucionalidade do arresto preventivo do art. 10º da Lei 5/2002 de 11 janeiro.
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O recurso é, pois, restrito à matéria de direito, havendo aquelas questões de ser resolvidas a partir dos seguintes pressupostos:
- o casal antes constituído pela embargante e pelo embagado BB foi dissolvido por sentença proferida em 11/11/2019, e logo transitada, no âmbito do processo que correu termos pelo Juízo de Família e Menores de Lamego sob o nº 281/19.6T8LMG;
- o arresto embargado foi decretado no âmbito do processo (atualmente) com o n.º3681/15.7JAPRT-M em 16/04/2020;
- a sentença aqui impugnada, transitou em julgado, na parte em que reconheceu que integrava o património comum do ex-casal, o imóvel arrestado (casa de morada de família), correspondente ao prédio inscrito na matriz predial urbana competente sob o artigo ..., encontra-se devidamente descrito e registado, na Conservatória do Registo Predial de Lamego, sob o aludido n.º ..., da freguesia ..., a favor do 2.º embargado e da embargante, pela apresentação n.º 24, de 06/11/2001.
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Da inadmissibilidade do âmbito do arresto
O arresto em causa, cujo embargo a recorrente pretende, foi decretado nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 10.º, por referência aos artigos 7.º e 1.º, al, i), todos da Lei nº 5/2001, de 11 de janeiro.
Invoca a recorrente que o arresto preventivo previsto no art.10º, da Lei 5/2002 de 11 janeiro, não pode abranger, até à partilha, um bem que integra o património comum do ex-casal, antes dissolvido por divórcio.
Como não pode abranger, defende, um bem que não resulta da imputada atividade ilícita do ex-marido.
Reconheceu-se na sentença que, não obstante, o imóvel arrestado integrar o património conjugal (comum), o qual ainda se encontra indiviso após a dissolução do casamento do ex-casal, tal não impede que o arresto aqui impugnado o incluía.
O arresto decretado nos autos, como bem afirma a decisão recorrida, “não configura uma medida cautelar de pura natureza juscivilística destinada a assegurar ao credor (neste caso eventualmente o Estado) «a garantia patrimonial do seu crédito» (obrigacional) no caso de «justo receio de perd[a]» da mesma (artigos 619.º, n.º 1, do Código Civil, e 391.º, n.º 1, do Código de Processo Civil; havendo «fortes indícios da prática do crime», mesmo independentemente da existência desse receio de dissipação da garantia patrimonial: cfr. o n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro)”.
Não se trata da (eventual) «cobrança» de «dívidas provenientes de crimes, indemnizações, restituições, custas judiciais ou multas devidas por factos imputáveis a cada um dos cônjuges» (artigo 1692.º, alínea b), do Código Civil), o que naturalmente seria da «exclusiva responsabilidade do cônjuge a que respeitam».
O arresto previsto no artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, é uma medida de índole jurídico-penal, que visa garantir o (eventual) futuro confisco (forçado, portanto) de um dado património que, porque incongruente com os rendimentos lícitos, se «presume», na aceção da citada Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro e na falta de prova bastante em contrário se considera definitivamente constituir «vantagem de atividade criminosa» - artigo 7.º, n.º 1, do diploma legal em questão) [1].
Portanto, não se trata de saber se o bem em causa provem diretamente da prática de qualquer crime ou mesmo quem obteve as vantagens patrimoniais ilícitas, bem podendo o arresto, destinado unicamente a garantir o valor do património incongruente, incidir sobre bens adquiridos licitamente.
O que o citado art.10º, nº1 e 2, permite é o arresto de bens do arguido, no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa, entendendo-se como património do arguido, para efeitos da presente lei, entre outros, o conjunto dos bens que “estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente (alínea a), nº2, do art.7º) [2].
Não se trata aqui de saber se o bem que integra o património comum deve ser incluído no cálculo do valor do património incongruente, mas apenas saber ser, nos termos da citada lei, o mesmo deve ser tido como um bem do arguido e, portanto, suscetível de ser arrestado para garantir o pagamento do valor incongruente.
Para garantia e só da obrigação do arguido proceder ao pagamento desse valor é que foi decretado nos autos o arresto cautelar para efetivação do confisco [3].
É o artigo 10.º, n.º 1 que remete expressamente para o artigo 7.º n.º 1, onde se delimita a amplitude que pode assumir a declaração de perda por referência ao património do arguido. Sendo que, na letra da própria lei, o que deve entender-se por património do arguido «para efeitos dessa lei» - e não apenas para o efeito da declaração de perda prevista no artigo 7.º - é com concretizado no n.º 2 do mesmo preceito. A remissão feita para o n.º 1 do artigo 7.º abrange assim necessariamente o conceito de património tal como delimitado no n.º 2 deste artigo, pelo que todos os bens que o integrem são considerados como sendo «bens do arguido», sobre os quais pode incidir o arresto.
O arresto é possível não apenas em relação aos bens de que o arguido seja proprietário, mas também sobre os quais tenha o domínio e benefício, independentemente de, uns e outros, terem ou não sido adquiridos há mais de cinco anos contados da data da constituição como arguido.
O confisco do valor incongruente é garantido através do arresto dos bens de que o arguido tem o seu domínio e beneficia, ainda que não seja exclusivo, por estar incluído no património comum indiviso dos ex-cônjuges, independentemente de algum dos seus titulares ser ou não o agente da atividade criminosa e, assim, de poder ou não ser considerado autor dos correspetivos ilícitos típicos [4].
O imóvel apreendido, que mais não é do que a casa de morada do casal constituído pelo arguido BB e pela recorrente, cujo casamento foi dissolvido por divórcio, integra o património comum ainda indiviso.
O arguido BB tem, por isso, sobre tal bem, o domínio de facto e beneficia do mesmo.
Como expressa Pereira Coelho, in Curso de Direito da Família, Vol. I, 2, 2ª edição, pág. 124: “...os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede um certo grau de autonomia e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela.”
Devendo todavia salientar-se que não há que convocar ainda o artº 1692º CC pois não está em causa ainda uma qualquer de responsabilidade por dívidas, mas apenas se destinando a garantir o pagamento do valor da vantagem do crime, que vier a ser apurado, e por outro lado que o cônjuge é beneficiário do produto do crime ou das vantagens obtidas, pois sendo elas obtidas por um dos cônjuges se integram no património comum do casal (não configurando por isso a situação do cônjuge como de terceiro mas de beneficiário- cfr. J Cura Mariano, in O novo Regime de Recuperação de activos …” I.N. 2019, 1ª ed. Coordenação de Maria Raquel D. Ferreira e outros), pág. 146/147) sem prejuízo de poder ser observado o direito de audição, no momento próprio, se for o caso, previsto no art.347º A, CPP.
O momento da aquisição dos bens apresenta a mesma irrelevância para o sentido decisório acolhido na decisão recorrida que a licitude da sua proveniência.
Contrariamente ao pretendido pela recorrente, para efeitos do arresto aqui tratado é inócuo saber se a aquisição dos bens pelo património comum possui qualquer nexo causal com os factos imputados ao arguido.
Nada obsta a que seja arrestado um imóvel como garantia da perda alargada ou das vantagens do crime de que um dos cônjuges foi acusado, mesmo que seja bem comum do casal (cfr. RP 09-10-2019 – José Carreto) ou integre o património comum indiviso após a dissolução conjugal.
Em definitivo, o que o tribunal recorrido considerou, aí fazendo assentar a sua decisão, foi que os pressupostos de que depende a aplicação do instituto da perda alargada não se confundem com aqueles de que depende a aplicação do instituto do arresto preventivo. O que fundamenta a aplicação do arresto é precisamente a necessidade de garantir a eficácia do confisco do valor do património incongruente.
A reclamada inadmissibilidade do arresto de bens comuns do ex-casal, por força da aplicação do artigo 1692.º, alínea b), do Código Civil, inviabilizaria a atividade confiscatória do Estado, permitindo aos titulares do património comum (ex casal) continuar a usufruir de vantagens ilícitas obtidas pela atividade do 2.º embargado ainda quando elas venham a ser declaradas perdidas.
De contrário, estaria defraudada a ratio do instituto da «perda alargada», enquanto instrumento de luta contra o enriquecimento ilícito por via da prática dos crimes que integram o pertinente «catálogo» (artigo 1.º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro) e de prevenção dessa mesma criminalidade, sempre que os bens a arrestar fossem comuns ou património coletivo conjugal.
Nestes termos, improcede nesta parte a pretensão recursiva.
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Da inadmissibilidade do arresto antes do trânsito em julgado e sem indicação dos factos que o fundamentam
A embargante insurge-se ainda contra a decretação do arresto sem que tenha havido sentença penal condenatória, transitada em julgado, nem indicação dos factos que o fundamentam.
Ora, são pressupostos de decretamento do arresto para garantia do confisco do património incongruente, «valor correspondente ao liquidado (apurado) como constituindo vantagem da atividade criminosa» (arts 7.º e 10.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2002): (a) o procedimento por um crime do catálogo, (b) «a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais» e (c) «fortes indícios da prática do crime», do catálogo (arts 7.º e 10.º, da Lei n.º 5/2002) - (cfr. STJ 15-04-2021 (António Gama) www.dgsi.pt).
Enquanto medida que tem em vista garantir a perda alargada (património incongruente), o arresto, dadas as necessidades cautelares subjacentes, deve naturalmente ser decretado antes da sentença condenatória, tendo por fundamento o justo receio da perda patrimonial.
Se o confisco de bens apenas é exequível após o trânsito em julgado da sentença condenatória [5], pois se assim não for, estamos a aplicar, uma medida que depende da prática de um crime, sem este se ter, de facto, judicialmente verificado, já o arresto, não pressupõe qualquer juízo de culpa formado, pois aqui, normalmente, encontramo-nos na fase de investigação por natureza [6].
Por outro lado, da decisão proferida no âmbito do processo (atualmente) com o n.º3681/15.7JAPRT-M em 16/04/2020 (cfr. fls. 156 e segs. do processo respetivo, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, constam, ainda que de forma sintética, as razões de facto e de direito que fundamentam o arresto embargado, mal se compreendendo a impugnada falta de concretização dos factos que lhe estão subjacentes.
Por conseguinte, improcede nesta parte o recurso.
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Da inconstitucionalidade do arresto preventivo do art. 10º da Lei 5/2002 de 11 janeiro.
Defende o recorrente que o simples facto de a suplicante ter sido casada com o arguido nem sequer permite presumir que possa ter beneficiado de qualquer hipotético benesse provindo de uma imaginária atividade ilícita, designadamente no tocante ao erário conjugal comum, como se pretende insinuar na douta decisão recorrida, sendo inconstitucionais, por isso, além do 343º do CPC, também o art. 10º-3 e 4 da Lei 5/2002 de 11 janeiro, na interpretação que vem de lhe ser inculcada, por violação dos princípios consignados no 16º,17º,18º-2, 62º, 202º-2,204º e 205º-1, todos da nossa C.R.P.
Cumpre desde já referir que versando o recurso sobre matéria de direito, a invocação da inconstitucionalidade de uma dada interpretação normativa não se basta com a mera indicação da norma violada e a aventada discordância do recorrente.
No caso a recorrente não estava dispensada de explicitar qual o sentido que, no seu entendimento, o tribunal recorrido interpretou o art.343º do CPC, também o art. 10º-3 e 4 da Lei 5/2002 de 11 janeiro, e aquele que lhe devia ter conferido, por respeito aos apontados art.s 16º,17º,18º-2, 62º, 202º-2,204º e 205º-1, todos da nossa C.R.P.
Daí que a recorrente não tenha dado cumprimento a essa especificação de recurso, nos termos do art.412º, nº2, al.b), do Código Processo Penal, inviabilizando o conhecimento do recurso nessa parte.
De qualquer modo, se a tanto se refere, contrariamente ao que a recorrente pretende fazer crer, o arresto do imóvel que integra o património comum, ainda indiviso, dos ex-conjuges, não se funda na presunção de que a embargante, que não é parte no processo, dele possa também beneficiar.
Funda-se, isso sim, na circunstância de se tratar de um bem que integra o património de que o arguido tem domínio e beneficio, independentemente da titularidade plena ou não do mesmo, de acordo com a interpretação combinada dos arts. 7º n.ºs 1 e 2 e 10º n.º 1 e 2 da Lei n.º 5/2002 de 11/01.
O direito da embargante sobre esse património comum indiviso, ainda que ela não seja arguida no processo crime, não é incompatível com o arresto de um dado bem que o integra (art.342º, nº1), sendo aqui deslocada a convocação do art.343º, ambos do Código Processo Civil, por não ter aquela a qualidade de cônjuge do embargado/arguido.
Se no cálculo do património incongruente são considerados bens de que o arguido não é titular, mas sobre os quais tem o domínio e beneficio [7], outro tanto deve ser autorizado para garantir, através do arresto preventivo, o confisco desse mesmo património incongruente.
Assim, o legislador ao mencionar “arresto de bens do arguido” (art.10º, nº1), ter-se-á querido referir ao património do arguido, tal como previsto no n.º 2 do art.º 7, composto por bens quer do arguido quer de terceiros.
De resto, destarte o arresto do bem que integra o património comum, a embargante sempre poderá promover – como sucede – a partilha do mesmo.
Pelo exposto, improcede nesta parte o recurso.
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3. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e em consequência confirmar integralmente a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça equivalente a quatro UCs.
Notifique.
Comunique de imediato o presente acórdão ao processo n.º 3681/15.7JAPRT-M e ao inventário que corre termos no Juízo de Família e Menores de Lamego sob o nº 315/20.1T8LMG.
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Acórdão elaborado pelo primeiro signatário em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelo Excelentíssimo Juiz Adjunto.
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Porto, 6 de abril de 2022
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
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[1] Sobre a diferença de natureza entre o arresto «civil» e o arresto preventivo previsto no código de processo penal, e destes, a fortiori, relativamente ao arresto previsto na aludida Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, MANUEL DA COSTA ANDRADE/MARIA JOÃO ANTUNES, Da natureza processual penal do arresto preventivo, em Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 27, n.º 1, 2017, págs. 141-142.
[2] Acompanha-se o entendimento de Rigor Rodrigues e Carlos A. Reis Rodrigues, in Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira, SMMP, 2013, pg. 93, quando referem que “o arresto não irá incidir, neste domínio, sobre os bens que integram o tradicional direito de propriedade, mas sim sobre os bens que compõe o património do arguido tal como definido no artigo 7º, nº 2 da Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro”.
No mesmo sentido Ac RP 15-04-2015 (Elsa Paixão) www.dgsi.pt, defendendo que o arresto preventivo sobre um bem comum do casal se mantém não obstante a instauração de processo com vista à separação de bens do casal, sendo ao caso inaplicável o disposto no art.740º do Código Processo Civil. Assim, concluiu-se no citado aresto: “O arresto mantem-se até que seja proferida decisão final absolutória (artº 11º3 da Lei 5/2002), ou até que seja proferida decisão de perda e o arguido pague voluntariamente o valor da incongruência, podendo manter-se para além da decisão final condenatória (artº 12º4 da Lei 5/2002), não sendo afectado por outra vicissitude processual que não aquelas”.
[3] Como se pode ler, precisamente neste sentido, no acórdão deste TRG de 19.06.2017, proc. 928/08.0TAVNF-AD.G1, relatado por Teresa Baltazar' «Não é a equação que sustenta a incongruência patrimonial do arguido (ou seja, a concreta operação de contabilizar no património do arguido determinados bens incluídos nas condições do artigo 7.º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro) nem o juízo de ilicitude de determinados bens que fundamenta e legitima a aplicação da medida cautelar de arresto do artigo 10.º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro.
Pelo contrário, o que fundamenta a aplicação do arresto é precisamente a necessidade de garantir a eficácia do confisco do valor do património incongruente.
[4] Cfr. RG 24 de setembro de 2018 www.dgsi.pt.
[5] Augusto Silva Dias, in Criminalidade Organizada e combate ao lucro ilícito. In F. Palma, A. S.Dias, & P. S. Mendes (Coord.), 2.º Congresso de investigação Criminal, Coimbra, Almedina, 2010, p.43. [6] Ana Raquel Conceição, in O arresto preventivo com vista à perda alargada de bens a favor do estado: descontinuidades e aplicação prática, pg.26, recordando q decretar o arresto após a condenação transitada em julgado é retirar-lhe qualquer efeito útil, pois aquele funcionada justamente como garantia à exequibilidade da perda alargada, de nada valendo se forem concomitantes, bem podendo acontecer que nesse momento já não exista património do arguido que possa vir a ser declarado perdido (ob.cit., pg.28). [7] HÉLIO RIGOR RODRIGUES e CARLOS A. REIS RODRIGUES, in “Recuperação de ativos…”, pág. 228 e 289, socorrem-se nomeadamente o art. 1035º, Código Civil, para a definição de domínio, e do conceito de benefício do art. 232º do Código Penal.