Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
95/15.2GTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
PRAZOS
CAUSAS DE SUSPENSÃO E/OU INTERRUPÇÃO
LEI TEMPORÁRIA
APLICABILIDADE
CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES
CRIME ÚNICO
AGRAVAÇÃO
Nº do Documento: RP2024022195/15.2GTPRT.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – No tocante a prazos de prescrição do procedimento criminal, para além das causas de suspensão e de interrupção previstas no Código penal, deverá ter-se ainda em conta o regime de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade instituídos nas leis temporárias n.ºs 1-A/2020 e 4-B/2020 publicadas no âmbito do estado de emergência decretado por força da pandemia resultante do vírus SARS-CoV-2.
II – Pese embora a assertividade do legislador na afirmação da suspensão dos prazos de prescrição, existe dissenso na jurisprudência relativamente à possibilidade da suspensão assim estabelecida poder abranger processos que incluíam factos consumados antes da entrada em vigor de tais leis.
III – Porém, as reservas dos tribunais comuns nesta matéria não encontram suporte na jurisprudência do Tribunal Constitucional que, unânime e pacificamente, e acompanhando a doutrina e jurisprudência dominantes, se tem pronunciado no sentido da constitucionalidade da aplicação da suspensão do prazo prescricional constante de tais leis aos processos já iniciados à data da sua entrada em vigor.
IV – Não existe concurso efectivo entre os crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de ofensa à integridade física grave por negligência, previstos e puníveis pelos arts. 291º, n.º 1, al. b), 148º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Penal, uma vez que que as infracções em causa têm uma área comum de tutela de bens jurídicos e havendo apenas uma vítima a conduta tem que ser censurada unificadamente e punida pela moldura legal mais severa, ou seja, pelas disposições conjugadas dos arts. 291º e 285º, este por remissão do art. 294º, n.º 3, todos do Cód. Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 95/15.2GTPRT.P1
2ª Secção Criminal


Conferência


Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjuntos: Raul Cordeiro
Elsa Paixão

Comarca: Porto
Tribunal: Póvoa de Varzim/Juízo Local Criminal
Processo: Comum Singular n.º 95/15.2GTPRT
**

Assistente:
AA
Arguido/Recorrente:
BB

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

a) No âmbito dos autos supra referenciados, por sentença proferida a 09 de Maio de 2023, foi o arguido BB, com os demais sinais dos autos, condenado na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante regime de prova necessariamente integrado pela frequência de programa de prevenção da sinistralidade rodoviária, em resultado do cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares:

1ª – 1 (um) ano de prisão pela prática de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo art. 291º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal;

2ª – 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punível pelos arts. 148º, n.ºs 1 e 3, e 15º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal;

b) Inconformado, o arguido interpôs recurso terminando a sua motivação com as seguintes conclusões[1]: (transcrição)

1- Dispõe o artigo 119.º, n.º 1 do Código Penal que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.

2- Os factos ocorreram em 18.10.2014.

3- É de 5 anos o prazo de prescrição dos respetivos procedimentos criminais: cfr. a moldura penal abstrata de cada um dos ilícitos criminais pelos quais o arguido foi acusado e condenado, conjugado com o disposto no artigo 118.º, n.º 1, al. c) do Código Penal.

4- Prazo esse que se iniciou em 18.10.2014, tendo-se interrompido em 06.02.2017, com a constituição de arguido.

5- Nos termos do disposto no artigo 121.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Código Penal, em 06.02.2017 começou a correr um novo prazo de prescrição, de 5 anos (sem prejuízo do n.º 3 do mesmo preceito normativo), que terminou a 06.02.2022.

6- Desde 18.10.2014 até 06.02.2022, não se verificaram quaisquer causas de suspensão do prazo prescricional, nem outras causas de interrupção do mesmo.

7- Em 23.03.2022, quando o arguido foi notificado quanto ao teor da acusação pública contra si deduzida, já o procedimento criminal se mostrava extinto, por força da prescrição ocorrida em 06.02.2022, nos termos do preceituado no artigo 118.º, n.º 1, al. c), do Código de Penal, que ora se invoca, para todos os efeitos legais.

8- Foram desta forma, violadas as regras constantes do artigo 118.º n.º 1 alínea c) do CP.

9- Nessa conformidade, impõe-se declarar extinto, por prescrição, o procedimento criminal que nos autos era exercido contra o arguido BB, com a consequente absolvição e arquivamento do processo, o que se requer.

10- O Tribunal violou o disposto nos artigos 118.º, n.º 1, alínea c), 119.º, n.º 1 e 121.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, todos do Código Penal, o que expressamente se invoca, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CP.

SE ASSIM NÃO FOR ENTENDIDO, então:

11- O tribunal a quo interpretou erradamente, as normas que tipificam os ilícitos criminais em apreço, estabelecendo uma relação de concurso efectivo entre os mesmos, nomeadamente, a norma constante dos artigos 291.º, 285.º e 294.º, n.º 3 do CP, com o que não se concorda.

12- No caso em apreço, deveria o arguido ser sido condenado apenas pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário.

13- Se o resultado for negligente, como apontam os indícios do caso concreto que o foi, verificar-se-á uma agravação da pena abstrata - prevista no artigo 285.º do CP, por força do 294.º, n.º 3 do CP - e não uma situação de concurso aparente ou efectivo.”

14- A douta sentença recorrida admite que: “o arguido sabia ainda que, por atuar omitindo os deveres de cuidado na condução que lhe eram e dada a velocidade por si imprimida ao seu veículo, poderia provocar ofensa física grave, com perigo para a vida de outros utentes da via, e não se conformou com a produção de tal resultado, nem quis adequar-se a tal previsão.” (negrito nosso).

15- A conclusão lógica a retirar do que está dado como provado é que o arguido atuou com dolo de ação, dolo de perigo, mas com negligência em relação ao resultado provocado (conduta dolosa e criação dolosa de perigo e resultado negligente).

16- Quando o resultado da prática de um crime de condução perigosa (artigo 291.º do CP) é uma ofensa corporal grave ou a morte, essa situação está expressamente prevista no artigo 285.º do CP (ex vi artigo 294.º, n.º 3 do CP), não se colocando uma questão de concurso efetivo, mas sim, de agravação da pena, de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo. - vide Acórdão da Relação de Lisboa, de 09.02.2022 (disponível em www.dgsi.pt, para consulta) no processo 8997/18.8T9LSB.L1-3.

17- Face ao exposto, deverá ser o arguido absolvido pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, por se verificar em relação ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, uma mera relação de concurso aparente.

18- Pelo exposto, considera o arguido que a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 291.º, 285.º e 294.º, n.º 3 do CP.

19- Ainda, considerando que o arguido colaborou com a descoberta da verdade material, dando a sua versão sobre os factos em crise e não possui antecedentes criminais, devia o tribunal recorrido ter optado por uma pena não detentiva da liberdade, ou seja, por uma pena de multa: cfr. artigo 70.º do CP, aplicando-se os critérios do artigo 71.º do CP.

20- A pena única aplicada em resultado do cúmulo jurídico operado como limite mínimo a pena de 1 ano e 4 meses (pena mais alta) e máximo a pena de 2 anos e 4 meses (soma das penas unitárias), é desadequado e desproporcional que se fixe uma pena (suspensa) de 2 anos (ou seja, a apenas 4 meses do limite máximo previsto).

21- O arguido não possui antecedentes criminais, colaborou com a justiça explicando a sua versão sobre os factos e apresentava uma T.A.S de 0,0 g/l.

22- Quanto à gravidade das lesões sofridas pelo ofendido, importa não olvidar o concurso de culpas existentes, para a produção do referido resultado.

23- Face ao exposto, entende o recorrente que a pena (única) acessória de proibição de conduzir veículos motorizados deveria fixar-se em 7 meses (4 meses para a condução perigosa e 3 meses para o crime de ofensa à integridade física grave por negligência).

24- Foram violadas as regras constantes dos artigos 118.º n.º 1 alínea c), 291.º, n.º 1, alínea b); 285.º, por força do 294.º, n.º 3 e 70.º, todos do Código Penal e 71.º e 40.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal.

c) Admitido o recurso, por despacho com o teor que se pode ver a fls. 718 do processo físico, responderam o Ministério Público e o assistente, ambos pugnando pela sua improcedência e manutenção do decidido, com os fundamentos assim resumidos:

Assistente AA

“(…)[2]

II – Da prescrição

6. O Arguido não teve em consideração o regime de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade aprovado no âmbito das medidas de combate à pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2.

7. Neste contexto de pandemia, a 19/03/2020 foi publicada a Lei 1-A/2020, (posteriormente objecto de diversas alterações).

8. Essa Lei 1-A/2020 decretou a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade de todos os tipos de processos e procedimentos (vide Art. 7º nºs. 3 e 4 da redacção original e o Art. 6º-B, nºs. 3 e 4 da redacção introduzida pela Lei 4-B/2021, de 1 de Fevereiro).

9. Não obstante as dúvidas iniciais respeitantes à aplicação da suspensão dos prazos de prescrição e caducidade relativamente a factos que configurem crimes praticados antes da aprovação daquele Diploma, foi abrindo caminho o entendimento de acordo com o qual se entende que aquela suspensão nada tem de inconstitucional e que, por isso, passou a ser a regra:

10. primeiro, porque a tutela da confiança dos arguidos não abrange a identificação de todas as causas de prescrição;

11. segundo, porque aquela Lei, incluindo as medidas de suspensão de prescrições, encontra-se constitucionalmente respaldada na declaração de estado de emergência (vide, entre outros, Ac. do TRL de 11/02/2021, Proc. 89/10.4PTAMD-A.L1-9 [in www.dgsi.pt]).

12. A mesma certeza veio, posteriormente, a ser consagrada pelo Tribunal Constitucional, através da decisão proferida no Ac. 500/2021, de 09/06/2021, cuja interpretação tem inteira aplicação também quanto à prescrição do procedimento criminal, conforme referido no ponto 31 do texto desse aresto [in https:// www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210500.html].

13. A favor da suspensão do prazo de prescrição nos pressentes autos corre, ainda, a circunstância de não estarmos perante a suspensão do prazo de uma pena em curso – o que levaria a uma solução menos favorável ao Arguido –, mas antes sobre um processo já em curso.

14. Assim, se o prazo de prescrição do procedimento criminal em causa nos presentes autos for de 5 anos, como preconiza o Arguido, ter-se-á que contabilizá-lo do seguinte modo:

- os factos em apreço ocorreram a 18/04/2014

- nesse dia começou a ser contado o prazo de prescrição de 5 anos

- este prazo interrompeu-se a 06/02/2017, com a constituição de arguido (Art. 121º nº 1 al. a) do CP)

- nessa data começou a contar novo prazo de prescrição de 5 anos

- este novo prazo suspendeu-se a 09/03/2020 com a entrada em vigor do regime excepcional ditado pela pandemia (Arts. 7º nº 3 e 10º da Lei nº 1-A/2020, conjugados com o Art. 37º do DL 10-A/2020)

- a suspensão terminou a 03/06/2020 (Arts. 8º, 6º e 10º da Lei 16/2020)

- pelo que a dita suspensão durou 86 dias;

- a 22/01/2021 iniciou-se novo prazo de suspensão, devido à entrada em vigor de nova legislação motivada pelo aumento de número de casos de Covid-19 (Arts. 4º e 6º-B nº 3 da Lei nº 4B/2021)

- esta suspensão cessou a 06/04/2021

- pelo que durou mais 74 dias.

15. Ou seja, no total, desde que começou a correr o novo prazo de prescrição a 06/02/2017, os presentes autos estiveram suspensos durante 160 dias, os quais têm que ser aditados ao prazo de 5 anos,

16. pelo que, quando 23/03/2023 o Arguido foi notificado da Acusação, ainda faltavam 115 dias para o fim do prazo de prescrição.

17. Por assim ser, improcede a prescrição invocada pelo Arguido.

III – Do concurso efectivo de crimes

18. Quanto a esta questão, começa o Arguido por alegar que não concorda com o concurso efectivo de crimes plasmado na Acusação Pública.

19. Ora, se não concordava com o teor da Acusação Pública devia ter suscitado essa questão quando dela foi notificado, por meio de um Requerimento de Abertura de Instrução.

20. Era esses o meio e o tempo processual próprios.

21. Como não o fez nessa altura, não o pode fazer agora, por já não estar em tempo,

22. pelo que improcede esta parte do Recurso.

Ainda assim e sem conceder…

23. Defende o Arguido que o crime de ofensa à integridade física devia ter sido consumido pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário.

24. Todavia, não assiste razão ao Arguido.

25. Em primeiro lugar, porque o crime de condução perigosa (Art. 291º do CP) é um crime de perigo, ao passo que o crime de ofensa à integridade física grave por negligência (Art. 148º nºs 1 e 3) é um crime de dano, razão pela qual não pode haver concurso entre si.

26. Em segundo lugar, o concurso pode ser aparente ou efectivo: é aparente, quando entre as normas concorrentes houver uma relação de especialidade, subsidiariedade ou consumpção; é efectivo, quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime.

27. No concurso aparente, há uma relação de consumpção quando os valores que uma norma visa proteger já estão protegidos por outra norma.

28. No caso vertente, o Art. 148º do CP visa proteger a integridade física de uma pessoa contra os ataques negligentes de outra; já o Art. 291º do CP visa proteger, em primeira linha, a segurança do tráfego rodoviário e só reflexamente o direito à vida, à integridade física e a bens patrimoniais alheios de elevado valor.

29. No concurso efectivo, a conduta do agente tem que violar vários tipos de crime, mas também tem que ser objecto de uma pluralidade de juízos de censura determinada pela pluralidade de resoluções.

30. Assim, aqui, para haver consumpção é necessário que os valores que uma norma visa proteger já estejam protegidos pela outra.

31. O crime do Art. 291º do CP consuma-se no momento em que o agente conduz em violação grosseira das regras de circulação rodoviária, ou quando cria perigo para a vida e/ou integridade física de outrem e/ou bens patrimoniais alheios de valor elevado; já o crime do Art. 148º do CP consuma-se quando o agente ofende o corpo e a saúde de outrem.

32. Como se vê, no crime de condução perigosa não é necessário que se consuma a ofensa.

33. Além disso, a condução perigosa é apenas um dos meios possíveis para se ofender a integridade física.

34. Na verdade, aquilo que o legislador pretendeu com a introdução do crime de condução perigosa foi combater uma das maiores e mais trágicas chagas das sociedades contemporâneas (e, particularmente, do nosso país): a sinistralidade rodoviária.

35. Como ensina o Professor Eduardo Correia, não se verifica consumpção entre as disposições que punem o pôr-se em perigo a lesão de bens jurídicos, por aquelas que punem a sua lesão efectiva [in “Direito Criminal – Volume II” (página 206)].

36. Por último, mas não menos importante, os crimes aqui em causa encontram-se consagrados em diferentes títulos do Código Penal: o Art. 148º enquanto crime contra as pessoas; o Art. 291º enquanto crime contra a vida em sociedade.

37. Por certo que esta opção do legislador não foi inocente…

38. Por assim ser, improcede o concurso invocado pelo Arguido.

IV – Da medida da pena acessória

39. Embora a pena acessória o seja relativamente ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, não podia o Julgador olvidar-se das graves consequências que daí advieram para o Assistente.

40. Além disso, do histórico do Arguido já constava uma condenação pela prática de uma infracção da mesma índole.

41. Finalmente, a sanção acessória em apreço visa concretizar critérios de prevenção geral numa matéria com trágicas consequências na nossa sociedade,

42. mas, igualmente, critérios de prevenção especial, estes particularmente incisivos quando estamos perante alguém, como o Arguido, a quem condenações anteriores pela prática do mesmo ilícito não foram suficientes para fazê-lo arrepiar caminho.

43. Assim, improcede, também, a atenuação pretendida pelo Arguido.”

[Nota: Não se exara o resumo da resposta do Ministério Público uma vez que o documento foi inserido no Citius como PDF não editável/imagem com partes truncadas, o tamanho da letra que consta da peça processual junta ao processo físico é de tal modo exíguo que grande parte do texto não é reconhecido pelo digitalizador e no CD que acompanhou o processo apenas constam ficheiros áudio.]

d) Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso louvando-se nos fundamentos da resposta do Ministério Público que reforçou ainda com aprofundada argumentação relativamente às questões do concurso de crimes e adequação das penas aplicadas e que reiterou na sequência da apresentação das novas conclusões.         

e) Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não houve resposta.

f) Realizado exame preliminar – no âmbito do qual foi formulado convite à rectificação das conclusões que o recorrente acatou como resulta do já exposto - e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.


***

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Consoante decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica [cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 24/3/1999, CJ-STJ, Ano VII, Tomo I, pág. 247 e segs., especialmente fls. 248, último parágrafo; de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt; e de 3/2/1999 e 25/6/1998, in B.M.J. 484 e 478, págs. 271 e 242, respectivamente], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões, extraídas pelo recorrente da sua motivação, que definem e delimitam o objecto do recurso.

Deste modo, na hipótese sub judicio, vista a síntese recursiva as questões suscitadas que cumpre apreciar são, na sua preordenação lógica, as seguintes:

i) Prescrição do procedimento criminal

ii) Errónea subsunção dos factos a concurso efectivo de crimes

iii) Escolha de pena pecuniária

iv) Redução da medida da pena única

v) Redução da duração da pena acessória


***

2. A fundamentação de facto realizada pelo tribunal a quo, no que ao caso interessa, é a seguinte: (transcrição)

Factos Provados

1. No dia 18 de OUTUBRO de 2014, cerca das 21h30, BB circulava no sentido Norte/Sul (Esposende/Póvoa de Varzim) da Estrada Nacional ..., em ..., Póvoa de Varzim, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de marca “MERCEDES”, com a matrícula “..-OZ-..”, propriedade de CC, acompanhado de DD, que ocupava o lugar do passageiro no banco da frente;

2. Por sua vez, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, encontrava-se estacionado na berma daquela Estrada Nacional, e no mesmo sentido de trânsito que o tomado pelo ARGUIDO, antes da entrada para veículos da habitação com o n.º ...89, o veículo ligeiro de mercadorias de marca “...”, modelo ..., com a matrícula “..-DP-..”, propriedade de “A..., Lda.”, que para ali fora conduzido por AA;

3. Cerca das 21h30, AA e EE saíram do interior da citada habitação sita no n.º ...89 da Estrada Nacional ..., residência do segundo, no veículo por este último conduzido;

4. E, cerca de 10 minutos mais tarde, regressaram àquele local, circulando no sentido Sul/Norte da referida via;

5. EE estacionou o seu automóvel na berma do sentido de trânsito em que seguia, e oposto àquele em que se encontrava estacionado o “RENAULT ...”, sensivelmente a par com o mesmo, para que AA entrasse na sua viatura e, dali, seguissem ambos para um bar localizado a Norte;

6. Então, AA abandonou o automóvel conduzido pelo amigo e dirigiu-se ao “RENAULT ...”, atravessando a Estrada Nacional ... no sentido Nascente/Poente;

7. Após colocar o mesmo em funcionamento iniciou a manobra de inversão de marcha;

8. Quando o seu veículo se encontrava perpendicular à via de trânsito, junto ao eixo da mesma, a realizar a diagonal que lhe permitiria adotar o sentido Sul/Norte da EN..., e ocupando quase totalmente este sentido de trânsito, foi violentamente embatido pelo veículo conduzido pelo ARGUIDO;

9. No momento imediatamente anterior à colisão, BB conduzia o “MERCEDES” a uma velocidade não exatamente apurada, mas de pelo menos 100 km/h;

10. Dada a velocidade que imprimia ao veículo por si conduzido, quando BB teve perceção de que o “RENAULT ...” realizava manobra de inversão de marcha, ocupando a sua via de trânsito, já não logrou evitar a colisão;

11. O arguido não efetuou qualquer tentativa para acionar os travões do “MERCEDES”;

12. O arguido apenas virou a direcção do veículo por si conduzido para a esquerda, o que, ainda assim, não lhe permitiu impedir o embate;

13. A colisão deu-se em frente ao marco do km 32,5 da citada via pública, no sentido Sul/Norte da mesma, a cerca de 3 metros da linha da guia e 60 cm da linha longitudinal descontínua,

14. entre a parte frontal do “MERCEDES” e a parte dianteira da lateral esquerda do “RENAULT ...”;

15. Com a violência do embate, o “RENAULT ...” tombou sobre a sua lateral direita, tendo deslizado, cerca de 70 metros, até à berma do sentido Sul/Norte da EN ..., onde se imobilizou;

16. Em concreto, imobilizou-se na posição perpendicular ao sentido de trânsito Sul/Norte, parcialmente na berma e parcialmente na faixa de rodagem correspondente, com o lado do condutor para o pavimento, os pneumáticos para Norte, e a traseira para a faixa de rodagem, a 2,40 metros da longitudinal descontínua;

17. Em virtude do embate, o motor do “RENAULT ...” foi projetado para a berma do sentido Norte/Sul, na direção da esquina norte do muro da entrada do acesso automóvel à habitação com o número de polícia ...92;

18. Por seu turno, o “MERCEDES” embateu na esquina norte do citado muro, voltou a embater na esquina sul do muro dessa entrada e imobilizou-se paralelamente ao muro, com a traseira para nascente (portão da residência) e a frente para poente (EN...), com o rodado dianteiro direito a 3,40 metros da linha guia e o rodado traseiro direito a 6,30 metros;

19. Após ser embatido o “RENAULT ...” imobilizou-se a 26 metros do local onde se imobilizou o “MERCEDES”;

20. O local é uma reta com cerca de 300 metros até ao local do embate, com boa visibilidade;

21. A via pública em questão é uma estrada nacional, com uma via para cada sentido de trânsito e bermas em ambos os sentidos;

22. A faixa de rodagem tem 7,20 metros e a berma 2,50 metros;

23. As vias da estrada nacional mencionado em 21. são marginadas por edifícios destinados a habitação, todos com acesso direto para a estrada;

24. A estrada nacional mencionada em 21. é entroncada por diversas vias;

25. Na reta mencionada em 20, está aposta sinalização luminosa (semáforos) para controlo da velocidade a 50 km/h;

26. O piso é em asfalto betuminoso e encontrava-se em estado de conservação irregular;

27. Possuía, e possui, iluminação pública, que se encontrava a funcionar e que, à noite, permite avistar a via numa extensão de 70 metros;

28. No sentido Norte/Sul existia, e existe, a seguinte sinalização:

- Sinal B8 – cruzamento sem prioridade;

- Sinal A16a – passagem de peões

- Sinal C14a – proibição de ultrapassar

- Sinal H7 – passagem para peões

- Placa de localidade (...)

- Sinal C20c – fim da proibição de ultrapassar

29. As condições atmosféricas e ambientais eram boas, o tempo e piso estavam secos;

30. Ambos os veículos circulavam com as luzes de cruzamento ligadas;

31. A velocidade máxima permitida no local da colisão é de 50km/h;

32. No local ficaram:

- concentrados na via do sentido Norte/Sul, próximo do eixo da via, vidros partidos;

- vestígios de raspagem do “RENAULT ...” no betuminoso,

- peças espalhadas entre o local de embate e a posição final dos veículos;

33. Não foram detetados rastos de travagem no pavimento;

34. Em resultado do embate descrito em 8. a 16., AA foi encontrado no interior da viatura, em estado inconsciente e com fraturas e lesões;

35. O ofendido foi assistido no local pela VMER, durante uma hora, tendo sido detetada a “via aérea permeável, com conteúdo alimentar na boca, expansibilidade simétrica, estável hemodinamicamente, Glasgow inicial 6 (O1V1M4), membro superior esquerdo com sinais de fratura, entubação orotraqueal sob etomidato e midazolam”;

36. O ofendido foi admitido no serviço de urgência do Hospital de ... às 23h36 do dia 18.10.2014 “na sequência de acidente de viação com projeção dentro da própria viatura com traumatismo craneoencefálico”;

37. Na sala de urgência do Hospital de ... foi constatado que o ofendido padecia de assimetria na expansibilidade torácica “francamente diminuída à esquerda”, devido a aspiração;

38. Após entrada nas urgências, o ofendido realizou broncofibroscopia por suspeita de atelectasia, que revelou “conteúdo em ambos brônquios principais esquerdos”, que foi aspirado, com melhoria;

39. Após entrada nas urgências, o ofendido realizou Tomografia Computadorizada (TAC) crânio-encefálica que revelou:

• “contusões hemorrágicas com edema adjacente em planos justacorticais das regiões fronto-basais bilaterais, temporopolar esquerda, temporal lateral esquerda, parietal posterior esquerda e frontal alta parassagital direita;

• pequeno hematoma justaposto à vertente direita do septo interventricular/vertente anterior do tálamo direito, acima do forâmen de Monro, difícil de definir se intra ou extraventricular;

• Vestígios hemáticos sobre a tenda do cerebelo e na cisura intra-hemisférica;

• Hemorragia subaracnoídea na cisterna;

• Sistema ventricular com amplitude dentro da normalidade;

• Sulcos da convexidade cerebral pouco amplos, podendo refletir edema cerebral embora se verifique diferenciação da substância cinzenta-branca e se constate patência das cisternas da base patentes;

• Amígdalas cerebelosas em posição normal;

• Hematoma epicraniano parieto-occipital esquerdo;”;

40. Após entrada nas urgências o ofendido realizou “TAC toracoabdominopélvica que revelou:

• “pedículo cardiovascular centrado e normodimensionado;

• Sem derrame pleural ou pericárdico;

• Focos de densificação em vidro despolido na língua;

• Aspiração de conteúdo gástrico em doente com estômago distendido por abundante conteúdo alimentar (…)

• Pneumediastino mínimo;

• Fratura da clavícula esquerda;

• Contusão do pólo superior do baço, com hematoma laminar peri-proximal do ureter, mas sem sinais de lesão renal ou respetivo pedículo vascular;

• Diástase da sacroilíaca esquerda;

• Incipiente fraturas ístmicas e pedicular de L5;

• Pequenos hematomas adjacentes ao músculo obturadir esquerdo e no espaço de Retzius; (…)

• O hematoma do espaço de Retzius deverá ter ponto de partida na lesão da sínfise púbica”;

41. À observação pela especialidade de ortopedia “(…) na Sala de Emergência, foi diagnosticado ao ofendido (…) fratura de hangman – desvio de C2 sobre C3, fratura da clavícula esquerda, fratura diafisária do úmero esquerdo, fratura dos ossos do antebraço esquerdo, fratura da estiloide esquerda, fratura da base do 5.º meta esquerdo, fratura vertical do sacro direito, ipsilateral, fratura dos ramos ilioisquiopubiclos, sem desvio vertical ou abertura lateral, sem aumento da complacência volume da bacia, sem aparente disrupção dos ligamentos sacrotuberosos, sacroespinhosos ou interósseo posterior, cinta pélvica para facilitar mobilizações em bloco, espondilolise L5 (…)”;

42. À observação pela especialidade de cirurgia vascular foi diagnosticado ao ofendido “(…) pulso braquial e radial esquerdo via dopler, sem aparentes disformidades. “floating shoulder e floating elbow”, perante suspeita de compartimento antebraço esquerdo beneficia de fasciotomia antebraço e damage control orthopedics com osteotaxia com fixador externo úmero e antebraço esquerdo (…)”;

43. Após conclusão da cirurgia mencionada no ponto 42., o ofendido foi admitido na Unidade de Cuidados Intensivos Neurológicos;

44. Em 20.10.2014 o ofendido foi submetido a uma cirurgia de “esplenectomia total” pela especialidade de cirurgia geral;

45. Em consequência da cirurgia realizada em 20.10.2014, o ofendido, em 08.12.2014, realizou vacinação antipneumocócia, que deverá manter anualmente;

46. Em 25.10.2014, devido ao aumento de pressão intracraniana refratária ao tratamento médico instituído, o ofendido foi submetido a uma cranioctomia descompressiva bifrontal;

47. O ofendido manteve-se sob sedação e analgesia até ao 21.º dia de internamento, momento em que começou a recuperar gradualmente a consciência;

48. Após recuperação da consciência, o ofendido mostrava-se desorientado, no tempo e no espaço, mobilizando alguns dedos;

49. O ofendido não conseguia identificar objetos, repetia palavras, tinha dificuldade em cumprir ordens complexas, entre as quais as que incluíam a lateralidade direita/esquerda;

50. Em 04.11.2014, o ofendido foi submetido a uma intervenção cirúrgica pela especialidade de ortopedia para “encavilhamento com varela (…) com 2 parafusos proximais (…) osteossíntese da clavícula com placa de reconstrução (…) osteossíntese de ossos do antebraço (…) e parafuso percutâneo a estiloide radial (…)”;

51. O ofendido esteve em manutenção cerebral até 08.11.2014;

52. Em 10.11.2014 o ofendido realizou ressonância magnética (RMN) cerebral na qual se concluiu que “(…) Comparativamente ao exame anterior 04-11-2014: é globalmente sobreponível a permeabilidade do sistema ventricular supratentorial e a patência das cisternas de base. Melhoria da permeabilidade sulcal. Mantém-se a presença de componentes hemáticos traduzidos por hipersinal, acompanhados de edema do parênquima adjacente, a nível da região frontobasal e temporal anterior, bilateralmente finas sem efeito de massa marcado. A coleção extra-axial frontal com extensão epicraniana mantém espessura aproximadamente sobreponível ao estudo precedente persistindo componentes hemáticos recentes. Identificam-se múltiplas lesões focais com hipossinal T2 (hemossiderina) a nível da substância branca periventricular e cortico-subcorticais em ambos os hemisférios cerebrais, bem como topografia superopostero-medinal ao corno frontal e corpo de ventrículo lateral direito”;

53. Em 10.11.2014, o ofendido realizou RMN cervical na qual foi diagnosticado “(…) Mantém-se os aspetos identificados previamente por TC, nomeadamente a rotação axial do atlas para a direita, com massas laterais assimétricas no plano coronal, em relação com sub-luxação atlanto-axial. No estudo T2, STIR identifica-se moderado hipersinal das articulações atlanto-axiais bilateralmente, com extensão às vertentes laterais adjacentes ao processo odontoide, traduzindo edema da sinovial. Ligeiro hipersinal da unidade discal C2-C3 (…)”;

54. Em 25.11.2014, o ofendido foi submetido a uma “cranioplastia sem intercorrências encontrando-se descrito progressivamente mais orientado marcha autónoma, mantém desinibição do discurso”;

55. Em 17.12.2014 o ofendido era portador de alterações de memória com interferência em todas as atividades da vida diária e carecia de supervisão de terceira pessoa;

56. Para auxílio de memória foi elaborado ao ofendido um caderno diário das tarefas a realizar, com uma check list;

57. O ofendido teve alta do serviço de medicina física e de reabilitação em 22.12.2014;

58. Após alta do Hospital de …, o ofendido foi encaminhado para o Hospital de 2… para a Medicina Física e de Reabilitação e para acompanhamento por Psicologia, terapia da fala e terapia ocupacional, e, posterior, orientação para Psicologia com vista a reabilitação cognitiva, e orientado para monitorização e tratamento por ortopedia na sua área de residência;

59. No período em que esteve hospitalizado, o ofendido, perdeu peso;

60. Em 25.12.2014, o ofendido, devido à inflamação e infeção da cicatrização da cranioplastia mencionada em 54., deu entrada na Enfermaria de Neurocirurgia do Hospital de …, regressando no mesmo dia ao domicílio;

61. Pelos motivos referidos em 60., o ofendido, em 30.12.2014, regressou à Enfermaria de Neurocirurgia do Hospital de …, regressando no mesmo dia ao domicílio;

62. Em 02.01.2015, o ofendido foi internado no serviço de neurocirurgia do Hospital de ... por “(…) infeção da ferida cirúrgica com deiscência cutânea parcial na linha média”, tendo realizado estudo imagiológico que mostrou “emplema epidural subjacente a área de cranioctemia”;

63. Em 14.01.2015, o ofendido realizou uma “drenagem do empiema extradural bi-frontal”;

64. Nas quatro semanas subsequentes à cirurgia referenciada em 63. o ofendido realizou antibioterapia endovenosa com flucloxacilina;

65. O ofendido teve alta hospitalar em 24.02.2015;

66. Entre 10.03.2015 e princípios de 2017, o ofendido regressou às consultas de Medicina Física e de Reabilitação do estado cognitivo realizando habilitação e reabilitação psicomotora, reeducação da linguagem e da sensibilidade, treino de atividade da vida diária, treino de coordenação motora, fortalecimento muscular/mobilização articular, terapia ocupacional, terapia da fala e técnicas especiais de Cinesiterapia até princípios de 2017;

67. Entre 01.04.2015 e 14.12.2016 o ofendido compareceu a pelo menos seis consultas de Neurocirurgia no Hospital de ...;

68. Durante o período de 11.04.2015 a 29.04.2016, o ofendido compareceu a 11 consultas e 220 sessões de fisioterapia (hidroterapia e ginásio) na Santa Casa da Misericórdia de Vila do Conde;

69. Em 05.07.2015 o ofendido foi submetido a uma “cranioplastia bifrontal com prótese em PEEK (…) sem intercorrências (…)”, tendo alta em 09.05.2016;

70. Em 22.09.2015 o ofendido foi avaliado pela Clínica de Medicina Física e Reabilitação na qual se verificou que aquele “ainda não se encontra apto para a frequência de estabelecimento de ensino. prevê-se uma duração de pelo menos mais dois meses (…)”;

71. Em 28.09.2015, o ofendido foi avaliado pela clínica de neurocirurgia que verificou “melhoria cognitiva progressiva. Está a ser medicado com Levetiracetam por epilepsia secundária. Aguarda colocação de prótese craniana frontal para correção de defeito ósseo. Deve evitar situações que possam elevar o risco de traumatismo crânio-encefálico”;

72. Em 04.11.2015, em consulta externa de neurocirurgia, após observação do ofendido diagnosticou-se “melhoria cognitiva progressiva. Anosmia, ferida encerrada. Peço TAC cerebral de planeamento (…)”;

73. Entre 05.02.2017 e 27.10.2017, de Segunda a Sexta-feira, entre as 09h00m e as 17h00m, o ofendido frequentou o Centro de Reabilitação Funcional de Gaia, integrando um Programa de Recuperação e Actualização de competências pessoais e sociais, com foco na reabilitação neuropsicológica, em domínios como psicoterapia, treino de competências de comunicação e relacionamento interpessoal, treino de competências de autonomia pessoal e social e treino de competências de trabalho;

74. Entre 02.05.2017 e 27.10.2017 o ofendido frequentou o programa de recuperação e atualização de competências para pessoas com lesão cerebral adquirido no Centro de Reabilitação Profissional de Gaia;

75. Em 28.11.2017 o ofendido foi submetido a cirurgia para extracção de material de osteossíntese (EMOS) do úmero e da placa da clavícula, tendo alta em 29.11.2017;

76. À data do acidente, o ofendido frequentava, com aproveitamento escolar, o curso de Licenciatura em Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade …;

77. Em face das lesões sofridas, o ofendido tem falhas na memória, dificuldade de concentração, esquecimento fácil e dores físicas que obstaculizam o estudo e os períodos de descanso, tendo abandonado os estudos;

78. Antes do acidente mencionado em 1. a 19., o ofendido era um jovem saudável, escorreito, sem deformidades ou limitações, ocupando os seus tempos livres com a prática de desportos como body-bord, BTT e skate;

79. Em face das lesões mencionadas em 39. a 42., o ofendido deixou de praticar os desportos mencionados no ponto anterior;

80. O ofendido vive com dores permanentes;

81. O ofendido apresenta as seguintes sequelas:

• Crânio: cicatriz cirúrgica hipocrómica com cerca de 30 por 1,5 cm de maiores dimensões localizada na região frontal, disposta horizontalmente desde a região pré-auricular direita até à esquerda, posterior à linha de implantação capilar, com ausência de crescimento de pelo em toda a sua extensão e disfarçada por cabelo; prótese substituta do osso frontal praticamente imperceptível, distinguível ao toque;

• Tórax: cicatriz hipocrómica com cerca de 2,5 cm por 1 cm de maiores dimensões localizada na linha média axilar no terço superior do hemitórax esquerdo (que relaciona com colocação de dreno torácico);

• Abdómen: cicatriz cirúrgica hipocrómica com algum relevo com cerca de 17 por 0.5 cm de maiores dimensões disposta verticalmente e localizada na região mediana abdominal desde a região do apêndice xifóide até à região infra-umbilical;

• Membro superior esquerdo: 4 cicatrizes cirúrgicas hipercrómicas queloides localizadas na face anterior do ombro, uma com 8 por 1 cm, outra com 4 por 1 e outra com 5 por 5 cm separadas entre si por 1 cm de pele integra, bem como uma com 3 por 2 cm paralela às outras três, protuberância dura saliente palpável no terço lateral da clavícula; duas cicatrizes hipocrómicas uma com 1,5 por 1 cm e outra com 2 por 2 cm de maiores dimensões localizadas no terço superior da face lateral do braço, duas cicatrizes com 1,5 por 1 cm e outra com 1,5 por 0,5 cm de maiores dimensões localizadas no terço médio da face anterior do braço; cicatriz hípercrómica cirúrgica com 2 por 1 cm na face anteromedial do terço médio do braço; cicatriz cirúrgica linear com cerca de 11 cm de comprimento localizada no terço superior e médio do bordo radial do antebraço, cicatriz cirúrgica queloide hipercrómica com cerca de 26 por 3,5 cm de maior dimensão localizada em toda a extensão da face anterior do antebraço sem limitação dos arcos de movimento das articulações do membro superior;

• Perda de olfato;

• Perda do baço o que demanda plano vacinal específico para compensar a perda do órgão, não sendo causa de afetação funcional grave desde que observados cuidados de vacinação;

• Queixas dolorosas residuais controláveis com recurso a medicação apropriada;

• Perda de capacidades cognitivas manifestadas por dificuldades de memória,

défice de atenção e processamento lentificado;

• Alterações emocionais manifestadas por estados depressivos e dificuldade de autorregulação, passou a apresentar maior impulsividade traduzida em momentos de agressividade verbal;

82. A estabilização das lesões foi fixada em 15/05/2018, tendo demandado 1305 dias de doença com afetação das capacidades de trabalho geral (incluindo formativa) por igual período, a qual se iniciou de forma considerada grave e melhorou, de forma progressiva, ao longo do tempo, com os tratamentos e processo de reabilitação instituídos;

83. Na sequência das lesões crânio-encefálicas sofridas (traumatismo crânio-encefálico grave), associadas às lesões torácicas, AA correu concreto perigo de vida;

84. AA encontra-se inscrito na Segurança Social sob o número ...26;

85. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que praticava actos ilícitos com relevância penal e, mesmo assim, não se coibiu de adotar tais comportamentos;

86. De facto, ao atuar da forma descrita, estava ciente de que circulava a uma velocidade superior à permitida para a via pública em causa, e que ultrapassava em mais de 40km/hora o limite para esse local estabelecido;

87. Sabia também que, por se tratar de localidade marginada por edificações, deveria moderar a velocidade adotada e ajustá-la a essa circunstância;

88. Estava ciente de que, ao circular à velocidade a que circulava, tal circunstância o impediria de abrandar o veículo perante qualquer obstáculo que surgisse e evitar uma colisão com o mesmo;

89. Tinha ainda clara noção de que, ao conduzir da forma descrita violava grosseiramente as regras de circulação rodoviária relativas à velocidade e que, por via disso, poderia causar um acidente do qual resultassem danos para a vida ou integridade física de terceiros ou para bens patrimoniais alheiros de valor elevado e, ainda assim, quis conduzir, como conduziu;

90. Não obstante ter consciência de todas essas circunstâncias e de que poderia provocar acidente, o arguido mostrou-se indiferente a tal previsão, conformando-se com ela, e não se inibiu de proceder como procedeu;

91. Ademais, sabia ainda que, por atuar omitindo os deveres de cuidado na condução que lhe eram exigíveis e dada a velocidade por si imprimida ao seu veículo, poderia provocar ofensa física grave, com perigo para a vida de outros utentes da via, e não se conformou com a produção de tal resultado, nem quis adequar-se a tal previsão.

Mais se provou:

92. No dia mencionado em 1., anoiteceu por volta das 20:21;

93. A viatura identificada em 2. era de cor branca;

94. A viatura identificada em 1. era de cor cinzenta;

95. Em consequência do embate do “MERCEDES”, o muro mencionado em 6., de granito, ficou danificado numa extensão total de 6 metros, 3 metros para sul e 3 metros para norte do portão existente;

96. As bermas da estrada mencionadas em 21. estão ao mesmo nível da estrada;

97. A viatura identificada em 2. foi sujeita a inspeção periódica obrigatória em 24.05.2014;

98. A viatura identificada em 1. foi sujeita a inspeção extraordinária em 29.08.2014 e a inspecção periódica obrigatória em 28.07.2015;

99. O título de condução do ofendido, AA, com o número ...10 [0], foi emitido em 10.07.2013, pela DRMTN;

100. O título de condução do arguido, BB, com o número ...23 [0], foi emitida em 14.04.2010, pela DDVBR;

101. O ofendido perspetivava fazer carreira profissional no campo da investigação na área da biologia;

102. Em Janeiro de 2018, o ofendido iniciou um estágio profissional no Teatro Municipal da Câmara Municipal ..., cuja data de cessação não foi apurada, mas que ocorreu no mesmo ano;

103. Em 10.05.2019, o ofendido, AA, foi admitido ao serviço de “B... Lda.”, empresa para a qual se mantém a trabalhar;

104. O ofendido é portador de uma incapacidade permanente de 70%;

105. Em 22.09.2011, o arguido foi condenado na sanção de inibição de condução por 180 dias, suspensa na sua execução entre 22.09.2011 a 20.03.2012, pela prática de uma contraordenação, em 07.06.2010, por condução de automóvel ligeiro em localidade a mais de 20 km/h até 40 km/h;

106. À data do acidente, o arguido e o ofendido conduziam sem álcool e drogas no sangue;

107. O arguido é vendedor ambulante;

108. O arguido reside com a sua companheira e um filho comum, de dois anos, na morada supra indicada no concelho de Barcelos;

109. O arguido não tem qualquer averbamento no certificado de registo criminal.


***

3. Apreciação do mérito

3.1 Da prescrição do procedimento criminal

Consoante se apura do anteriormente exposto, entende o arguido, aqui recorrente, BB, em assumida discordância com a tese do tribunal a quo, igualmente sufragada pelo Ministério Público e assistente AA, que o procedimento criminal que lhe foi imputado já se mostrava extinto quando foi notificado da acusação.

Vejamos, então.

É consabido que o instituto da prescrição, sendo habitualmente caracterizado como um pressuposto negativo da instância [obstáculo processual], assenta em razões tanto de natureza jurídico-penal substantiva como processual.

Com efeito, sendo evidente que a simples passagem do tempo desde a verificação da ocorrência delituosa não pode, sem mais, justificar o esquecimento desta, também não pode deixar de considerar-se que, sob determinadas condições, o decurso de um certo lapso temporal será motivo para que o direito penal se abstenha de intervir [extinção do procedimento] ou de efectivar a sua reacção [extinção da pena], seja porque a censura comunitária, traduzida no juízo de culpa, se vai atenuando e pode até desaparecer, seja ainda porque as exigências de prevenção especial “porventura muito fortes logo a seguir ao cometimento do facto, tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos…”.

(…) Finalmente, e sobretudo, o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime (…) faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, já apaziguadas ou definitivamente frustradas”[3].

Depois, também em sede processual se encontra plenamente justificado o instituto de prescrição, “na medida em que o decurso do tempo torna mais difícil e de resultados duvidosos a investigação”[4].

 Os prazos de prescrição do procedimento criminal apresentam-se escalonados em função da gravidade do facto, servindo de referência o limite legal máximo da pena abstractamente fixada, sem que neste sejam consideradas as eventuais circunstâncias agravantes ou atenuantes. Por outro lado, estando previstas penas de prisão ou multa, em alternativa, atende-se sempre e apenas ao limite estabelecido para a pena detentiva da liberdade, tudo como melhor se vê dos n.ºs 1, 2 e 4, do art. 118º, do Cód. Penal.

In casu, foi imputada ao arguido a prática, em autoria material e concurso real, dos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de ofensa à integridade física grave por negligência, previstos e puníveis pelos arts. 291º, n,º 1, l. b) e 148º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Penal[5], a que corresponde pena de prisão até 3 anos e 2 anos, respectivamente.

Em consequência, o prazo prescricional a considerar é de 5 (cinco) anos, iniciando-se a respectiva contagem com a consumação do facto, nos termos do disposto nos arts. 118º, n.º 1, al. c) e 119º, n.º 1, do Cód. Penal, a qual pode ser suspensa ou mesmo interrompida verificando-se alguma das hipóteses previstas nos subsequentes arts. 120º e 121º, voltando o prazo a correr quando cessa a causa de suspensão e iniciando-se a contagem de novo prazo nas hipóteses em que se verifica uma causa interruptiva.

Quer dizer: A suspensão determina a paragem do prazo prescricional que volta a correr após a cessação da causa que a determinou e a interrupção determina a eliminação de todo o prazo de prescrição decorrido até aí começando a contar novo prazo após a verificação de cada acto interruptivo.

Nesta matéria, sob a epígrafe Suspensão da Prescrição, preceitua o art. 120º, do Cód. Penal, que:

1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;

b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;

c) Vigorar a declaração de contumácia; ou

d) A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência;

e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado;

f) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.

3 - No caso previsto na alínea c) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição.

4 - No caso previsto na alínea e) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar 5 anos, elevando-se para 10 anos no caso de ter sido declarada a excecional complexidade do processo.

5 - Os prazos a que alude o número anterior são elevados para o dobro se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional.

6 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.

Por seu turno, a propósito da interrupção da prescrição consagra o art. 121º, do citado Código, o seguinte:

1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:

a) Com a constituição de arguido;

b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo;

c) Com a declaração de contumácia;

d) Com a notificação do despacho que designa dia para audiência na ausência do arguido.

2 - Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.

3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.

In casu, a prática dos crimes reporta-se à data de 18 de Outubro de 2014 [sendo manifesto o lapso de escrita na indicação dessa data que consta da conclusão 14 da resposta do assistente, como decorre do contexto da declaração, designadamente das alegações antecedentes].

Consequentemente, nesse dia iniciou-se a contagem do prazo de prescrição interrompendo-se, porém, no dia 06 de Fevereiro de 2017, com a devida constituição de arguido – v., fls. 274, do I Volume, do processo físico – altura em que começou a correr novo prazo de 5 anos.

Resulta também dos autos que o arguido BB foi notificado da acusação contra ele deduzida no dia 30 de Março de 2022 [5º dia posterior ao do depósito da carta, a 25/03/2022, no receptáculo postal da sua morada - art. 113º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal] – cfr. prova de depósito junta a fls. 468, do II Volume, do processo físico.

Toda esta matéria é consensual – embora os sujeitos processuais invoquem, neste último acto referenciado, a data de envio do correio certificada no Citius (23/03/2022) que corresponde à prática do acto pelo funcionário judicial e não ao depósito da carta circunstância que, de todo o modo, se revela inócua para a questão controvertida – situando-se a divergência em matéria atinente à verificação de outra causa de suspensão da prescrição, no interregno temporal que mediou entre 06/02/2017 e 30/03/2022, com o arguido a sufragar tese negativa e, por conseguinte, a concluir pela ocorrência de prescrição em razão do decurso do prazo de 5 anos, e o Ministério Público e o assistente AA a sustentarem a solução contrária, estribados no regime de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade instituídos nas leis temporárias publicadas no âmbito do estado de emergência decretado por força da pandemia resultante do vírus SARS-CoV-2.

Recorde-se que a Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, na redacção introduzida 4-A/2020, de 16/04, dispõe no seu art. 7º, entre o mais, o seguinte:

Prazos e diligências

1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.

2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.

3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.

4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.

(…)”.

Por seu turno, por força das normas interpretativas constantes dos arts. 5º e 6º, n.º 2, da já citada Lei n.º 4-A/2020, repristinou-se a produção dos efeitos daquela ao dia 09/03/2020 só vindo a cessar a suspensão, com a revogação do aludido art. 7º, estabelecida no art. 8º, da Lei n.º 16/2020, de 29/05, com entrada em vigor no quinto dia seguinte ao da sua publicação, por força da disciplina constante do respectivo art. 10º, ou seja a 03/06/2020, perdurando, pois, a suspensão por 86 (oitenta e seis) dias  - 09/03 a 02/06/2020 – ou seja 2 meses e 26 dias.

No entanto, a Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, nos seus arts. 2º e 4º, veio introduzir novo regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais, ainda decorrente das medidas adoptadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, por via do aditamento do art. 6º-B, à Lei n.º 1-A/2020, com efeito a 22/01/2021 e que perdurou até ao dia 06/04/2021, data em que entrou em vigor a Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, que determinou a cessação do regime de suspensão de prazos adoptado, estabelecendo ainda no seu art. 5º, sob a epígrafe “Prazos de prescrição e caducidade” que: Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão.

Este segundo período de suspensão prolongou-se por 75 (setenta e cinco) dias, ou seja 2 meses e 15 dias.

Pese embora a assertividade do legislador na afirmação da suspensão dos prazos de prescrição existe dissenso na jurisprudência relativamente à possibilidade da suspensão assim estabelecida poder abranger processos que incluíam factos consumados antes da entrada em vigor de tais leis.

Assim, na jurisprudência inicialmente publicada dos Tribunais Superiores comuns predominou o entendimento de que as previstas suspensões apenas podiam aplicar-se a factos verificados já na vigência de tais leis sob pena de violação do princípio da não retroactividade da lei criminal, previsto no artigo 19º, nº 6, da Constituição da República Portuguesa.

Tal entendimento tem na sua génese a consideração da natureza mista ou mesmo substantiva de algumas normas processuais, havendo consenso doutrinário e jurisprudencial alargado no sentido do instituto da prescrição ser «integrado por normas processuais materiais e por normas exclusivamente processuais», pertencendo à primeira categoria «as normas sobre os termos, os prazos, as causas de interrupção e de suspensão, os efeitos e a legitimidade para a invocar»[6], pelo que a sua aplicação retroactiva só poderá acontecer se mais favorável ao arguido.

Consequentemente, nenhuma lei sobre prescrição mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos pode ser aplicada ao arguido, como seria o caso da consideração de nova causa de suspensão do prazo prescricional pois que, assim, seria necessariamente alargado em prejuízo do agente uma vez que permitiria a perseguição criminal e eventual punição para além do prazo que vigorava à data da prática dos factos.

É que, não obstante não ter havido ampliação do prazo de prescrição previsto no regime geral em vigor à data da prática da infracção, a modificação legal das circunstâncias interruptivas ou suspensivas de tal instituto influencia necessariamente o prazo máximo de prescrição, pelo que a sua aplicação retroactiva violará o princípio da legalidade, salvo se mais favorável ao agente, tudo como decorre do disposto nos arts. 2º, n.ºs 1 e 4, do Cód. Penal e 29º, n.ºs 1 e 4, da Const. Rep. Portuguesa, podendo consultar-se[7], neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7/12/2021, Processo n.º 200/09.8TASRE.C3 (Rel. Mª José Nogueira); do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15/12/2022 e 17/04/2023, Processos n.ºs 60/18.8T9BRG.G1 e 1183/15.0T9BRG.G1 (Rel. Pedro Freitas Pinto e Florbela Sebastião e Silva); do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/03/2021 e 15/12/2022, Processos n.ºs 207/09.5PAAMD-A.L1-5 e 804/03.2PCALM-A.L1-9 (Rel. Vieira Lamim e Paula Penha) e do Tribunal da Relação de Évora, de 10/05/2022, Processo n.º 1407/18.2T9LAG.E1 (Rel. Nuno Garcia).

Uma segunda corrente jurisprudencial, partindo também da ideia de que a aplicação da aludida causa de suspensão da contagem do prazo de prescrição, por força da situação de emergência sanitária, a processos em curso, colide com o princípio da legalidade criminal, na vertente da proibição de aplicação retroactiva da lei nova desfavorável ao arguido, por força do princípio consagrado no já citado art. 29º, n.º 4, não justificando o estado de emergência o afastamento da proibição da aplicação retroactiva da lei penal prejudicial ao agente, conclui depois, no entanto, que a decretada suspensão dos actos e prazos nos processos criminais, imposta pela Lei n.º 1-A/2020 e, posteriormente, pela Lei n.º 4-B/2021, consubstancia e integra a causa suspensiva da prescrição constante do art. 120º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, por se verificar a falta de autorização legal para o processo continuar, circunstância que não conflitua com o princípio da legalidade nem colide com a não retroactividade da lei penal, porquanto está em causa suspensão da prescrição do procedimento criminal já expressamente contemplada na lei ao tempo da data da prática dos factos.

Assim, partindo do mesmo entendimento conclui em sentido diverso, com fundamento na interferência da substância das leis temporárias publicadas, nas causas de suspensão estatuídas no regime geral do Código Penal, à data dos factos, deixando incólume o princípio da legalidade na vertente da não retroactividade da lei penal, de que são exemplo os Acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto de 09/03/2022, 07/09/2022, 01/02/2023 e 08/03/2023, Processos n.ºs 1056/21.8T9PVZ.P1 e 294/22.0T9VCD.P1 (Rel. João Pedro Pereira Cardoso); 2544/22.4T9AVR.P1 (Rel. Liliana de Páris Dias) e 3482/22.6T9AVR.P1 (Rel. Paula Natércia Rocha)[8].

Finalmente, em contraciclo, uma terceira corrente jurisprudencial sufraga que a aplicação da suspensão ditada pelas Leis Temporárias n.ºs 1-A/2020 e 4-B/2020, por causa da situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, aos processos pendentes à data da sua publicação não viola qualquer princípio constitucional.

Adianta-se que a suspensão em causa constituiu uma medida legislativa de carácter extraordinário e aprovada num quadro de elevada excepcionalidade e ruptura por virtude do coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, com repercussão mundial.

E, acrescenta-se que não estamos perante retroactividade directa ou de primeiro grau, no sentido de aplicação de uma regra nova a contexto passado mas face a aplicação de preceito a quadro temporal futuro relativo a realidade contemporânea – a pendência processual, sendo o contraponto da determinada paragem da tramitação processual e prática de actos processuais, entre os quais alguns com natureza interruptiva ou suspensiva da prescrição. Aliás, o invocado alargamento do prazo prescricional em razão da introdução dessa suspensão e consequente prejudicialidade para o agente do crime é aparente na sua essência, porquanto é contrariada pela impossibilidade de, nesse mesmo período, serem praticados actos processuais destinados a obstar ao decurso do prazo prescricional como seria o caso se não tivesse sido imposta a paralisação da promoção e tramitação dos processos em virtude do confinamento de emergência, afigurando-se a aplicação aos processos pretéritos dessa suspensão perfeitamente proporcional e consentânea com os preceitos constitucionais vigentes.

De outro modo, o prazo de prescrição do procedimento criminal não se suspenderia mas o arguido beneficiaria de um período temporal em que, por força da mesma lei, diligências processuais não poderiam, entretanto, ser desencadeadas, v.g. as notificações previstas nos arts. 120º, n.º 1, al. b) e 121º, n.º 1, als. a), b) e d), do Cód. Proc. Penal, que constituem causas de suspensão e/ou interrupção do prazo prescricional do procedimento criminal.

Não está aqui em causa a tentativa de suprir a inércia do Estado na perseguição criminal mas antes e apenas o equilíbrio das medidas que foi necessário adoptar para controlo da pandemia. Neste sentido, se pronunciaram os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17/03/2022, Proc. n.º 806/21.7T9PBL.C1 (Rel. Vasques Osório); do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07/06/2023, Proc. n.º 135/22.4YUSTR.L1.PICRS (Rel. Paula Pott) e do Tribunal da Relação de Évora, de 18/04/2023, Proc. n.º 1186/19.6T8TMR.E1[9].

Acontece que, as reservas, supra assinaladas, dos Tribunais Comuns nesta matéria, não encontram suporte na jurisprudência do Tribunal Constitucional que, unânime e pacificamente, se tem pronunciado no sentido da constitucionalidade da aplicação da suspensão do prazo prescricional constante das Leis n.º 1-A/2020 e 4-B/2020 aos processos já iniciados à data da sua entrada em vigor, como se pode ver, entre o mais, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 500/2021, de 09/06/2023, proferido no Proc. n.º 353/21-3ª Secção; 98/2021, de 21/10/2021, Proc. n.º 164/2021-1ª Secção e 660/2021, de 29/07/2021, Proc. n.º 367/2021-1ª Secção[10].

E o entendimento no sentido da constitucionalidade está de tal modo sedimentado que a questão é já apreciada em decisão sumária, como se pode ver, designadamente, no Processo n.º 362/2023, da 3ª Secção (Decisão Sumária n.º 256/2023), de 24/04/2023, relatada pela Ex.ma Conselheira Joana Fernandes Costa.

Rebatendo a argumentação em contrário da aplicação dos prazos de suspensão estabelecidos nas já citadas Leis n.ºs 1-A/2020 e 4-B/2020 a todos os processos, aí se exarou, além do mais e no que ao caso interessa, o seguinte:

«… o parâmetro extraído do n.º 6 do artigo 19.º da Constituição, aditado pelo recorrente em alegações, não é útil nem apropriado para contraditar a validade constitucional da solução impugnada. Esta não decorre de normas emitidas pelo Governo em execução da declaração do estado de emergência constante do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 ou de qualquer uma das suas sucessivas renovações; decorre antes de normas constantes de Lei aprovada pela Assembleia da República no exercício da sua normal competência legislativa, o qual não é inibido, nem condicionado pela declaração do estado de emergência.

É por isso que o vício de inconstitucionalidade apontado pelo recorrente, a existir, só poderá resultar da confrontação direta com a proibição de aplicação retroativa da lei penal de conteúdo desfavorável, consagrada no artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição, do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, na interpretação segundo a qual a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência.

(…)

a tese sustentada pelo recorrente para demonstrar a incompatibilidade da norma sindicada com a proibição de aplicação retroativa da lei penal de conteúdo desfavorável assenta nas seguintes premissas: (i) as normas jurídicas que disciplinam a prescrição do procedimento contraordenacional têm natureza jurídica idêntica às normas que integram o instituto da prescrição do procedimento criminal, estando por isso sujeitas ao mesmo regime constitucional; (ii) tal como as normas que definem o prazo de prescrição do procedimento criminal e estabelecem as causas da sua interrupção, também as normas que tipificam as respetivas causas de suspensão revestem natureza material, encontrando-se sujeitas aos limites que a Constituição fixa à aplicação da lei criminal substantiva nos mesmos exatos termos em que o estão as normas que definem as ações e omissões puníveis e determinam as penas correspondentes; (iii) qualquer norma que preveja uma nova causa de suspensão do decurso do prazo de prescrição, ainda que constante de legislação temporária ou de legislação de emergência, não pode produzir efeitos em processos pendentes por factos praticados antes do início da respetiva vigência sem com isso violar a proibição constante do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição; (iv) esta proibição constitui uma salvaguarda constitucional não derrotável por razões de «superior interesse público», cujo valor é, em concreto, além do mais relativo, como o demonstra a circunstância de os «próprios prazos processuais terem continuado a correr e a impor-se, com o processo a ser tramitado». 

Para além de contar já com algum apoio doutrinário (v., neste sentido, José Joaquim Fernandes Oliveira Martins “A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – uma primeira leitura e notas práticas”, Revista Julgar Online, março de 2020, disponível em http://julgar.pt/a-lei-n-o-1-a2020-de-19-de-marco-uma-primeira-leitura-e-notas-praticas/, p. 7, e Rui Cardoso/Valter Baptista,  Estado de Emergência - COVID-19 Implicações na Justiça, Centro de Estudos Judiciários, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19_2Edicao.pdf, p. 533-536), a tese sustentada pelo recorrente dispõe de um expressivo lastro jurisprudencial.

(…)

21. Ao considerar que a aplicação imediata da causa de suspensão da prescrição prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, não integra uma hipótese de «retroatividade direta ou de primeiro grau, no sentido de aplicação de regra nova a contexto passado» — mas antes, depreende-se, uma situação de retroatividade inautêntica ou imprópria, própria das normas que preveem inovadoramente consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data -, o Tribunal a quo não só aderiu a uma conceção do instituto da prescrição inteiramente distinta daquela que é defendida pelo recorrente, como acabou por alinhar, ainda que sem o dizer, com a posição que, a propósito das normas que procedem ao alargamento dos prazos de prescrição, vem sendo sufragada por importantes sectores da doutrina estrangeira, sobretudo germânica e italiana, assim como pelo TEDH e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (adiante, «TJUE»).

25. Apesar de o Tribunal vir perfilhando o entendimento de que o instituto da prescrição tem uma natureza, senão material, pelo menos mista, a ideia de que essa classificação é suficiente para determinar sem mais a sujeição de todos os elementos que integram o respetivo regime jurídico a todas as exigências que decorrem do princípio da legalidade, enquanto garantia pessoal de não punição fora do domínio de uma lei escrita, prévia, certa e estrita, não encontra respaldo, pelo menos inequívoco, na jurisprudência constitucional.

(…)

26. Ao contrário dos arestos acima mencionados, que trataram da relação do instituto da prescrição com o princípio da legalidade apenas na dimensão de lei estrita, o Acórdão n.º 449/2002, proferido no mesmo contexto, ocupou-se diretamente do problema da vinculação daquele instituto às exigências de lei prévia e lei certa, tendo-o feito justamente a propósito da tipificação das causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal. Por ser aquele que mais diretamente releva para a questão a apreciar no âmbito do presente recurso, é especialmente importante atentar nos fundamentos invocados neste aresto.

As  questões então colocadas ao Tribunal Constitucional foram as seguintes: em primeiro lugar, tratava-se de saber se a opção por um elenco não taxativo das causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, expressa na ressalva dos demais casos especialmente previstos na lei (artigo 120.º, n.º 1, do Código Penal), é compatível com a exigência de lei certa decorrente do princípio da legalidade; em segundo lugar, tratava-se de determinar se uma causa de suspensão da prescrição que viesse a constar de lei especial, na medida em que pretendesse aplicar-se a «factos criminosos praticados antes da sua consagração», violaria o princípio da legalidade, agora na dimensão de lei prévia, expressa na proibição da retroatividade in pejus.

O Tribunal considerou ambas as possibilidades compatíveis com o artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.

Quanto à primeira, não teve dúvidas em afirmar que «o princípio da legalidade – e, em concreto, a exigência de tipicidade – não requer que todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal estejam previstas na mesma norma legal. Apenas pode postular que a norma que preveja cada uma (ou várias) daquelas causas seja suficientemente precisa e seja emitida pela Assembleia da República ou pelo Governo, no uso da indispensável autorização legislativa [artigo 198º, n.º 1, alínea b), da Constituição]». Conclusão que - afirmou-o também - «não é invalidada pela circunstância de a norma que consagra a causa de suspensão do prazo prescricional [...] ser posterior. Na verdade, a cláusula "geral" ou de "remissão" dirige-se a todas as normas que vigoravam à data da sua entrada em vigor ou hajam entrado em vigor posteriormente (mas, claro está, na sua vigência)».

Quanto à segunda, considerou expressamente que a aplicação imediata da nova causa de suspensão da prescrição do procedimento não configura um caso de retroatividade proibida pelos n.ºs 1 e 3 da Constituição: ao aplicar-se imediatamente, a nova causa de suspensão «aplica-se para o futuro a processos crimes ainda pendentes, embora resultantes de crimes cometidos no passado» (itálico aditado).

Tal afirmação - que não deixa de evidenciar uma certa aproximação à orientação defendida na doutrina italiana e germânica, sufragada pelo Tribunal recorrido (supra, n.º 21) -, foi explicitada do seguinte modo:

«11. O caso de "retroatividade" com que nos confrontamos, nos presentes autos, constitui uma situação de retroatividade de segundo grau (artigo 12º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil), "retroatividade inautêntica" ou "retrospetividade". A norma do artigo 336º, n.º 1, do Código de Processo Penal não se aplica retractivamente – aplica-se para o futuro a processos crimes ainda pendentes, embora resultantes de crimes cometidos no passado.

Esta solução normativa só poderia ser julgada inconstitucional se ofendesse de modo arbitrário, inesperado ou desproporcionado, expectativas do agente do crime contemporâneas da prática do facto (artigo 2º e 29º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição). Ora, não se pode inferir do princípio da confiança, que constitui corolário do Estado de direito democrático, a exata cognoscibilidade de todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal no momento da prática do facto.

Por isso, a interpretação e consequente aplicação temporal que o tribunal a quo fez do artigo 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982 não viola o princípio da legalidade, na sua exigência de não retroatividade in pejus.»

27. Percorridos os dados mais relevantes da doutrina, da jurisprudência dos tribunais comuns, da jurisprudência do TEDH e do TJUE e, mais importante ainda, da jurisprudência constitucional, crê-se ser nesta altura possível traçar o quadro de relacionamento do instituto da prescrição com o princípio da legalidade penal à luz do qual deverá ser encarada a questão da compatibilidade do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, interpretado no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, com a exigência de lei prévia, na dimensão correspondente à proibição da retroatividade in pejus.

Ao estatuir que «[n]inguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» (n.º 1), nem sofrer «penas que não estejam expressamente cominadas em lei anterior» (n.º 3) ou «mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos» (n.º 4), o artigo 29.º da Constituição consagra o princípio da legalidade penal em termos equivalentes à sua formulação latina nullum crimen sine lege, nulla poena sine praevia lege poenali, da autoria de Anselm von Feuerbach, que corresponde, ainda hoje, ao modo de enunciação universal daquele princípio.

(…)

As normas relativas à prescrição do procedimento criminal não se encontram incluídas, de modo literal, na proibição da retroatividade in pejus fixada para as normas incriminadoras (neste sentido, quanto à proibição da analogia, v. Acórdão n.º 205/1999). A sua recondução ao âmbito de aplicação do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4.º, da Constituição, só poderá fazer-se, por isso, com apoio em argumentos jurídico-constitucionais, os quais, por sua vez, haverão de extrair-se, não da classificação das normas atinentes ao instituto da prescrição segundo os critérios desenvolvidos no plano infraconstitucional, mas antes da ratio da proibição da retroatividade in pejus e, por conseguinte, dos próprios fundamentos do princípio da legalidade penal. Ainda que para justificar uma leitura maximizadora das garantias inerentes àquela proibição, não deixa de ser esse o sentido em que adverte Pedro Caeiro: a distinção entre normas processuais formais e normas processuais materiais não deve constituir um «prius relativamente à questão da (não) sujeição das normas» — ou de certa norma — «àquela proibição da retroatividade, mas sim um resultado da correta delimitação do âmbito de aplicação da retroatividade desfavorável» (“Aplicação da lei penal no tempo e prazos de suspensão da prescrição do procedimento criminal: um caso prático”, Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, 2001, Coimbra Editora, p. 243). O que vale por dizer que, quando se trata de determinar o estatuto constitucional de certo elemento legal à face do artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição, importa ter em definitivo presente, «não tanto a integração deste ou daquele instituto no direito penal ou processual, quanto a função atribuída pela Constituição ao princípio da irretroatividade» (Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini, ob. cit., p. 59).

28. É sabido que o princípio da legalidade penal tem como fundamento a ideia de que um Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição) deve proteger o indivíduo não apenas através do direito penal, mas também do direito penal (cf. Claus Roxin, ob. cit., p. 137). Trata-se, portanto, de um princípio defensivo, que atribui aos cidadãos posições de defesa perante o Estado, enquanto titular oficial do poder punitivo. Em sintonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, onde foi pela primeira vez consagrado, o princípio da legalidade penal continua a ter como função proteger o indivíduo perante o direito penal, colocando-o a salvo de uma intervenção estadual excessiva ou arbitrária.

A proibição da retroatividade in pejus explica-se inteiramente a esta luz: ao contrário do que sucede com a imposição da retroatividade in mellius, «que possui uma génese e um fundamento especificamente político-criminal», ligado à «ausência de exigências de prevenção que justifiquem a persistência da aplicação ao caso da lei (mais severa) que vigorava no momento da prática do facto», a proibição da retroatividade in pejus tem uma génese e um fundamento «marcadamente político-jurídico», diretamente associado à «defesa da liberdade e da segurança dos cidadãos contra o arbítrio do Estado» (Pedro Caeiro, loc. cit., p. 235-236, itálico aditado). É justamente isso que explica que, não obstante «ser questionável a existência de um verdadeiro direito do agente a que a inércia do Estado na prossecução penal o beneficie» (Acórdão n.º 205/1999), as normas relativas à prescrição, designadamente as que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão do prazo respetivo, se encontrem, prima facie, subordinadas à proibição da retroatividade in pejus.

Apontam para essa conclusão dois dados essenciais.

Em primeiro lugar, importa levar em conta que tanto as causas de interrupção como as causas de suspensão da prescrição se destinam a tornar «efetiva a possibilidade de se vir a aplicar o Direito Penal no caso concreto» (cf., uma vez mais quanto à proibição da analogia relativamente à interrupção da prescrição, Acórdão n.º 205/1999): as primeiras porque têm por efeito a inutilização do tempo de prescrição já decorrido (artigo 121.º, n.º 2, do Código Penal); as segundas porque originam a paralisação do decurso do prazo de prescrição pelo tempo em que perdurar o evento suspensivo, observados os limites máximos fixados na lei (artigo 120.º, n.º 6). Assim, a exigência de que umas e outras se encontrem fixadas em lei prévia tenderá a considerar-se justificada a partir da ideia de controlo do exercício do poder punitivo do Estado através do Direito que previamente criou: as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus, na medida em que se destinam a proteger o indivíduo contra possíveis abusos por parte do legislador, opõem-se à possibilidade de o Estado, através da ampliação retroativa do elenco das causas de interrupção ou suspensão da prescrição, mitigar ou até mesmo reverter a débito do arguido os efeitos da «sua inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto» (cf., uma vez mais quanto à proibição da analogia em matéria de interrupção da prescrição, Acórdão n.º 205/1999). Neste sentido, a proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem as causas de interrupção e de suspensão da prescrição do procedimento criminal partilhará dos fundamentos da proibição da aplicação retroativa das normas que estabelecem os pressupostos da responsabilidade: tal como esta, também aquela será imposta em nome da defesa do cidadão contra a discricionariedade e o arbítrio ex post facto.

Em segundo lugar, importa não perder de vista que a ratio da proibição da retroatividade in pejus se liga igualmente ao princípio da confiança. Como se escreveu no Acórdão n.º 261/2020, as garantias inerentes àquela proibição assentam «numa ideia de previsibilidade (por sua vez enraizada no princípio da confiança) das normas, no sentido em que qualquer cidadão, para além de não poder ser surpreendido pela incriminação de um comportamento anteriormente adotado (n.º 1 do artigo 29.º da Constituição), também não pode ser surpreendido pela aplicação de uma sanção mais grave ou por normas processuais materiais de efeitos mais gravosos do que aqueles com que podia contar à data em que praticou os factos (n.º 4 do artigo 29.º da Constituição)» (Acórdão n.º 261/2020).

(…)

Mesmo não pondo em causa que, em matéria de prescrição, o conceito de retroatividade é dado tempus deliti e não pelo terminus do prazo - o que, conforme se viu, não corresponde sequer à orientação sufragada no Acórdão n.º 449/2002 -, não restam dúvidas de que a causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, pela sua singularidade, escapa totalmente a ambas as rationes com base nas quais é possível justificar o alargamento às normas sobre prescrição das garantias inerentes à proibição da retroatividade. 

29. A medida constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 — já o notámos — insere-se no âmbito de legislação temporária e de emergência, aprovada pela Assembleia da República para dar resposta à crise sanitária originada pela pandemia associada ao coronavírus SARS-CoV-2 e à doença COVID-19.

No cumprimento do seu dever de proteção da vida e da integridade física dos cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição, respetivamente), o Estado adotou um conjunto de medidas destinadas a conter o risco de contágio e de disseminação da doença, baseado na implementação de um novo modelo de interação social, caracterizado pelo distanciamento físico e pela diminuição dos contactos presenciais.

No âmbito da administração da justiça — vimo-lo também —, o cumprimento desse dever de proteção conduziu à excecional contração da atividade dos tribunais, concretizada através da sujeição dos atos e diligências processuais ao regime das férias judiciais referido no n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, e, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 4-A/2020, à regra da suspensão, pura e simples, de todos os prazos processuais previstos para aquele efeito. Para os processos urgentes, começou por estabelecer-se um regime especial de suspensão dos prazos para a prática de atos, ainda que com exceções (artigo 7.º, n.º 5, da Lei n.º 1-A/2020), que a Lei n.º 4-A/2020 acabou por modificar, impondo a sua normal tramitação desde que fosse possível assegurar a prática de atos ou a realização de diligências com observância das regras de distanciamento físico.

Por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser. Relativamente aos procedimentos criminais, assim sucedeu com a dedução da acusação, a prolação da decisão instrutória e a apresentação do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo (artigos 120.º, n.º 1, alínea b), e 121.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal), a declaração de contumácia (artigos 120.º, n.º 1, alínea c), e 121.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal) e a constituição de arguido (121.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal). Já no âmbito dos procedimentos contraordenacionais, o mesmo se verificou, pelo menos, com a prolação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima (artigo 27.º-A, n.º 1, alínea c), e 28.º do RGCO), a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomadas ou qualquer notificação (artigo 28.º, n.º 1, alínea a), do RGCO), a realização de quaisquer diligências de prova (artigo 28.º, n.º 1, alínea b), do RGCO) e a prolação da decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima (artigo 28.º, n.º 1, alínea d), do RGCO).

É este particular e especialíssimo contexto que está subjacente à fixação, por lei parlamentar, de uma causa de suspensão da prescrição que não somente é transitória, como se destinou a vigorar apenas e só durante o período em que se mantivesse — se manteve — o condicionamento à atividade dos tribunais determinado pela situação excecional de emergência sanitária e pelo concomitante imperativo de proteção da vida e da saúde dos operadores e utentes do sistema judiciário: suspendeu-se o decurso do prazo de prescrição porque se suspenderam os prazos previstos para a prática dos atos suscetíveis de obstar à sua verificação; suspenderam-se os prazos previstos para a prática desses (e de outros) atos processuais porque se suspendeu a atividade normal dos tribunais de modo a prevenir e conter o risco de infeção dos intervenientes no sistema de administração da justiça, incluindo dos próprios arguidos.

Como bem notou o Tribunal recorrido, encontramo-nos, pois, diante de um «mecanismo normativo […] instrumental», destinado a fazer face a uma «situação de rutura e anormalidade», em estreita e indissociável relação com o já designado «“lockdown” da justiça penal» (Gian Luigi Gatta, “Lockdown da justiça penal, suspensão da prescrição do crime e princípio da irretroatividade: um curto-circuito”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 30, n.º 2, maio-agosto de 2020, p. 297 e ss.) originado pela crise sanitária, que afetou em intensa medida — ou mesmo eliminou — a possibilidade de serem praticados os atos processuais suscetíveis de interromper e de suspender a prescrição.

Não é demais sublinhar que se trata de uma suspensão, e não de uma interrupção, do prazo prescricional: o tempo de prescrição já decorrido desde a data da consumação do ilícito típico não é inutilizado; apenas o seu decurso é paralisado pelo tempo correspondente à paralisação do normal processamento dos termos ulteriores dos processos em curso.

Neste contexto, é evidente que a causa de suspensão da prescrição estabelecida no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 apenas se encontraria apta a cumprir aquela função se pudesse aplicar-se aos procedimentos pendentes por factos anteriores ao início da sua vigência. Como refere Gian Luigi Gatta a propósito de norma congénere aprovada em Itália (artigo 83.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 18, de 17 de março de 2020), «[t]rata-se de uma disposição temporária pensada precisamente para os processos em curso e, como tal, para ter eficácia retroativa. Suspende-se uma atividade em curso por força da impossibilidade do seu prosseguimento, determinando-se um prazo para o seu reatamento, congelando-se o intervalo de tempo entretanto volvido. A suspensão é forçada: não é imputável a ninguém e não há razão para que beneficie quem quer que seja» (loc. cit., p. 303).

Esta última afirmação é especialmente relevante: conforme se verá em seguida, ela sintetiza, na verdade, as duas razões que explicam a impossibilidade de reconduzir a causa de suspensão prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, à ratio da proibição da retroatividade in pejus, consagrada no artigo 29. º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição.

30. Dizer-se que a suspensão «não é imputável a ninguém» é o mesmo que dizer-se que a suspensão não é imputável ao Estado.

Tendo em conta os fundamentos inerentes ao princípio da legalidade penal, tal constatação, para além de correta, é particularmente esclarecedora.

A suspensão do decurso do prazo de prescrição dos procedimentos sancionatórios pendentes durante o período em que vigoraram as medidas de emergência adotadas na Lei n.º 1-A/2020 não se destinou a permitir que o Estado corrigisse ou reparasse os efeitos da sua inércia pretérita no âmbito do exercício do poder punitivo de que é titular. Destinou-se apenas e tão só a responder aos efeitos de uma superveniente e não evitável paralisação do sistema de administração da justiça penal, imposta pela necessidade de controlar e conter a disseminação de um vírus potencialmente letal. Tratando-se de uma causa de suspensão e não de interrupção do prazo de prescrição, cuja vigência não excedeu o lapso temporal durante o qual se verificou a afetação ou condicionamento da atividade dos tribunais, nem conduziu — reticus, não tinha sequer a virtualidade de conduzir — à reabertura dos prazos prescricionais já integralmente decorridos, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não exprime qualquer excesso, arbítrio ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus: ao determinar a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia então em curso, a solução adotada limita-se, na verdade, a assegurar «a produção do efeito útil da norma de emergência» (idem, p. 313), não ingressando no âmbito da esfera defensiva que é assegurada pelo princípio da legalidade.

Não é diferente a conclusão a que se chega se encararmos a proibição da retroatividade in pejus a partir da proteção da confiança, como fez o Tribunal recorrido.  

Se tal proibição visa garantir ao destinatário uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal, é relativamente evidente, quando se trate de estender o respetivo âmbito de incidência para além dos limites traçados pela letra dos n.ºs 1, 3 e 4, do artigo 29.º, que a sua invocação deixará de ter fundamento se o evento em causa se situar no mais elevado grau daquilo que não é por natureza antecipável, como sucede com a paralisação do sistema de administração da justiça penal ditada pelo súbito e inesperado surgimento de uma pandemia à escala global.

(…)

Em suma: para além de absolutamente congruente com o mais amplo critério seguido na jurisprudência do TEDH e do TJUE, a norma extraída dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, não se encontra abrangida, nem pela letra, nem pela ratio da proibição da retroatividade in pejus a que a Constituição, no seu artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, sujeita a aplicação das leis que definem as ações e omissões puníveis e fixam as penas correspondentes. 

31. Tudo o que se disse até agora assentou na consideração da causa de suspensão da prescrição estabelecida nos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, independentemente da natureza criminal ou contraordenacional dos procedimentos em curso.

A circunstância de a interpretação sindicada se cingir aos procedimentos contraordenacionais pendentes por factos anteriores ao início da vigência da Lei n.º 1-A/2020 apenas serve para tornar mais evidente a conclusão que acima se alcançou. Com efeito, apesar de o direito das contraordenações, enquanto direito sancionatório público, ser influenciado ou “matizado” pelos princípios constitucionais do direito penal, a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal obsta a que tais princípios possam ser transpostos deste para aquele de forma automática ou imponderada ou que possam aí valer com na mesma exata extensão ou com o mesmo grau de intensidade (cf. Acórdão n.º 76/2016; no mesmo sentido, a propósito da liberdade de conformação do legislador na modelação do instituto da prescrição, v.  Acórdão n.º 297/2016). No que diz respeito à proibição constitucional da retroatividade in pejus, isso significa que ela se estenderá ao direito contraordenacional somente enquanto manifestação nuclear da função de garantia do princípio legalidade, exigida pela ideia de Estado de Direito e oponível ao arbítrio ex post facto.

Resta concluir, assim, que, ao proibir que qualquer cidadão seja «sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão» ou sofra pena que não esteja expressamente cominada «em lei anterior» ou mais grave do que a prevista «no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos», o artigo 29.º da Constituição, respetivamente nos seus n.ºs 1, 3 e 4, não se opõe à aplicação de uma causa de suspensão da prescrição com a função e o recorte daquela que foi prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2000, a procedimentos contraordenacionais pendentes por factos praticados antes do início da respetiva vigência.»

(…)

Para melhor compreender o que pode estar em causa, há que começar por distinguir as duas dimensões do princípio da legalidade criminal em que se apoiou o juízo positivo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida. Em apertada síntese, a exigência de lei certa traduz-se num comando dirigido ao legislador ordinário, impondo-lhe que, ao criar ou agravar responsabilidade criminal, especifique suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança) e defina as penas (e as medidas de segurança) que lhe correspondam; já a exigência de lei estrita tem por destinatário o intérprete-aplicador da lei penal, impondo-lhe o respeito pelo texto da lei e vedando-lhe a possibilidade do recurso à analogia como fundamento da criação ou agravação de responsabilidade.

Tendo em conta as razões invocadas no despacho recorrido, apenas a exigência de lei certa parece apta a fundamentar o juízo positivo de inconstitucionalidade que ali se alcançou. Com efeito, tal juízo apoia-se na ideia de que, «ao não definir expressamente a que processos e procedimentos se aplica», por um lado, e ao «não se encontrar delimitada no tempo», por outro, a causa de suspensão da prescrição prevista no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 constará de lei incerta e, como tal, não pode ser aplicada sem violação do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.    

Nenhuma das razões é procedente.

Quanto à primeira, não se vê como possa considerar-se afetada a exigência de determinabilidade imposta à Lei n.º 1-A/2020, nos termos em que a sinalizou o Tribunal a quo. No n.º 3 do artigo 7.º, a referida Lei é expressa e inequívoca ao estipular que a causa de suspensão dos prazos de prescrição aí prevista se aplica a «todos os tipos de processos e procedimentos», fórmula que obviamente compreende todos os procedimentos que se encontrem sujeitos a prazos prescricionais, como é o caso dos procedimentos de natureza criminal. É certo que se trata de uma causa de suspensão da prescrição tipificada em norma parlamentar que não integra o Código Penal. Todavia, se é esta a circunstância que afinal serve de base ao juízo positivo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida, bastará recordar, como fez o Acórdão n.º 500/2021, que o princípio da legalidade, na sua dimensão de lei certa, «não requer que todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal estejam previstas na mesma norma legal. Apenas pode postular que a norma que preveja cada uma (ou várias) daquelas causas seja suficientemente precisa e seja emitida pela Assembleia da República ou pelo Governo, no uso da indispensável autorização legislativa [artigo 198º, n.º 1, alínea b), da Constituição]» (Acórdão n.º 449/2002). Por último, não deixará de notar-se que, caso o Tribunal recorrido tivesse levado até às últimas consequências a afirmação de que a norma que «considera aplicável aos prazos definidos no Código Penal» a causa de suspensão prevista no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 «não integra o texto da lei» ¾ isto é, não se encontra abrangida pela fórmula «todos os tipos de processos e procedimentos» ¾, teria aplicado, e não desaplicado, o referido preceito legal e, em obediência à exigência de lei estrita, ter-lhe-ia negado esse sentido interpretativo possível justamente por transcender «o texto da lei» interpretanda.

A segunda razão apontada no despacho recorrido diz à incerteza da lei sobre o términus da causa de suspensão do prazo de prescrição. Segundo o Tribunal a quo, ao não delimitar o âmbito temporal de vigência da causa de suspensão, a norma sindicada «suspende indefinidamente o prazo de prescrição do procedimento criminal», o que consubstancia mais uma linha de colisão com o princípio da legalidade criminal, consagrado no n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.      

Basta atentar no quadro legal relevante para verificar que assim não é. Para além do próprio artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 prever que o regime constante do respetivo n.º 3 vigoraria «pelo período de tempo em que vigora[sse] a situação excecional» (n.º 4), «cessando em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional» (n.º 3), os dados normativos subsequentes vieram confirmar essa previsão, com a revogação do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 pelo artigo 8.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, que a alterou. O que, diga-se ainda, foi igualmente sublinhado no Acórdão n.º 500/2021, onde se sublinhou tratar-se de uma «causa de suspensão da prescrição que não somente é transitória, como se destinou a vigorar apenas e só durante o período em que se mantivesse - se manteve - o condicionamento à atividade dos tribunais determinado pela situação excecional de emergência sanitária e pelo concomitante imperativo de proteção da vida e da saúde dos operadores e utentes do sistema judiciário».

É incontestável que a Lei n.º 1-A/2020 não fixou, ela própria, um termo final certo ao período de suspensão da prescrição motivado pela causa tipificada no n.º 3 do artigo 7.º. Ao invés, limitou-se a estabelecer que a suspensão da prescrição perduraria «pelo período de tempo em que vigora[sse] a situação excecional», cuja cessação seria declarada por ato legislativo subsequente, como veio a suceder. Mas isso não põe em causa a certeza da lei. O que faz é colocar o termo final do período de suspensão da prescrição na dependência de um determinado acontecimento futuro, certo quanto à sua superveniência, mas incerto quanto ao momento da sua verificação. Em termos que, aliás, não são muito diferentes daqueles em que, antes da revisão levada a cabo pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, o artigo 120.º do Código Penal modelava a causa de suspensão da prescrição que continua a prever na alínea c) do respetivo n.º 1, ao determinar que a prescrição do procedimento criminal se suspenderia por todo o tempo em que vigorasse a declaração de contumácia. Note-se que, enquanto esta solução poderia conduzir, de facto, a «suspende[r] indefinidamente o prazo de prescrição do procedimento criminal» — no limite, até à extinção do procedimento por efeito da verificação de uma outra causa (como a amnistia ou a morte do agente) —, a causa de suspensão da prescrição prevista no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 é por inerência transitória, tendo-se comprovado que a respetiva «vigência não excedeu o lapso temporal durante o qual se verificou a afetação ou condicionamento da atividade dos tribunais» (Acórdão n.º 500/2021). Seja como for, o que importa essencialmente reter é que, num caso como no outro, a ausência de fixação de um termo final certo ao período de suspensão da prescrição não põe em causa a exigência de tipificação das causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal que decorre do princípio da legalidade criminal, na dimensão de lei certa.

(…).»

Salvo o devido respeito por opinião diversa, não vislumbramos fundamento válido para dissentir da jurisprudência do Tribunal Constitucional que, em nosso entender, demonstra à saciedade a inconsistência dos argumentos e obstáculos opostos à aplicação da suspensão prevista nas leis temporárias publicadas em decorrência da situação pandémica resultante da doença COVID-19.

Consequentemente, ao contrário da tese do recorrente, quando foi notificado da acusação ainda não tinha sido atingido o limite máximo do prazo de prescrição em razão das causas de interrupção e suspensão legalmente previstas e atendíveis.

E, por outro lado, também ainda não se completou o prazo máximo de prescrição previsto no art. 121º, n.º 3, do Cód. Penal (5 anos+2 anos e 6 meses +3 anos, contados desde a data da prática dos factos[11]).

Em consequência e face ao exposto, resta concluir pela falta de razão do recorrente já que o procedimento criminal relativamente aos crimes imputados não se mostra extinto por prescrição.


***

3.2 Do concurso de crimes

O arguido BB insurge-se por ter sido condenado, em concurso efectivo, pelos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de ofensa à integridade física grave por negligência, previstos e puníveis pelos arts. 291º, n.º 1, al. b), 148º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Penal, invocando que as infracções em causa têm uma área comum de tutela de bens jurídicos e que havendo apenas uma vítima a conduta tem que ser censurada unificadamente e punida pela moldura legal mais severa, ou seja pelas disposições conjugadas dos arts. 291º e 285º, este por remissão do art. 294º, n.º 3, todos do Cód. Penal.

O Ministério Público e o assistente AA defendem a manutenção do decidido estribando-se no preenchimento simultâneo e efectivo dos dois tipos de crime, um deles a título de dolo eventual e outro de negligência consciente, na tutela de bens jurídicos não inteiramente coincidente, já que o crime do art. 291º defende um bem jurídico complexo que se prende, em 1ª linha com a segurança rodoviária na via pública alheia à infracção restante, e depois estão em causa lesões físicas gravíssimas resultantes de acto de negligência manifestamente temerário e especialmente censurável.

Por sua vez, o assistente alega ainda que se o arguido não concordava com o entendimento plasmado na acusação quanto à qualificação jurídica devia ter requerido a abertura de instrução e que não o tendo feito não o pode fazer agora.

Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo PGA sustentou também a existência de concurso efectivo de infracções, argumentando, entre o mais que:

“O entendimento de que se está perante um concurso efectivo de crimes mostra-se plenamente assumido, entre outros, no Acórdão proferido a 23 de Maio de 2006, do Tribunal da Relação de Lisboa (processo: 2146/2006-5; relator; Vieira Lamim), no qual, aliás, se faz breve recensão de elementos jurisprudenciais e doutrinários que sustentam aquele entendimento.

E conforme se afirma nessa mesma decisão «Como ensina o Prof. Eduardo Correia, a relação de especialidade “Traduz-se na relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que na lex especialis se contêm já todos os elementos duma lex generalis, isto é, daquilo que chamamos um tipo fundamental de crime, e, ainda, certos elementos especializadores. Esta relação terá como efeito, evidentemente, a exclusão da lei geral pela aplicação da lei especial: lex specialis derogat legi generali... ponto será que a realização de um tipo especial de crime esgote a valoração jurídica da situação, sob pena, de outra forma, de se violar o princípio ne bis in idem. É o que sucede, por exemplo, entre o crime de ofensa à integridade física simples e ofensa à integridade física qualificada, mas não entre a ofensa à integridade física por negligência e a condução perigosa de veículo rodoviário. Há uma relação de subsidiariedade quando um preceito penal só seja aplicado desde que um outro não tenha aplicação, o que, manifestamente, não é o caso dos dois tipos de crime em causa. A relação de consunção ocorre quando entre os valores protegidos pelas normas criminais se verifica por vezes relações de mais e menos: uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa. Também não é o caso dos autos, pois o crime de ofensa à integridade física protege a própria ofensa a esse bem jurídico, enquanto o art.291, o perigo de violação desse bem jurídico. Ocorre, deste modo, uma relação de concurso efectivo entre os dois crimes, como foi entendido na decisão recorrida.» (sublinhado do signatário).

Não se ignora que Paula Ribeiro de Faria[12] e Francisco Marques Vieira[13], consideram não estarmos na presença de um concurso efectivo no que toca a uma condução perigosa de veículo rodoviário de que resulta morte ou ofensas à integridade física grave, uma vez que, nesses casos, a responsabilização – ou “a agravação da punição” – não se fará segundo as regras do concurso de crimes, mas sim por força da aplicação do artigo 285.º por remissão do artigo 294.º…”, numa construção que, salvo erro de percepção do signatário, significa que apenas se verificará uma situação de possível concurso entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário consagrado no artigo 291.º do Código Penal, com os crimes de dano e/ou com o crime de ofensas à integridade física simples, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 212.º (e seguintes) e 143.º, do mesmo diploma legal.

Também Damião da Cunha afirma[14] que “o art. 285º constitui um caso de agravação de pena”, o que indica que “a pena que ao crime se deve aplicar haverá de ser superior àquela que resultaria das regras decorrentes do concurso de crimes (concurso entre o crime fundamental e o crime de homicídio ou ofensas corporais graves negligentes, cfr. os arts. 137º e 148º-3)”.

Todavia, o que se verifica é que, na realidade, a agravação a efectuar nos termos pugnados pelos autores que se vêm de referir, não se verifica superior face àquela que resultaria do concurso de crimes, situação esta que se tem tanto mais desadequada quanto é certo que – conforme também ensinamentos do Professor Eduardo Correia expressamente invocados no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa acima referido – não só a previsão normativa do crime de condução perigosa apenas se reporta à criação de perigo e não à consumação do efectivo dano, como a punição resultante da aplicação daquela norma conduz a uma sanção inferior à que resultaria da aplicação das regras respeitantes ao concurso de crimes, o que, salvo o devido respeito por melhor entendimento, demonstra que:

- a previsão normativa do artigo 291.º do Código Penal não se mostra desenhada de forma a permitir configurar uma situação de concurso ideal ou aparente entre o crime de condução perigosa de veículo automóvel e o crime de ofensas à integridade física, em casos como o dos autos, não se conseguindo afirmar que poderá defender-se a existência, pelo menos, de “um certo grau de consunção” entre ambas as normas, já que entre os valores protegidos por cada uma delas, se verifica, por essa via, uma relação de mais e de menos;

(…)

Assim sendo e ressalvado o devido respeito por distinto e melhor entendimento, quer-se crer que o facto da solução resultante da aplicação do critério assumido pelos autores antes mencionados ser susceptível de conduzir à aplicação de uma moldura penal (e consequente sanção) inferior à que resultaria da aplicação das regras respeitantes ao concurso de crimes, ainda que se defenda que se regista um certo grau de consunção, não será adequada quando, em caso como o dos autos se regista uma muito significativa e concreta lesão da integridade física da pessoa antes colocada em perigo, antes se tendo como nítido que tal solução, de alguma forma, omite o facto de a tutela dos bens jurídicos vida e/ou integridade física efectivamente atingidos/lesados ser, de alguma forma, postergada em benefício da tutela do “simples” colocar em perigo aqueles mesmos bens jurídicos que, assim, não se mostram plenamente tutelados pela norma que afasta o concurso efectivo.

(…) recuperar os ensinamentos do Professor Eduardo Correia (…) “… enquanto a especialidade se pode afirmar em abstracto, só em concreto se pode afirmar a consunção dum pelo outro”.

Atendendo ao que se vem de expor e considerando também quanto mais resulta das respostas apresentadas nos autos quer pelo assistente, quer pelo Ministério Público na primeira instância, sou de parecer que, também nesta parte, deverá ser desatendida a pretensão recursiva do arguido.

Por sua vez, o tribunal a quo limitou-se a apreciar os requisitos típicos de cada uma das referidas infracções e a concluir pela respectiva verificação e consequente condenação do arguido em autoria material e concurso real sem qualquer explicitação dos fundamentos de tal opção.

Vejamos, então.

Sob a epígrafe “Condução perigosa de veículo rodoviário”, dispõe o art. 291º, do Cód. Penal, que:

“1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:

a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou

b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita[15];

e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

(…)”.

Com este tipo de ilícito pretendeu o legislador conter a sinistralidade rodoviária e proteger os utentes da via de condutas potenciadoras de acidente, aliás à semelhança do que acontece com a norma seguinte (art. 292º), criminalizando a condução realizada sem que o condutor esteja em condições de o fazer com segurança e/ou com inobservância grosseira das regras estradais fundamentais taxativamente elencadas.

Assim, não é suficiente que se violem as regras de condução.

“É necessário que se trate de uma violação grosseira dessas mesmas regras, ou seja, uma violação de elementares deveres de condução, susceptível de traduzir o carácter particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego, e para os bens jurídicos pessoais envolvidos. Em suma, exige-se um grau especial de violação de deveres (não podem ser punidas violações de pequena dimensão)”[16].

E, trata-se de um crime de perigo concreto, porquanto da conduta do agente terá que resultar um perigo real e efectivo para a vida ou integridade física de outrem ou para bens alheios de valor elevado[17].

 A existência de perigo concreto depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

 Existência de um objecto de perigo tipificado;

 A entrada do objecto do crime no círculo de perigo;

 A não ocorrência de dano por força de circunstâncias inesperadas ou de esforços extraordinários e não objectivamente exigíveis de terceiros ou do ameaçado ou devido a circunstâncias criadoras de hipóteses de salvamento incontroláveis e irrepetíveis, ou seja a circunstância que possibilitou a não ocorrência da lesão não deve parecer ao homem médio repetível, controlável, de fácil exercício ou normal.

Deste modo, seguindo na esteira de Claus Roxin, o perigo concreto tem que ser percepcionado em termos essencialmente fácticos, segundo as circunstâncias particulares do caso, embora sem excluir aquelas situações em que é possível sustentar uma espécie de reconhecimento geral do aludido perigo, que ocorre quando o objecto de acção entrou no âmbito da acção daquele que o põe em perigo e quando a acção típica tem que ter criado um perigo iminente de lesão do objecto da acção. Ou seja, existirá perigo concreto quando um determinado resultado lesivo somente não se produziu por mera casualidade.

Consequentemente, a imputação da infracção em causa depende da prova da existência de um perigo concreto, designadamente para a integridade física alheia de um qualquer utente da via ou de um terceiro que se encontra na sua imediação (v.g. na berma, à porta de casa ou de um café que a ladeie), em resultado da falta de condições para o exercício da condução ou, então, da violação de alguma das regras estradais elencadas no tipo.

Por seu turno, consagra o art. 148º, n.º 1, do Cód. Penal que: ”Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Pena esta agravada, no n.º 3 do mesmo preceito, para prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, se do facto resultar ofensa à integridade física grave.

Assim, este tipo de crime pressupõe que:

î O agente assuma um comportamento comissivo ou omissivo;

î Esse comportamento viole o dever objectivo de cuidado;

î Ocorra a lesão da integridade física de uma pessoa (resultado);

î A imputação desse resultado à conduta do agente.

Com efeito, o tipo de ilícito do facto negligente considera-se preenchido por um comportamento desviante daquele que era objectivamente devido numa situação de perigo para bem jurídico-penal tutelado, para desse modo obviar a uma violação juridicamente proibida. Por outro lado, a negligência pressupõe sempre a violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impendia e que conduziu à produção do resultado típico - previsível e evitável para o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente - e admite diversas graduações, em função da culpa do agente[18].

O art. 15º, do Cód. Penal, prevê a negligência consciente [o agente prevê a possibilidade de realização do facto mas age sem se conformar com essa realização – al. a)] e a inconsciente [o agente nem sequer representa a realização do facto – al. b)], podendo qualquer delas assumir a natureza de grosseira se associada a culpa temerária, ou omissão das cautelas mais elementares, atinentes a uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade.

Do exposto, poderia concluir-se que os crimes em causa tutelariam bens jurídicos perfeitamente diversos; a segurança rodoviária no caso da condução perigosa de veículo rodoviário e a ofensa a bens de natureza pessoal (lesão do corpo ou saúde) no crime de ofensa à integridade física por negligência.

Todavia, a primeira infracção referenciada contempla também a protecção da integridade física (e vida) por força da remissão do art. 294º, n.º 3, para a agravação prevista no art. 285º, ambos do Cód. Penal, onde se estatui que:

“Se dos crimes previstos nos artigos (…) resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.

Assim, a integridade física alheia grave, como ocorre nos presentes autos, encontra protecção nuclear em ambos os tipos legais mencionados.

Ora, percorrendo a matéria de facto dada como assente afigura-se que ficou demonstrada uma conduta de criação dolosa de perigo do tipo fundamental (condução perigosa) acrescida de resultado negligente que o mesmo também contempla e, assim, esgota a tutela penal.

E, ao contrário do sufragado pelo assistente é irrelevante que o arguido não tenha accionado a fase de instrução para discutir a qualificação jurídica dos factos.

Trata-se de uma fase processual facultativa que não sendo requerida não preclude qualquer direito do arguido sindicar a imputação criminosa que consta da decisão condenatória ainda que a mesma coincida com a qualificação dos factos exarada na acusação.

Por outro lado e tal como já vimos, embora o citado art. 291º, n.º 1 proteja apenas o perigo de violação de determinados bens jurídicos de natureza pessoal e patrimonial, prevê igualmente – à semelhança do art. 148º - a protecção da própria ofensa à integridade física grave por força das disposições conjugadas do seu n.º 3 e art. 285º, do Cód. Penal.

Assim, ainda que a protecção dos bens jurídicos nos tipos referidos não seja inteiramente coincidente, existe perfeita identidade relativamente àquele que, in casu, releva, ou seja a integridade física grave por negligência.

Consequentemente, o argumento da significativa gravidade das lesões sofridas pelo ofendido, com vista a sustentar a existência de um concurso efectivo de infracções entre o crime de condução perigosa e o de ofensa à integridade física grave por negligência, não pode colher já que é precisamente esse o âmbito de cobertura da agravação prevista no art. 291º.

Mais acresce que a matéria de facto apurada e descrita nos presentes autos também não suporta invocação do Ministério Público no sentido de que a mera imputação do crime de condução perigosa, por consumpção, “não será adequada quando, em caso como o dos autos se regista uma muito significativa e concreta lesão da integridade física da pessoa antes colocada em perigo.”

É que, na presente hipótese o concreto perigo exigido pela densificação normativa típica da condução perigosa e a lesão da integridade física são unívocas e simultâneas já que existe apenas uma vítima, inexistindo qualquer comportamento anterior do qual resultasse perigo para o ofendido ou um qualquer outro utente da via. A única interacção entre ambos ocorre no momento do embate dos veículos do qual resultaram as lesões sofridas pela vítima. De igual modo, a regra de circulação rodoviária que criou perigo para a integridade física de terceiro (o ofendido AA) é exactamente a mesma – porque única – que consubstancia a violação do dever de cuidado, ou seja a velocidade.

Neste conspecto, acompanhando a doutrina e jurisprudência dominantes[19], crê-se que a hipótese dos presentes autos se enquadra na previsão das disposições conjugadas dos arts. 291º, n.º 1, al. b), 294º, n.º 3 e 285º, todos do Cód. Penal, não se verificando qualquer situação de concurso, assistindo, pois, razão ao recorrente, com a consequente revogação da condenação pelo crime de ofensa à integridade por negligência grave e reformulação da pena aplicada ao crime de condução perigosa de harmonia com a moldura legal agora aplicável [40 dias a 4 anos de prisão ou multa de 13 a 480 dias correspondentes aos acréscimo de 1/3 aos limites mínimo e máximo (v. também art. 47º, n.º 1, do Cód. Penal)], ficando prejudicada a questão da redução da pena única.


***

3.3 Da escolha e dosimetria das penas

3.3.1 Da escolha da pena pecuniária

Uma vez que o recorrente pretende também a aplicação de pena pecuniária ao invés da pena de prisão - aduzindo que colaborou com a descoberta da verdade material, dando a sua versão sobre os factos em crise e não possui antecedentes criminais -, importa recordar, antes de mais, o que a propósito da escolha e dosimetria da pena ficou exarado na decisão recorrida: (transcrição)

(…)

Ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, é aplicável uma pena de prisão até 3 anos ou uma pena de multa.

(…)

Admitindo a punição prevista a aplicação, em alternativa, de duas penas principais, cumpre antes de mais proceder à determinação da espécie de pena que concretamente irá ser aplicada, atendendo, para o efeito, ao sentido e alcance do princípio geral que resulta da combinação dos artigos 40.º e 70.º do Código Penal.

Dispõe o artigo 70º do Código Penal que, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

O conteúdo deste artigo sintetiza o princípio basilar que deve presidir à aplicação de penas criminais na nossa ordem jurídica.

Conforme refere Figueiredo Dias, atento o princípio da subsidiariedade da intervenção penal, existe um princípio de preferência pelas reações criminais não detentivas face às detentivas.

Resulta deste princípio que as medidas detentivas só têm lugar quando as não detentivas se revelem inadequadas ou insuficientes à prevenção.

Optando-se pela pena privativa da liberdade quando esta tem necessariamente de se dirigir para a socialização do delinquente.

(…)

Assim, dado que a aplicação de penas tem por objetivo a proteção de bens jurídicos e a integração do agente na sociedade, serão sempre e apenas considerações de prevenção geral e especial, e nunca de retribuição da culpa, a decidir da possibilidade de, em cada caso concreto, preferir uma ou outra reação criminal.

Por outro lado, de entre as finalidades preventivas, o legislador português destaca as finalidades de prevenção especial, como fundamentadoras do movimento de luta contra as penas curtas de prisão aplicáveis à pequena e média criminalidade; pelo que o Tribunal só deverá recusar a aplicação da pena alternativa não privativa da liberdade, quando tal opção se revele inconveniente para a viabilidade e sucesso de um projecto de ressocialização, funcionado as exigências de prevenção geral – enquanto defesa do ordenamento jurídico – como um limite mínimo à actuação das exigências de socialização.

Atentemos então, primeiramente, nas exigências de prevenção geral positiva que no caso se fazem sentir.

No que respeita aos ilícitos em apreço, quer quanto ao crime de condução perigosa, quer quanto ao crime de ofensa à integridade física grave por negligência, são bastante significativas as exigências de prevenção geral verificadas, atenta a frequente ocorrência de sinistros rodoviários decorrentes da violação das prescrições estradais com danos severos para a integridade física de terceiros, quando não fatais, fazendo, assim, perigar o bem jurídico da integridade física e da segurança da circulação rodoviária.

Comportamentos que, em si, são geradores de alarme social e que evidenciam a necessidade de o aplicador do Direito reafirmar a sua validade contrafáctica repondo a sua valia jurídico-social ao emitir um concreto juízo de censura, consciencializando, a comunidade, para a censura destas condutas.

Tal alarme social, no caso, sai particularmente reforçado quando é certo a situação dos autos foi de um impacto inegavelmente marcante, designadamente ao nível das consequências, manifestamente gravosas.

Por sua vez, ao nível de prevenção especial, entende o Tribunal que as exigências também são elevadas, apesar do arguido estar pessoal, social e profissionalmente inserido, é necessário que o arguido interiorize o desvalor das suas ações, consciencializando-se que, os comportamentos desenvolvidos não são socialmente aceitáveis, sendo certo que até já havia sido sancionado em matéria de contraordenação estradal.

Ademais, das declarações prestadas pelo arguido, verifica-se que este, além de não se ter mostrado arrependido dos factos que lhe foram imputados, revelou igualmente incapacidade para interiorizar o desvalor da sua conduta, já que nunca assumiu a gravidade dos seus actos, querendo, inclusive, responsabilizar o ofendido pelos eventos ocorridos supra dados como provados, sendo manifesta, por via da imediação, a falta de empatia relativamente ao respetivo sofrimento.

Tudo sopesado entende o Tribunal que a pena de multa não é suficiente para acautelar as elevadas exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, pelo que o tribunal entende que o reforço da validade das normas violadas apenas se fará de modo pleno por via da aplicação de penas de prisão principal, o que se decide.

Nos termos do disposto no artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, a determinação da medida da pena concreta, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial do agente, determinando o n.º 2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do arguido, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio "ne bis in idem", uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata).

Para o efeito, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (exigências de prevenção geral) e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.

Depois, nos termos do disposto no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, as finalidades da punição são, por um lado, de prevenção especial de ressocialização, visando a reintegração do agente na sociedade e prevenindo-se a prática de futuros crimes, atendendo-se a diversas variáveis como, por exemplo, a conduta, a idade, a vida familiar e profissional e os antecedentes do agente, e, por outro lado, de prevenção geral ou de integração, que, dirigida à satisfação da consciência coletiva com o objetivo de repor a conformidade para com o direito, procura restabelecer a confiança da comunidade na validade da norma infringida.

Atendendo-se, sobretudo, ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, como a frequência e o espaço em que o mesmo ocorre e o alarme que está a provocar na comunidade.

Ora, no presente caso, atender-se-á:

a) ao grau de ilicitude que é elevado, atendendo a que o arguido, além de ter imprimido uma velocidade manifestamente superior à permitida para a via onde circulava, efetuou uma manobra de desvio à esquerda, invadindo a hemifaixa contrária àquela em que seguia, redundando em extensas e graves lesões, algumas de cariz irreversível para a pessoa do ofendido;

b) ao grau de gravidade das condutas do arguido que demandaram para o ofendido 1305 dias de doença, com afetação das capacidades de trabalho geral (incluindo a componente letiva deste). Afetação inicialmente considerada grave, com progressão melhorada ao longo do tempo, devido aos tratamentos, cirurgias e processo de reabilitação instituído, mas sem reposição do estado de saúde anteriormente detido pelo ofendido, ante as sequelas permanentes com que ficou, nomeadamente ao nível neurológico;

c) à elevada intensidade do dolo, por um lado, na modalidade de direto, com que o arguido atuou, ao imprimir velocidade manifestamente excessiva à sua viatura no ato de condução, querendo praticar tal ato;

d) à negligência, por outro, na modalidade de consciente, com que o arguido praticou o crime de ofensa à integridade física grave, pois o arguido ao circular em excesso de velocidade e imprimir uma manobra de desvio à esquerda, atuou sem o cuidado a que estava obrigado e era capaz de adotar, representando como possível que poderia embater num outro veículo e, consequentemente, causar uma lesão corporal noutra pessoa;

e) às condições pessoais do arguido, que revelam estar integrado social, profissional e familiarmente;

f) ao comportamento do arguido anterior e posterior aos factos, sendo que, à data da prática dos factos, o arguido não tinha qualquer averbamento no seu certificado de registo criminal, mas tinha um averbamento no seu registo individual de condutor, precisamente por condução com excesso de velocidade (facto provado 106.);

Assim, tudo ponderado, afigura-se adequado aplicar ao arguido, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário [em concurso aparente com as contraordenações previstas nos artigos 24.º, n.ºs 1 e 3, 25.º, n.º 1, alínea c), e 27.º, n.ºs 1, 2, alínea a), 3, 4 e 7, do Código da Estrada], a pena de 1 ano de prisão e, pela prática do crime de ofensa à integridade física grave por negligência, uma pena de 1 ano e 4 meses de pena de prisão.

Apreciando.

É consabido que a intervenção do direito penal assenta no reconhecimento de que os homens podem ser influenciados nos seus comportamentos por normas e valores, especialmente quando se afigura provável a realização de umas e outras através do emprego da força. Ele pretende por isso, mediante o estabelecimento de linhas de conduta, cominações penais, aplicação e execução de penas, motivar o cidadão – tanto o potencial delinquente como as pessoas em geral – a observar aquelas normas cujo respeito é imprescindível para que os homens possam conviver em paz e liberdade.

É também inegável que, no âmbito da política criminal, característica dos Estados de Direito e, por consequência, assente na dignidade humana, é disponibilizada uma panóplia de penas diversas, onde a prisão é encarada como ultima ratio, apenas sendo escolhida como evidencia a previsão do art. 70º, do Cód. Penal, quando as demais sejam incapazes de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição a que o art. 40º, do mesmo diploma legal, atribui uma dupla finalidade:

i) Protecção de bens jurídicos; e

ii) Reintegração do agente na sociedade.

In casu, pese embora o grande lapso temporal decorrido desde a prática dos factos (quase 10 anos), sendo o arguido primário e sem notícia de novas condutas desviantes, entende-se que a natureza e gravidade do crime em causa e bem assim as significativas necessidades de prevenção geral resultantes dos elevados índices de sinistralidade rodoviária registados em território nacional, impõem a escolha de pena privativa da liberdade não se mostrando a pena pecuniária suficiente para acautelar as finalidades da punição.

3.3.2 Da dosimetria da pena relativa ao crime de condução perigosa

Afastada que está a aplicação da pena de multa a moldura legal correspondente ao crime que se tem por praticado pelo arguido - condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado - a moldura legal da pena situa-se entre 40 dias e 4 anos de prisão, por força das disposições conjugadas dos arts. 291º, n.º 1, al. b), 294º, n.º 3 e 285º, do Cód. Penal.

No que concerne à determinação da medida da pena é pacificamente aceite que esta há-de ser dada pela ponderação da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, visando a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma infringida.

Daí que, como ensinava Figueiredo Dias e se extrai da previsão do artigo 71º, n.º 1, do Código Penal, “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida (sentido estrito ou de «determinação concreta») da pena”[20].

Deste modo, se a pena tem como primeira referência a culpa, funcionando depois num segundo momento, mas ao mesmo nível, a prevenção, não pode afirmar-se o seu carácter meramente retributivo e muito menos a prevalência do reforço da validade da norma e do sentimento da comunidade, sob pena de se perder o ponto referencial constituído pela culpa.

E, uma tal tarefa não se satisfaz com argumentos genéricos e abstractos, antes tendo que assentar em concreta análise dos factos e personalidade do seu agente, não só a que neles se evidencia mas também a resultante do respectivo percurso evolutivo, quando conhecido, pois que “…o substrato da culpa, e portanto também o da medida da pena, não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível…” mas reside, isso sim, “…na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizada naquilo que chamamos a atitude da pessoa perante as exigências do dever-ser[21].

Ou seja, para o efeito de determinar a medida concreta o juiz serve-se do critério global contido no art. 71.º, do Cód. Penal, estando vinculado aos módulos de escolha constantes deste preceito, os quais devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores) como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente[22].

In casu, o tribunal a quo referenciou o elevado grau de ilicitude considerando a velocidade imprimida ao veículo e a manobra de desvio à esquerda, com invasão da hemifaixa contrária àquela em que seguia.

Como é óbvio a manobra referenciada em último lugar não tem qualquer cabimento não só porque excede a matéria provada[23] mas também porque resulta do desenrolar dos acontecimentos descritos que se tratou de uma conduta adoptada no sentido de tentar evitar o embate iminente no obstáculo que se deparou ao arguido, ou seja o veículo da vítima que realizava manobra de inversão de marcha e invadia a faixa de rodagem na direcção da viatura daquele.

De todo o modo, considerando o contexto da ocorrência - v.g. a circunstância de ser já noite e a concreta velocidade imprimida ao veículo em local marginado por edifícios destinados a habitação, todos com acesso directo para a estrada -, mostra-se adequada a graduação da ilicitude.

Acresce que o arguido agiu com dolo de acção quanto ao perigo normativamente densificado no tipo de crime e com negligência consciente relativamente ao resultado, sendo, pois, intensa a sua culpa.

Também a gravidade das consequências do facto são evidentes, considerando as extensas lesões e sequelas sofridas pela vítima e amplamente descritas na fundamentação de facto.

Em benefício do arguido releva a integração familiar, profissional e social e bem assim o facto de ser primário.

O tribunal a quo considerou porém, um averbamento do Registo Individual de Condutor da Arguido (facto provado n.º 105 e não 106 como, por lapso de escrita, exarou), com o teor seguinte:

“Em 22.09.2011, o arguido foi condenado na sanção de inibição de condução por 180 dias, suspensa na sua execução entre 22.09.2011 a 20.03.2012, pela prática de uma contraordenação, em 07.06.2010, por condução de automóvel ligeiro em localidade a mais de 20 km/h até 40 km/h”.

A prova de suporte foi o RIC junto aos autos a 28 de Abril de 2016, como se vê de fls. 185 a 187 dos autos.

Ora, a propósito da conservação dos dados dos condutores, dispõe o art. 10º, do Dec. Lei n.º 317/94, de 24/12, alterado pelo Dec. Lei n.º 105/2006, de 07/06, que: “Os dados inseridos no RIC são conservados pelo prazo dos cinco anos subsequentes à decisão se tornar definitiva ou ao trânsito em julgado da sentença, findo o qual são eliminados de imediato”.

Consequentemente, se o averbamento em causa tinha cabimento à data em que o documento foi fornecido o mesmo não acontece já à data em que a decisão foi proferida, mais de 7 anos depois, (Maio de 2023), pelo que a inscrição referida, necessariamente objecto de eliminação em finais do ano de 2016 ou inícios do ano de 2017, não pode ser valorada para qualquer efeito, designadamente para a determinação da medida da pena, o que interfere favoravelmente no patamar das exigências de prevenção especial, ainda assim relevantes atenta a ausência de atenuantes demonstrativas da interiorização do desvalor e elevada censurabilidade da conduta.

As exigências de prevenção geral são igualmente elevadas, devido aos alarmantes índices de sinistralidade que se registam, mas algo atenuadas pela passagem do tempo – quase uma década – sem notícia de novas condutas desviantes ou incidentes estradais.

Neste conspecto, tudo visto e ponderado, entende-se equilibrado fixar a medida da pena concreta em 1 ano e 6 meses de prisão cuja execução se suspende por igual período temporal, pelas razões aduzidas na decisão recorrida, mas sem sujeição a regime de prova que seria adequado em momento aproximado aos factos mas não se justifica após o decurso de uma década mantendo o arguido conduta normativa

3.3.3 Da dosimetria da pena acessória

Com base nas mesmas considerações tecidas relativamente à pena principal, o tribunal a quo aplicou ao arguido BB a pena acessória de doze meses de prisão considerando para o efeito apenas o crime de condução perigosa.

O recorrente insurge-se, considerando tal período desadequado, invocando para o efeito a ausência de antecedentes criminais, a colaboração com a justiça, a TAS de 0.0g/l e o concurso da conduta da vítima para a ocorrência, invadindo a faixa de rodagem sem curar de verificar se aí circulavam outros veículos e conclui pela penas de 7 meses de proibição de conduzir (4 meses para o crime de condução perigosa e 3 meses para o crime de ofensa à integridade física por negligência).

Dispõe o art. 69º, do Cód. Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 19/2013, de 21/12, em vigor à data dos factos, que: “1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor ou na proibição de pilotar aeronaves com ou sem motor, consoante os casos, por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido:

a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º;

(…)”[24].

Como ensinava o Professor Figueiredo Dias e veio a ser consagrado na reforma do Código Penal, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados tem como “pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução” e como “pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável”, o que “vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso, à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se), um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa (…). Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano”[25].

Também Germano Marques da Silva, in Crimes Rodoviários, pág. 55, assinala que “A determinação da medida da pena acessória, obedece aos mesmos critérios que a da pena principal – a culpa do agente e as exigências de prevenção”.

E, na mesma linha segue a jurisprudência, acentuando que a medida da pena acessória deve ser fixada de harmonia com os mesmos critérios que servem de referência à pena principal, também, como fazendo apelo às circunstâncias do caso e tendo como limite o grau de culpa do agente, em obediência aos princípios orientadores fixados no art. 40º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Penal e, consequentemente, também com recurso aos critérios gerais previstos no art. 71º, do mesmo diploma legal, sem prejuízo de serem diversos os objectivos de política criminal que esta pena acessória pretende prosseguir e que se prende com a recuperação do comportamento estradal do autor do crime.

Resumindo e concluindo:

A determinação da medida concreta da pena acessória, dentro da moldura abstracta prevista na lei, deve fazer-se atendendo ao grau de culpa documentado nos factos e às exigências de prevenção geral e especial que, no caso, se mostrem relevantes, tomando em linha de conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o arguido, sem prejuízo de prevenção da perigosidade que lhe é inerente.

Deve anotar-se, desde já, que das premissas invocadas pelo arguido, aqui recorrente, BB apenas relevam, porque provados, o facto de ser primário e de, na ocasião, não apresentar TAS.

No entanto, importa atentar na inadmissibilidade de ponderação do conteúdo RIC junto aos autos no ano de 2016 e das exigências cautelares especiais e gerais se mostrarem atenuadas, tal como já referido, pelo largo período temporal decorrido (facto que não é imputável ao arguido) inexistindo notícia de novas condutas desviantes, sem prejuízo da censurabilidade elevada em resultado da intensidade da ilicitude e da culpa.

Deste modo, entende-se adequado reduzir o período da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados fixada ao arguido para 9 meses.


*

Mercê de ter decaído parcialmente na oposição ao recurso o assistente deverá suportar as inerentes custas, tendo-se como adequado, em virtude do correspondente labor exigido, fixar em três UC a taxa de justiça, - cfr. art. 515º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a este Anexa.

***

III - DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto conceder parcial provimento ao recurso do arguido e

1 - REVOGAR a condenação do arguido BB pela prática, em concurso real, dos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de ofensa à integridade física grave por negligência, previstos e puníveis pelos arts. 291º, n.º 1, al. b) e 148º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Penal;

2 - CONDENAR o arguido BB, por convolação, pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 291º, n.ºs 1, al. b), 294º, n.º 3 e 285º, do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão cuja execução se suspende por igual período, ao abrigo do disposto no art. 50º, n.ºs 1 e 5, do mesmo diploma legal;

3 - REDUZIR a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados imposta ao arguido BB para 9 (nove) meses.

4 - MANTER quanto ao mais a decisão recorrida.


*

Custas pelo assistente AA com 3 (três) UC de taxa de justiça - art. 515º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal – sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Notifique.


*

[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[26]]





Porto, 21 de Fevereiro de 2024
A Desembargadora Relatora
[Maria Deolinda Gaudêncio Gomes Dionísio]
O Desembargador 1º Adjunto
[Raul José Cordeiro]
A Desembargadora 2ª Adjunta
[Elsa de Jesus Coelho Paixão]

___________________
[1] Versão final apresentada na sequência de convite formulado ao abrigo do disposto no art. 417º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal.
[2] O ponto I é relativo a questão prévia relacionada com as conclusões do recurso já ultrapassado.
[3] Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português”, As Consequências Jurídicas do Crime, Parte Geral, II, Aequitas – 1993, pág. 699.
[4] Idem, pág. 700.
[5] Sendo também essas as infracções pelas quais veio a ser condenado.
[6] Cfr., Taipa de Carvalho, in “Sucessão de Leis Penais”, Coimbra Ed., pág. 238.E, também no mesmo sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Português”, Vol. I, Verbo Ed., pág. 272.
[7] In dgsi.pt.
[8] Também consultáveis in dgsi.pt.
[9] Idem.
[10] Todos disponíveis no site do TC.
[11] Isto sem considerar sequer os dias de suspensão anteriormente aludidos que resultaram das Leis Temporárias.
[12] Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 1091 (nota 3 no original).
[13] Cfr. Direito Penal Rodoviário: Os crimes dos condutores, Publicações Universidade Católica, Porto, 2007, pág. 201(nota 4 no original).
[14] Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 1034 (nota 5 no original).
[15] O elenco das concretas manobras relevantes para o efeito foi introduzido pela Lei n.º 77/2001, de 13/07.
[16] Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, pág.1066, Coimbra Ed., 1999.
[17] Cfr. Paula Ribeiro Faria, ob. cit., págs. 1079 e segs. e Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código Penal”, págs. 739 e 740, Universidade Católica Editora, 2008.
[18] Figueiredo Dias, in “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Ed., 2004, págs. 631 a 634.
[19] Cfr. Paula Ribeiro de Faria in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Ed.ª, 1999, págs. 1090, parte final, e 1091; Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Ed.ª, pág. 740, nota 16 e Acórdãos da RE de 10/01/2023, Proc. n.º 781/17.2T9EVR.E1 (Rel. Beatriz Marques Borges) e da RL de 09/02/2022, P8997/18.8T9LSB.L1-3 (Rel. Maria Margarida Almeida) ambos em dgsi.pt.
[20] Lições ao 5º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes
[21] Figueiredo Dias, in “Liberdade, Culpa, Direito Penal”, Coimbra Editora - 1983, págs. 183 e 184.
[22] Ac. do STJ de 28-09-2005, CJ-STJ, 2005, tomo 3, pág. 173,
[23] No ponto 12 dos factos provados apenas consta que o arguido virou a direcção para a esquerda.
[24] Corresponde à norma vigente actualmente onde apenas foi aditada a referência aos arts. 289º e 292.º-A.
[25] In “Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime”, pág. 165
[26] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.