Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
520/03.5PTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00042755
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: PRINCÍPIO DA ADESÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Nº do Documento: RP20090701520/03.5PTPRT.P1
Data do Acordão: 07/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO - LIVRO 378 - FLS 14.
Área Temática: .
Sumário: O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre que ser fundado na prática de um crime. Sendo o arguido absolvido da acusação em relação a esse crime, o pedido civil formulado só pode ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade com base no risco.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. n.º 520-03.
Porto.

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

No .º Juízo Criminal do Porto, entre o mais que agora irreleva, foi decidido:
Julgar a acusação improcedente e em consequência, absolver o arguido B………. da prática dos crimes de que vinha acusado.
Julgar o pedido de indemnização cível parcialmente procedente e em consequência condenar os demandados Fundo de Garantia Automóvel e B………. a pagarem, solidariamente, à demandante C………., o montante global de 2.729,00 €, referente 229,00 € a danos patrimoniais e 2.500,00 € de danos não patrimoniais, no mais absolvendo os demandados. A esta quantia acrescem os juros legais à taxa legal anual, contados desde a notificação da demandada para os termos do pedido cível até efectivo pagamento.

Inconformado com a condenação no pagamento de indemnização cível o arguido/demandado interpôs o presente recurso rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões:

01. Apesar de ter sido absolvido dos crimes de que vinha acusado – pois não ficou provado que era o arguido o agente dos factos ilícitos pelos quais vinha acusado – o ora Recorrente foi condenado a pagar, solidariamente com o Fundo de Garantia Automóvel, a quantia de 2.729,00€ à demandante.
02. O Recorrente não se conforma com esta condenação, considerando que o Tribunal a quo, para além de ter incorrido em erro de apreciação da prova testemunhal, inteligiu mal o direito aplicável.
Erro de direito
03. O erro de direito que se assaca à Sentença a quo prende-se com a decisão nela constante de que devia “convolar-se o pedido na presente acção para a responsabilidade objectiva nos termos dos artigos 483, nº2, 499º e 503º, nº1 do Código Civil”
04. Ora, tal “convolação” não é admitida pelo ordenamento jurídico, como resulta do princípio da adesão no processo penal e da natureza, necessariamente ilícita, do facto que preenche a causa de pedir da indemnização cível que é enxertada no processo penal.
05. Ou seja, e como tem sido recorrentemente decidido em casos similares aos dos autos em processo penal não há lugar a condenação em indemnizações com base em responsabilidade pelo risco.
06. No artigo 71º do Código de Processo Penal consagra-se a conexão necessária e obrigatória entre a acção civil e a acção penal, estabelecendo-se uma verdadeira “dependência processual” do pedido de indemnização civil perante o processo penal – deste modo, o pedido de indemnização fundado na prática de um crime deve, sempre e impreterivelmente, ser formulado no processo penal respectivo.
07. Articulado este preceito com o que dispõe o artigo 377.º do Código de Processo Penal, resulta que a sentença penal apenas tem que apreciar e decidir o pedido de indemnização civil baseado em danos provocados pela prática do crime que constitui objecto da acção pena.
08. Isto porque o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem necessariamente por causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabilidade criminal
09. Ou seja, a responsabilidade civil a apreciar em sede de processo penal é tão somente aquela que emerge de uma conduta danosa que consubstancie violação, com dolo ou mera culpa, do direito de outrem, ou de disposição legal destinada a proteger interesses alheios, ou seja, a responsabilidade extra-contratual prevista no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil.
10. Ora, a condenação em crise funda-se num plano absolutamente alheio à ilicitude e à culpa, estribando a causa de pedir em factores sociais objectivos, “in casu”, os riscos de circulação inerentes à condução de veículos automóveis - artigo 503.º do Código Civil.
11. Acresce que a decisão sobre o pedido de indemnização civil versará sempre e impreterivelmente sobre os factos fixados na acusação que constituíram o objecto do processo-crime, bem como sobre aqueles que serviram de fundamento ao pedido de indemnização civil conexa com a responsabilidade criminal que aqueles factos implicariam, se provados.
12. Ora, o pedido de indemnização civil formulado pela Demandante encontra-se alicerçado no crime imputado ao Arguido no libelo acusatório; ou seja, o pedido cível, tal como é configurado pelo demandante, radica na actuação ilícita do Arguido, geradora da sua responsabilidade criminal, em tempo algum alegando a demandante que a propriedade do veículo dos autos era propriedade do ora Recorrente.
13. Nesta conformidade, e uma vez que a responsabilidade pelo risco não tem, nem pode ter, como “causa petendi” o facto ilícito típico, a condenação do Demandado com fundamento em tal responsabilidade objectiva necessariamente conduziria a uma alteração da causa de pedir, pelo que a Sentença a quo viola ainda o princípio da estabilidade da instância, previsto no artigo 268.º do Código de Processo Civil.
14. Decorrentemente, a sentença a quo não só é legalmente inadmissível na parte em que condena o Demandado, como está ferida de nulidade, porquanto, ao condenar em responsabilidade pelo risco, assenta a sua decisão em causa de pedir não invocada e condena em objecto diverso do pedido
15. O Tribunal a quo andou mal ao pronunciar-se sobre uma eventual obrigação de indemnização com fundamento na responsabilidade objectiva, pois que tal extravasa claramente os seus poderes de cognição no âmbito do processo penal, como resulta da correcta interpretação e aplicação das disposições legais contidas nos artigos 483.º e 503.º do Código Civil, 129.º do Código Penal, 71.º e 377.º do Código de Processo Penal, e 268º, 272º, 273º e 668º, 1 d) e e) do Código de Processo Civil.
16. Em suma o processo penal é o meio inadequado para conhecer do pedido de indemnização baseado na responsabilidade objectiva ou pelo risco resultante da utilização de veículos, deve a sentença a quo ser revogada e o ora Recorrente absolvido do pedido cível.

Erro de facto
17. Mesmo a prevalecer a tese defendida na Sentença a quo e a ser de aplicar a responsabilidade objectiva ao caso dos autos, o demandado não tinha a direcção efectiva do veículo na data do acidente.
18. O Demandado provou, quer documentalmente quer através da prova testemunhal que o automóvel causador do acidente esteve na sua esfera patrimonial do ora Recorrente por escassos 20 dias, tendo sido vendido no dia 15/09/2003 a D………. (vide fls. 243 dos autos).
19. O Tribunal a quo, em face desse documento e perante o óbito dessa pessoa – que foi arrolada como testemunha de defesa – não deu credibilidade ao documento junto, considerando que se tratava “de um mero expediente utilizado pelo Arguido para afastar a sua responsabilidade”.
20. Ora, a declaração em causa é absolutamente idêntica às demais dos autos que demonstram a cadeia de transmissão do veículo que foi apurada em inquérito e através das quais (e de mais nenhum meio de prova) veio o Ministério Público a produzir a acusação;
21. E mais, caso fosse um “mero expediente…”, o Arguido demandado não teria arrolado como testemunha o comprador do automóvel, nem teria requerido, como requereu a 12 de Maio de 2008, que a testemunha fosse localizada para vir depor, o que fez em face da notificação datada de 30-04-2008 que dava conta da impossibilidade de notificar D………. por endereço insuficiente.
22. Equivale isto por dizer que o Tribunal a quo, não fundamentou convincentemente a razão pela qual desconsiderou um elemento probatório idêntico aos demais dos autos e que levaram a que fosse o ora recorrente, e não um qualquer desconhecido, viesse a ser acusado da prática dos crimes dos autos.
23. Sucede que a testemunha E………., como se demonstrou com recurso a excertos gravados do seu depoimento, credível e com razão de ciência, logrou provar a factualidade alegada na contestação.
24. Fundamentalmente ressalta do seu depoimento que o Recorrente vendeu o carro por o mesmo, ter problemas mecânicos que a própria testemunha detectou, um ou dois dias após o Demandado ter adquirido o veículo dos autos.
25. Por último, percebe-se que a convicção do tribunal a quo quanto à propriedade do veículo adveio do documento junto a fls. 340 e que constitui uma notificação policial, supostamente rubricada pelo ora Recorrente, em que o seu subscritor declara, em data posterior à do acidente, que o veículo em causa era propriedade do Arguido.
26. Sucede que, perante tal documento o ora Recorrente, logo que teve conhecimento de que a autoria dessa declaração lhe era imputada, impugnou a rubrica dele constante, o que fez por requerimento ditado para a acta.
27. Sucede que apesar da impugnação da autoria do documento, e de mais nenhum elemento probatório (para além da declaração de fls. 19 que se admite ser verdadeira, mas com idêntico valor à de fls. 243) apontar para a propriedade do veículo, o Mmo. Juiz a quo considerou despicienda a perícia sugerida, invocando o princípio da livre apreciação da prova – acabando por erigir tal documento a prova única da putativa direcção efectiva do veículo.
28. Ora, perante o facto de a mesma vir rubricada e não assinada conforme o B.I., perante o de nela não constar a data de emissão desse documento, perante o facto de na mesma notificação não vir referido que a assinatura e identificação do subscritor do mesmo tenha sido feita perante a exibição do bilhete de identidade, ao contrário do que se depreende da Sentença recorrida, sempre restará a dúvida – que o recorrente quis esclarecer disponibilizando-se a prova pericial – de que terá sido outrem, conhecedor do número do nº do seu B.I., quem se fez passar pelo demandado.
29. Tanto mais que esse documento, salvo o devido respeito, não foi valorado no conjunto da prova produzida, mas sim erigido a principal meio de prova para a condenação na indemnização cível que se espera ver revogada.
30. Pelo que deve ser dada resposta diversa aos pontos 1 e 26 do probatório, conquanto não se provou que o ora Recorrente fosse proprietário do veículo à data do acidente.

Factos assentes:
1) No dia 30 de Setembro de 2003, um individuo cuja identidade não foi possível apurar, conduzia o veículo automóvel de matrícula XC-..-.. pertencente ao arguido, na Estrada ………. nesta cidade, no sentido sul/norte;
2) O piso estava molhado e escorregadio em consequência da queda da chuva;
3) Apesar destas condições atmosféricas e do estado do piso, aquele indivíduo conduziu aquele veículo imprimindo-lhe uma velocidade tal que o impossibilitou de controlar a sua trajectória sem invadir o espaço da via destinado ao trânsito dos veículos que vinham em sentido contrário;
4) Com efeito, na proximidade do entroncamento do ………. nesta cidade, o individuo conduzia o sobredito veículo no lado direito da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha em que circulava, tendo manobrado à esquerda para acompanhar o trajecto da curva aí existente;
5) Todavia, em consequência da velocidade que imprimia ao veículo por si conduzido, o indivíduo em causa perdeu o controlo da sua trajectória, vindo este a derrapar, a invadir a faixa de rodagem destinada à circulação de veículos automóveis no sentido contrário ao seu e a embater frontalmente no veículo automóvel de matrícula ..-..-QM, conduzido pela ofendida C………., no sentido norte/sul;
6) Em consequência do acidente, a ofendida sofreu as lesões as lesões descritas nos exames médicos de folhas 92 a 98 e 122 a 125 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente por reproduzido, designadamente traumatismo cervical C3 a C7, as quais lhe determinaram um período de doença até 14/01/2004, com incapacidade para o trabalho nos primeiros 60 dias;
7) O descrito acidente e as lesões físicas sofridas pela ofendida foram consequência da condução descuidada e imprevidente do individuo em causa, tendo o mesmo imprudentemente confiado que a despeito das condições atmosféricas e da velocidade que imprimiu ao veículo por si conduzido, lograria controlar a sua trajectória, o que na realidade não veio a acontecer;
8) Não adoptou assim o individuo em causa, as adequadas cautelas que o dever geral de prudência determina e que deveria ter adoptado nas circunstâncias supra descritas, designadamente moderando a velocidade do veículo por si conduzido, adequando-a às condições de circulação da via, de modo a evitar o acidente e às lesões físicas sofridas pela ofendida;
9) O arguido nas circunstâncias de tempo e de lugar acima referidas não era possuidor ou titular de carta de condução ou documento que o habilitasse a conduzir o referido veículo;
10) O arguido sabia que não podia conduzir qualquer veículo automóvel na via pública sem que previamente fosse titular de carta de condução ou documento que lhe permitisse tal conduta.
Do pedido cível provou-se ainda que:
11) O condutor do veículo automóvel de matrícula XC-..-.. e um outro ocupante do mesmo, após o acidente, saíram do carro e fugiram não prestando qualquer ajuda e deixando a ofendida imobilizada dentro do mesmo, sem se puder movimentar;
12) Ainda no local do acidente, a demandada teve de ser desencarcerada do seu veículo pelos Bombeiros ………. uma vez que ficou com as pernas presas;
13) Assim que os Bombeiros a retiraram do seu veículo, a demandada foi de imediato conduzia ao hospital de ………. no Porto onde para ser vista pelos médicos lhe tiveram de cortar as calças de ganga da marca ………. no valor de 75,00 € e as botas da marca “……….” no valor de 145,00 €, tendo sido submetida a vários exames;
14) A demandante desempenhava na altura do acidente as funções de técnica de higiene e segurança no trabalho principalmente na área da construção civil;
15) E desenvolvia uma outra actividade como árbitra de “……….” na altura na 3.ª divisão nacional;
16) Em consequência do acidente, a ofendida teve de suspender também esta sua actividade;
17) A ofendida ficou sem o seu veículo automóvel até meados de Março de 2004 porque os estragos eram elevados e sem possibilidade de antecipar a reparação;
18) A ofendida nas diligências que providenciou para instaurar o processo junto do FGA e designadamente na averiguação da titularidade da propriedade do veículo acusador do acidente, suportou a quantia de 9,00 €;
19) Após o acidente, enquanto estava presa no interior do veículo em que seguia, a ofendida sofreu dores e teve medo por não se conseguir libertar;
20) Pensou na altura que o veículo podia explodir;
21) Durante o período de 60 dias a demandante sentiu-se frustrada e angustiada por não poder fazer aquilo que gosta;
22) Teve dificuldades em voltar a conduzir;
23) Teve de pagar uma franquia ao FGA referente à indemnização pelos danos no seu veículo de cerca de 299,00 €;
24) O sinistro aqui em causa revestiu uma dupla vertente: acidente de viação e de trabalho;
25) A ofendida participou o sinistro à Companhia de Seguros F………., SA;
26) O arguido e aqui também demandado, não era possuidor de seguro obrigatório de responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de que era proprietário.
Provou-se ainda que:
27) O veículo seguia a uma velocidade não inferior a 90 Km/hora;
28) No local onde se deu o embate, a via é constituída por uma fila de trânsito no sentido norte/sul por onde seguia a ofendida e por duas filas de trânsito no sentido contrário;
29) Entre os dois sentidos de marcha, existia uma dupla linha longitudinal contínua que foi ultrapassada pelo veículo de matrícula XC-..-.. antes do embate;
30) O arguido encontra-se alegadamente desempregado;
31) Tem dois filhos que vivem com a mãe destes;
32) Como habilitações literárias o arguido tem a 4.ª classe;
33) Vive em casa da mãe;
34) O arguido tem os antecedentes criminais descritos no CRC junto aos autos a folhas 229 cujo teor, por brevidade, aqui dou por integralmente por reproduzido.

Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente:
Que o arguido no dia 30 de Setembro de 2003, conduzia o veículo automóvel de matrícula ..XC-..-.., na Estrada ………. nesta cidade, no sentido sul/norte quando embateu nos termos supra descritos, no veículo conduzido pela ofendida;
Que o arguido conduziu aquele veículo automóvel na via pública e em plena faixa de rodagem nas circunstâncias de tempo e de lugar acima referidas;
Que agiu livre, consciente e deliberadamente;
Que sabia que a sua conduta era proibida por lei;
Que o arguido tivesse vendido o veículo automóvel de matrícula XC-..-.. a D……….;
Que a que a ofendida tivesse tido despesas em várias deslocações;
A ofendida se tivesse apercebido que o condutor do outro veículo tivesse ido á mala do carro e fugido;
Que a ofendida se tivesse sentido abandonada;
Que a ofendida durante o período da sua incapacidade tivesse precisado de ajuda para tomar banho, descer as escadas, para se vestir;
Que em durante o período da sua incapacidade, a ofendida tivesse deixado de receber uma quantia média mensal entre os 400,00 € e os 1.000,00 €.

Motivação:
A convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados, repousa no seguinte:
O arguido não prestou declarações. A ofendida C………. referiu que seguia na altura do acidente em direcção ao seu local de trabalho em Santa Maria da Feira quando depois de ter parado no semáforo do ……….. do Porto, vê à sua frente um veículo em despiste, ultrapassando um duplo risco continuo existente no local, embatendo na viatura por si conduzida, na sua “mão de trânsito”. A ofendida não confirmou que fosse o arguido a conduzir o veículo que lhe embateu, sabendo apenas que eram dois jovens que fugiram depois do acidente, A ofendida explicou que por ter ficado presa, não conseguiu ver o local onde o outro veículo ficou imobilizado após o acidente. A ofendida acrescentou que o piso estava escorregadio, estando a chover. O outro veículo viria a circular a uma velocidade de cerca de 100 km/hora. Quanto á matéria do pedido cível a ofendida referiu além do mais que esteve ainda muito tempo até ter sido “desencarcerada”, tendo pensado que o seu veículo iria explodir. Confirmou os danos referentes á roupa que vestia na altura do acidente, sendo que quanto ás despesas hospitalares as mesmas teriam sido pagas pela seguradora da sua entidade patronal. Explicou ainda que para além da sua profissão, exerce uma outra actividade como árbitra de futebol de salão, tendo ficado cerca de quatro meses sem receber qualquer quantia em consequência do acidente dos autos sendo certo que reconheceu que ao não ter arbitrado qualquer jogo, também não teve de suportar as correspondentes despesas. A testemunha G………. que circulava na altura do acidente atrás da ofendida, referiu que viu um veículo que vinha em sentido contrário “lançado” a “muito mais” que 50 km/hora. A testemunha não viu o condutor do referido veículo sendo certo que no seu interior viriam duas pessoas, um deles com cabelo rapado, tendo fugido logo após o acidente. Referiu também que na altura do acidente chovia com intensidade, acrescentando que a vítima estava em estado de “choque”. A testemunha H………. referiu que também seguia num outro veículo atrás da ofendida. Referiu que a certa altura viu uma viatura em despiste, a uma velocidade entre 80 e 90 km/hora, embatendo no veiculo da ofendida. Vinham no seu interior duas pessoas que fugiram logo após o acidente, não confirmando a testemunha que uma delas fosse o arguido nem muito menos, que fosse ele o condutor do veículo: “era parecido”. As restantes testemunhas não presenciaram o acidente. A testemunha I………. afirmou ter sido o dono do veículo automóvel de matrícula XC-..-.., não tendo chegado a registá-lo em seu nome. Confirmou o teor do documento de folhas 63 quanto á venda do veículo em 25/08/2003. Quanto ao pedido cível foram ainda ouvidas as seguintes testemunhas. A testemunha J……….., pai da ofendida referiu que se deslocou ao local do acidente tendo visto a filha ainda presa no interior da sua viatura, confirmando, além do mais, que aquela estava receosa que se desse uma explosão. A testemunha confirmou ainda que a ofendida sentiu muitas dores, tendo tido de andar com um colar ortopédico ao pescoço. A testemunha K………., namorado da ofendida, confirmou que esta esteve cerca de dois meses sem trabalhar. Segundo afirmou a ofendida teve pelo menos durante algum tempo, receio de conduzir. A testemunha confirmou ainda os danos no vestuário da demandante e o pagamento de uma franquia. A testemunha L………. referiu que também teve a pose do veículo automóvel de matrícula XC-...-.., sabendo que na altura do acidente já teria outro veículo. A testemunha de defesa E………. prestou o seu depoimento de forma pouco convincente não acrescentando nada à prova sendo que não presenciou o acidente referindo que o veículo do arguido teria um problema no motor impedindo-o de circular. Não confirmou as circunstâncias de tempo e de lugar que tal teria sucedido. Assim o tribunal não ficou esclarecido quanto à identificação da pessoa que efectivamente vinha a conduzir o veículo automóvel de matrícula XC-..-.. . As testemunhas com os seus depoimentos não afastaram as dúvidas que se levantaram quanto à questão essencial nos autos que era a de saber se era ou não o arguido que na altura do acidente conduzia o veículo em causa. A prova documental junta aos autos incluindo a que foi junta já em audiência permitem concluir de forma segura que o veículo automóvel de matrícula XC-..-.. era do arguido na altura do acidente apesar de não estar registado em seu nome. Com efeito nesse sentido valorou o Tribunal a notificação do arguido junta por cópia a folhas 340, para reclamar o veículo em causa, por ele assinada no dia 10 de Dezembro de 2003. Refira-se a este propósito que não há qualquer dúvida quanto á autoria da assinatura em causa tendo em conta que o arguido foi identificado pelo seu bilhete de identidade e na presença de uma agente da PSP. Ainda quanto á questão da propriedade do veículo, o tribunal valorou ainda a declaração junta por cópia a folhas 19 pela qual o arguido assumiu no dia 25/08/2003 (pouco mais de um mês antes da data do acidente), as obrigações inerentes à circulação do veículo automóvel de matrícula XC-..-.. . Acresce que pelo contrário, a declaração junta pelo arguido a folhas 243, e na impossibilidade da confirmação do seu teor tendo em conta o falecimento do alegado autor, não mereceu qualquer credibilidade ao tribunal tudo apontando no sentido de se tratar de um mero expediente utilizado pelo arguido para afastar a sua responsabilidade. Fundou ainda o tribunal a sua convicção, nomeadamente no que diz respeito aos factos provados atinentes ao pedido cível:
a) Na participação policial do acidente;
b) Na ficha do episódio de urgência hospitalar junta a folhas 68;
c) Nos relatórios de clínica médico-legal do IMLP juntos a folhas 92 e 122;
d) Nos documentos juntos a folhas 108 e 287 quanto à circunstância de o acidente em causa ter sido considerado como acidente de trabalho;
e) No certificado do registo criminal do arguido junto a folhas 229.
Quanto às condições pessoais e económicas do arguido, o tribunal, na falta de outros elementos, valorou as suas próprias declarações. Os factos não provados nomeadamente referentes ao pedido cível, fundaram-se na falta de documentos ou de outros elementos probatórios que permitissem ao tribunal determiná-los com um mínimo o de rigor. Concretamente quanto ao alegado dano referente ao período em que a demandante não exerceu a sua actividade de árbitra de “……….” refira-se que não foram juntos quaisquer elementos designadamente contabilísticos (recibos, declarações de IRS) ou outros até da própria Federação que permitissem ao tribunal considerá-los.

O Direito:
As questões a decidir, no seu ordenamento lógico, são as seguintes:
A) Impugnação da matéria de facto:
1) Livre apreciação da prova documental.
2) Depoimento do E……….

B) Saber se proferida decisão penal absolutória pode ocorrer no mesmo processo condenação cível com base em responsabilidade pelo risco.

C) Pressupostos da condenação com base no risco.

A) Impugnação da matéria de facto:
1) Livre apreciação da prova documental;
2) Depoimento do E………. .

A discordância do recorrente com o decidido em sede de matéria de facto é a seguinte: o demandado entende que provou, quer documentalmente quer através da prova testemunhal que o automóvel causador do acidente esteve na sua esfera patrimonial por escassos 20 dias, tendo sido vendido no dia 15/09/2003 a D………., por isso já não era sua propriedade aquando da intervenção do acidente ocorrido no dia 30 de Setembro de 2003.
Como é pacífico o negócio pelo qual se transmite a propriedade de um veículo automóvel, nomeadamente, por contrato de compra e venda, pode ser celebrado por forma verbal, na medida em que a lei não exige forma especial para as respectivas declarações negociais, aplicando-se, neste caso, o princípio da liberdade de forma previsto no art. 219º do Código Civil. Na verdade, no caso concreto da compra e venda de veículos, o documento consubstanciador das respectivas declarações negociais é exigido apenas para efeitos de registo. Nestes termos, e mediante interpretação a contrario dos nºs. 1 e 2 do art. 364º do Código Civil, o contrato de compra e venda de veículo automóvel pode provar-se por qualquer meio.
O documento que o recorrente esgrime como prova de que já não era proprietário do veículo na data do acidente, é um mero documento particular, sem qualquer força probatória, portanto sujeito à livre apreciação do tribunal, art.º 169º a contrario e 127º do Código de Processo Penal.
A declaração em causa que pretensamente exime o demandado, alegadamente feita quinze dias antes do acidente, não mereceu ao tribunal qualquer credibilidade, que a propósito referiu na impossibilidade da confirmação do seu teor tendo em conta o falecimento do alegado autor, tudo apontando no sentido de se tratar de um mero expediente utilizado pelo arguido para afastar a sua responsabilidade. Acresce que outra prova documental junta aos autos, incluindo a que foi junta já em audiência, permitiu concluir de forma segura que o veículo automóvel de matrícula XC-..-.. era do arguido na altura do acidente apesar de não estar registado em seu nome. Com efeito nesse sentido valorou o Tribunal a notificação do arguido junta por cópia a folhas 340, para reclamar o veículo em causa, por ele assinada no dia 10 de Dezembro de 2003. Refira-se a este propósito que, como se refere na motivação, não há qualquer dúvida quanto á autoria da assinatura em causa tendo em conta que o arguido foi identificado pelo seu bilhete de identidade e na presença de uma agente da PSP. Neste quadro, perante os dados disponíveis nada a censurar no exame crítico da prova e ao percurso decisório desta questão e ao uso que o tribunal fez da sua liberdade de apreciação da prova: é fundada e esta fundamentada.
Este resultado não é afectado pelo depoimento da testemunha E………. que sem qualquer precisão de tempo – nem o mês conseguiu identificar… – referiu ter detectado um problema no bloco do motor do veículo do arguido, aconselhando-o a vende-lo. Ora este depoimento em nada afecta a conclusão fundada a que chegou o tribunal de que na data do acidente o veículo era sua propriedade, tudo apontando de facto para a construção de um álibi que não funcionou: «a venda ao morto» dias antes do acidente, o recurso à opinião do mecânico amigo depois da compra recente e não antes, como é normal, a amnésia deste que não sabe quando viu o carro…

B) Saber se proferida decisão penal absolutória pode ocorrer no mesmo processo condenação cível com base em responsabilidade pelo risco.

O pedido de indemnização vem proposto tendo como fundamento, no plano jurídico, a responsabilidade civil por factos ilícitos da previsão dos artºs 483º e segts do Código Civil. O art.º 483º do Código Civil no seu nº 1 dispõe que "aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da lesão". Deste preceito conclui-se que os pressupostos de cuja verificação, simultânea, depende a existência da responsabilidade civil extracontratual são:
-A acção ou evento;
-A antijuridicidade ou ilicitude;
-O nexo de imputação ao agente a título de dolo ou mera culpa;
-O dano ou prejuízo;
-O nexo de causalidade entre a acção e o dano.

Verificados estes pressupostos ou condições de responsabilidade nasce a obrigação de indemnizar. Quem alegar esta obrigação tem que oferecer factos suficientes para caracterizar todos esses pressupostos e a falta de um deles acarreta o fracasso da pretensão deduzida[1]. Da matéria de facto provada resulta que houve um acidente [evento] em que intervieram dois veículos – o do arguido conduzido por pessoa não apurada – e que a demandante sofreu lesões corporais, por causa do acidente [ilicitude, dano, e nexo de causalidade].
Dito de um modo sugestivo, verificados que estão os demais pressupostos que fazem nascer a obrigação de indemnizar, falta apenas averiguar quem é o responsável, o culpado pelo acidente.
A resposta é inequívoca: o condutor do auto ligeiro propriedade do arguido pois conforme se apurou em consequência da velocidade que imprimia ao veículo por si conduzido, o indivíduo em causa perdeu o controlo da sua trajectória, vindo este a derrapar, a invadir a faixa de rodagem destinada à circulação de veículos automóveis no sentido contrário ao seu e a embater frontalmente no veículo automóvel de matrícula ..-..-QM, conduzido pela ofendida C………., causando-lhe as lesões as lesões descritas nos exames médicos
Esse terceiro não foi demandado nem sequer identificado e o dono do veículo, art.º 503º, nº 1, Código Civil, responde apenas pelo risco. O referido basta para que a acção não possa proceder com fundamento na culpa do arguido, pois não se apurou que foi ele o culpado pelo acidente, sendo certo que é àquele que invoca um direito que cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, art.º 342 n.º 1 do Código Civil, salvo se gozar de presunção legal, art.º 344ºdo Código Civil. Em sede civilista, segundo a melhor doutrina e a jurisprudência dominante, não há alteração da causa de pedir quando o pedido de uma acção se baseia numa relação de culpa e se constata depois que ocorre apenas uma relação de risco[2].

Questiona o recorrente a possibilidade, que na sua óptica não existe, de no caso de absolvição penal poder ocorrer condenação no processo em responsabilidade pelo risco.
A questão, impõe-se reconhecer, não tem merecido decisão uniforme[3]. Agora também reina alguma confusão porque os diversos actores judiciais limitam-se a ler os sumários das decisões que se têm pronunciado sobre o assunto, sem se darem ao estudo da sua fundamentação. O que o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/99 [D.R. n.º 179, Série I-A de 1999-08-03], decidiu e foi mantido pelo Acórdão de 20.4.2005 do Supremo Tribunal de Justiça, que não viu razões para reexame da jurisprudência, foi que se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual. Daqui resulta que absolvido o arguido em crime por acidente de viação, a condenação em indemnização civil por responsabilidade pelo risco não está vedada, pois o que se afasta e exclui na decisão Uniformizadora de Jurisprudência é apenas a responsabilidade civil contratual e a responsabilidade pelo risco não deixa de ser responsabilidade extracontratual. Aliás como refere o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.5.2005 «esse é o largo campo de aplicação do preceito».
O Assento 7/99 fixou a seguinte jurisprudência:
«Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.»
Um olhar atento aos fundamentos do assento numa curta incursão pelo seu texto é fundamental para afastar as dúvidas que persistem. Vejamos:
O caso concreto levado ao Supremo Tribunal de Justiça foi a absolvição do arguido pelo crime de cheque sem provisão, mas a condenação do mesmo arguido a pagar ao assistente indemnização cível. Em recurso a Relação de Coimbra, [Acórdão recorrido] entendeu que não obstante o arguido ter sido absolvido da acusação e sendo certo que o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal terá sempre de ser fundado na prática de um crime (artigo 71º do Código de Processo Penal), só sendo aplicável o disposto no artigo 377º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando esteja em causa uma situação de responsabilidade extracontratual, mas já não quando se configura um caso de responsabilidade civil contratual, «o pedido de indemnização civil formulado em processo penal terá de ser apreciado e julgado, do ponto de vista substantivo com recurso à lei civil, sem quaisquer limitações (…) pelo que nem só nos casos de ocorrência de ilícito criminal e ou civil (crime e ou responsabilidade por factos ilícitos ou pelo risco) deve o Tribunal arbitrar indemnização», e com este entendimento manteve a condenação do arguido quanto ao pedido de indemnização formulado, apesar de se configurar uma situação de mera responsabilidade civil contratual.
As teses em confronto eram as seguintes:
A primeira entendia que «Em caso de sentença absolutória proferida em processo penal, nos termos do n.º 1 do artigo 377º do Código de Processo Penal, deve ser apreciado o pedido civil aí formulado». A segunda sustentava que «O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Se o arguido for absolvido desse crime, o pedido cível formulado só poderá ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco (responsabilidade extracontratual)».
Que pelos fundamentos do assento se resolve afirmativamente a questão posta, resulta do trecho em que desenvolvendo um tópico que denominou como «Concordância com o acórdão fundamento» o Supremo Tribunal de Justiça diz que «Este acórdão põe em relevo uma ideia muito importante em toda esta polémica. É que, aceitando-se, muito embora, que o nosso direito positivo impõe um regime de adesão obrigatória, tal diz respeito ao pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um facto punível, ou seja, de um ilícito criminal. Por outro lado, e recorrendo ao ensinamento de Eduardo Correia (Processo Criminal, pp. 212 e segs.), o acórdão vai encontrar a explicação da dependência da acção civil perante a acção penal, no fundo, de ambas provirem da mesma causa material. Outra ideia muito importante que aceitamos e que está bem patente no acórdão recorrido é que o regime de adesão não implica uma acção cível qualquer, mas tão-somente um pedido de indemnização civil para ressarcimento de danos causados por uma conduta considerada como crime. Daí que se concorde inteiramente com a posição expressa neste referido acórdão».
Ora esse Acórdão fundamento, tinha dito expressamente que a acção cível enxertada na acção penal visa obter uma reparação civil pelas perdas e danos resultantes da infracção, sendo certo que ambas têm o mesmo fundamento — a infracção; e que a responsabilidade tem sempre por fundamento a prática de um facto ilícito ou o risco, salvo casos excepcionais de responsabilidade derivada de factos lícitos, não se verificando tal fundamento, deverá o arguido ser absolvido do pedido de indemnização formulado.
A solução legislativa do Código de Processo Penal, atendendo a patentes razões de economia processual, não quis, neste particular, romper com o pré-vigente desenho do art.º 12º do Decreto-Lei n.º 605/75 de 3 de Novembro, na parte em que dizia que «nos casos de absolvição da acusação crime, o juiz condenará o réu em indemnização civil, desde que fique provado o ilícito desta natureza ou a responsabilidade fundada no risco».
Não vemos, em princípio, obstáculo a esta solução no actual processo penal nem qualquer incompatibilidade com o “princípio de adesão obrigatória”. Desde que «o pedido respectivo vier a revelar-se fundado», art.º 377º n.º1 do Código de Processo Penal, nos factos que suportavam a acusação ou a pronúncia ou resultavam da contestação, ou resultaram da discussão da causa, parece-nos que a questão merece uma resposta afirmativa.
Conclui-se, assim, que o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Se o arguido for absolvido desse crime, o pedido cível formulado só poderá ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco (responsabilidade extracontratual.

C) Pressupostos da condenação com base no risco.
Questão diversa, a apreciar de seguida, é a de saber se estão verificados os pressupostos de que depende a responsabilidade pelo risco. A decisão recorrida entendeu que sobre o arguido/demandado impendia o ónus de «provar que por qualquer motivo, não tinha no momento do acidente a direcção efectiva do veículo em causa, designadamente por via de uma qualquer condução abusiva do mesmo» e que o arguido/demandado «não logrou demonstrar que não tinha no momento do acidente, a direcção efectiva do mesmo» pelo que firmou a sua responsabilidade integrando a situação na área do risco definido pelo art.º 503º n.º 1 do Código Civil.
A direcção efectiva e a circulação no seu próprio interesse não constitui, como resulta do que acima dissemos, requisito de cuja verificação, simultânea, depende a existência da responsabilidade civil extracontratual, logo não incumbe à demandante lesada a sua prova, art.º 342º n.º1 do Código Civil.
Estando assente que o proprietário do veículo é o arguido/demandado, incumbe-lhe o ónus de provar que não tinha no momento do acidente a sua direcção efectiva nem que o veículo circulava no seu próprio interesse[4]. E percebe-se porquê, sendo razoável a solução legal: o proprietário é a pessoa que tendo a direcção efectiva, tem o poder real e concreto sobre o veículo, cabendo-lhe controlar a sua utilização. Só ele sabe e está em condições de saber se a utilização que foi feita do seu veículo foi com sua autorização, ou se foi abusiva. E conforme o caso ele deve alegar isso no processo. A solução legal parte do que é normal. Não seria ajustada a solução de impor sobre o lesado essa prova. Se a falta de direcção efectiva e a não utilização no interesse do proprietário são factos que excluem a responsabilidade do dono do veículo, tal configura matéria de excepção, cujo ónus de prova cabe, segundo as regras de repartição do ónus de prova, art.º 342º n.º2 do Código Civil, ao demandado proprietário do veículo[5]. Como já decidiu este Tribunal da Relação do Porto[6] a direcção efectiva e interessada de um automóvel, mais do que presumida, deve considerar-se integrada no conteúdo do direito de propriedade. Provada a propriedade, deve entender-se que o ónus de prova, quanto a eventual utilização abusiva cabe ao proprietário[7].
Estando assente que o arguido/demandado era proprietário do veículo, incumbia-lhe o ónus de provar que não tinha no momento do acidente a sua direcção efectiva, nem que o veículo circulava no seu próprio interesse. Como não fez essa prova é responsável pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, isto é, é responsável objectivo nos termos do art.º 503º n.º1 do Código Civil. Não merece assim a decisão a censura que lhe faz o recorrente.

Decisão:
Julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 5 uC.

Porto 1 de Julho de 2009.
António Gama Ferreira Ramos
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva

________________________
[1] Art.º 342º nº 1, 487º, nº 1, Dario M. Almeida; Manual de Acidentes de Viação 2ª ed. 1980 pág. 46 e nota (1) e P. Lima e A. Varela CCA comentário ao art.º 487º.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro 1979, BMJ 184º, 160.
[3] Num e noutro sentido as Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 7 de Fevereiro de 2007 [Guerra Banha] e 12.3.2008 [Paulo Valério], disponíveis no sítio da internet.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.10. 1988, BMJ 380º, 469.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.1.83, BMJ, 323º 360.
[6] Acórdão de 4.12.81, BMJ, 312º, 306.
[7] Entendimento pacífico a nível jurisprudencial como se pode inferir pelas mais recentes decisões, retiradas da CJ on line:
Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Cível, Acórdão de 7 Junho 1994, Processo 1030 Relator Paiva Gonçalves (Ref. 9729/1994):
I - A propriedade do veículo faz presumir a direcção efectiva e o interesse na sua utilização pelo dono.
II - Consequentemente, incumbe ao proprietário o ónus de prova de que não tinha essa direcção efectiva nem o veículo circulava no seu interesse.

Supremo Tribunal de Justiça, Secção Cível, Acórdão de 6 Dezembro 2001, Processo 3460/01 Relator Ribeiro Coelho (Ref. 7039/2001):
I – A propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização do veículo pelo seu proprietário.
II – Sendo tais requisitos de verificação cumulativa é, pois, sobre o proprietário do veículo que incide o ónus de demonstrar o contrário

Tribunal da Relação de Lisboa, Secção Criminal, Acórdão de 23 Fevereiro 1999, Processo 7684/98 Relator Pimentel Marcos (Ref. 9860/1999):
I – Ainda que a Ré Companhia de Seguros invoque apenas que o veículo determinador do acidente era conduzido "por outrem que não o respectivo dono" e que, por isso, se presume a sua culpa, é sobre o autor que impende o ónus de provar que tal não acontecia.
II – A propriedade do veículo determina uma presunção juris tantum de que o respectivo dono tem a sua direcção efectiva e de que o mesmo era utilizado no seu interesse.

Supremo Tribunal de Justiça, Secção Cível, Acórdão de 20 Fevereiro 2001, Processo 3621/00 Relator David Pinto Monteiro (Ref. 1193/2001):
II – O facto de determinada pessoa ser proprietário do veículo causador do acidente cria a presunção, naturalmente ilidível, de que o veículo circulava sob a sua direcção e no seu interesse.
III – De facto, tais requisitos não são elementos constitutivos do direito do lesado, mas, quando não se verificarem, factos impeditivos desse direito.

Tribunal da Relação de Guimarães, Secção Cível, Acórdão de 19 Junho 2002, Processo 120/02 Relator Leonel Gentil Marado Serôdio (Ref. 8778/2002):
I – A falta de coincidência entre a propriedade de um veículo e a sua direcção efectiva e interessada constitui matéria de excepção, cuja alegação e prova incumbe ao proprietário.

Supremo Tribunal de Justiça, Secção Criminal, Acórdão de 28 Março 2001, Processo 126/01 Relator António Pereira Madeira (Ref. 8868/2001):
I – Sobre o proprietário de um veículo impende a presunção natural de que o mesmo tem a sua direcção efectiva e de que essa viatura é utilizada no seu interesse, ainda que conduzido por outra pessoa.

Tribunal da Relação do Porto, Secção Cível, Acórdão de 15 Maio 2008, Processo 7301/07 Relator Deolinda Varão (Ref. 7540/2008):
I – A propriedade do veículo faz presumir a direcção efectiva e o interesse na sua utilização pelo dono, impendendo sobre este o ónus de prova de que não tinha essa direcção efectiva e de que o veículo não circulava no seu interesse.