Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5815/07.6TBVNG-K.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
ATRIBUIÇÃO PROVISÓRIA A UM DOS CÔNJUGES
COMPENSAÇÃO PELA ATRIBUIÇÃO
Nº do Documento: RP201403115815/07.6TBVNG-K.P2
Data do Acordão: 03/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A atribuição provisória da casa de morada de família a um dos cônjuges implica a fixação de uma compensação ao outro cônjuge mesmo que não incluída no pedido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 5815/07.6TBVNG-K.P2
Do Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia.
REL. N.º 892
Relator: Henrique Araújo
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

B… requereu, por apenso à acção de divórcio, a fixação de um regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família, ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 1407º do CPC[1].

A Requerida, C… respondeu, dizendo – no que agora interessa – nada opor a que o Requerente se mantenha na casa de morada de família, desde que fique isenta de qualquer direito de compensação ou de regresso em relação às prestações bancárias que venham a ser pagas pelo Requerente para liquidação do empréstimo contraído para aquisição da mesma, bem como das respectivas despesas de manutenção/conservação.

A Mmª Juíza da 1ª instância decidiu atribuir a casa de morada de família ao Requerente e indeferiu o pedido da Requerida de isenção de qualquer direito de compensação ou de regresso.

A Requerida recorreu, tendo o recurso sido admitido como de apelação, com efeito devolutivo.

Nas alegações de recurso a apelante pede a revogação parcial da sentença, apoiando-se nas seguintes conclusões:
I. A sentença recorrida fez errada interpretação das normas dos artigos 1793.º, n.º 1 do Código Civil e 1407.º, n.º 7 do Código de Processo Civil quando considerou factor relevante para atribuição da casa de morada de família a proximidade do cônjuge marido do respectivo local de trabalho, e não o interesse dos filhos menores do casal em habitar tal casa.
II. Porém, tendo subido em recurso ao Supremo Tribunal de Justiça o Acórdão proferido pelo Tribunal de Relação do Porto 05.06.2013 e recebido aos 28.06.13, que decretou o divórcio entre os cônjuges, em breve perderá utilidade a decisão que regulou o uso provisório da casa de morada de família, para vigorar na pendência da acção de divórcio – cfr. art.º 1407.º, n.º 2 do C.P.C..
III. Motivo pelo qual o presente recurso é limitado à parte da decisão que indeferiu o pedido de compensação pelo uso da casa, uso este atribuído ao cônjuge marido.
IV. Na atribuição provisória da casa de morada de família (que é bem comum dos cônjuges) na pendência do divórcio, até à adjudicação dos bens aos ex-cônjuges, deve ser fixada uma compensação ao cônjuge que se vê privado do uso de um bem que também é seu, por integrar o património comum do casal.
V. A fixação de tal compensação, que não tem que ser pedida, por estarmos no âmbito de um processo especialíssimo integrado no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, não obedece aos critérios do valor do mercado arrendatício.
VI. Antes, tal compensação deve ser fixada por critérios de conveniência e equidade.
VII. No caso dos autos, considerando a factualidade provada é equitativo fixar tal compensação em metade dos valores correspondentes à liquidação mensal dos contratos de mútuo contraídos pelo casal para aquisição da casa, seguros, IMI e despesas de conservação/manutenção de tal casa, devida desde a data em que o cônjuge marido está no uso exclusivo daquela casa (15.06.2007) até à partilha, a liquidar em execução de sentença (ou no âmbito do processo de inventário para separação de meações).
VIII. Assim não se entendendo, caberia ao Tribunal, oficiosamente, indagar da factualidade que considerasse relevante para a fixação de tal compensação e coligir as respectivas provas.
IX. Não deve o valor de tal compensação ser, porém, inferior a metade do valor da despesa mensal que tal casa acarreta, apurado em cerca de € 2.740,00.
X. A sentença sob recurso violou as normas dos artigos 1793.º, n.º 1 do Código Civil; 1407.º, n.s 2 e 7, 1409.º n.º 2, e 1413.º do Código de Processo Civil.
E remata:
“Em face do exposto, devem Vossas Excelências revogar a decisão recorrida, fixando a título de compensação à Recorrente, a pagar pelo cônjuge marido, a quem foi atribuído o uso provisório da casa de morada de família, o valor peticionado (correspondente a metade dos valores devidos pela liquidação mensal dos contratos de mútuo contraídos pelo casal para aquisição da casa, seguros, IMI e despesas de conservação/manutenção de tal casa), devido desde a data em que o cônjuge marido está no uso exclusivo daquela casa (15/06/2007) até à partilha.
Assim não se entendendo, deverá o Tribunal, oficiosamente, indagar da factualidade que considere relevante para a fixação de tal compensação e coligir as respectivas provas, fixando o valor que julgue adequado, mas nunca inferior a metade do valor da despesa mensal que tal casa acarreta, apurado em cerca de € 2740,00.”

O apelado contra-alegou, batendo-se pelo não provimento do recurso.

Foram colhidos os vistos legais.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente, a única questão que importa dirimir é a de saber se deve ser fixada à Requerida/apelante uma compensação pelo uso da casa de morada de família por parte do Requerente/apelado.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O tribunal da 1ª instância considerou provados os seguintes factos:

a) Os dois menores filhos do casal (nascidos respectivamente em 02.05.2003 e 15.04.2005) estão à guarda da mãe, com quem residem.

b) A progenitora é magistrada judicial exercendo funções em Aveiro onde foi colocada após movimento judicial, auferindo cerca de 3.723,00 €.

c) A progenitora e os menores residem em Aveiro, desde Setembro de 2009 (facto admitido pela Requerida, a fls. 352), em casa arrendada pela quantia mensal de 550,00 €.

d) Os menores frequentam a escola no distrito de Aveiro.

e) A progenitora foi condenada em primeira instância no pagamento de 1.700,00 € para encargos com a casa de morada de família, valor esse reduzido pelo Tribunal da Relação do Porto que fixou tal contribuição para despesas domésticas no valor mensal de 1.000,00 €, decisão esta sobre a qual foi interposto recurso;

f) O imóvel que constitui a casa de morada de família acarreta uma despesa mensal total de cerca de 2.740,00 €;

g) O Requerente[2] paga o valor de 700,00 € mensais a título de prestação de alimentos devidos aos menores;

h) O remanescente apurado das despesas referentes às amortizações mensais dos empréstimos bancários contraídos para aquisição de casa de morada de família, seguros de vida acoplados a tais empréstimos e IMI é liquidado pelo autor.

i) O progenitor, em 21.12.2012, auferia cerca de 3.569,98 € (ilíquidos), tendo despesas superiores ao valor da sua remuneração mensal líquida.

j) O progenitor exerce funções como Procurador Adjunto no distrito e comarca do Porto.

k) No âmbito dos autos de regulação do exercício do poder paternal referentes aos filhos menores do casal, e de que os presentes autos são apensos, a Requerente requereu que tal casa fosse atribuída aos filhos do casal, a título de alimentos.

l) O que veio a suceder, por decisão proferida em 10.07.2011, no âmbito da 1.ª Conferência de Pais realizada naqueles autos, tendo nessa mesma decisão a guarda e exercício do poder paternal dos menores sido atribuídos, a título provisório, à aqui Requerente.

m) O Requerido nunca entregou tal casa aos filhos do casal, a título de alimentos, tendo interposto recurso daquela decisão, pedindo que à mesma fosse atribuído efeito devolutivo, e invocando inconstitucionalidades.

n) O que motivou a que a ré requeresse a entrega judicial daquela casa.

o) A ré, na altura, teve receio que o autor entrasse na casa de morada de família tantas vezes quantas lhe aprouvesse e permanecesse no jardim da casa o tempo que entendesse.

p) Pelo que, e por forma a acautelar a sua estabilidade emocional e a dos seus filhos, naquela fase inicial da separação, desistiu da entrega de tal casa a título de alimentos aos menores, pedindo a convolação de tal uso em expressão pecuniária.

q) A casa de morada de família, para além de dispor de um quarto para cada filho, estes podem brincar num jardim com 700 metros quadrados.

r) O apartamento arrendado pela Requerente é um apartamento, de tipologia T2+1, com cerca de 100m2.

s) O requerente continua a manter o centro da sua vida na casa de morada de família, e onde está com os filhos durante os períodos das visitas.

t) A casa dos pais do R. é dotada de 4 quartos, com 5 casas de banho, cozinha, duas salas, sotão, garagem e pequeno logradouro, situada em …/VNG, perto da casa de morada de família.

Factos não provados:

- que o aqui progenitor /R., ameaçou a ré que, se a casa lhe fosse entregue, entraria na casa tantas vezes quantas lhe aprouvesse e permaneceria no jardim da casa o tempo que entendesse.

O DIREITO

A apelante restringiu o recurso à questão da compensação a que se acha com direito pela utilização da casa de morada de família pelo outro cônjuge.
O n.º 7 do artigo 1407º do CPC dispõe:
“Em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, poderá fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício do poder paternal dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto poderá o juiz, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias.”
A fixação deste regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família é diferente da questão da constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulada, como processo de jurisdição voluntária, no artigo 1413º do Código de Processo Civil, e prevista, como efeito do divórcio, nos artigos 1793º e 1105º do Código Civil[3].
Prevê-se nesse artigo 1793ºque:
“1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3. O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.”
São, portanto, situações diferentes: numa, cuida-se de atribuir provisoriamente a um dos cônjuges a casa de morada de família na pendência do divórcio; na outra, permite-se que qualquer um dos cônjuges requeira ao tribunal, após a decretação do divórcio, o arrendamento da casa de morada de família, quer esta seja comum ou bem próprio do outro cônjuge.
Mas, será que estando-se em sede de atribuição provisória da casa de morada de família, não se deve fixar qualquer compensação pela sua atribuição exclusiva ao cônjuge que o Tribunal, realizadas as diligências que considerou necessárias, entendeu dela mais carecer? E se o cônjuge a quem não foi atribuída a casa de morada de família não requerer qualquer compensação deve o tribunal fixá-la oficiosamente?
Quanto à primeira questão, começa-se por lembrar que, até à partilha, se aplicam aos bens do casal as regras da compropriedade.
De acordo com o disposto no artigo 1405º do CC, os comproprietários exercem em conjunto todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas e nos termos regulados nos artigos 1406º e seguintes.
Assim, as vantagens que resultam da actuação isolada de um dos contitulares no uso da coisa terão de ser repartidas pelo outro contitular na proporção das respectivas quotas[4].
Eis o que se escreveu no acórdão do STJ de 26.04.2012[5] para justificar o modo como deve processar-se a repartição a um dos cônjuges da vantagem consistente na utilização provisória da casa de morada de família pelo outro:
“Sendo qualitativamente iguais os direitos dos ‘consortes’ (art. 1403.º, nº 2 do CC) e sendo certo que o uso da ‘coisa comum’ por um dos ‘comproprietários’, não constitui, em princípio, posse exclusiva ou posse superior à dele (art. 1406.º, nº 2 do mesmo CC), crê-se ter cabimento que aquele que da sua ‘quota-parte’ não usufrui, tenha também direito a um gozo indirecto, que consistirá em perceber, tal como se locação houvesse, compensação pelo valor do uso de tal ‘quota-parte’.
Isto, no plano dos princípios, pois, não disciplinando a lei, de forma específica, como efectuar a atribuição provisória (…), nada impede que nos socorramos, pelo menos como pano de fundo, do regime arrendatício fixado no citado art. 1793º (está em causa um bem comum dos cônjuges e não um imóvel arrendado).”
No caso dos autos não se tratará propriamente de uma renda, mas antes de uma compensação ao outro cônjuge, pois sendo a casa um bem comum de ambos os cônjuges, não seria justo que se beneficiasse um deles (o cônjuge que fica com o direito de utilizar provisoriamente a casa de morada de família) sem compensar o outro da privação do uso e fruição de um bem que também lhe pertence.
Respondida a primeira questão, passemos à segunda.
Não é difícil descortinar a diferença entre o pedido efectivamente deduzido pela Requerida no articulado de oposição ao incidente[6], como contrapartida pela aceitação da atribuição da casa de morada de família ao cônjuge marido, e a pretensão de, agora, em sede de recurso, querer que lhe seja atribuída uma compensação pelo uso que esse cônjuge faz do bem comum que constitui a casa de morada de família.
Indeferido aquele poderia pensar-se – tal como faz o apelado – que essa pretensão configura uma questão nova, não submetida à apreciação do tribunal de que se recorre, e como tal insusceptível de ser conhecida na 2ª instância.
Não é, contudo, assim.
De facto, como já se decidiu nesta Relação, “(…) havendo [necessariamente] lugar àquela compensação/renda como contrapartida da atribuição provisória da casa de morada de família, terá o Julgador que a fixar, independentemente de ter sido incluída ou não no pedido formulado (…)”[7], pois, no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, como o presente, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente, oportuna e equitativa.
Certamente que o montante dessa compensação não terá por referência os critérios avançados pela apelante nas conclusões VII e IX do recurso, devendo antes corresponder a um valor que tenha em conta os padrões do mercado de arrendamento para a zona e tipo de imóvel, as específicas condições económicas do apelado e outras circunstâncias que se mostrem atendíveis.
Por não existirem nos autos elementos suficientes para fixar, neste momento, o valor dessa compensação, terá o tribunal da 1ª instância de promover as diligências necessárias para o efeito.
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III. DECISÃO

Face ao exposto, na procedência da apelação, altera-se a decisão recorrida, devendo o Requerente/apelado pagar à Requerida/apelante uma compensação, a fixar oportunamente na 1ª instância, pela atribuição provisória da casa de morada de família, até à partilha dos bens comuns do casal.
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Custas pelo apelado.
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PORTO, 11 de Março de 2014
Henrique Araújo
Fernando Samões
Vieira e Cunha
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[1] O CPC aplicável aos autos é o anterior ao aprovado pelo DL 41/2013, de 26 de Junho.
[2] E não requerido, como, por manifesto lapso, consta da sentença.
[3] Cfr. acórdão do STJ de 26.04.2012, no processo n.º 33/08.9TMBRG.G1.S1, em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. voto de vencido do Ex.º Conselheiro Moreira Alves no acórdão do STJ de 18.11.2008, em CJ STJ, Ano XVI, Tomo III, páginas 131 e seguintes.
[5] Cfr. nota 5.
[6] Esse pedido era o de ficar isenta de qualquer direito de compensação ou de regresso do Requerente em relação às prestações bancárias que venham a ser pagas por este para liquidação do empréstimo contraído para aquisição do bem que constitui a casa de morada de família, assim como das respectivas despesas de manutenção/conservação
[7] Cfr. acórdão de 05.02.2013, no processo n.º 1164/10.0TMPRT-B.P1, em www.dgsi.pt.