Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
558/20.8T9VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RP20240221558/20.8T9VCD.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA (RECURSO PENAL)
Decisão: ORDENADO O REENVIO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – O princípio in dubio pro reo não é um princípio que permita ao tribunal demitir-se de procurar, como deve, firmar a sua convicção sobre a ocorrência ou não dos factos, apreciando a credibilidade de cada um dos meios de prova produzidos.
II – Para que o princípio in dubio pro reo possa funcionar é necessário que as provas submetidas à apreciação do tribunal não permitam a tomada de decisão sobre a ocorrência ou não de determinado facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 558/20.8T9VCD.P1
1ª secção criminal

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal singular), nº 558/20.8T9VCD.P1 do Juízo Local Criminal de Vila do Conde, juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, os Arguidos AA, nascido a ../../1981 também constituído Assistente - , BB- nascido a ../../1974 também constituído Assistente e CC nascido a ../../1988,  foram submetidos a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte:

(…)

Nestes termos, julgo a pronúncia improcedente, por não provada, e absolvo os arguidos dos crimes que lhes eram imputados.

Absolvo ainda o arguido CC dos pedidos de indemnização cíveis contra si deduzidos.

Custas penais pelos assistentes, fixando-se as mesmas no mínimo legal – cfr. art. 515º, n.º 1, al. a) do CPP, sem prejuízo de apoio judiciário.

Sem custas cíveis no tocante aos pedidos de indemnização cíveis deduzidos pela Unidade Local de Saúde de Matosinhos E.P.E. e BB, atento o valor dos mesmos – fixando-se os mesmos em € 85,91 e € 800,00, respetivamente, cfr. art. 297º do CPC, estando tais pedidos isentos do pagamento de custas nos termos do art. 4º, n.º 1, al. n) do RCP.

Custas do pedido cível deduzido por AA pelo mesmo, fixando-se o valor do pedido deduzido em € 2.203,50 – cfr. arts. 297º e 527º do CPC.

(…)


*

Inconformados, os Assistentes AA e BB, interpuseram recurso no qual formulam as seguintes conclusões:

(…)

O tribunal recorrido absolveu os 3 arguidos dos crimes de que vinham acusados/pronunciados, pois entendeu não ter ficado suficientemente esclarecido quanto aos contornos das agressões perpetradas.

Aplicou o princípio in dúbio pro reo.

CC foi absolvido da prática de 1 crime de dano, previsto pelo art. 212º do CP dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto pelos arts. 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a) e 2 e 132º, n.º 2, al. h), do CP, um na pessoa do ofendido BB e outro na pessoa do ofendido AA, na forma tentada, e quatro crimes de injúria, previstos pelo art. 181º do CP.

É contra esta absolvição que os recorrentes e insurgem.

O Tribunal a quo fundou a sua convicção na apreciação e análise crítica de toda a prova produzida e examinada em audiência de julgamento, segundo juízos de experiência comum e o princípio da livre apreciação (art. 127º do CPP).

A prova produzida em audiência de julgamento devia ter sido valorada no sentido de convencer e esclarecer o Tribunal quanto à concreta dinâmica do sucedido.

Entendeu o Tribunal a quo que o facto da esposa do arguido AA, a testemunha DD, não ter feito nada perante a tentativa de agressão ao seu marido suscita estranheza, apesar de ser “abstratamente possível”.

É da experiência comum que, perante um cenário de violência iminente, há 3 formas de agir: intervir e/ou agredir; fugir ou ficar “em choque” e, naquela fração de segundos não conseguir agir, o que foi o caso.

Ao ver o seu marido ser perseguido pelo arguido CC, que empunhava uma faca na mão, com o objetivo de o atingir, a esposa DD teve uma reação perfeitamente normal, que foi não reagir.

10º

Pior teria sido se tivesse intervindo, pois a probabilidade de sair ferida do episódio seria muito alta, enfurecendo ainda mais o agressor ao aproximar-se.

11º

Se o Tribunal a quo considera o cenário relatado pelos recorrentes “abstratamente possível” sempre teria de ter dado o benefício da dúvida. Não se pode aceitar que tenha decidido como se pura e simplesmente fosse mentira.

12º

O facto de o arguido CC, enquanto se mantinha quase manietado por BB, ter tido ângulo de movimento para utilizar a alegada faca, raspando-a na lombar de BB afigura-se “muito pouco credível” para o Tribunal a quo.

13º

Ora, estando a ser agarrado pela parte superior dos braços, o cotovelo de CC ficou livre, o que lhe permitiu fazer movimentos ascendentes e descendentes com a faca, rasgando o casaco do BB, cujo tecido era fino, como o próprio disse.

14º

É perfeitamente possível, tal era a ira do arguido CC que, estando manietado pelo BB, continuava a não tirar os olhos do arguido AA, que desde o início foi sempre o seu alvo.

15º

BB deixou o CC fugir porque sentiu a ponta da referida faca a tocar-lhe na lombar.

16º

Mesmo sabendo que o objetivo de CC era atingir AA e não a ele, BB não arriscou (e bem), pois poderia ter saído ferido deste episódio com a utilização da faca.

17º

Não tem sentido a afirmação feita pelo Tribunal a quo de que o BB não deixou “sequer o arguido AA ter tempo para se colocar em segurança”.

18º

Se o BB sentisse a faca no seu corpo e mantivesse CC agarrado só para o AA fugir é que teria sido estranho.

19º

A forma como BB e AA descreveram o sucedido foi espontânea e credível, apesar de não ter sido valorada como tal.

20º

O depoimento da testemunha EE estava dotado de “credibilidade adicional” por não ser a atual companheira de CC, nem familiar de qualquer outro arguido, tendo menos interesse no desfecho dos autos.

21º

EE era companheira de CC à data dos factos e depôs favoravelmente à versão deste quando foi ouvida na esquadra pelo OPC. De estranhar seria que viesse alterar a sua versão dos factos em sede de audiência de julgamento.

22º

Após ter sido rasteirado por BB e caído no chão de paralelos, CC foi levado em braços por AA e BB, até à sua companheira, EE.

23º

O que causou estranheza ao Tribunal a quo porquanto considera que BB e AA estavam a agir como se nada se tivesse passado e que deveriam ter mantido alguma distância de segurança, preocupando-se com o bem-estar próprio.

24º

CC tinha acabado de cair, numa estrada de paralelos, a alta velocidade e estava visivelmente magoado.

25º

A faca já não estava na sua posse porque com a queda caiu.

26º

Nem BB nem AA temiam ali, naquele exato momento, pela sua integridade física porque CC estava muito debilitado.

27º

Quiseram deixá-lo com a sua namorada EE e não devem ser penalizados por isso.

28º

Apesar de considerar este comportamento “abstratamente possível”, o Tribunal a quo não o considera “habitual” ou “normal” e decide contra BB e AA.

29º

CC menciona uma testemunha presencial, de nome FF, que teria passado de carro e assistido a AA, num golpe de mata leão, “quase asfixiar” CC.

30º

Nas suas declarações, CC refere quase ter perdido os sentidos, chegando mesmo a vomitar.

31º

Segundo este arguido, FF terá parado o carro em frente a AA (e CC), baixou o vidro da janela e ainda proferiu as seguintes expressões: “Larguem o rapaz”.

32º

Permaneceu lá um tempo e, entretanto, também chega a EE e diz para o largarem.

Refere não fazer ideia se o FF ia acompanhado no carro.

34º

Contudo, afirma que quando a EE chega ao local, o FF ainda lá estava, o que é contrariado pelo depoimento desta.

35º

EE refere que ouviu gritos, desceu e viu CC a ser agarrado pelo pescoço por AA. Estavam lá, nas palavras desta testemunha, BB e DD (esposa de AA).

36º

Dada a importância desde depoimento para a descoberta da verdade, o Tribunal a quo, oficiosamente, requereu (e bem) a sua inquirição como testemunha, nos termos do artigo 340º do CPP.

37º

Ouvido em sede de audiência de julgamento, a referida testemunha disse ser falso o

referido pelo arguido CC, deitando por terra assim qualquer credibilidade que este (ainda) pudesse ter.

38º

A negação dos acontecimentos por parte de FF pode, para o Tribunal a quo, “decorrer duma tentativa de desligamento relativamente à confusão entre os arguidos”, o que não se concebe!

39º

Se por acaso a testemunha tivesse confirmado os factos narrados por CC, já seria um depoimento credível?

40º

O arguido CC não só não foi prejudicado com esta mentira que nitidamente carreou para os autos, como ainda saiu beneficiado!

41º

O próprio CC revela confusão relativamente a quem o terá agredido pois, em sede de instrução, requer que também DD seja constituída arguida e pronunciada pelo crime de ofensa à integridade física na sua pessoa.

42º

Quando chega ao Hospital Pedro Hispano, para onde foi levado após ter caído no paralelo e se ter magoado, informa que foi agredido por três indivíduos.

43º

Entretanto, como não houve sequer a constituição de arguida da DD (nem podia haver, legalmente, nesta fase do processo), CC alterou o seu discurso e afinal os agressores passam a ser dois (AA e BB).

44º

DD terá ficado inerte.

45º

Em momento algum CC referiu ter sido agredido na zona da face, nomeadamente no lábio, mas a testemunha GG (amigo de CC) refere que as escoriações que viu foi precisamente na cara, no lábio, de CC.

II – Vícios da Sentença recorrida:

46º

A forma como o Tribunal a quo apreciou as provas disponíveis revela uma clara violação do artigo 127º do CPP. Extraiu conclusões que plasmou na matéria de facto provada que não tem assento razoável, nem lógico, na prova efetivamente produzida, mormente por todas as declarações ouvidas em audiência de julgamento.

Dos Factos que foram indevidamente dados como provados:

47º

2.) “Por razões não concretamente apuradas, no dia 11 de março de 2020, o arguido BB sofreu uma escoriação superficial no dorso da mão esquerda as quais demandaram para a sua cura/consolidação 5 dias, sem afetação da capacidade para o trabalho profissional.”

48º

3) “Por razões não concretamente apuradas, também no dia 11 de março de 2020, o arguido CC sofreu várias escoriações no flanco, na região torácica antero superior esquerda, no braço esquerdo, em ambas as mãos e trauma na região lombar, dor paravertebal lombar direita com 8 dias de incapacidade total.”

49º

Estes 2 factos deverão ser expurgados do seu teor conclusivo e no seu teor factual

foram erradamente julgados provados, uma vez que inexiste prova que sustente tal decisão.

50º

Há provas que impõem que se dê como provado o motivo que levou a que tanto BB como CC sofressem as referidas escoriações.

BB apresenta escoriações no dorso da mão esquerda por ter sido agredido por CC com uma garrafa de vidro.

52º

As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida são as declarações dos arguidos AA e BB, bem como as fotografias juntas pelos recorrentes bem como registos clínicos e relatórios relativos ao arguido BB, que atestam a ocorrência dos ferimentos conforme supramencionado, bem como admitem o nexo de causalidade.

53º

Apesar do visado da agressão com a garrafa ser AA, devido à pronta intervenção de BB, foi este último quem sofreu as lesões.

54º

O facto n. º2 deverá passar a ter a seguinte redação: “Devido a ter sido agredido com uma garrafa pelo arguido CC, no dia 11 de março de 2020, o arguido BB sofreu uma escoriação superficial no dorso da mão esquerda as quais demandaram para a sua cura/consolidação 5 dias, sem afetação da capacidade para o trabalho profissional.”.

55º

O CC apresenta escoriações no flanco, na região torácica antero superior esquerda, no braço esquerdo, em ambas as mãos e trauma na região lombar, dor paravertebal lombar direita porquanto no momento em que corria em direção a AA com uma faca na mão foi alvo de uma rasteira por parte de BB.

56º

A intervenção deste visou cessar a agressão iminente e atual de CC a AA, o que conseguiu.

57º

BB poderia ter alegado que CC sofreu a queda em virtude de ter escorregado, o que não fez porque é espontâneo e verdadeiro.

58º

O facto n. º3 deve ser alertado para a seguinte redação: “Devido à queda no chão

de paralelo em virtude da rasteira feita por BB, também no dia 11 de março de 2020, o arguido CC sofreu várias escoriações no flanco, na região torácica antero superior esquerda, no braço esquerdo, em ambas as mãos e trauma na região lombar,dor paravertebal lombar direita.”

59º

Com as alterações propostas, deve ser proferida decisão jurídica em conformidade.

Dos Factos que foram indevidamente dados como não provados:

60º

“a) No dia 10 de março de 2020, cerca das 15h30, o arguido CC, sem que nada o fizesse prever, arrancou os fios de iluminação que pertenciam ao Stand do arguido AA ao mesmo tempo que dizia “É para arrancar” e “Não quero isto aqui”.

61º

b) Tendo tal conduta de CC imposto a reparação com os bens e serviços descritos em 4).”

62º

Deviam ter sido valoradas tanto as declarações de AA como a fatura junta com o seu pedido de indemnização cível que corresponde a uma fatura, elaborada por um eletricista e que discrimina os custos com a reparação dos fios de iluminação do stand.

63º

“c) No dia 11 de março de 2020, cerca as 09h00, quando o arguido AA se encontrava acompanhado pelo arguido BB, no local referido em 1), o arguido CC encetou uma discussão com o arguido AA e, sem que nada o fizesse prever, abriu um caixote do lixo que trazia da sua casa e do seu interior retirou uma garrafa de vinho, levantou-a no ar preparando-se para a arremessar contra AA, só não tendo conseguido atingi-lo, uma vez queo arguido BB interveio, acabando este por ser ferido na mão esquerda com a referida garrafa que se partiu, de imediato.

64º

d) Ato contínuo, o arguido CC retirou da parte de trás das calças que trajava uma faca de cozinha, apontando-a ao pescoço de AA, só não o atingindo, devido à pronta intervenção do arguido BB que conseguiu arrancar a faca das mãos do arguido CC.

65º

e) As lesões descritas em 2) tenham sido consequência de agressões desferidas por CC.

66º

f) Nos momentos que precederam o referido em b), o arguido CC proferia de forma muito rápida, e em tom agressivo e baixo (mas perfeitamente percetível) as seguintes expressões dirigidas a AA: “filho da puta, corno, chamaste a polícia, mas eu também vou chamar”.

67º

g) Passados uns segundos, o arguido voltou a passar pelo stand do assistente (agora, em sentido contrário), e mais uma vez voltou a proferir as seguintes expressões dirigidas a AA: “filho da puta, corno, chamaste a polícia, mas eu também vou chamar”.

68º

i) Segundos depois, o arguido CC voltou a sair da sua habitação, novamente com o seu contentor doméstico, em direção aos contentores do lixo e, de olhar fixo em AA, volta a proferir as mesmas expressões: “filho da puta, corno, chamaste a polícia, mas eu também vou chamar”.

69º

j) O arguido CC pretendia atingir o arguido AA com a

garrafa de vidro, só não o conseguindo por razões alheias à sua vontade, acabando por atingir o arguido BB.

70º

k) Pretendia ainda atingir o arguido AA com uma faca que transportava, o que só não conseguiu, devido à pronta intervenção de BB com conhecimento de que quer a garrafa de vidro quer a faca que empunhou, eram meios particularmente perigosos e eram aptos a provocar-lhe lesões corporais.

Tanto AA como BB relatam exatamente estes pontos durante as suas declarações.

72º

Apesar de CC contrariar esta versão, as falsidades, incoerências e contradições que caracterizam o seu depoimento (melhor discriminadas ao longo desta peça processual) abalam, irremediavelmente, a sua credibilidade.

73º

l) O arguido CC sabia que os fios de iluminação não lhe pertenciam e que, ao causar-lhe intencionalmente estragos, atuava contra a vontade do seu dono, o arguido AA, e sem o seu consentimento.

74º

m) O arguido CC agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem

sabendo que a sua conduta era proibida por lei e punida criminalmente.

75º

Também estes dois factos devem ser expurgados do elenco dos factos dados como

não provados uma vez que, a versão do arguido CC, não merece (pelo já exposto) qualquer credibilidade.

76º

x) AA sentiu-se profundamente ofendido, ansioso, entristecido, envergonhado e injustiçado com a conduta encetada por CC.

77º

y) Sentindo receio de voltar a ser confrontado pelo arguido CC, temendo pela sua vida, e também pela vida da sua esposa que foi uma pessoa que assistiu a tudo e diariamente se encontra a trabalhar no stand, muitas vezes sozinha.

78º

A espontaneidade das declarações de AA são esclarecedoras neste sentido.

79º

z) No momento mencionado em d), o arguido BB agarrou o arguido CC, tendo este último passado uma faca repetidas vezes, para cima e para baixo no casaco que aquele trazia vestido.

80º

Conforme já referido, CC ficou com o cotovelo completamente solto, o que permitiu estes movimentos.

Matéria de Direito:

81º

Existe violação do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do CPP, pois, ao procurar atingir através dela a verdade material, não foram observadas as regras de experiência comum, utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente suscetíveis de motivação e controle.

82º

Este princípio não liberta o julgador das provas que se produziram nos autos (nomeadamente em audiência de discussão e julgamento), sendo com base nelas que terá de decidir, circunscrevendo-se a sua liberdade à livre apreciação dessas mesmas provas dentro dos parâmetros legais, não podendo estender essa liberdade até ao ponto de cair no puro arbítrio.

Nenhuma prova foi produzida perante o Tribunal a quo que permitisse concluir, de forma fundamentada e não arbitrária, no sentido em que o fez a sentença recorrida nos pontos assinalados,

84º

Que fez uma valoração da prova pouco fundamentada, pouco coerente, absolutamente discricionária e nada vinculada aos princípios jurídicos que a deverão nortear, seguindo a lógica de que tudo o que é dito pela assistente corresponde à verdade e tudo o mais não merece credibilidade.

EM QUE, respeitosamente se requer a V. Ex.as que atendendo ao supra alegado, julguem procedente por provado o presente recurso, e em consequência seja revogadaasentença recorrida, substituindo-a por outra que a final, condene o arguido CC pela prática de 1 crime de dano, previsto pelo art. 212º do Código Penal, dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto pelos arts. 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a) e 2 e 132º, n.º 2, al. h), do Código Penal, um na pessoa do ofendido BB e outro na pessoa do ofendido AA, na forma tentada, e quatro crimes de injúria, previstos pelo art. 181º do Código Penal (CP).

(…)

A Magistrada do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência dos recursos.

Também o arguido CC, responde pugnando pela improcedência dos recursos.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto acompanhando a resposta do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento aos recursos.

Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.


*

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

*

A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:

(…)

A – Factos provados

Com relevo para a presente decisão provaram-se os seguintes factos:

1) Em março de 2020, o arguido CC residia numa habitação junto do Stand de automóveis denominado “... Automóveis”, sito na Rua ..., ..., ..., Vila do Conde, de que o arguido AA é proprietário, sendo que tanto as instalações onde o Stand se encontra instalado como o imóvel onde o arguido habitava, eram arrendados, sendo o senhorio comum a ambos.

2) Por razões não concretamente apuradas, no dia 11 de março de 2020, o arguido BB sofreu uma escoriação superficial no dorso da mão esquerda as quais demandaram para a sua cura/consolidação 5 dias, sem afetação da capacidade para o trabalho profissional.

3) Por razões não concretamente apuradas, também no dia 11 de março de 2020, o arguido CC sofreu várias escoriações no flanco, na região torácica antero superior esquerda, no braço esquerdo, em ambas as mãos e trauma na região lombar, dor para vertebal lombar direita com 8 dias de incapacidade total.

4) AA despendeu €553,50 com os serviços e bens elétricos descritos na fatura junta a fls. 174, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

5) A unidade Local de Saúde de Matosinhos E.P.E. gastou a quantia de € 85,91 com os tratamentos prestados a BB a 11-3-2020.

6) O arguido AA foi já condenado pela prática dum crime de ofensa à integridade física a 29-12-2019, por sentença transitada a 14-7-2022 no âmbito do proc.761/19.3GBMTS, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 15,00.

7) Os arguidos BB e CC não têm antecedentes criminais.

8) O arguido AA é empresário do ramo automóvel auferindo cerca de € 750,00 mensais líquidos.

9) Vive com a esposa e dois filhos menores em casa arrendada por € 600,00 mensais.

10) A esposa aufere € 550,00 mensais de subsídio de desemprego.

11) Tem o 12º ano de escolaridade completo.

12) O arguido BB encontra-se desempregado há vinte anos, realizando apenas alguns biscates ocasionais.

13) Reside com a mãe e mulher, que aufere o salário mínimo nacional.

14) Tem a 4º classe de escolaridade.

15) O arguido CC é empresário no ramo do turismo, auferindo cerca de € 2.500,00 líquidos mensais.

16) Vive sozinho em casa arrendada por € 1.600,00 mensais.

17) Frequentou alguns anos do curso de sociologia, que não completou.

B – Factos não provados

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente que:

a) No dia 10 de março de 2020, cerca das 15h30, o arguido CC, sem que nada o fizesse prever, arrancou os fios de iluminação que pertenciam ao Stand do arguido AA ao mesmo tempo que dizia “É para arrancar” e “Não quero isto aqui”.

b) Tendo tal conduta de CC imposto a reparação com os bens e serviços descritos em 4).

c) No dia 11 de março de 2020, cerca as 09h00, quando o arguido AA se encontrava acompanhado pelo arguido BB, no local referido em 1), o arguido CC encetou uma discussão com o arguido AA e, sem que nada o fizesse prever, abriu um caixote do lixo que trazia da sua casa e do seu interior retirou uma garrafa de vinho, levantou-a no ar preparando-se para a arremessar contra AA, só não tendo conseguido atingi-lo, uma vez que o arguido BB interveio, acabando este por ser ferido na mão esquerda com a referida garrafa que se partiu, de imediato.

d) Ato contínuo, o arguido CC retirou da parte de trás das calças que trajava uma faca de cozinha, apontando-a ao pescoço de AA, só não o atingindo, devido à pronta intervenção do arguido BB que conseguiu arrancar a faca das mãos do arguido CC.

e) As lesões descritas em 2) tenham sido consequência de agressões desferidas por CC.

f) Nos momentos que precederam o referido em b), o arguido CC proferia de forma muito rápida, e em tom agressivo e baixo (mas perfeitamente percetível) as seguintes expressões dirigidas a AA: “filho da puta, corno, chamaste a polícia, mas eu também vou chamar”.

g) Passados uns segundos, o arguido voltou a passar pelo stand do assistente (agora, em sentido contrário), e mais uma vez voltou a proferir as seguintes expressões dirigidas a AA: “filho da puta, corno, chamaste a polícia, mas eu também vou chamar”.

h) Ao chegar à sua habitação, CC dirigiu a AA a seguinte frase: “Anda cá filho da puta!”

i) Segundos depois, o arguido CC voltou a sair da sua habitação, novamente com o seu contentor doméstico, em direção aos contentores do lixo e, de olhar fixo em AA, volta a proferir as mesmas expressões: “filho da puta, corno, chamaste a polícia, mas eu também vou chamar”.

j) O arguido CC pretendia atingir o arguido AA com a garrafa de vidro, só não o conseguindo por razões alheias à sua vontade, acabando por atingir o arguido BB.

k) Pretendia ainda atingir o arguido AA com uma faca que transportava, o que só não conseguiu, devido à pronta intervenção de BB com conhecimento de que quer a garrafa de vidro quer a faca que empunhou, eram meios particularmente perigosos e eram aptos a provocar-lhe lesões corporais.

l) O arguido CC sabia que os fios de iluminação não lhe pertenciam e que, ao causar-lhe intencionalmente estragos, atuava contra a vontade do seu dono, o arguido AA, e sem o seu consentimento.

m) O arguido CC agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e punida criminalmente.

n) No dia 11 de março de 2020, pelas 9:00h, quando o arguido CC foi deitar o lixo fora, encontrando-se os demais arguidos no portão da oficina, o arguido AA disse-lhe “estás a olhar o boi?”.

o) O arguido CC ignorou-o, continuando a recolher e colocar o lixo, quando o arguido AA voltou a dirigir-se a ele dizendo “estás a olhar seu grande boi? És um cabrão, um grande filho da puta!”.

p) E, quando passou a mulher do arguido BB, disseram ambos os demais arguidos a CC “estavas a olhar para ela seu grande filho da puta? Seu grande cabrão vais-te arrepender”.

q) E em ato contínuo foram ao encontro do arguido CC, tendo este sido atingido nas costas e caído.

r) Tendo após a queda se encolhido, tentando proteger a cabeça com os braços, tendo sido agredido pelos arguidos AA e BB com socos e pontapés no flanco.

s) Após CC ter conseguido fugir dos demais arguidos, DD colocou-se à sua frente, impedindo-o de fugir.

t) Em tal momento AA agarrou CC pelo pescoço, quase lhe tirando a respiração, levando-o a vomitar.

u) Tendo a namorada de CC, EE, e dois indivíduos que se encontravam no local separado os arguidos, pondo termo às agressões.

v) As lesões mencionadas em 3) tenham sido resultado das agressões desferidas pelos arguidos AA e BB.

w) Os arguidos AA e BB agiram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. 

x) AA sentiu-se profundamente ofendido, ansioso, entristecido, envergonhado e injustiçado com a conduta encetada por CC.

y) Sentindo receio de voltar a ser confrontado pelo arguido CC, temendo pela sua vida, e também pela vida da sua esposa que foi uma pessoa que assistiu a tudo e diariamente se encontra a trabalhar no stand, muitas vezes sozinha.

z) No momento mencionado em d), o arguido BB agarrou o arguido CC, tendo este último passado uma faca repetidas vezes, para cima e para baixo no casaco que aquele trazia vestido.

aa) Por força de tal conduta o casaco rasgou e o telemóvel que o ofendido transportava no bolso caiu e partiu-se.

bb) Tendo tais objetos o valor de €400,00, tendo se tornado inutilizáveis.

cc) A conduta de CC provocou a BB dores e mau estar, medo, inquietação, angústia e tristeza.

C - Motivação

O tribunal fundou a sua convicção na apreciação e análise crítica de toda a prova produzida e examinada em audiência de julgamento, segundo juízos de experiência comum e o princípio da livre apreciação (art. 127º do CPP).

Toda a prova produzida apontou no sentido da veracidade do exposto no facto provado 1) – aludindo os arguidos coincidentemente quanto ao mesmo.

Os registos clínicos e relatórios de fls. 80 a 83, 98-101, 129 a 130, 131 e 168 e 169 atestam igualmente a ocorrência dos ferimentos descritos em 2) e 3).

Sendo igualmente de prova documental – faturas a fls. 174 e 227 – que decorre a prova dos factos 4) e 5).

Mas se foi possível, como acabamos de ver, comprovar a ocorrência de lesões e danos, já não foi possível ao Tribunal traçar de forma clara o modo como as mesmas foram ocasionadas, ou seja, a dinâmica dos factos que conduziu a tais ferimentos e danos.

Sendo que a insuficiência de prova contundente para explicitar de forma clara o que terá ocorrido, ditou aplicação do princípio in dubio pro reo, e a consequente não prova dos factos a) a cc).

Das declarações prestadas em juízo, tanto por arguidos como por testemunhas, decorreram essencialmente duas versões dos factos distintas.

A primeira, transmitida pelos arguidos AA e BB, e pela mulher do primeiro DD, referindo, em suma, que a reparação mencionada no facto 4) foi determinada por uma atuação do arguido CC, que terá propositadamente estragado os bens descritos na fatura no âmbito dum conflito de vizinhança, na data e nos termos indicados na acusação, sendo que no dia seguinte teria ocorrido um episódio de insultos e agressões por parte de CC a AA, com o uso duma garrafa e duma faca, tendo BB intervenção (e nessa sequência sendo lesionado) apenas tendo em vista defender o coarguido AA.

E a segunda, transmitida pelo arguido CC e sua companheira à data, EE, mencionando que foi este o único agredido na sequência de eventos que terá tido lugar a 11-3-2020 (ressalvando EE que apenas se apercebeu das agressões quando as mesmas já decorriam, não tendo assistido ao seu início), não tendo sido usada qualquer faca ou garrafa, nem tendo existido qualquer estrago propositadamente provocado a iluminação instalada por AA no imóvel descrito em 1).

De notar que os intervenientes mencionados foram os únicos com alegado conhecimento dos factos inquiridos em juízo, sendo que as demais testemunhas inquiridas referiram não estar presentes ou recordarem-se de quaisquer episódios de conflito ou agressões.

E, como é manifesto, todos acabam por ter uma maior proximidade a um ou outro dos lados da contenda, exponenciando o perigo de parcialidade no relato do sucedido. Risco esse que, conjugado com alguns pontos que suscitaram maior perplexidade e estranheza, levam a que nenhum dos depoimentos tenha tido a capacidade de convencer e esclarecer o Tribunal quanto à concreta dinâmica do sucedido, como já referimos.

Assim, e no tocante ao relatado por AA, BB e DD, não deixou desde logo de suscitar estranheza a menção de que a última, perante um episódio de agressões potencialmente fatais que visariam o seu marido, nada fez ou disse. Quedou-se, nas palavras dos mesmos, estarrecida, nada fazendo. Sendo em abstrato possível tal reação, é uma reação que não é, convenhamos, a normal ou habitual. E, a bem ver, questionados a tal respeito, não deixaram estes três intervenientes de demonstrar alguma incapacidade e pouco à vontade na descrição de tal comportamento – minando a credibilidade do relatado a tal respeito.

Mais ainda, a alegada dinâmica do início das agressões relatada pelos arguidos AA e BB também gera dúvidas. Se BB tinha, como referiu, o arguido CC quase manietado, como que o abraçando (o que permitiria, descendo os seus braços, impedir o movimento dos braços de CC), como seria possível ao arguido CC ter ângulo de movimento para utilizar a alegada faca?

O raspar da faca na lombar do arguido BB é, a bem ver, algo que pela forma como disse que agarrava CC se torna muito pouco credível – sendo que a foto junta do casaco após a alegada contenda não é suficiente para atestar tal modus operandi de CC, podendo o rasgão retratado ter tido várias causas.

A descrição que foi feita da forma como BB agarrou CC não deixou assim de suscitar elevadas dúvidas ao Tribunal, parecendo que teria ou poderia ter facilmente a situação controlada, mas, por uma utilização duma faca que dificilmente poderia realizar-se a nosso ver, o teria deixado fugir, sem sequer o arguido AA ter tempo para se colocar em segurança.

Não podendo igualmente deixar de se sublinhar que a forma como BB e AA descreveram o sucedido sempre aparentou ser bastante defensiva e pouco espontânea, e, no geral, pouco credível.

Se o início das agressões suscitou dúvidas, também dúvidas suscitou o descrito quanto ao final das agressões. Na verdade, e face ao relatado por AA, BB e DD, após insultos, agressões e tentativas de agressão graves por parte de CC, e depois duma rasteira “defensiva” de BB ao mesmo que o fez cair aparatosamente no chão, estes três intervenientes decidiram ajudá-lo. Agarrando-o e levando-o até à sua companheira EE.

Ora, esta versão dos factos referentes às alegadas agressões esbarra com a versão dos factos trazida pela mencionada EE, que referiu uma série de agressões quando o arguido CC se encontraria prostrado no chão, interrompida com a sua interpelação – havendo que notar que EE, não sendo atual companheira de CC, nem familiar de qualquer outro arguido, acaba por ser a testemunha com menos interesse no desfecho dos presentes autos, o que não permitindo dar por certo tudo o por si referido, acaba por lhe conferir alguma credibilidade adicional. E esbarra ainda com as regras da normalidade e experiência. Depois dum episódio de violência e grande agressividade de CC, como o era o relatado por estes arguidos, não é normal que alguém releve imediatamente tudo o ocorrido anteriormente. Pegando, casualmente, no anterior agressor, levando-o em braços à sua companheira, como se nada fosse ou nada se tivesse passado. Se a preocupação pelo bem-estar alheio poderia justificar um auxílio de CC – preocupação que face ao conflito anterior não deixaria no entanto de ser estranha – a preocupação pelo bem-estar próprio determinaria que estes arguidos mantivessem alguma distância de CC, chamando EE ou outra pessoa para o ajudar, mantendo todavia a devida “distância de segurança”, ao invés de se aproximarem e agirem como se nada se tivesse passado, como descreveram. Claro está que este comportamento relatado – duma forma pouco convincente e escorreita, reitera-se – é em abstrato possível. Mas não é, julgamos nós, um comportamento habitual ou normal.

No tocante ao relatado por CC e EE, por outro lado, suscitou ao Tribunal dúvida a menção à existência duma testemunha isenta e imparcial que teria passado de carro no local e assistido às agressões, indicada por CC, mas que, inquirida em juízo, referiu nada ter visto: a testemunha FF. Podendo tal negação decorrer duma tentativa de desligamento relativamente à confusão entre os arguidos, o certo é que a mesma não deixou de diminuir a credibilidade do relatado por CC. Sublinhando-se ainda e novamente que no testemunho de EE a mesma referiu expressamente não ter assistido ao início da contenda que opôs os arguidos no dia 11-3-2020, não podendo assim corroborar o referido por CC.

Perante as dúvidas e questões supra apontadas seria assim essencial, para comprovar o efetivamente sucedido, prova testemunhal isenta do ocorrido ou outra prova documental, pericial, ou outra, que corroborasse qualquer uma das versões descritas – ou trouxesse outra que fosse, eventualmente, a real.

Mas tal prova adicional inexiste nos autos.

Acredita-se assim que houve um episódio de agressões que opôs os arguidos AA e BB a CC. Mas a dinâmica de tais agressões, com a indicação da forma como foram desferidas, por quem foram iniciadas, por que razão foram iniciadas, e como terminaram, bem como o que terá sido dito – designadamente com injúrias – antes, durante ou depois das mesmas, tornou-se, salvo o devido respeito, impossível de apurar com certeza para além de qualquer dúvida razoável. E isto face ao conflito entre as versões trazidas, pontos dúbios e contradições existentes e supra apontadas e regras da experiência e normalidade.

A incapacidade de determinar o sucedido no dia 11-3-2020, com pontos muito dúbios e pouco credíveis nos depoimentos de AA, BB e DD, inquina também a credibilidade do referido por AA e sua mulher DD quanto ao sucedido no dia anterior, sendo que as reparações descritas em 4) podem ter outras causas que não o alegado comportamento de CC de danificação de equipamento de iluminação, comportamento esse negado pelo mesmo e sua anterior companheira, sem que exista também prova testemunhal ou outra suficientemente contundente que o permita dar por certo.

Decorrendo assim do exposto, reitera-se, a não prova dos factos a) a cc).

Os factos provados 6) e 7) resultam do teor dos últimos certificados de registo criminal juntos aos autos.

Os demais factos provados resultam do referido pelos arguidos quanto às suas condições económicas, sociais e familiares dos mesmos, sendo que quanto aos mesmos o por si referido foi convincente – inexistindo razões ou interesses que pudessem, tanto quanto pudemos descortinar, impor um falsear da verdade quanto aos mesmos.

(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:

            - Impugnação da matéria de facto provada;

            - Violação do princípio da livre convicção;


*

II - FUNDAMENTAÇÃO:

Da motivação e conclusões do recurso retira-se que os recorrentes entendem que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, pondo em causa a totalidade dos factos não provados que deviam em seu entender ter sido dados como provados.

Atacando a decisão recorrida quer pela via da impugnação pela via do ataque à livre convicção do tribunal.

No que concerne à impugnação da matéria provada, não obstante os tribunais da Relação conhecerem de facto e de direito nos termos do disposto no artº 428º do CPP, como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva “o recurso sobre a matéria de facto não significa um novo julgamento, mas antes um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância” Forum Justitiae, Maio 99.

Na verdade, fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Ao tribunal de recurso cabe apenas “…aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”.[1]

Os recorrentes fundamentam a impugnação com base nas declarações das assistentes/arguidos AA e BB e nas facturas apresentadas pretendendo e em síntese que os factos não provados sejam dados como provados, sem no entanto em momento algum exporem em que medida e em que concreto sentido é que tais depoimentos determinam a imposição dos fatos provados, pois que se limitam a contrapor a versão dos assistentes/recorrentes à versão do Assistente CC, e a discordar da falta de credibilidade atribuída pelo tribunal a tais declarações.

Na verdade a lei refere provas que «impõem» e não as que «permitiriam» solução diversa, pois casos haverá em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.

Por isso, quando o recorrente pretenda impugnar a matéria de facto, recai sobre o mesmo o ónus de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa, o que terá de ser feito por referência ao consignado na acta, -relativamente às provas gravadas – indicando concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

Ora, conforme decorre da motivação do recurso, e não obstante a transcrição de exíguos passagens dos depoimentos dos Assistentes o ataque à decisão da matéria de facto impugnada é feita apenas por via da discordância dos recorrentes à apreciação da prova efectuada pelo tribunal, como bem salienta o Srº Procurador Geral Adjunto.

Parecem os recorrentes esquecer a disposição do artº 127º do CPP que dispõe que «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»

O princípio acabado de enunciar responsabiliza o julgador, ao permitir-lhe a avaliação e ponderação dos meios de prova sem vinculação a um quadro predefinido que fixe o valor das provas (sistema da prova legal).

Uma coisa é a manifestação de discordância, outra é a demonstração do erro de julgamento que não se basta com uma diferente interpretação das provas, e que parece pressupor que a este tribunal de recurso caberia fazer um novo julgamento sobre a totalidade da matéria de facto.

Esta liberdade na valoração das provas admitidas pressupõe, por parte do julgador, a revelação da credibilidade que cada um dos meios de prova lhe mereceu, da sua relevância objectiva, dos raciocínios elaborados a partir deles e, por último, do confronto crítico exercido.

Porém, pelo facto de a alteração da matéria de facto estar pela via da impugnação votada ao fracasso, isso não significa que a sentença não enferme de vício relativo à matéria de facto provada como de seguida se irá demonstrar.

Na verdade desde já se adianta entendermos que a decisão recorrida incorreu no vício do erro notório na apreciação da prova, pp. pelo artº 410º nº2 al c) do CPP.

Como se escreveu em acórdão do STJ de 27/10/2010, “ o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º, nº 2, al. c) do CPP, é uma anomalia de confecção técnica decisória, a resultar do texto da decisão recorrida, quando nela existam ou se revelam distorções de ordem lógica entre factos provados e não provados ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, que, por isso mesmo não passa despercebida imediatamente a uma verificação e observação sem esforço, tomando-se como ponto de referência o homem médio (…)»[2]

Do mesmo modo que todos os demais vícios do artº 410º nº2 do CPP, o aludido vício tem que forçosamente resultar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo permitido, para a demonstração de que existem, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida. – cfr., por todos, ac. do STJ, de 19/12/90, citado por Maia Gonçalves em anotação a este preceito.

Como decorre da fundamentação da decisão recorrida, o tribunal deu a totalidade dos factos imputados aos três arguidos como não provados, por considerar que face às versões contraditórias dos Assistentes/Arguidos AA e CC, por um lado e do Assistente e Arguido e testemunha EE por outro, não foi possível corroborar nenhuma das versões, se verificou uma “dúvida razoável” em relação a todos os factos não provados, “.face ao conflito entre as versões trazidas, pontos dúbios e contradições existentes e supra apontadas e regras da experiência e normalidade..”

Como escreve o Prof. Figueiredo Dias[3], «A absolvição por falta de prova, em todos os casos de persistência de dúvida no espírito do tribunal, não é consequência de qualquer ónus da prova, mas sim da intervenção do princípio in dubio pro reo

E prossegue o mesmo Professor: «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar da prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam ser considerados provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (…)- tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo.»

Isto é, o princípio in dubio pro reo não é um princípio que permita ao tribunal demitir-se de procurar, como deve, firmar a sua convicção sobre a ocorrência ou não dos factos, apreciando a credibilidade de cada um dos meios de prova produzidos. O que este princípio antes impõe, é que, após esse labor, se o tribunal, ainda assim, não conseguir concluir se determinado facto ocorreu ou não, por se lhe apresentarem dúvidas que, após a apreciação conjugada da prova, não logrou sanar, então terá que dar tal facto como não provado.

 Ou, como se escreveu no ac. da Relação de Évora de 16/10/2007, o princípio in dubio pro reo “não constitui uma regra probatória em sentido próprio, i.e., uma regra relativa à produção ou valoração da prova, nomeadamente à dúvida sobre credibilidade de um dado meio de prova individualmente considerado, reportando-se, antes, às consequências da não realização de prova suficiente sobre a verdade ou falsidade de um facto, depois de concluído o processo de valoração da prova produzida”. [4]

Também no ac. do STJ de 7/7/2021 se escreveu sobre o princípio in dubio pro reo, “É, pois, uma regra de valoração probatória dirigida ao tribunal do julgamento, que não o obriga a duvidar, nem, evidentemente, a julgar provados factos irracionais, ilógicos, contrários às leis da ciência ou às máximas da experiência somente porque o arguido os declara e lhe são favoráveis.[5]

Ou seja, para que o princípio in dubio pro reo possa funcionar, é necessário que as provas submetidas à apreciação do tribunal não permitam a tomada de decisão sobre a ocorrência ou não de determinado facto.

Lida a decisão recorrida, verificamos que o tribunal, face à existência de versões distintas, descredibiliza ambas as versões, por considerar que “Perante as dúvidas e questões supra apontadas seria assim essencial, para comprovar o efetivamente sucedido, prova testemunhal isenta do ocorrido ou outra prova documental, pericial, ou outra, que corroborasse qualquer uma das versões descritas – ou trouxesse outra que fosse, eventualmente, a real.

Mas tal prova adicional inexiste nos autos.…”

Porém, e com o devido respeito por opinião contrária, afigura-se que, no caso em apreciação, o tribunal não apreciou toda a prova constante dos autos, já que embora faça referência à existência de exames médico legais e relatórios de urgência que lhe serviram para dar como provados os factos provados sob os pontos 2) e 3 da matéria de facto, ignorou o “nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano” afirmado nas conclusões respectivas a fls. 100 e 169v dos referidos exames, que não cuidou de afastar, nem teve em conta quando procedeu à apreciação crítica das declarações dos arguidos e testemunhas, o que só por si retira solidez ao processo de convicção expresso pelo tribunal, já que o tribunal só poderia ter avançado para a utilização do princípio in dubio pro reo se, depois de analisadas e correlacionadas entre si todas as provas produzidas, concluísse não poder decidir sobre a ocorrência ou não dos factos.

Igualmente não teve em conta a apreensão da faca descrita no auto de  fls. 86 e examinada a fls.84, não se pronunciando sobre a mesma em conjugação com a apreciação das versões dos arguidos.

Acresce que também resulta, da própria fundamentação da decisão recorrida, a existência de erro notório na apreciação da prova, quando na mesma se retira credibilidade, à versão das agressões dada pelos assistentes AA e CC, com base no depoimento da testemunha EE que diz ser “a testemunha com menos interesse”, e a quem o tribunal confere “alguma credibilidade adicional”,  ao escrever , “Ora, esta versão dos factos referentes às alegadas agressões esbarra com a versão dos factos trazida pela mencionada EE, que referiu uma série de agressões quando o arguido CC se encontraria prostrado no chão, interrompida com a sua interpelação – havendo que notar que EE, não sendo atual companheira de CC, nem familiar de qualquer outro arguido, acaba por ser a testemunha com menos interesse no desfecho dos presentes autos, o que não permitindo dar por certo tudo o por si referido, acaba por lhe conferir alguma credibilidade adicional. ”para mais à frente vir a descredibilizar também o depoimento desta testemunha, e assim dar as duas versões como não provadas.

É que se é possível numa perspectiva lógica e ontológica que o depoimento de uma testemunha possa ser credível quanto a uns factos e já não quanto a outros, a mesma perspectiva já não admite porém, que se possa considerar ao mesmo tempo e quanto aos mesmos factos, credível e não credível o mesmo depoimento.

Ou seja, o tribunal, ao ter aplicado o princípio in dubio pro reo sem ter procedido à apreciação de todas as provas, designadamente sem ter apreciado e valorado o teor dos exames médico junto aos autos, compaginando-os com o teor das declarações prestadas pelos arguidos/assistentes e depoimentos das testemunhas, de modo a poder estabelecer ou afastar um juízo de compatibilidade entre as lesões aí descritas e as agressões descritas pelos assistentes, ao não se ter pronunciado criticamente relativamente à faca apreendida, bem como ao descredibilizar os depoimentos dos Assistentes com base no depoimento de testemunha que também descredibiliza, o tribunal  fez um uso indevido do princípio “in dubio pro reo” e como tal incorreu no erro notório da apreciação da prova previsto na alínea c) do nº2 do artº 410º do CPP, não obstante assistir razão ao Srº Procurador Geral Adjunto quando aponta a sem razão da legação da recorrente de pretender inverter o efeito do aludido princípio,

E uma vez que como expressamente consta da fundamentação da decisão recorrida, “A incapacidade de determinar o sucedido no dia 11-3-2020, com pontos muito dúbios e pouco credíveis nos depoimentos de AA, BB e DD, inquina também a credibilidade do referido por AA e sua mulher DD quanto ao sucedido no dia anterior”o vício apontado afecta não só a matéria dos factos imputados no dia 11 de Março, mas também os imputados no dia 10 de Março.

É que dúvida razoável afigura-se ser aquela que, não obstante a apreciação conjugada de toda a prova produzida, segundo as regras da experiência, ainda assim subsiste no espírito do julgador, porque insuperável, levando a um non liquet sobre os concretos factos imputados aos arguidos, e que por força dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, terão que ser dados como não provados.

O vício de que enferma a decisão recorrida respeita aos factos estruturantes da matéria de facto e, por isso, não é possível decidir da causa, havendo que concluir que, face à existência do vício do artº 410º nº 2 al. c) do CPP,  nos termos em que o mesmo foi assinalado, o mesmo acarreta  o reenvio do processo para novo julgamento à totalidade do objecto do processo, salvaguardado o trânsito em julgado parcial ocorrido em relação à absolvição dos crimes imputados aos arguidos AA e BB, por inexistência de recurso do MP e do Assistente CC.


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III – DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em nos termos dos artº 426º nº1 e 426º-A, ambos do CPP, determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo, salvaguardado o trânsito em julgado parcial ocorrido em relação à absolvição dos crimes imputados aos arguidos AA e BB, por inexistência de recurso do MP e do Assistente CC.

Sem tributação


Elaborado e revisto pela relatora

 

Porto, 21/2/2024.

Lígia Figueiredo

Paula Natércia Rocha

Maria Luísa Arantes

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[1] Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
[2] Cfr. CJ -  ASTJ – Ano XVIII, tomo III, pág. 243  e ss.
[3] Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal primeiro volume, pág. 213, Coimbra Editora, Limitada, 1974.
[4] Ac. Rel Évora 16/10/2007, proc. 1238/07-1, (relator João Latas).
[5] Ac.STJ 7/7/2021, proferido no proc. 128/19.3JAFAR.E1.S1 (relator Nuno Gonçalves).