Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4741/10.6T3SNT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: CRIME DE FALSIFICAÇÃO
CRIME DE FALSAS DECLARAÇÕES
PROCURAÇÃO CADUCADA
Nº do Documento: RP201407024741/10.6T3SNT.P1
Data do Acordão: 07/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Antes da entrada em vigor das alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n° 19/2013, de 21/2, não é criminalmente punida a conduta do arguido que intervém numa escritura pública de compra e venda e de cessão de posição contratual, na qualidade de procuradora de alguém que bem sabia já ter falecido, mesmo que a procuração não tenha sido outorgada em seu benefício, e omite a morte do Mandante ao Notário.
II - Após a entrada em vigor de tal lei, tal conduta poderá, se reunidos os restantes elementos do tipo, segundo alguma doutrina, ser subsumível ao crime de falsas declarações previsto no art.º 348º-A do C. Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 4741/10.6T3SNT.P1
Origem: 2ª Vara Criminal do Porto

Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I – Para julgamento em processo comum com intervenção de tribunal singular, o Ministério Público acusou a arguida, B…, divorciada, nascida a 22/11/1954, natural de …, filha de C… e de D…, titular do BI nº ……. e residente na …, .., ….-… Sintra, imputando-lhe a prática, em concurso real, de um crime de falsificação, previsto e punido pelo artigo 256.º, nºs 1, al. d), e 3, do Código Penal e de um crime de burla, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al a), por referência ao art. 202.º, al b), todos do Código Penal.
Realizou-se a audiência de julgamento, no final da qual o tribunal de 1ª instância proferiu sentença em que decidiu:
a) condenar a arguida, pela prática do crime de falsificação, previsto e punido pelos artigos 255.º, alínea a), e 256.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão;
b) condenar a arguida, pela prática do crime de burla, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão;
c) condenar a arguida, pela prática dos dois crimes, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na execução por idêntico período de 2 anos e 6 meses.
*
Discordando de tal decisão, veio a arguida interpor o presente recurso, sintetizando os respetivos fundamentos nas seguintes conclusões:
- não se verificam os pressupostos dos crimes de burla e falsificação em que a Recorrente foi condenada;
- verificam-se, isso sim, os pressupostos do crime de infidelidade, previsto no artigo 224º do Código Penal, que, atendendo à qualidade dos ofendidos, depende forçosamente de acusação particular – artigo 207º, n.º 1, a), por remissão do artigo 224º, n.º 4, ambos do Código Penal;
- compulsados os autos, e face à ausência de acusação particular, estamos perante nulidade prevista no artigo 119º/ b), ‘a contrario’, do Código de Processo Penal;
- pelo que, em consequência, deverá a arguida ser absolvida dos crimes que lhe são imputados.
*
O Ministério Público apresentou resposta em que, refutando o alegado pela recorrente e mostrando a sua concordância com a sentença recorrida, concluiu pela afirmação de que não ocorreu, na sentença, qualquer erro na qualificação jurídica, pelo que deve ser o presente recurso rejeitado, considerando-se mesmo ser manifesta a sua improcedência.
Idêntica posição manifestou o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu já nesta 2ª instância, em que expressamente aderiu aos termos da resposta.
Cumpre, pois, decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Tendo como referência a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, as principais questões a decidir são as de saber:
- se as provas existentes nos autos implicam a modificação da decisão respeitante aos factos subjetivos;
- se a factualidade provada não permite imputar à arguida o crime de falsificação agravada por que vem condenada, mas se subsiste um crime de falsificação simples;
- se a factualidade provada não possibilita atribuir à arguida a prática do crime de burla qualificada por que foi também condenada;
- se a arguida cometeu um possível crime de infidelidade, mas, em tal hipótese, o processo está inquinado pela nulidade insanável do artigo 119º, alínea b), ‘a contrario sensu’, do Código de Processo Penal, face à inexistência de acusação particular.
*
A decisão de facto na sentença recorrida (transcrição):
«
(1) [2] Por procuração de 11 de Abril de 2008, lavrada no Cartório Notarial sito na …, nº …, .º, Lisboa, a arguida foi constituída procuradora de seus pais, [C…] e D….
(2) Assim, foram conferidos a B…, os poderes especiais “para, em seu nome, em conjunto com os demais interessados (…) prometer vender e vender, a quem e pelos preços, termos e condições que entender, o direito predial”, propriedade, e “outorgar e assinar as competentes escrituras…receber os preços correspondentes” que possuíam sobre um terço indiviso “do prédio rústico, com a área de oito mil oitocentos e quarenta e cinco metros quadrados, denominado “…”, sito no …, freguesia …, concelho de Sintra, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra, sob o número sessenta e dois mil seiscentos e cinquenta, no Livro B-cento e sessenta e três”.
(3) A descrição do mencionado prédio foi atualizada, correspondendo então ao número dez mil novecentos e setenta e cinco, daquela Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra e inscrito na matriz sob o artigo 159.
(4) Na posse de tal procuração, a arguida, no dia 3 de Março de 2009 celebrou um contrato-promessa de compra e venda da referida parcela, a favor de E…, promitente compradora.
(5) Entretanto, no dia 13 de Março de 2009, faleceu o pai da arguida, C….
(6) Ao invés de comunicar o referido contrato aos demais herdeiros e de diligenciar no sentido de celebrar a necessária escritura de habilitação de herdeiros, a arguida decidiu, em prejuízo daqueles, celebrar o contrato definitivo.
(7) Assim, no dia 29 de Abril de 2009, após o falecimento do seu pai, e tendo em vista a celebração da escritura pública, a arguida, em Matosinhos, aceitou e assinou a cessão de posição contratual, na qualidade de procuradora de e em representação do seu pai C… e mulher D…, no uso dos poderes que lhe foram conferidos pela procuração supra referida, a qual estava caduca.
(8) Tal contrato foi certificado por advogada.
(9) Em tal contrato, a arguida interveio como promitente vendedora, primeira contraente, sendo a segunda contraente E…, promitente compradora, a qual cedeu à sociedade “F…, Ldª”, a posição contratual que possuía no contrato-promessa de compra e venda celebrado em 3 de Março de 2009 entre as duas primeiras e que tinha por objeto a mencionada “terça parte indivisa do prédio rústico”, denominado “…”.
(10) Na mesma data, 29 de Abril de 2009, no Cartório Notarial de Matosinhos, da …, nº …, .º, …, Matosinhos, do Notário G…, a arguida, na qualidade de procuradora, em representação de C… e mulher D…, “casados em comunhão geral de bens…, com ela residentes, no uso dos poderes que lhe foram conferidos” pela procuração supra referida que apresentou, declarou que, “em nome dos seus representados”, pelo preço de quarenta mil euros, já recebido, vendia à sociedade “F…, Ldª”, representada pela segunda outorgante, H…, a mencionada “terça parte indivisa do prédio rústico”, com a área de oito mil oitocentos e quarenta e cinco metros quadrados, denominado “…”, sito no …, freguesia …, concelho de Sintra, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número dez mil novecentos e setenta e cinco, e inscrito na matriz sob o artigo 159, registado a favor dos seus pais.
(11) A arguida recebeu da compradora “F…, Ldª,” o preço da venda daquele prédio, no montante global de 41.650€, através do cheque nº ………., datado de 20/04/2009, no valor de 10.650€ e do cheque nº ………., datado de 15/07/2009, no valor de 31.000€, ambos do “I…” e que foram emitidos à sua ordem.
(12) Assim, a arguida, quando celebrou a mencionada escritura pública e o referido contrato de cessão de posição contratual, declarou e fez constar nos mesmos que era procuradora e agia em representação do seu pai C…, no uso dos poderes que lhe haviam sido conferidos pela mencionada procuração, bem sabendo que o seu pai já tinha falecido e que já não tinha tais poderes de representação, porquanto aquela procuração havia caducado, quanto ao mesmo, na data da sua morte.
(13) A arguida atuou voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que não podia ter declarado, contrariamente à verdade, que era procuradora e representante do seu pai, após a morte deste. No entanto fê-lo, levando o Notário a fazer constar da dita escritura factos não verdadeiros, juridicamente relevantes, e a compradora do citado imóvel a celebrar e assinar a mesma, o que quis.
(14) Sabia que aquelas declarações não correspondiam à verdade e abalavam a confiança e credibilidade na autenticidade e genuinidade do documento autêntico e autenticado e atentavam contra a fé pública que merecem as escrituras públicas e os documentos autenticados.
(15) Agiu com intenção de assegurar para si o recebimento da quantia correspondente ao preço do referido imóvel, de, pelo menos, 40.000€, em prejuízo dos demais herdeiros, o que conseguiu.
(16) Assim, a arguida, fazendo acreditar ao Notário, à promitente compradora que cedeu a sua posição contratual e à compradora do citado imóvel, ser verdade que o seu pai ainda era vivo e que a procuração que exibiu lhe conferia os poderes que afirmou ter, conseguiu reter para si os montantes recebidos.
(17) Tal contrato de cessão de posição contratual e escritura pública não teriam sido celebrados se a promitente compradora, que cedeu a sua posição contratual, a compradora do imóvel e o Notário soubessem que a arguida não tinha poderes para vender um imóvel que não era seu.
(18) Obedecendo a uma única resolução, a arguida, ao atuar da forma descrita, sabia que estava a conseguir, em cada uma das vezes supra referidas, uma vantagem patrimonial que não lhe era devida, que lesava patrimonialmente os demais herdeiros do seu pai e o Estado, o que quis e aconteceu.
(19) Sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
(20) A arguida encontra-se desempregada e sem rendimentos.
(21) Vive com a mãe.
(22) Tem o 9.º ano de escolaridade e efetuou um curso de belas-artes.
(23) Do certificado de registo criminal da arguida nada consta.
*
Factos não provados.
Com relevância para a decisão da causa, inexistem.
Motivação.
O Tribunal formou a convicção quanto à matéria de facto constante da acusação com base na prova produzida em audiência de julgamento, analisada e conjugada criticamente à luz das regras da experiência.
Considerou-se, assim, o depoimento da testemunha E…, do escritório de intermediação financeira, que depôs de forma desenvolta, consistente e sem hesitações ou dúvidas que pudessem suscitar reservas quanto ao mesmo.
Foi clara no esclarecimento do contexto em que se relacionou com a arguida, dizendo que o foi no âmbito profissional – tendo conhecido a arguida quando esta a procurou, por intermédio de uma outra pessoa de nome J…, por causa de negócios relacionados com a sua própria atividade de angariação de clientes (a nível financeiro e imobiliário).
Descreveu a arguida como sendo uma pessoa inteligente e esclarecida, que questionava sobre as dúvidas que tinha.
Neste âmbito, referiu que o negócio foi solicitado pela arguida, que foi aceite e que o que inicialmente estava em vista era a posterior aquisição da totalidade do prédio.
Esclareceu ainda que, tendo retardado a venda da totalidade do prédio, acabou por passar o negócio para a F…, tendo feito um acordo com a arguida (disse que fizeram um ajuste de contas quanto ao valor que foi pago, tendo sido restituído parte).
Esclareceu que, depois, foi feita a escritura no Notário, recordando-se de ter estado presente no ato. Apesar de não recordar exatamente o que foi dito, sabe que o Notário sempre lê as escrituras e pergunta se há esclarecimentos a prestar.
Disse, por fim, com relevo, que não soube na altura que o pai da arguida tinha falecido – facto que só soube mais tarde pelo próprio Notário, que lho comunicou.
Este depoimento claramente colocou em causa a versão da arguida quanto aos termos em que o negócio se desenvolveu e permitiu compreender o contexto da negociação – percebendo-se que havia negócios referentes a imóveis e financiamentos feitos pela arguida – e domínio e conhecimento da arguida dos factos relativos ao negócio (assim permitindo questionar a postura de alheamento e ingenuidade que a arguida procurou transmitir nas suas primeiras declarações, colocando-as em causa).
A testemunha H…, representante da F…, por seu turno, esclareceu o modo como o negócio se realizou entre a arguida e a F….
Também o desenvolvimento que deu permitiu perceber que a arguida tinha entendimento suficiente para compreender e querer o negócio – descreveu a intervenção da arguida como sendo suficientemente elaborada, o que não permite aceitar a postura de ingenuidade que esta pretendeu demonstrar (trataram-se de vários negócios que exigiam da parte da arguida alguma desenvoltura).
A testemunha G…, notário, por seu turno, confirmou que o teor da escritura corresponde ao que foi lido e se passou e que não sabia da morte do pai da arguida.
A testemunha J…, advogada, referiu não se recordar em concreto desta situação, dizendo não ter estado na realização da escritura pública, esclarecendo, contudo, que, no seu entender, a arguida tinha conhecimentos para compreender o que estava a ser tratado, até porque sempre dá uma explicação acerca do contrato-promessa.
A testemunha D…, mãe da arguida, confirmou as diligências feitas pela mesma com vista a concretizar a venda, dizendo que o marido pediu para que nada se dissesse ao irmão daquela. Acabou ainda por admitir que, quando prestou as declarações em sede de inquérito, pudesse estar mais certa dos factos – sendo que nas suas declarações de fls. 53 (linhas 29 a 33), lidas nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 356.º do Código de Processo Penal, referiu que a arguida andava sempre acompanhada por uma advogada que tratava de todos os assuntos e que desconhece que a mesma tenha vendido o terreno ou tenha celebrado qualquer contrato de compra e venda. Este depoimento, pela sua natureza vaga e inconcretizada, em nada contribuiu para o esclarecimento dos factos imputados, sendo certo que a própria arguida admite as diligências feitas com vista à venda – designadamente, o desconhecimento por parte da testemunha da realização da venda não permite concluir que a mesma se não tenha realizado.
No sentido de sustentar a versão da arguida, depuseram as testemunhas J…, K… e L…, os primeiros amigos e a terceira filha da arguida.
A testemunha J… sobre os factos em concreto nada referiu de relevante, dizendo que se afastou da situação por razões relacionadas com o seu próprio pai. Além disso, no contexto do seu depoimento não se compreende, por isso se não considerando o mesmo consistente o bastante, por que razão a testemunha E… haveria de lhe ter telefonado dizendo-lhe também que o pai da arguida tinha falecido e que era preciso tratar da situação (pois que a testemunha se havia afastado e o assunto era tratado com a própria arguida).
A testemunha K…, apesar de referir ter acompanhado a arguida ao norte, acabou por demonstrar não ter conhecimento em concreto dos factos imputados – note-se, designadamente, que a testemunha refere apenas que lhe foi dito pela arguida, à saída da escritura, que não havia dinheiro e não que tivesse presenciado a situação onde tal teria sido dito à arguida. Acresce que a testemunha também não identificou as senhoras que vieram dar os sentimentos à arguida, certo que também se não compreende por que razão as testemunhas E… e J… haveriam de ter dado os sentimentos à arguida aquando da escritura se, como disse a testemunha L…, o haviam feito já pelo telefone.
Por fim, a testemunha L… procurou sustentar a versão dos factos dada pela arguida. Fê-lo, porém, de forma que se não considerou isenta – pelo modo como foi falando sobre os factos, demonstrando a pessoalidade que os mesmos tinham para si, enquanto filha da arguida.
Neste contexto, revelou a própria circunstância de a testemunha ter uma formação, embora em área distinta (psicologia clínica), o que implica necessariamente que a mesma tenha uma outra perceção dos factos que não aquela que pretendeu querer demonstrar (refugiando-se de modo simplista no facto de não ter conhecimentos na área do direito).
Disse que esteve presente na escritura pública com a arguida, mas que não ouviu o que foi lido, designadamente quanto ao preço – o que se não afigura credível, posto que sendo a razão da formalidade presencial precisamente o escutar para declarar a conformidade, os presentes ali se encontram unicamente com a finalidade de ouvir o que diz o notário.
Acresce que é do conhecimento comum que a escritura pública constitui um ato que formaliza uma venda, não se aceitando, como o pretendeu fazer crer a testemunha, que a arguida, acompanhada desta testemunha, tivesse concretizado a transmissão sem ter recebido qualquer dinheiro – precisamente o dinheiro de que disseram necessitar em razão das dívidas surgidas com a doença do pai da arguida.
Neste contexto, o apuramento dos factos resultou, pois, da conjugação dos depoimentos das testemunhas E…, H… e G…, conjugados com os seguintes documentos: cópia da escritura de fls. 6 a 8, cópia da procuração de fls. 9 a 12, assento de óbito de fls. 14, cópia de contrato promessa de fls. 104 a 108, fls. 113 e 114 – cópia da cessão de posição contratual e de reconhecimento de assinatura –, cópias de cheques de fls. 83 e 84, fls. 93 a 101, informação bancária de fls. 119, certidão de fls. 156 a 161 e fls. 173 e 174, e contrato-promessa de fls. 312 e ss., que a testemunha H… esclareceu conter um erro de que se não havia apercebido quanto à data – sendo que tal erro só por si em nada permite desacreditar o declarado por aquelas testemunhas.
Resta dizer que a testemunha M…, irmão da arguida, nenhum contributo relevante deu para o apuramento dos factos – referindo apenas ter sabido por terceiros ter sido vendido o terreno.
A arguida prestou declarações quanto à sua situação pessoal, que, nessa parte, não foram contrariadas por outra prova, e o certificado de registo criminal consta dos autos.»
*
A) A impugnação dos factos subjetivos
Na motivação do seu recurso, começa a recorrente por alegar que, tendo sido condenada pela prática, em autoria material, de um crime de falsificação de documentos e um crime de burla qualificada, “face aos factos dados como provados, com exclusão das frases meramente tabelares relativas ao dolo, o enquadramento jurídico correto jamais poderia desembocar nestes dois crimes referidos”.
Tal significa que a arguida acaba por pôr em causa matéria de facto (a respeitante aos factos subjetivos), embora sem invocação expressa dos eventuais vícios da decisão da matéria de facto e sem indicar explicitamente as provas impositivas de decisão diversa [3].
É certo que os factos subjetivos, enquanto pertencentes à vida interior do agente, não são suscetíveis de ser diretamente percecionados ou apreendidos por terceiros. A sua demonstração resulta sempre de factos objetivos que os documentam, designadamente e em particular, os que preenchem o tipo objetivo dos eventuais crimes cometidos, retirando-se a sua verificação, em cada caso, através de presunções apoiadas nos princípios da normalidade e das regras da experiência comum [4].
Ainda assim, desde logo, resulta com toda a clareza da factualidade objetiva provada que a arguida recebeu de seus pais, em 11 de Abril de 2008, procuração com poderes especiais muito precisos para prometer vender e proceder à venda da parte indivisa de prédio rústico àqueles pertencente, tudo como se verteu nos §§ 1º e 2º da referida matéria fáctica assente.
Em fiel e irrepreensível cumprimento daquele mandato, a arguida celebrou, em 3 de Março de 2009, quase um ano depois, o contrato-promessa de compra e venda dado como assente sob o § 4º da matéria de facto provada.
É de assinalar que entre a data da concessão dos poderes e a concretização do contrato-promessa mediou quase um ano, o que denota, segundo a normalidade do acontecer, a inexistência de qualquer precipitação quer por parte dos mandantes (que nunca revelaram qualquer arrependimento ou tenção de revogar a procuração) quer por parte da mandatária (que terá tido tempo de encontrar interessados na compra e de negociar o melhor preço).
Note-se ainda que, no referido contrato-promessa (cuja cópia consta de folhas 104 a 108), a ora arguida se comprometeu a outorgar a escritura definitiva até Junho de 2009, competindo à contraparte (promitente-compradora), marcar o local e a data da celebração de tal escritura.
É indiscutível e indiscutido que entre a realização do contrato-promessa e a escritura definitiva ocorreu a morte de um dos outorgantes da procuração que concedia os referidos precisos poderes à arguida.
No entanto, desta intercorrência não pode deduzir-se, fora de toda a dúvida séria, que, ao outorgar na escritura definitiva, a arguida:
1) soubesse que os seus poderes tinham caducado – pois não é jurista ou pessoa especialmente culta, (tendo apenas o 9º ano de escolaridade e um curso de artes decorativas), não sendo, aliás (como mais adiante veremos), a caducidade de um mandato cuja execução já foi iniciada uma questão tão linear, mesmo para juristas;
2) agisse com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo – veja-se que: não vem dado como provado que a recorrente tenha feito seu o preço da venda do imóvel, mas apenas que recebeu da compradora o respetivo preço; que a venda efetuada pode ter representado o aproveitamento de uma boa oportunidade de negócio; e que tal venda poderia sempre ser sindicada pelos eventuais herdeiros do mandatário falecido (como até estará a ser, por um deles);
3) a não referência à morte do pai da arguida tivesse sido determinante da vontade de celebrar os contratos do dia 29 de Abril por parte da cessionária e da promitente compradora – ficam dúvidas sobre se, designadamente, a inicial promitente-compradora (E…) não teria conhecimento da morte do pai da arguida, face aos depoimentos de J… [5], D…, K… [6] e L… [7].
Ora, como bem salientam Jorge Miranda e Rui Medeiros [8], o processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Porém, os limites do conhecimento humano conduzem a que, frequentemente, a dúvida inicial permanece dúvida a final, apesar do esforço processual para a superar.
Na verdade, a presunção de inocência do arguido – com consagração constitucional expressa no nº 2 do artigo 32º da nossa Constituição – é um princípio fundamental em qualquer Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só), a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova [9] [10]. É uma garantia subjetiva ou, como preferem alguns autores [11], um direito subjetivo público.
Porque na dúvida sobre a culpa do arguido (um non liquet em matéria de prova dos factos) se impõe a sua absolvição, o princípio da presunção de inocência identifica-se, ao nível da apreciação da prova, com o princípio in dubio pro reo.
Assinale-se que não aderimos ao entendimento de que o princípio “in dubio pro reo” só é sindicável pela 2ª instância (de recurso de facto) nos casos em que o tribunal da 1ª instância tenha demonstrado, no texto da decisão recorrida, que se encontrava com dúvidas sérias sobre determinados factos que veio a dar como provados. Isso constituiria, a nosso ver, a denegação do âmago do direito a uma instância de recurso em matéria de facto [12].
No caso vertente, em nosso entender, se a conjugação da prova documental e pessoal permite dar como provados os factos objetivos fixados na sentença recorrida, já não se mostra suficientemente segura e congruente para possibilitar a prova dos factos subjetivos, designadamente os contidos sob os parágrafos nºs 12 (apenas a sua parte final, “…e que já não tinha tais poderes de representação, porquanto aquela procuração havia caducado, quanto ao mesmo, na data da sua morte”), 13, 14, 15, 16, 17 (apenas na parte em que refere “Tal contrato de cessão de posição contratual e…a promitente compradora, que cedeu a sua posição contratual, a compradora do imóvel e…”) e 18 da matéria de facto provada.
Assim, os parágrafos factuais nºs 13, 14, 15, 16 e 18 deixarão de fazer parte da factualidade provada, passando a constituir factos não provados.
Por sua vez, os parágrafos nºs 12 e 17 passarão a ter a seguinte redação:
(12) Assim, a arguida, quando celebrou a mencionada escritura pública e o referido contrato de cessão de posição contratual, declarou e fez constar nos mesmos que era procuradora e agia em representação do seu pai C…, no uso dos poderes que lhe haviam sido conferidos pela mencionada procuração, bem sabendo que o seu pai já tinha falecido.
(17) A escritura pública não teria sido celebrada se o Notário soubesse que a arguida não tinha poderes para vender um imóvel que não era seu.
Os restantes segmentos dos §§ nºs 12 e 17 transitam para a matéria de facto não provada.
*
B) O crime de falsificação agravada de documento imputado à arguida
Considerando a acima referida não prova de factos subjetivos, pode dizer-se que claudicam alguns dos pressupostos que conduziram o tribunal recorrido a julgar procedente a acusação e a condenar a arguida pelos crimes que lhe eram imputados.
Apesar disso, julgamos ter ainda utilidade abordar algumas questões que sempre haveria que enfrentar ainda que se não operasse qualquer modificação ao nível da matéria de facto provada.
Na verdade, o tribunal recorrido decidiu condenar a arguida, designadamente, pela prática de um crime de falsificação de documento previsto e punido pelos artigos 255.º, alínea a), e 256.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do Código Penal, pois, em seu entender, os elementos objetivos de tal ilícito-típico se encontrariam preenchidos pelos seguintes factos: quando celebrou a escritura pública de 29/4/2009 e o contrato de cessão de posição contratual, com a mesma data, declarou e fez constar nos mesmos que era procuradora e agia em representação do seu pai C…, no uso dos poderes que lhe haviam sido conferidos pela mencionada procuração, bem sabendo que o seu pai já tinha falecido.
Refira-se que aí se considerou a unidade de resolução da arguida para unificar os referidos dois contratos num único crime – o correspondente à conduta tida por mais grave, isto é, a praticada através do documento autêntico e, por isso, supostamente agravada nos termos do nº 3 do artigo 256º do Código Penal.
Como veremos, porém, este concreto comportamento da arguida não era punível criminalmente à data da sua prática.
Com efeito, o nº 2 do artigo 233.º do Código Penal de 1982, na sua versão originária e até à revisão de 1995, punia especificamente quem, induzindo em erro um funcionário, o levasse a fazer constar de documento ou objeto equiparável, a que a lei atribuísse fé pública, algum facto que não fosse verdadeiro ou omitisse facto juridicamente relevante. Note-se que, já então, não era o facto de se proferir uma declaração falsa que era penalizado, mas sim a indução em erro do funcionário.
Embora então incluído no capítulo sobre a ‘falsificação de documentos, moeda, pesos e medidas’, já então a doutrina entendia que se não tratava de um verdadeiro crime de falsificação de documentos, distinguindo a falsidade intelectual da simulação.
Assim, Maia Gonçalves escrevia [13]: “Há falsidade intelectual quando o documento é genuíno; não foi alterado, mas contudo não traduz a verdade. A falsidade há de resultar, em princípio, de uma desconformidade entre o documento e a declaração. Se o documento está de harmonia com a declaração, mas, no entanto, não está de harmonia com a realidade, não pode haver falsidade intelectual, mas somente simulação, se se verificarem os pressupostos desta última”.
O nº 2 do artigo 233º da redação originária do Código Penal de 1982 – então sem precedente no direito penal português – teve, pois, como objetivo principal [14], incriminar a simulação. Também Helena Moniz [15] considerava que estava integralmente contido dentro da hipótese prevista nesse dispositivo legal o caso da simulação, “porém, já não como crime patrimonial [16], nem como crime de falsificação de documentos, mas como falsa documentação indireta”.
Com a revisão operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, e independentemente da nova arrumação sistemática dos crimes de falsificação, deixou de existir preceito com idêntico conteúdo incriminatório.
Por isso, pelo menos durante um período de cerca de 18 anos, era entendimento pacífico na doutrina que a falsa documentação indireta deixou de ser criminalmente punível, como bem ilustra o seguinte extrato da anotação do Comentário Conimbricense do Código Penal ao artigo 256º [17]: “Não existe, pois, atualmente, no sistema jurídico português, nenhum tipo legal de crime que puna o terceiro que se serve do funcionário de boa fé para inserir no documento elementos inexatos ou falsos. E quanto a nós corretamente, visto que a atividade de falsificação irá ser integrada no tipo legal de crime que temos vindo a analisar, e apenas a indução em erro parece não ser punida, sendo certo que irá ficar sujeita aos mecanismos de invalidação dos atos jurídicos do direito civil”.
Também a jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a afirmar essa não punibilidade da falsa documentação indireta, de que destacamos o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 14/4/2010, proferido no recurso nº 5316/04.4TDPRT.P1 [18], onde se faz uma sinopse da doutrina e da jurisprudência mais relevantes sobre tal questão e onde se conclui que as declarações falsas prestadas pelos outorgantes ao notário no ato de formalização de uma escritura pública não são suscetíveis de integrar o crime de falsificação de documento do artigo 256.º do Código Penal.
Pode, pois, dizer-se com toda a segurança que – ainda que se tivessem mantido como assentes os factos subjetivos dos §§ 13º a 16º e 18º da matéria factual dada como provada pela 1ª instância – não se deveria ter dado como verificado um crime de falsificação de documento qualificado, previsto e punido pelo 256.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do Código Penal.
Ainda assim, não deixará de se chamar a atenção para que, se os factos houvessem sido praticados depois da entrada em vigor das alterações introduzidas no Código Penal pela Lei nº 19/2013, de 21/2, a solução já se mostraria mais problemática.
Com efeito, o novo artigo 348º-A do Código Penal, sob a epígrafe de ‘falsas declarações’, prevê agora a punibilidade criminal de quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios (nº 1), sendo a punição mais grave se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico (nº 2).
Reconhecendo-se as dúvidas que o atual estatuto dos notários é suscetível de introduzir na interpretação desta nova incriminação, assinala-se que poderá aqui entender-se, como o fazem M. Miguez Garcia/J.M. Castela Rio [19], que “também comete o novo crime o indivíduo que declara falsamente a notário, depois de advertido, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, para serem exaradas em documento autêntico”.
*
Quer a acusação quer a sentença recorrida imputavam à arguida apenas um crime de falsificação de documento, apesar de a invocada falsidade das declarações da arguida tivesse ocorrido em dois diferentes documentos: um autêntico (a escritura pública de que já nos ocupámos mais de espaço) e outro particular (o contrato de cessão da posição contratual da promitente-compradora). A unificação destas duas condutas num único crime sobrevinha, de acordo com a tese aí defendida, da circunstância de a arguida ter obedecido a uma única resolução.
Porém, tendo-se já visto que a declaração inserida na escritura pública – ou, olhadas as coisas por outro ângulo, a omissão de declaração de que um dos mandantes já havia, entretanto, falecido – não é criminalmente punível, restaria ainda ponderar se idêntica declaração no documento particular não continuaria a ser punível como falsificação enquadrável no tipo legal do artigo 256º, nº 1, alínea d), do Código Penal.
Na verdade, quanto a esse comportamento, não valem os argumentos acima enumerados para o crime alegadamente cometido através da escritura pública: tratando-se agora de um documento particular, já se não estará perante uma mera falsificação indireta, mas antes face a uma falsificação intelectual de documento diretamente imputável à arguida.
Porém, tratando-se de um delito de intenção – a arguida teria que pretender especificamente causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, obter para si ou para outra pessoa um benefício ilegítimo ou preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime – tal elemento subjetivo não se mostra, como já vimos, provado.
Deste modo, não pode igualmente a arguida ser declarada autora do aludido crime de falsificação de documento (não agravado ou simples).
*
C) O crime de burla qualificada imputado à arguida
Suscitando, em geral, dificuldades de interpretação e de aplicação concretas, a configuração típica do crime de burla vem atualmente modelada no nº 1 do artigo 217º do Código Penal, acolhendo situações em que alguém, com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (para si ou para terceiro), induz outra pessoa em erro, fazendo com que esta, por tal razão, pratique atos que causam à mesma ou a terceiro prejuízo de carácter patrimonial.
Trata-se de uma incriminação que protege o bem jurídico “património”, conformando um crime de resultado de dano (ainda que de resultado parcial ou cortado[20]), de execução vinculada, pois exige um duplo nexo de imputação objetiva (artigo 10º do Código Penal): entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do seu património ou do de um terceiro; e, depois, entre estes atos e a efetiva verificação do prejuízo patrimonial.
Na vertente subjetiva, é um crime exclusivamente doloso, exigindo ainda a lei que exista a já referida e específica intenção do conseguimento de enriquecimento ilegítimo.
A exigência típica cuja dilucidação maiores dificuldades práticas levanta é, porém, a de que exista um erro do(s) sujeito(s) passivo(s) que tenha sido provocado astuciosamente.
Para A.M. de Almeida Costa [21], o conteúdo útil da inclusão típica do advérbio “astuciosamente” manifesta-se no nexo de adequação do comportamento do agente ao resultado da sua conduta, tendo em atenção as caraterísticas do caso concreto, isto é, traduz-se na verificação de um genuíno domínio do erro.
A recorrente nega que tenha usado de astúcia na indução em erro, invocando uma inicial e fundante reta conduta, aquando da celebração do contrato-promessa, de que decorreria, com naturalidade, todo a seu comportamento posterior.
Como já assinalámos, essa astúcia, com toda a evidência, não estava presente no momento da celebração do contrato-promessa.
Apesar de o contrato-promessa e o contrato definitivo não constituírem um mesmo ato e, concretamente, estarem separados temporalmente por quase dois meses, encontram-se entre si apertadamente conexionados. Naquele se estabelece até quando se deveria realizar o contrato prometido (até Junho desse mesmo ano), por marcação/interpelação da promitente compradora.
Em termos cíveis, apesar de o mandato caducar, em regra, por morte do mandante (artigo 1174º, alínea a) do Código de Processo Civil), nem sempre assim deve acontecer (cfr. artigo 1175º do mesmo diploma).
Em anotação a este último preceito, Pires de Lima/Antunes Varela [22], referem: “Embora conhecido do mandatário o facto que determina a caducidade, podem advir da suspensão da atividade do mandatário prejuízos para o mandante ou seus herdeiros. É o que pode acontecer, e acontece normalmente, no caso de o mandatário ter já iniciado a execução do mandato.”
A arguida tinha iniciado o cumprimento do mandato, tendo firmado o compromisso de celebrar, em nome dos mandantes, o contrato prometido. Se a questão não é líquida sequer para os juristas, menos o seria para a arguida, pessoa sem qualquer formação nessa área e com nível cultural não superior à média dos cidadãos.
A morte do pai da arguida constituiu facto intercorrente absolutamente independente da vontade da mandatária.
Seria, por isso, verdadeiramente excessivo pretender que a arguida tenha tido um verdadeiro domínio do erro e que agisse astuciosamente com o intuito de enganar terceiros.
Não ficou ainda estabelecido que a não referência à morte do pai da arguida tivesse sido determinante da vontade de celebrar os contratos do dia 29 de Abril por parte da cessionária e da promitente compradora – ficaram mesmo dúvidas sobre se, designadamente, a inicial promitente-compradora (E…) não teria conhecimento da morte do pai da arguida antes da celebração da cessão da posição contratual do contrato prometido, o que levou a que não se dessem como provados os factos referentes à essencialidade do suposto erro.
Encontra-se, pois, posto em causa o nexo de causalidade adequada entre a suposta conduta enganosa da arguida e a prática, pelas sucessivas promitentes compradoras (supostamente burladas), dos atos tendentes a uma diminuição do seu património ou do de um terceiro.
Por outro lado, não ficou estabelecido que tenha existido efetivo prejuízo patrimonial da herança e, mormente, que, tratando-se de um bem imóvel, os eventuais prejuízos não pudessem ser facilmente sindicados pelos normais meios cíveis.
Ora, tendo o direito penal uma intervenção subsidiária, de “ultima ratio”, vem sendo generalizadamente reconhecido que apenas deve intervir quando a tutela prestada por outros ramos do direito não se afigure suficiente [23], o que não sucede no presente caso.
Deste modo, não se verificando, para além do elemento subjetivo (dolo e específica intenção), o duplo nexo de imputação objetiva, deve a arguida ser também absolvida do crime de burla qualificada que lhe vem imputado.
*
C) O alegado crime de infidelidade
Em vez dos crimes de falsificação e burla que lhe foram imputados, contrapunha a recorrente ter cometido, quanto muito, um crime de infidelidade do artigo 224º, nº 1, do Código Penal, para, no seguimento, invocar a nulidade insanável do procedimento, por falta de acusação particular.
Entendemos, porém, que a sua tese não tem bom fundamento.
No seu recorte típico, o crime de infidelidade pressupõe que tenha sido confiado ao agente, por lei ou por ato jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios [24] – e esse pressuposto existiu, no caso vertente, até um determinado momento – e que tenha sido causado a esses interesses patrimoniais um prejuízo importante.
Porém, a nosso ver e desde logo, não existem nos autos elementos que permitam sequer aferir da existência ou relevância típica de tal eventual prejuízo.
Com efeito, um dos mandantes era o falecido pai da arguida, não se sabendo qual era a sua intenção ao outorgar na procuração para venda em causa. A sua vontade poderia ser até a de beneficiar a filha aqui arguida por o ter assistido na doença, pelo que inexistiria, nessa hipótese, no âmbito da relação de mandato, qualquer prejuízo dos seus verdadeiros interesses. Porém, cumprido ou findo o mandato, quem foi verdadeiramente poderia considerar-se lesada seria a herança do mandante, que não havia confiado à recorrente qualquer encargo de dispor dos seus bens. Assim, não se verificam os pressupostos do crime de infidelidade.
A questão subsequentemente colocada – a da alegada nulidade insanável prevista pelo artigo 119º, alínea b), ‘a contrario sensu’, do Código de Processo Penal, face à inexistência de acusação particular – estava dependente de se considerar que a arguida tivesse cometido o aludido crime de infidelidade de natureza particular, dado parentesco entre a arguida e a vítima.
Porém, face à não verificação deste crime, o conhecimento de tal questão adjetiva encontra-se prejudicado.
*
III – DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em dar total provimento ao recurso interposto pela arguida B… (embora por fundamentos parcialmente diversos dos invocados pela recorrente), revogando a douta sentença recorrida e absolvendo-a dos crimes que lhe foram imputados e das penas (parcelares e única) por que foi condenada na 1ª instância.
*
Sem custas.
*
Porto, 2 de julho de 2014
Vítor Morgado
Raul Esteves
_______________
[1] Tal decorre, desde logo, de uma interpretação conjugada do disposto no nº 1 do artigo 412º e nos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Numeração introduzida pelo relator, para mais fácil referenciação.
[3] Cfr. artigos 410, nº 2, e 412º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
[4] Ver, por exemplo, o acórdão da Relação de Lisboa de 5/4/2011, proferido no processo nº 728/06.1GBVFX.L1-5, relatado por Jorge Gonçalves
[5] Esta testemunha, que angariava clientes para a testemunha E… (primitiva promitente-compradora) e que foi quem apresentou a arguida à mesma, disse que, umas 3 semanas depois do falecimento do pai da arguida, telefonou à referida E…, que lhe perguntou se sabia daquele falecimento, ao que a J… respondeu afirmativamente (cfr. gravação do respetivo depoimento, de 3’29’’ a 3’44’’).
[6] Estas duas últimas testemunhas referiram terem acompanhado a arguida “ao Porto” na ocasião da escritura e terem visto a Drª E… a dar os sentimentos à Dª D…. Referindo-se as testemunhas apenas à mãe da arguida, os seus depoimento não colidem, pois, diretamente com os das testemunhas J… e L…, que se referem a telefonemas tidos com a própria arguida.
[7] Esta depoente disse ter a ideia de a sua mãe (arguida) ter recebido da Drª E… um telefonema de pêsames, por altura da morte do avô (21’56’’ a 22’05’’ da parte do seu depoimento por teleconferência, indevidamente gravado como se fosse a continuação das 3ªs declarações da arguida, começando o depoimento em causa a 15’40’’).
[8] Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2ª edição, página 724.
[9] Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
[10] Sobre as repercussões extraprocessuais do princípio, cfr. o estudo de José Souto Moura, “A questão da presunção de inocência do arguido”, Rev. do Ministério Público n.º 42, 31 e segs. [11] Cfr. G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, Verbo, 5.ª edição revista e atualizada, 152.
[12] Crê-se que alguma jurisprudência do S.T.J. nesse sentido se funda na circunstância de este nosso mais alto Tribunal não constituir, realmente, uma instância de recurso em matéria de facto, a não ser no estrito âmbito do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
[13] Código Penal Português, anotado e comentado, 4ª edição/1988, página 485, reproduzindo o seu parecer proferido no processo nº 31 273, de 8 de Maio de 1963 e seguindo as exposições de Beleza dos Santos em “Simulação”, volume I, páginas 93 e ss., e na R.L.J., anos 68º, páginas 375 e ss. e 70º, página.s 257-258.
[14] Como decorre expressamente das próprias atas da Comissão Revisora (página 242).
[15] O crime de falsificação de documento, 1993, Coimbra Editora, página 199.
[16] Como ocorria no artigo 455º do Código Penal de 1886.
[17] Parte Especial, Tomo II, subscrito por Helena Moniz
[18] Relatado por Artur Oliveira e acedível em www.dgsi.pt.
[19] Código Penal, Parte geral e especial, com notas e comentários, Almedina, 2014, nota 8 ao artigo 348º-A, página 1178. [20] Embora se exija, no âmbito do tipo subjetivo a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo, a consumação não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando que se detete, ao nível do tipo objetivo, o empobrecimento da vítima.
[21] Em Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo II, páginas 274 e seguintes, para cujas aprofundadas anotações, em geral, remetemos, e designadamente, quanto a este concreto ponto, para folha 299.
[22] Código Civil Anotado, volume II, 3ª edição, página 740.
[23] Veja-se, por todos, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/6/2009, proferido no recurso nº 586/05.3TAACB-C1, relatado por Isabel Valongo, onde se considerou que “o Direito Penal só deve intervir quando a tutela conferida pelos outros ramos do ordenamento jurídico não for suficientemente eficaz para acautelar a manutenção desses bens considerados vitais ou fundamentais à existência do próprio Estado e da sociedade”.
[24] E essa requerida qualidade ou relação especial do agente é que faz evidenciar que se trata de um crime específico próprio.