Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
89/13.2GACHV-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO LOURENÇO
Descritores: BUSCA DOMICILIÁRIA
CARTA ANÓNIMA
Nº do Documento: RP2014021489/13.2gACHV-A.P1
Data do Acordão: 02/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Uma carta anónima, desacompanhada de qualquer outro indício, e sem que o próprio texto daquela aponte algum facto concreto susceptível de investigação, não é suficiente para autorizar a realização de uma busca domiciliária, sob pena de se abrir a porta à devassa da vida privada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 89/13.2GACHV-A

Acordam, em conferência, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto,

RELATÓRIO
No âmbito do Inquérito nº 89/13.2GACHV-A, que corre termos no Ministério Público de Chaves, em que é suspeito, B…, por detenção de armas proibidas e alegadas ameaças com arma de fogo, requereu o Ministério Público, em 13.11.2013, ao Juiz de Instrução a realização de uma busca domiciliária à residência do denunciado com os seguintes fundamentos:
- “Investiga-se nos presentes autos, in allium, a eventual prática por B… de crimes de detenção de arma proibida e de ameaça, agravados, por utilização de armas de fogo, nomeadamente caçadeiras e pistolas, sendo o denunciado referenciado, segundo apurou o N.I.C./G.N.R. – Chaves (desde logo pela denúncia anónima que despoletou o presente inquérito – cfr. fls. 8), como uma pessoa extremamente instável, conflituoso e com hábitos de ameaçar os habitantes da aldeia onde reside, … – Chaves.
O denunciado não é titular de licença de uso e porte de arma, conforme informação junta a fls. 11.
Pese embora a fase ainda incipiente da investigação, entendemos que salta à evidência a necessidade de apreensão de eventuais armas de fogo e munições que o denunciado tenha na sua posse de forma ilegal, para se aferir com toda a celeridade e urgência da veracidade dos indícios relatados no auto de notícia, dada a natureza pública dos ilícitos em causa e a gravidade dos mesmos, razão porque se requer que seja autorizada uma busca ao domicílio e anexos do denunciado, a saber:
- B…, no …, S/N, ….-… – …, Chaves, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 174º, nº 2 e 3, 176.º, 177º e 178º, todos do Código de Processo Penal.
Para apreciação e decisão, concluam-se os autos à Mm.ª Juiz com funções instrutórias”.
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Na sequência de tal requerimento do Ministério Público proferiu a srª Juiz de Instrução Criminal, em 15.11.2013 o seguinte despacho:
- “O Ministério Público promoveu a emissão de mandados de busca à residência de B…, afirmando que o mesmo terá praticado crimes de detenção de arma proibida e de ameaça agravada por utilização de armas de fogo, sendo eu não é titular e qualquer licença de uso, porte ou detenção de ama.
Entende o Ministério Público que é fulcral saber se o denunciado tem na sua posse tal arma sendo forte a probabilidade que a oculte na sua residência.
O art. 174º, nº 2, do cód. procº penal determina que, quando existam indícios de que objectos relacionados com a prática do crime se encontrem em local reservado é ordenada uma busca.
Do compulso dos autos resulta que os factos em que é sustentado o pedido de busca, assenta numa denuncia anónima, feita por carta.
Não existe qualquer elemento que permita concluir que o denunciado terá armas na sua posse, pois que ninguém se identificada a fazer tal afirmação, nem que tenha ameaçado quem quer que seja.
Todos os fundamentos constantes do relatório policial de fls. 3 e ss, são meras presunções retiradas de factos, em si mesmo inócuos – residência em França – não existindo qualquer denúncia de ameaças.
«Estando em causa o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio (2) (art. 34 nº 1 da CRP) – enquanto “forma de tutela do direito à reserva da vida privada”(3) (art. 26 nº 1 da CRP) – a busca domiciliária segue o regime previsto no art. 177 do CPP.
Assim, conjugando o disposto nos nºs 1 e 2 do art. 177 do CPP, a busca domiciliária tem de ser ordenada ou autorizada pelo Juiz (juiz que é o garante dos direitos fundamentais) e, só nos casos excepcionais previstos no art. 174 nº 4-a) e b) CPP, podem ser ordenadas pelo Mº Pº ou ser efectuadas por OPC (órgão de polícia criminal), sendo correspondentemente aplicável o disposto no art. 174 nº 5 do mesmo código (que se refere a situação dependente de validação judicial).
A regra da intervenção jurisdicional em determinados actos na fase de inquérito (arts. 268 e 269 do CPP), v.g. no caso das buscas domiciliárias, justifica-se por estarem em causa direitos fundamentais das pessoas.
O Estado, como titular do ius puniendi, quer que «os culpados de actos criminosos sejam punidos», mas também «está interessado em garantir aos indivíduos a sua liberdade contra o perigo de injustiças» (4).
Por isso, também, em processo penal, a “descoberta da verdade material não pode ser obtida a todo o custo, antes havendo que exigir da decisão que ela tenha sido lograda de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se veem envolvidas”.
A intervenção jurisdicional com vista à tutela e garantia dos direitos fundamentais das pessoas significa, assim, o acolhimento da “afirmação de que o direito processual penal é verdadeiro direito constitucional aplicado”(6).
E, efectivamente, o direito processual penal vai buscar o seu fundamento à Constituição e aos valores superiores (com matriz, nos termos do art. 1 CRP, na dignidade da pessoa humana) que a enformam e lhe estão subjacentes, prevalecendo sempre (ainda que, através de lei, se venham a restringir direitos, liberdades e garantias na medida do necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais, que não podem ser diminuídos (artigo 18 da CRP).
Na medida em que “as buscas constituem restrições à garantia da inviolabilidade do domicílio”(7), incumbe aos tribunais (desde logo face ao disposto no nº 2 do art. 202 da CRP) “assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” e “dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”.» - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/02/2007 proferido no Proc.0617261 e disponível em www.dsgi.pt
Em face do exposto, e por se entender que não existem indícios da prática de qualquer crime, designadamente os identificados nos autos, indefere-se a emissão dos mandados de busca à residência do denunciado, promovida pelo Ministério Público”.
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Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs o recurso de fls. 24 a 31, pugnando pela respectiva revogação e a substituição por outro que autorize a busca requerida, concluindo nos seguintes termos:
a) «Por despacho datado de 13-11-2013, o Ministério Público requereu a autorização para realização de uma busca domiciliária à residência do suspeito B…, estando em causa a alegada prática por este de crimes de detenção de arma proibida e/ou de ameaça, agravados, p. e p. nos termos dos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal e artigo 86.º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro;
b) Promoção/requerimento que foi indeferido pela Mm.ª Juiz com funções instrutórias “(…) por (…) entender que não existem indícios da prática de qualquer crime, designadamente os identificados nos autos (…);
c) O inquérito em referência foi despoletado por uma denúncia anónima, que passou pelo circuito postal dos correios, dirigida ao Comandante do Destacamento da Guarda Nacional Republicana/Chaves;
d) O suspeito B… não é titular de qualquer tipo de licença de uso e porte de arma, e/ou de detenção no domicílio, nem constam armas de fogo registadas em seu nome;
e) Os indícios exigidos para a autorização das buscas domiciliárias (artigo 174º, nº 2 do Código de Processo Penal) não têm de adquirir o paralelismo dos “indícios suficientes”, dado que estes indícios estão situados num patamar bem inferior ao que se reportam, nomeadamente, as abstrações legais referidas, de "indícios suficientes", exigidos para a acusação e para a pronúncia (artº 283° nº 1 e 308º, nº, 1, ambos do Código de Processo Penal) ou "fortes indícios" (requisitos específicos para a aplicação das medidas de coação, taxativamente previstas, no que ora, efetivamente, releva, nos artºs 200º, 201º e 202º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal);
f) Os ilícitos submetidos a investigação assumem natureza pública (cfr., quanto ao alegado crime de ameaça, o disposto nos artigos 153º e 155º, nº 1, alínea a) do cód. penal), o que por si só, em qualquer caso, tornava obrigatória a instauração de inquérito, uma vez que os mesmos adquirem por si só relevância sem carecerem, sequer, de queixa para o correspondente procedimento criminal;
g) Ao indeferir as promovidas buscas nos termos em que o fez, a Mmª Juiz com funções instrutórias violou o disposto nos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, artigo 86º, nº 1 e 2 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, 174º, nºs 1 a 4, 176º e 177º, nº 1, do Código de Processo Penal, no sentido de que, como defendemos nós, existem indícios, suspeitas da prática, por parte de B… de crimes de ameaça agravada e/ou detenção de arma proibida.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, com o douto suprimento de V.as Ex.as, deve o presente Recurso merecer provimento, revogando-se o despacho recorrido, pedindo-se, por conseguinte, a sua substituição por outro que defira à promoção do Ministério Público para que, nos termos do disposto nos artigos 176º, nº 1, 177º, nº 1 e 174º, nºs 2 e 3, todos do Código de Processo Penal, emita os competentes mandados de busca para a residência do suspeito, sita no …, S/N, ….-… …, Chaves, assim fazendo V. Exas., Venerandos Desembargadores Justiça».
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Não houve por parte dos demais sujeitos processuais respostas ao recurso interposto pelo Ministério Público em 1ª instância
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Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, conforme douto parecer de fls. 46/47.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.
Colhidos os respectivos “vistos”, cumpre decidir.
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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação[1], que, no caso "sub júdice", se circunscreve à apreciação da legalidade do despacho judicial de rejeição de uma busca domiciliária, requerida pelo Ministério Público.
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DO DIREITO
O auto de Notícia que originou os presentes autos tem apenas por base uma mera carta anónima, dirigida ao Comandante da GNR em que se diz:
- «Venho por este meio denunciar que o Sr. B…, pastor, residente na Rua …, em …, Chaves, tem na sua posse armas ilegais nomeadamente espingarda caçadeira e pistola.
Sendo este senhor extremamente instável e conflituoso e com um historial de ameaças para com os habitantes da localidade e estando estes extremamente preocupados e receosos das atitudes deste indivíduo venho junto de V. Ex. para que proceda conforme o previsto na lei e assim prevenir POSSÍVEIS TRAGÉDIAS».
Atentamente
Habitante de …», (cfr. fls. 8)

No próprio auto de Notícia elaborado pela GNR (assinado pelo Cabo C…), se refere que fizeram diligências à localidade do suspeito e apurou-se que, citamos: “vive sozinho em habitação sem grandes condições, que esteve algum tempo emigrado em França, daí que efectivamente tudo indicia que este seja possuidor das armas acima referidas[2], uma vez que esteve emigrado em França e tradicionalmente estes indivíduos, aquando do regresso a Portugal transportam as armas para as suas residências em Portugal[3], já quanto às ameaças as pessoas não apresentam qualquer denúncia por escrito contra o mesmo, uma vez que residem na mesma localidade e não querem ter problemas uns com os outros, até porque têm medo de poderem vir a sofrer represálias por parte deste, (…)”.
Mais adiante refere o denunciante que “estamos perante um crime de modo algum por ora se consegue carregar para os autos outros indícios, até porque, não se consegue colher o depoimento de qualquer testemunha, (vizinhos) que tenham presenciado ou conhecimento de que o suspeito tenha na sua posse as referidas armas de fogo, (…)”.
Perante esta clareza de factos e de falta de indícios, bem decidiu a Srª Juiz ao indeferir os mandados de busca domiciliária.
Estamos apenas perante uma carta anónima desacompanhada de qualquer outro indício e sem que o próprio texto daquela aponte algum facto concreto susceptível de investigação, mormente uma vítima.
Por outro lado, é até abusivo falar-se em crime de ameaças agravadas, por arma de fogo, quando de facto não se vislumbra o menor indício de existir um ameaçado. Ninguém se queixou ou apontou ao “suspeito” qualquer tipo de ameaça. A própria GNR não conseguiu obter um único testemunho na localidade quer sobre a existência de armas, quer sobre eventuais ameaças. É o próprio agente de autoridade que tira depois ilações e conclui que as pessoas disseram nada saber porque “têm medo de represálias”. Trata-se de uma conclusão do sr. Guarda, não fundamentada e nada mais, não podendo de modo algum concluir-se que se trata de indício. A alusão ao facto de ter sido emigrante em França e daí concluir que “estes indivíduos em geral trazem as armas para Portugal” é de todo inaceitável, podendo mesmo ser susceptível de ofender a dignidade de muitos emigrantes.
Os alegados “indícios” que originaram estes autos são afinal uma carta anónima sem qualquer elemento factual objectivo, sério e credível que justifique o desencadear de uma processo e muito menos a emissão de mandados de busca a uma residência, já que nem queixosos - que não existem - nem testemunhas se conseguiram identificar.
Com efeito, o artigo 174º do cód. procº penal que define os pressupostos da realização de revistas e buscas, diz-nos o seguinte:
- “1. Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.
2. Quando houver indícios de que os objectos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca”.
(…)
Refere-se depois no artº 176º a formalidade das buscas em geral e no artº 177º, ambos do cód. procº penal, as exigências e o “modus operandi” específico das buscas domiciliárias. Todavia, em parte alguma o legislador definiu de forma taxativa quando se pode ou não realizar a busca ao nível do grau indiciário. Esta é uma decisão casuística, que depende do tipo de crime, da sua gravidade e fundamentalmente dos elementos indiciários fortes que devem já constar nos autos no momento em que tal diligência é requerida.
No caso concreto, os factos que desencadearam a elaboração do Auto de Notícia são insuficientes para merecer um mínimo de credibilidade, em especial após as alegadas diligências feitas pela GNR e transcritas na denúncia.
Não podemos esquecer que a busca domiciliária, não é uma diligência que se deva realizar sem uma razão séria, fortemente indiciadora da prática de crimes para cuja investigação se mostre imprescindível, dado que ela contende com direitos constitucionalmente consagrados, como o é a “reserva da intimidade da vida privada e familiar”, (cfr. artº 26º nº 1 da CRP).
Aceitar uma simples carta anónima desacompanhada de outros elementos objectivos indiciadores de qualquer crime, para fundamentar uma busca domiciliária, era abrir a porta à devassa da privacidade e violar de modo gratuito o princípio constitucional acima referido.
Não sendo a lei taxativa na efectivação das buscas domiciliárias, o momento e oportunidade da sua realização têm de ser cautelosamente analisados pelo Juiz, única entidade que as pode ordenar, (cfr. artº 177º nº 1 do cód. procº penal), devendo aqui funcionar os princípios da adequação e proporcionalidade, com respeito pelos direitos constitucionalmente consagrados[4].
Princípios esses que, em nossa opinião, o despacho recorrido observou e por isso é de manter, sendo assim de rejeitar o recurso interposto.
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DECISÃO
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se o despacho recorrido.
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Sem custas.
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Porto 12 de Fevereiro de 2014
Augusto Lourenço
Moreira Ramos
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[1] - Cfr. Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98.
[2] - Realce nosso.
[3] - Estamos aqui perante uma conclusão do autuante sem o mínimo elemento que a fundamente, parecendo-nos mesmo descabida e infeliz.
[4] - Neste sentido e em situação similar nos pronunciámos recentemente no proc. 1029/12.1PEGDM, datado de 19.06.2013