Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | EUGÉNIA CUNHA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL CONCURSO ENTRE RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E AQUILIANA DEVERES ACESSÓRIOS DE CONDUTA CULPA DO LESADO | ||
Nº do Documento: | RP20240205842/21.3T8PVZ.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/05/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - As declarações de parte, interessadas e, em regra, por natureza, não isentas, não podem fundamentar a prova da versão dos factos apresentada pelo próprio declarante em seu benefício, sem que sejam corroboradas por quaisquer outros elementos de prova. II - A responsabilidade civil comporta: i) a contratual (obrigacional), fundada em violação do contrato (falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, estando em causa a violação de direitos de crédito ou de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários e pode resultar do não cumprimento de deveres principais/essenciais ou de deveres acessórios/secundários); ii) e a extracontratual (delitual/aquiliana) que emerge não de violação de contratos, mas sim, da violação de normas que impõem deveres de ordem geral e correlativamente de direitos absolutos do lesado (violação de normas gerais que tutelam interesses alheios, de deveres genéricos de respeito); iii) modalidades clássicas de responsabilidade, estas, a que acresce, ainda, uma “via intermédia”, uma “terceira via”, a englobar situações como a de violação de deveres que decorrem da boa fé, geradora de responsabilidade pré-contratual (art. 227º, do Código Civil) e pós-contratual, de violação de deveres específicos decorrentes do dever de boa fé negocial que, não chegando a constituir obrigações em sentido técnico, se apresentam como um mais relativamente aos deveres genéricos de respeito contrapostos aos direitos absolutos, em que a proteção e a confiança impõem tutela. III - Situações se geram de concurso entre responsabilidade contratual e aquiliana, mais frequente no domínio do cumprimento defeituoso, caminho fértil para danos diversos do domínio contratual e delitual, podendo uma única pretensão indemnizatória ter aquele duplo fundamento. Tal concurso não é, porém, em regra, real, efetivo, mas meramente aparente (concurso de normas) dado que sempre que há violação de contratos nos temos de mover no específico regime destes (que consome o regime delitual), imbuído do princípio da autonomia privada (405º, do CC) e da liberdade contratual (nº1, do art. 406, do CC), em todas as suas vicissitudes, o qual, atento o espírito do sistema, se não pode abandonar, sequer em matéria de ressarcimento de danos; IV - Regras da boa fé, esta a fundamentar a constituição de deveres acessórios ou laterais de conduta, demandam a proteção da contraparte num contrato e deveres no trafego impõem cuidados a quem cria especiais perigos. V - A responsabilidade obrigacional (art. 798º), a via intermédia de responsabilidade e a responsabilidade extracontratual (art 483º), supõem um ilícito (o incumprimento de obrigação), a culpa, um dano e uma relação causal entre aquele e este, sendo que naquele regime há uma presunção geral de culpa do devedor (nº1, do art. 799º) e nestes, em regra (a comportar exceções como a do nº2, do art. 493º), tem de ser provada pelo credor da indemnização (nº1, do art. 487º), tal como os restantes pressupostos (sendo factos constitutivos do direito - v. nº1, do art. 342º, preceitos do Código Civil), sem cuja verificação se não constitui obrigação de indemnizar. VI - Num caso como o dos autos, em que ficou provado que a queda foi causada, unicamente, pela conduta culposa da Autora, lesada, que, entrando em zona assinalada como de acesso proibido a pessoas estranhas ao serviço de atividade de inspeções de veículos automóveis e caminhando distraída (a verificar o que levava nas mãos) cai numa fossa, iluminada, a indemnização está totalmente excluída, dado que apenas à Autora pode ser imputado um comportamento ilícito e culposo, estando-se no âmbito de culpa do lesado . | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 842/21.3T8PVZ.P1 Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível) Tribunal de origem do recurso: Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – juiz 3 Relatora: Des. Eugénia Cunha 1º Adjunto: Des. António Mendes Coelho 2º Adjunto: Des. Jorge Martins Ribeiro
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC): ……………….. ……………….. ……………….. *
Recorrente: AA Recorridas: A..., Lda. e B... – Companhia de Seguros, S.A
* Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva: “Pelo exposto decide-se julgar a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolver as rés do pedido. Custas pela autora”. * CONCLUSÕES: 2ª. Os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, nada obstando, inclusive, a que, em última instância, aquelas, ponderadas de acordo com o critério da livre apreciação da prova, possam constituir o único suporte probatório de um facto; A conclusão final sobre a credibilidade e o valor de um depoimento ou de umas declarações de parte alcança-se quando tal conteúdo “é enquadrado com a restante prova produzida, permitindo aferir da existência de linha de continuidade entre esse depoimento e o conjunto do material probatório recolhido. 3ª. As declarações de parte apenas são admissíveis se corresponderem a prova direta (factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou sejam do seu conhecimento direto), não se convertendo automaticamente numa demonstração imediata e suficiente dos factos controvertidos, tratando-se antes de uma prova habilitada, cuja valoração está sujeita à livre apreciação do tribunal. 4ª. Não será de afastar desde logo as declarações de parte da Autora apenas porque a mesma reveste essa condição de parte, tanto mais que a sua versão dos acontecimentos, como a sentença não deixa de reconhecer, mostra-se corroborada pelo relatório junto nos autos (documento 3 junto com a p.i.) 5ª. Relativamente à dinâmica do acidente e cumprimento de obrigações de segurança pela ré A..., sustenta-se na decisão recorrida: O único meio de prova que sustentou directamente a dinâmica do acidente nos termos alegados pela autora foram as declarações de parte da própria autora. Trata-se de um meio de prova de valia muito limitada para sustentar uma convicção probatória favorável à própria declarante. Salvo em casos muito excepcionais, as simples declarações de parte não apoiadas em outros meios de prova serão insuficientes no desiderato probatório. Embora com marcas de fiabilidade e esforços de precisão, as declarações em causa acabaram sobretudo contrariadas por outros meios de prova. 6ª. Sustenta-se ainda o Mº Juiz “a quo”, em sede fundamentação da decisão de facto que embora com marcas de fiabilidade e esforços de precisão, as declarações em causa acabaram sobretudo contrariadas por outros meios de prova, que indica como sem do os depoimentos prestados pelas testemunhas BB e CC. 7ª.Ora se atentarmos desde logo e pormenorizadamente na parte transcrita na sentença de tais depoimentos, podemos concluir que: a) BB, inspector de automóveis foi funcionário da Ré A..., que não saiu em litígio com ela, efetuou a inspeção do veículo da Autora, confirma ter entregue os documentos na zona de inspecção, ter sido logo chamado a outro serviço, não ter acompanhado a autora ao carro, e não ter indicado à autora nenhum percurso específico para se dirigir ao veículo, embora num primeiro momento tivesse feito menção a isso. Trata-se pois de depoimento que num aspeto essencial embora discordante das declarações de parte se revela hesitante relativamente à indicação do percurso para a Autora se dirigir ao seu veículo, quando é certo que foi determinante para a queda da Autora a indicação desse percurso, apesar de haver divergência quanto ao seu acompanhamento no mesmo percurso. Não pode pois extrair-se com segurança do referido depoimento que não tenha sido indicado à Autora o percurso que deveria efetuar até atingir o seu veículo parado à frente da fossa de verificação técnica. b) CC, inspector de automóveis, foi também funcionário da Ré A..., também não saiu em litígio com ela, apercebeu-se da iminência da queda, mas não foi a tempo de a evitar. Confirma que a autora ia distraída, mas apontou o telemóvel como foco da distracção. Não tinha recordação se BB a acompanhou em parte do percurso. Trata-se pois de um depoimento que em nada esclarece relativamente às questões essenciais, designadamente não se recordando se BB acompanhou a Autora no seu percurso ou se este lhe foi indicado e que se revela confuso e pouco compreensível, sobretudo quanto à informação de que a Autora se terá distraído com o uso do telemóvel. 8ª. Relativamente à profissão e rendimentos do trabalho da autora, sustenta-se na decisão recorrida: Foi parca a prova oferecida sobre estes factos e teria sido fácil oferecer prova mais robusta, sobretudo documental. Resumiu-se às declarações da autora e de seu pai, DD. Ambos confirmaram que à data do acidente a autora concluíra a licenciatura e ia começar a trabalhar no mês seguinte. Referiram que a autora actualmente trabalha em Amsterdão como gestora de produto, mas apenas a autora referiu o seu actual vencimento, o que foi insuficiente para objectivar uma confissão a respeito. 9ª.Sustenta-se na decisão recorrida que o teor do relatório junto como documento n.º 3 com a petição, acaba por verter a versão da autora, a que segue a afirmação de que o representante da ré A... na diligência de reconstituição do acidente não terá colocado em causa tal versão, mas o descrito logo nos parágrafos que seguem aponta para que, ao contrário, a versão tenha sido colocada em causa. “ Para tanto sustenta-se que “EE, que acompanhou a reconstituição, não confirmou a versão da autora, nem se recordava de ter validado tal versão aquando da reconstituição, referindo que, na altura do acidente, viu apenas a entrega de documentos à autora na recepção, mas não o percurso seguido até cair na fossa.” 10ª.Ora, tal depoimento revela-se manifestamente contraditório, sendo de salientar que se trata de um funcionário da Ré A... (responsável do Centro de Inspeções). Com efeito afirma não se recordar de ter validado a versão constante do documento 3 junto com a petição, mas nega a versão da Autora. 11ª.Ao não valorar, como devia, as declarações de parte da Autora, a sentença recorrida fez errada interpretação do disposto no artigo 466º, nº3 do Código de Processo Civil. 12ª.Foi alegada matéria de facto pela Autora suscetível de imputar à Ré A..., por intermédio de um seu colaborador, contributo para o comportamento da Autora e para o desfecho que a vitimou, confirmada pelas depoimento da Autora, que ficou gravado no sistema de gravação de 00:00:00 a 00:33:28 (20230118141845). concretamente de 14:18.45 a 14:52:14 e pelo depoimento da testemunha, DD, que ficou gravado no sistema de gravação de 00:00:00 a 00:19:27 (20230118145556). concretamente de14:55:57 a 15:15:24. 13ª. Consta do documento 3 junto com a petição, que é um relatório elaborado pela C..., Lda., empresa que se dedica a atividade de avaliação de riscos e danos, com sede em ..., no Porto, sobre as condições de funcionamento do CTIV pertencente à Ré A..., designadamente quanto à segurança dos utentes e particularmente no que se refere à fossa de verificação de folgas, no qual se conclui, por método comparativo com outro centro de inspeções, que a fossa do CTIV não tem sinalização e proteção adequadas e que as condições de acessibilidade e de estacionamento de veículos são deficientes. 14ª. Deve ser dado como provado que o funcionário da 1ª Ré, BB, que realizou o procedimento de inspeção, chamou a Autora e pediu para o acompanhar e sair pela porta direita que dá acesso à zona de inspeção, iniciando ambos o atravessamento desta zona, de forma oblíqua em direção ao local onde se encontrava parado o veículo, que, chamado por outro colaborador, o inspetor se separou dela a meio do percurso, lhe entregou a documentação relativa à inspeção e lhe apontou o restante percurso até ao mesmo veículo. 15ª. Devem pois tais factos ser aditados aos factos provados sob as alíneas j) e k), sugerindo-se a seguinte redação: FACTO PROVADO (alínea j): “No final do procedimento, o funcionário em questão dirigiu-se ao local onde a Autora se encontrava e chamou-a para o acompanhar e sair pela porta direita que dá acesso à zona de inspeção, iniciando ambos o atravessamento desta zona, de forma oblíqua em direção ao local onde se encontrava parado o veículo” FACTO PROVADO (alínea k) “A meio do percurso o referido funcionário, chamado por um seu colaborador, entregou à Autora a documentação relativa à inspeção e apontou-lhe o restante percurso até ao veículo e enquanto a Autora examinava dos documentos entregues, colocou inadvertidamente um pé a fossa e caiu dentro dela “. 16ª. Foi alegada matéria de facto relativa à atividade profissional da Autora desde a data do acidente até hoje e rendimentos por ela auferidos, comprovados pelos documentos 27, 28 e 29 juntos com a p.i., confirmada pelo depoimento da Autora, que ficou gravado no sistema de gravação de 00:00:00 a 00:33:28 (20230118141845). concretamente de 14:18.45 a 14:52:14. 17ª. Deve ser dado como provado que a Autora trabalha na empresa D..., auferindo mensalmente cerca de 4.000,00 €. 18ª. Devem pois tais factos ser aditados ao factos provado sob a alíneas Y), sugerindo-se a seguinte redação: FACTO PROVADO (alínea Y): “Atualmente a Autora trabalha como gestora de produto, em Amsterdão, na empresa D..., auferindo mensalmente cerca de e 4.000,00. 19ª. Prevê o nº2 do artigo 493º do Código Civil que “quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”. Ora, a fossa dos CTIV, é indiscutivelmente um equipamento ou meio técnico perigoso que carece de especiais cuidados na sua utilização e na sua proteção dos utentes. 20ª. A Ré A... não cuidou de vedar, em termos de não ser facilmente acessível, a zona envolvente do fosso, sem prejudicar a intervenção técnica que tal equipamento desempenha e na saída da zona da receção não colocou sinalização percetível ao comum dos utentes, impeditiva do acesso à zona de inspeção. 21ª. Por outro lado, para o comportamento da Autora e o desfecho que a vitimou, contribuiu decisivamente o colaborador da Ré A..., pois conduziu-a a zona de inspeção, iniciando ambos o atravessamento desta zona, de forma oblíqua em direção ao local onde se encontrava parado o veículo da Autora. E depois, a meio do percurso abandonou a Autora, sem cuidar que esta atingiria, sem percalços, o seu veículo automóvel. 22ª. A Autora em nada contribuiu para a produção do acidente, ou se contribuiu, a sua conduta é desculpável pois não lhe era exigível que num espaço regulado e supostamente controlado, pudesse contar com a existência de uma fossa, sendo certo que o procedimento normal e habitual é o proprietário do veículo acompanhar, ao longo de percurso assinalado no pavimento, as várias etapas ao ato inspetivo e nele ter colaboração ativa, conduzindo o veículo, e quando em cima da fossa, efetuar travagem do mesmo e rodagem do volante para ambas as direções. 23ª. O comportamento do funcionário/colaborador da Ré A... e o desrespeito por esta, das normas de segurança, configuram a prática do crime de ofensas à integridade física por negligência, quer por ação, quer por omissão, cometido na pessoa da Autora, previsto no artigo 148º, nº1, do Código Penal. 24ª. Sustenta-se na decisão recorrida, com apoio jurisprudencial que “a actividade de inspecção de veículos em geral não se distingue especialmente de uma normal oficina mecânica de reparação de veículos que, de forma algo paralela à construção civil, não se pode subsumir ao conceito de actividade perigosa, particularmente quando nos centramos na probabilidade de causar danos aos donos dos veículos. 25ª. Cumpriria assim à autora demonstrar a imputação da violação da sua integridade física à autora por dolo ou mera culpa da sua gerência ou representantes. 26ª. Ora, a empresa que recebe clientes nas suas instalações deve manter os equipamentos perigosos ,e de existência e modo de funcionamento desconhecidos da generalidade dos clientes, protegidos de modo a que um cliente não consiga deles aproximar-se por mera distração, sob pena de responder pelos danos causados pelo contacto inadvertido de um cliente com o dito equipamento. 27ª. Prevê o artigo 493º do Código Civil: quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade perigosa pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de as prevenir. 28ª. A fossa de verificação técnica é um equipamento perigoso, pelo que os acidentes causados por ela devem imputar-se à empresa, visto que esta não demonstrou ter tomado as providências mais adequadas para os evitar e que passariam por um cordão, barreira ou murete que impedisse a aproximação inadvertida. 29ª. A contribuição da Autora para o sinistro, objetivamente importante (afinal foi o autora que, pelo seu próprio pé, se deslocou para dentro da fossa), afigura-se desculpável por não ser exigível que o inspecionada esteja com todos os sentidos alerta, num espaço regulado e supostamente controlado, onde está num espírito de alguma contrariedade, tensão e nervosismo. 30ª Ao considerar inexistir responsabilidade contratual e extracontratual da 1ª Ré, a sentença recorrida violou e fez errada interpretação do disposto nos artigos 483º e 493º, n2 do Código Civil. 31ªAtenta a factualidade provada constante das alíneas c), d), e), f), g) e h) dos Factos Provados, conclui-se que a responsabilidade extracontratual da 1ª Ré foi transferida para a 2ª Ré, através do contrato de seguro identificado na citada alínea c), pelo que devem as Rés ser conjunta, solidaria ou individualmente condenadas a pagar à Autora as indemnizações a que esta tem direito e que quantificou em € 77.844,66 e que este Tribunal Superior fixará”. * CONCLUSÕES: 1.ª- O M.º Juiz a quo formou livremente a sua convicção, à luz dos critérios legais pertinentes, atribuindo a devida valoração aos documentos constantes dos autos e aos depoimentos produzidos em audiência de discussão e julgamento. 2.ª- Nestas circunstâncias, não existem motivos válidos que possam justificar qualquer alteração da decisão sobre a matéria de facto. 3.ª- A factualidade apurada permite concluir, sem margem para quaisquer dúvidas, que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da própria recorrente. 4.ª- Nada resultou provado que permita imputar alguma responsabilidade, ainda que residualmente, à recorrida A..., cuja atividade não pode, ademais, ser qualificada como “atividade perigosa”. 5.ª- Face ao naufrágio da recorrente na prova dos fundamentos da ação, o Tribunal a quo não apreciou nem decidiu a questão da prescrição dos direitos invocados pela recorrida, questão esta cujo conhecimento ficou prejudicado. 6.ª- Porém, admitindo a possibilidade (certamente muito remota) de ser atendidos os fundamentos do recurso, haverá que apreciar e decidir a sobredita questão da prescrição. 7.ª- Os direitos que a recorrente pretende fazer valer contra a recorrida fundam-se em (pretensa) responsabilidade civil extracontratual. 8.ª- De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 498.º do mesmo diploma legal, “O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento (…) da extensão integral dos danos…”. 9.ª- O evento danoso (queda) que a aqui recorrente alega ocorreu em 24 de janeiro de 2017 e foi neste mesmo dia (24/01/2017) que a mesma recorrente teve conhecimento do dito evento e, bem assim, da generalidade das suas consequências danosas. 10.ª- A recorrida, todavia, somente em 09 de junho de 2021 foi citada para a presente ação, a qual deu entrada em juízo em 05 de junho de 2021. 11.ª- Em qualquer das referidas datas, mostravam-se já transcorridos mais de três anos, quer sobre a mencionada data da ocorrência do sinistro, quer do seu conhecimento pela recorrente e, bem assim, do correspondente direito de indemnização que (pretensamente) lhe compete. 12.ª- Assim, os direitos invocados pela recorrente, estão irremediavelmente prescritos – cfr. cit. art. 498.º, n.º 1, do Código Civil – prescrição esta que, constituindo exceção perentória que importa a imediata absolvição da recorrida do pedido – cfr. art. 576.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. 13.ª- A prescrição invocada, na eventual, mas remota, hipótese de procedência das questões suscitadas pela recorrente, deverá ser agora conhecida e declarada por este Colendo Tribunal, com a consequente extinção dos direitos cuja titularidade se arvora a recorrente. Respondeu a 2ª Ré, B..., sustentando dever o recurso interposto pela autora improceder ou, caso assim não se entenda, ser apreciando o objeto do recurso ampliado nos termos que requerer, e julgada procedente por exceção perentória de prescrição e absolvida do pedido, o que faz com base nas seguintes CONCLUSÕES: “A – Da apelação da autora 1 - O Tribunal a quo dentro do poder que tem de livre apreciação da prova – cfr. artigo 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC –, soube fazer a devida leitura das declarações de parte prestadas pela autora, dos depoimentos de todas as testemunhas inquiridas em sede de julgamento, confrontando-os com os demais meios de prova. 2 - O Tribunal não pode ficar convencido sobre a factualidade favorável à procedência da ação recorrendo apenas às declarações prestadas pela parte interessada na prova de tais factos. 3 - As declarações de parte da autora foram prestadas por quem tem interesse na decisão da causa e, por isso, favoráveis a quem as prestou, não sendo aptas a fazer prova, por si só, dos factos que a parte pretende provar, tanto mais que não se encontram corroboradas por outros meios de prova. 4 - Mesmo que se admitisse a tese pugnada pela recorrente, da autossuficiência das declarações de parte, prestadas por si, para fazer prova da factualidade também por si alegada na ação, as declarações da autora foram insuficientes e contrariadas por outros meios de prova não alcançando o efeito jurídico pretendido pela apelante. 5 - A fundamentação factual da sentença encontra-se alicerçada na prova efetivamente produzida. Devendo manter-se inalterada a redação das alíneas j), k) e y) por corresponder à factualidade efetivamente demonstrada nos autos. 6 - O tribunal a quo decidiu acertadamente ao declarar inexistir responsabilidade contratual e extracontratual da ré A.... 7 - Acresce que não se afigura que a atividade de inspeção de veículos constitua uma atividade perigosa em si mesmo ou pela natureza dos meios utilizados. 8 - De todo o modo, sempre se acrescentará que o centro de inspeções cumpriu com os normativos legais que lhe são aplicáveis, existindo sinalética adequada ao caso e conforme referido na sentença a infeliz queda resultou “… resultou de falta de diligência da própria autora, que circulou numa zona de inspecção delimitada e com advertências de proibição de circulação e, por falta de atenção, caiu numa fossa dentro dessa zona, delimitada, sinalizada e iluminada.” 9 - O Tribunal a quo, face à prova produzida, fazendo a correta apreciação da matéria de facto dada como provada e a correta determinação das normas aplicáveis, decidiu acertadamente pela absolvição, das rés, do pedido. B – Do recurso ampliado 10 - A douta sentença, tendo julgado a ação improcedente por falta de sustentação factual, absteve-se de conhecer da prescrição invocada pela apelada. Importa, no entanto, e na hipótese de procedência da pretensão recursória da apelante, que a exceção de prescrição seja apreciada por este Venerando Tribunal. 11 - O acidente relatado nos autos deu-se no dia 24 de janeiro de 2017. O direito de indemnização prescreve passados três anos, conforme dispõe o artigo 498.º, n.º 1 do CC. 12 - A autora tem conhecimento do seu direito desde a data do acidente, designadamente, o de propor ação contra as rés. 13 - Tendo o acidente ocorrido no dia 24 de janeiro de 2017, a prescrição ocorreu no dia 24 de janeiro de 2020. 14 - Nos termos do artigo 323.º, n.º 1 do C. Civil, a prescrição interrompe-se, nomeadamente, pela citação, que é o ato que aqui releva. Tanto a 2.ª ré, como a sua segurada, a 1.ª ré, foram citadas para a ação em 9 de junho de 2021, muito depois do prazo de prescrição ter terminado. 15 - Face ao exposto, o direito da autora em ser indemnizada em virtude deste acidente, encontra-se prescrito nos termos do artigo 498.º, n.º 1, do C. Civil, dado ter sido excedido o prazo de três anos na interrupção da prescrição. 16 - Mas mesmo no caso de se colocar a possibilidade da apelante eventualmente gozar do prazo prescricional mais alargado, de 5 anos, decorrente da aplicação conjugada das normas do artigo 498.º n.º 3 do C. Civil, e artigos 148.º, n.º 1 e 118.º, n.º 1, al. c) do C. Penal, seria necessário provar a culpa efetiva da 1.ª ré no cometimento de ofensas à integridade física por negligência. O que não se verifica in casu. 17 - Em consequência, deve ser julgada procedente por provada a exceção perentória de prescrição e a apelada absolvida do pedido - cfr. artigos 576.º, n.º 3 e 579.º do CPC”. * Não foram apresentadas contra alegações. * Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto. * II. FUNDAMENTOS - OBJETO DO RECURSO Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal. Assim, as questões a decidir são as seguintes: 3ª - Da responsabilidade tributária. * II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 1. FACTOS PROVADOS Foram os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão pelo Tribunal de 1ª instância (transcrição): a) Em 24/01/2017, a A., cerca das 11.00 h, estacionou o seu veículo de marca e modelo ..., matrícula ..-FH-.., em zona de estacionamento do Centro de Inspeções de Veículos, propriedade da R. A..., sito na Rua ..., em ..., Matosinhos; b) Pretendia a A. que a R. A... efetuasse a inspeção anual ao seu referido veículo, motivo porque se dirigiu à receção/secretaria do Centro de Inspeções para apresentar o certificado de matrícula e o documento relativo à última inspeção; c) Por contrato de seguro válido e eficaz, no momento do acidente, titulado pela apólice nº ...23, a Ré A... havia transferido a sua responsabilidade civil de exploração, profissional e equipamentos de laboração para a Ré, B... – Companhia de Seguros, SA, sendo o capital seguro de € 250.000,00; d) Incluindo a condição especial, relativa à responsabilidade civil dos Centros de Inspeção Obrigatória de Veículos, com um sublimite de capital de € 100.000,00; e) Nos termos do artigo 2º, nº2, alínea a), da referida condição especial da apólice, ficam garantidos os danos causados a pessoas ou às viaturas confiadas à guarda do segurado para inspeção técnica ou qualquer outro trabalho próprio da sua atividade, em consequência de atos ou omissões do segurado ou das pessoas ao seu serviço no exercício da atividade; f) Nos termos da alínea i) do mesmo nº2 do artigo 2º, ficam garantidos os danos decorrentes da queda de veículo ou pessoa nas fossas das linhas de inspeção ou do parque das instalações do segurado; g) Nos termos da alínea j) do mesmo nº2 do artigo 2º, ficam ainda garantidos os danos decorrentes da deficiente marcação/delimitação das zonas de acesso aos equipamentos, fossas e corredores de circulação de clientes, existentes nas instalações do segurado; h) Por outro lado, prevê o nº2 ainda do mesmo artigo 2º que a cobertura prevista na referida condição especial garante os danos causados a colaboradores, clientes e/ou terceiros decorrentes da laboração dos equipamentos de inspeção, medição e ensaio ou outros, utilizados na atividade segura, quando se encontrem sob a direção efetiva do segurado e sejam utilizados no seu interesse; i) Na sequência do descrito em a) e b) um funcionário da ré A... deu início ao procedimento de inspeção, enquanto a autora permaneceu na zona de receção; j) No final do procedimento, o funcionário em questão dirigiu-se ao local onde a autora se encontrava, entregou-lhe a documentação respeitante à inspeção periódica e disse-lhe que podia retomar o veículo, que se encontrava parado em frente à fossa de verificação técnica, no final da linha de inspeção, no lado oposto da receção; k) A autora dirigiu-se então ao seu veículo, atravessando de forma oblíqua a zona de inspeção, enquanto examinava os documentos entregues, e colocou inadvertidamente um pé na fossa e caiu dentro dela; l) A fossa onde a autora caiu estava delimitada por um lancil de metal, descontinuado no centro, com o contorno delimitado a tinta amarela, e estava iluminada no seu interior, não tendo, no entanto, qualquer vedação do tipo corrimão ou guarda-corpos; m) A zona de inspeção encontrava-se delimitada da zona de circulação de clientes, que permite o acesso aos veículos no fim do percurso, por linhas contínuas pintadas a tinta amarela, e existiam letreiros no local com a advertência de ser proibida a circulação na zona de inspeção; n) Na sequência do acidente a autora foi transportada para o Hospital 1..., onde foi observada e realizou radiografia ao cotovelo, sendo diagnosticada fratura e luxação do cotovelo esquerdo; o) Para tratamento, foi submetida no mesmo dia a cirurgia no Hospital 2..., com colocação de material de osteossíntese, que implicou dois dias de internamento; p) Teve alta com tala imobilizadora e suspensão do membro; q) Foi, ainda, seguida em consultas de ortopedia no mesmo Hospital e realizou fisioterapia; r) Em maio de 2017 foi novamente submetida a cirurgia para remoção do material de osteossíntese e realizou após tratamentos de fisioterapia; s) Em maio de 2019 foi reobservada e teve indicação para realização de exercícios de fortalecimento muscular que cumpre por si própria; t) Como sequelas das lesões após tratamento a autora apresenta cicatriz nacarada no cotovelo e antebraço esquerdo, com 9x0,5 cms, amiotrofia do braço e antebraço esquerdo de 0,5 cms, por comparação com o direito, e dor em alguns movimentos do cotovelo; u) Em consequência de tais sequelas a autora tem dificuldade em carregar pesos, e em carregar caixas e pendurar roupa em cabides altos, atos frequentes na sua atividade profissional, por dor no cotovelo, sofre algumas dores nas alterações meteorológicas, procura esconder a cicatriz com vestuário por que opta, suporta dor em alguns exercícios na atividade de ginásio que mantém e ao andar de bicicleta; v) Em consequência das lesões sofridas, a autora sofreu défice funcional temporário de 172 dias, com repercussão temporária parcial no mesmo período, quantum doloris de grau 4 em 7, dano estético de grau 2 em 7, défice funcional permanente na integridade físico-psíquica fixado em 2 pontos, repercussão permanente nas atividades desportivas e de laser de grau 1 em 7; w) A autora nasceu em ../../1995; x) À data do acidente, a autora concluíra a licenciatura e ia iniciar atividade profissional no mês seguinte; y) Atualmente, a autora trabalha como gestora de produto, em Amsterdão; z) Pelos tratamentos e exame que lhe foram prestados no Hospital 1... a autora pagou €75,00; aa) Pelos tratamentos, internamento e cirurgia realizados no Hospital 2... em 24/01/2017 a 26/01/2017, incluindo honorários dos profissionais de saúde intervenientes, a autora pagou €2.297,26; bb) Por estacionamento no Hospital 2... em 24 e 25/01/2017, para se submeter a tratamentos e cirurgia, a autora pagou €22,75; cc) Pela tala imobilizadora referida em p) a autora pagou €36,50; dd) Em sessões de fisioterapia a autora despendeu €155,00; ee) Em momento posterior ao pagamento, a autora beneficiou de reembolsos parciais das despesas descritas em z), aa), cc) e dd), por via de contrato de seguro de saúde, em montante não apurado; ff) Em consequência das lesões resultantes no acidente e subsequentes sequelas a autora ficou impedida de realizar uma viagem a Paris, que já havia pago, sendo o custo viagem e estadia de €204,57, que não recuperou; gg) Em consequência das lesões resultantes no acidente e subsequentes sequelas a autora ficou impedida de realizar uma viagem a Amsterdão, que já havia pago, sendo o custo viagem e estadia de €313,71, que não recuperou. * 2. FACTOS NÃO PROVADOS Considerou o Tribunal de 1ª instância não provado: - Que o funcionário da ré tenha solicitado à autora que o acompanhasse até ao veículo, atravessando a área de inspeção na companhia da autora, de forma oblíqua, em direção ao veículo, que se separasse dela a meio do percurso, e lhe apontasse o restante percurso até ao veículo, com atravessamento da zona de inspeção e da fossa. - Que o funcionário da autora lhe tenha apontado especificamente a zona de circulação de clientes referida em m) para aceder ao seu veículo. - Que a autora estivesse ciente que não podia circular pela zona de inspeção quando realizou o percurso mencionado em k). - Que a autora tenha indicação para realizar uma cirurgia estética para eliminação da cicatriz no cotovelo. * II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1º. Da impugnação da decisão de facto 1.1 - Da observância dos ónus de impugnação da decisão de facto * 1.2. Do mérito da impugnação da decisão de facto/modificabilidade de tal decisão: 1.2.1. Critérios do julgamento da Relação (âmbito da apreciação e autonomia decisória). Ponderando estas referências que deverão conduzir o julgamento da Relação que passamos a efetuar, os argumentos apresentados pela apelante e, ainda, os da parte contrária e debruçando-nos sobre a parte da sentença onde vem motivada a decisão de facto, com a qual se concorda, entendemos não se justificar alterar a decisão de facto pelas razões que, de seguida, se passam a expor. * Analisemos. Impugna a Autora a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida pretendendo que os factos provados j)[9], k)[10] e y)[11], passem a ter a seguinte relação: j):“No final do procedimento, o funcionário em questão dirigiu-se ao local onde a Autora se encontrava e chamou-a para o acompanhar e sair pela porta direita que dá acesso à zona de inspeção, iniciando ambos o atravessamento desta zona, de forma oblíqua em direção ao local onde se encontrava parado o veículo” k):“A meio do percurso o referido funcionário, chamado por um seu colaborador, entregou à Autora a documentação relativa à inspeção e apontou-lhe o restante percurso até ao veículo e enquanto a Autora examinava dos documentos entregues, colocou inadvertidamente um pé a fossa e caiu dentro dela”. Y):“Atualmente a Autora trabalha como gestora de produto, em Amsterdão, na empresa D..., auferindo mensalmente cerca de € 4.000,00”. Considerou o Tribunal a quo não provado: “Que o funcionário da ré tenha solicitado à autora que o acompanhasse até ao veículo, atravessando a área de inspeção na companhia da autora, de forma oblíqua, em direção ao veículo, que se separasse dela a meio do percurso, e lhe apontasse o restante percurso até ao veículo, com atravessamento da zona de inspeção e da fossa”. Assim o julgou fundamentando: “O único meio de prova que sustentou directamente a dinâmica do acidente nos termos alegados pela autora foram as declarações de parte da própria autora. Trata-se de um meio de prova de valia muito limitada para sustentar uma convicção probatória favorável à própria declarante. Salvo em casos muito excepcionais, as simples declarações de parte não apoiadas em outros meios de prova serão insuficientes no desiderato probatório. Embora com marcas de fiabilidade e esforços de precisão, as declarações em causa acabaram sobretudo contrariadas por outros meios de prova. Tiveram também momentos de fragilidade, ao negarem a existência de lancil no rebordo da fossa e de sinalização da proibição de circular em áreas de inspecção, em contraste com fotografias juntas pela própria autora como documentos n.º 1 e 2 com a petição inicial (fls. 16 e 16, verso). Em apoio destas declarações o tribunal encontrou o relatório junto como documento n.º 3 com a petição inicial (fls. 17), em vista a averiguação do sinistro. De partida, padecia desde logo da natural fragilidade decorrente de se tratar de averiguação contratada pela autora, que não apresenta normalmente uma equidistância em relação às partes. O teor do relatório acabou por deixar transparecer esta falta de equidistância. Ao tribunal acabou por ressaltar alguma propensão do relatório para forçar críticas sobre falta de cumprimento de requisitos de segurança, chegando mesmo a criticar a pouca exigência da regulamentação, que deveria prescrever (e não prescreve) um sistema automático de guarda com um metro de altura, a ser levantado quando a fossa não está a ser utilizada, crítica que se afigurou ao tribunal como pouco compatível com a operabilidade da fossa e com regulamentação infra citada. O relatório acaba por verter a versão da autora, a que segue a afirmação de que o representante da ré A... na diligência de reconstituição do acidente não terá colocado em causa tal versão, mas o descrito logo nos parágrafos que seguem aponta para que, ao contrário, a versão tenha sido colocada em causa. Inquirido em audiência, EE, que acompanhou a reconstituição, não confirmou a versão da autora, nem se recordava de ter validado tal versão aquando da reconstituição, referindo que, na altura do acidente, viu apenas a entrega de documentos à autora na recepção, mas não o percurso seguido até cair na fossa. BB identificou-se como técnico que acompanhou a inspecção. Teve um depoimento descomprometido, sem hesitações ao referir falta de memória dos pontos que não lembrava, e que podiam desfavorecer a tese da autora, como foi o caso de não recordar se a autora ia ou não distraída a ler os documentos, facto que a própria autora admitiu. Teve no entanto momentos em que recorreu a memória dos gestos habituais nas inspecções, e não tanto a recordação do caso concreto. Confirma ter entregue os documentos na zona de inspecção, ter sido logo chamado a outro serviço, não ter acompanhado a autora ao carro, e não ter indicado à autora nenhum percurso específico para se dirigir ao veículo, embora num primeiro momento tivesse feito menção a isso. CC apercebeu-se da iminência da queda, mas não foi a tempo de a evitar. Confirma que a autora ia distraída, mas apontou o telemóvel como foco da distracção. Não tinha recordação se BB a acompanhou em parte do percurso. O depoimento foi desprendido e com preocupação de fidelidade às suas percepções”. Quanto à “profissão e rendimentos do trabalho da autora, a que se reportam os arts. 105.º, 106.º, e 116.º da petição” considerou o Tribunal a quo: “Foi parca a prova oferecida sobre estes factos e teria sido fácil oferecer prova mais robusta, sobretudo documental. Resumiu-se às declarações da autora e de seu pai, DD. Ambos confirmaram que à data do acidente a autora concluíra a licenciatura e ia começar a trabalhar no mês seguinte. Referiram que a autora actualmente trabalha em Amsterdão como gestora de produto, mas apenas a autora referiu o seu actual vencimento…”. O artigo 466º, consagra um “direito potestativo de natureza processual conferido a qualquer das partes, permitindo-lhe oferecer-se para prestar declarações[12], de livre apreciação pelo Tribunal. Na verdade, quanto “à livre valoração das declarações de parte, a doutrina e a jurisprudência vêm assumindo três posições essenciais: tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos, tese do princípio de prova e tese da autossuficiência ou valor autónomo das declarações de parte. Segundo a primeira, as declarações de parte têm uma natureza essencialmente supletiva, sendo insuficientes para fundamentar, por si só, um juízo de prova, salvo nos casos de prova única, em que inexiste outra prova. A tese do princípio de prova propugna que as declarações de parte não são suficientes, por si só, para estabelecer qualquer juízo de aceitabilidade final, sendo apenas coadjuvantes da prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova, ou seja, as declarações de parte terão de ser corroboradas por outros meios de prova (RP 23-4-18, 482/17 e RP 20/11/14, 1878/11). Para a terceira tese, as declarações de parte, pese embora a sua especificidade, podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo”[13]. Explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa os argumentos da escolha por esta última solução, que entendem ajustada, indicando: “ a) Paridade face a outros meios de prova de livre apreciação com base nos quais pode ser considerado provado o facto (art. 607º, nº5), e necessidade de o juiz expor os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (nº4 do mesmo artigo); b) O interesse da parte na sorte do litígio não é uma realidade substancialmente distinta da testemunha interessada, sendo a diferença apenas de grau; c) A parte é quem, em regra, tem melhor razão de ciência; o nº3 do art. 466º não degrada o valor probatório das declarações de parte; d) Simetricamente, no processo penal, as declarações do assistente e das partes civis podem, por si só, sustentar a convicção do tribunal; e) Há que valorar em primeiro lugar as declarações de parte e só depois a pessoa do depoente, porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e só depois a declaração) implica prejulgar as declarações de parte e incorrer no viés confirmatório”[14]. A jurisprudência vem atribuindo às declarações de parte valor de livre apreciação, o que aconteceu designadamente no Ac. da Relação de Guimarães de 1/2/2018, proc. 103509/16.4YIPRT.G1, em que a ora relatora foi adjunta, onde se escreve (citando-se as respetivas notas no local próprio para melhor perceção) “Na verdade, no que respeita ao valor probatório do depoimento e das declarações de parte sem valor confessório mas utilizado em benefício do próprio depoente ou declarante, embora se reconheça que esse elemento probatório fica sujeito à livre apreciação do tribunal, desde cedo a jurisprudência vem alertando para a necessidade de serem adotadas especiais cautelas nessa valoração favorável, uma vez que esses depoimentos ou declarações são sempre parciais, não isentos, em que quem os produz tem manifesto interesse na ação e, por isso, embora possam ajudar a suportar a formação do convencimento do julgador, esse convencimento nunca poderá assentar, única e exclusivamente, nesses depoimentos ou declarações, mas apenas quando conjugados com outros elementos de prova que os corroborem[15]. Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional, que entendeu que “a confissão (…) não constitui meio de prova de quem emite a declaração, mas a favor da parte com interesses contrários, ninguém podendo, por mero ato seu, formar provas a seu favor”[16]. No mesmo sentido se pronunciam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[17], ao escreverem que “a apreciação que o Juiz faça das declarações de parte é livre, nos termos do nº 3, mas, como esta liberdade não equivale a arbitrariedade, a apreciação importará, as mais das vezes, apenas como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas…”. Também Carolina Henriques Martins[18] assinala que “…não é material e probatoriamente irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objeto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objetivo sobre a sua versão dos factos que, inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado”. Significa isto, que as declarações de parte da legal representante da apelante nunca poderão de per si servir de fundamento probatório à matéria que aquela apelante pretende seja julgada como provada. Essas declarações podem apenas servir de início de prova, ou seja, podem servir de fundamento à prova dos factos declarados por aquela legal representante da apelante e que redundam em benefício da própria apelante, desde que corroboradas por outros elementos de prova que as corroborem, elementos de prova esses que, contudo, inexistem”. Pese embora nos inclinemos mais para a posição seguida por António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa e, efetivamente, aberta aos supra referidos argumentos, considere que as declarações de parte, não obstante a sua especificidade, podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo, livremente apreciável pelo juiz, no caso concreto as declarações de parte não foram completamente espontâneas, antes tendenciosas e interessadas, tendo a parte absoluto interesse em fazer valer a posição que assumiu no processo, o que transpareceu das suas declarações. Com efeito, as declarações de parte da Autora, não convincentes, não são isentas bem resultando de toda a prova produzida que, tendo-lhe sido mostrado, pelo inspetor que realizou a inspeção - e lhe entregou os documentos relativos ao ato inspetivo, próximo da receção (local onde ficou a aguardar pelo resultado da inspeção) -, onde estava o seu veículo (para que a ele se dirigisse e se pudesse ausentar do centro de inspeções), a Autora para ele seguiu, sem se preocupar com o caminho que lhe era imposto tomasse, antes foi para o, apontado, veículo, seguindo, na diagonal, pela zona destinada à realização dos serviços de inspeções e, mesmo, distraída, a olhar para o que tinha nas mãos, sem observar o chão que pisava e sem cuidar de verificar a sinalização existente no local. E bem resultou do depoimento da testemunha CC, inspetor automóvel que, estando a trabalhar no local, viu a Autora, sozinha, atravessar pela área reservada aos serviços de inspeções e apercebeu-se de a mesma ir a olhar para o telemóvel enquanto caminhava e de ir em direção ao fosso, caindo nele, sem que tivesse tido tempo de agir para evitar tal queda. Não ficou este Tribunal convencido de que o inspetor que efetuou a inspeção do veículo da Autora a tivesse conduzido para a zona onde se realizam os serviços de inspeção nem que por aí a tenha acompanhado nem de que lhe tenha dito para, por aí, seguir em direção ao seu veículo, certo sendo que existe, no local, sinalização quer de proibição de circulação nessa zona, de serviço, quer de indicação do caminho a seguir pelas pessoas estranhas ao serviço. Com efeito, quer BB, inspetor automóvel que efetuou a inspeção ao veículo da Autora e lhe mostrou onde havia deixado o seu veículo, quer EE, inspetor automóvel que era, à data do acidente em causa nos autos, o responsável do centro em causa (e que, estando, no momento, no seu gabinete, bem, de lá, viu o inspetor anteriormente referido a entregar à Autora os documentos relativos à inspeção), esclareceram ambos os mencionados inspetores, que os referidos documentos foram entregues à Autora junto à receção e existir, no local, sinalização quer no chão, a indicar o caminho de circulação de clientes (que a Autora devia ter tomado), quer em cartazes a proibir a circulação de pessoas na zona de realização dos serviços de inspeção. Negando a testemunha BB (que afirmou ter, após a entrega dos documentos à Autora, sido chamado a outro serviço e de junto dela se ter ausentado) ter dito à Autora o que quer que seja quanto a caminho a seguir, apenas a Autora afirma a versão que carreou para os autos. Com efeito, nenhuma testemunha presente no local referiu terem sido dadas instruções à Autora para se dirigir ao seu veículo pela zona onde são realizados os serviços de inspeção, nenhuma prova disso havendo, para além do que, parcial e conveniente à sua versão, é referido pela própria Autora, e se a mesma não estivesse desatenta e distraída com o que tinha nas mãos, fossem documentos fosse telemóvel, enquanto caminhava, bem podia ver a fossa e bem podia verificar a sinalização existente no local, a proibir a circulação pela zona que estava a tomar e que a levou à queda no fosso. E não ficou o tribunal convencido de que a testemunha FF, perito de sinistros que efetuou peritagem a pedido do pai da Autora, seu amigo, tenha sido rigorosa e falasse a verdade quando referiu ser pacífico entre a Autora e a Ré A... que aquela seguiu o caminho que o técnico que efetuou a inspeção ao veículo lhe indicou, mostrando o seu depoimento, em confronto com o do responsável pelo centro (a testemunha EE) a confusão em que o mesmo incorreu quando referiu ter estado com um representante do Centro de nome António a efetuar a reconstituição do acidente. Resultou, em audiência, que quem esteve presente na dita reconstituição foi a testemunha EE, a qual mostrou ter lembrança da reconstituição, mas deixou claro não se recordar de ter referido o mencionado, esclarecendo nada poder ter dito ou assumido pela Ré A..., pois que de nada do referido tinha conhecimento. Também não resultou produzida prova minimamente segura de a Autora auferir a importância que pretende seja dada como provada com base nas suas declarações. Nada resulta que permita fundamentar qualquer resposta positiva aos factos impugnados, dados como não provados na sentença, como bem transparece da análise de toda a prova produzida. Efetuou este Tribunal a análise da prova e não há elementos probatórios produzidos no processo que imponham ou justifiquem decisão diversa – como exige o nº1, do artigo 662.º, para que o Tribunal da Relação possa alterar a decisão da matéria de facto. * Improcede, pois, na totalidade, o recurso, na vertente da impugnação da matéria de facto.* 2. Da decisão de mérito 2.1- Da verificação de responsabilidade civil da 1ª Ré (contratual, aquiliana ou intermédia/terceira via/de confiança): natureza, pressupostos e relações entre tais modalidades. * Cumpre, pois, analisar se estamos perante responsabilidade contratual, cujo regime, a verificar-se esse enquadramento legal, tenha, como vimos, de imperar sobre o regime da responsabilidade extracontratual ou se o caso deve ser subsumido a responsabilidade intermédia ou pela confiança.Ora, conforme decorre do disposto no artigo 798.º, os pressupostos da responsabilidade civil contratual em pouco ou nada diferem dos da responsabilidade extracontratual (art. 483º). São eles: a) o facto voluntário do agente a que a lei (artigo 798.º) faz menção quando na estatuição se refere ao "devedor que", ou seja, quando estabelece que o incumprimento é consequência de um comportamento do obrigado; b) a ilicitude traduzida na utilização do verbo faltar como sinónimo de violar não o direito absoluto de outrem, mas um direito de crédito ou relativo: "falta ao cumprimento da obrigação"; c) a imputação subjetiva, ou seja, a culpa a que o artigo 798.º se refere expressamente quando utiliza o advérbio de modo "culposamente"; d) o dano, uma vez que a lei fala em responsabilidade pelos prejuízos; e e) a imputação objetiva, isto é, o nexo de causalidade entre o facto e o dano, que no texto do artigo 798.º decorre da fórmula " que causa ao credor". As diferenças residem essencialmente no facto de na responsabilidade contratual, a culpa do lesante se presumir – v. nº1, do artigo 799.º -, sendo, também, diversas as regras da prescrição, com prazos de prescrição mais curtos na responsabilidade delitual (art. 498º) do que na obrigacional, esta sujeita em princípio ao prazo ordinário de prescrição das obrigações e “Há ainda um regime de responsabilidade por actos de terceiro muito diferente (art. 500º e 800º). A regra da solidariedade, estabelecida no art. 497º do Código Civil, para a hipótese de existir uma pluralidade de responsáveis na responsabilidade civil delitual, contrapõe-se igualmente ao princípio da conjunção quando existe uma pluralidade de responsáveis na responsabilidade obrigacional (art. 514º, a contrario)”[34]. E, com efeito, na responsabilidade extracontratual incumbe ao lesado o ónus de provar todos os referidos pressupostos consagrados no nº1 do art. 483º, entre eles, como vimos, a culpa do autor da lesão, nos termos dos artigos 487º, nº 1 e 342º, nº 1, salvo existindo presunção especial de culpa, já que a obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, só existe nos casos especificados na lei - v. nº 2 do artigo 483º, contando-se, entre tais casos, o consagrado no artigo nº2, do art. 493º. Assim, a responsabilidade civil extracontratual pressupõe, em regra, a culpa do agente por dolo ou mera negligência, incidindo sobre o lesado o ónus de provar a culpa (artigos 483º e 487º). Ciente de que em muitos casos essa prova pode ser difícil, o legislador estabeleceu situações de inversão do ónus da prova, em que a responsabilidade continua a depender da culpa do agente, mas essa culpa se presume, contando-se entre eles o nº2, do art. 493º. In casu, movemo-nos no âmbito da responsabilidade contratual, em causa estando a, eventual, violação de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários. Analisemos, pois, da violação de obrigações contratualmente assumidas pela Ré, causadora de danos à Autora e da medida da responsabilidade da Ré, decorrente de tal violação. * O “Cumprimento e não cumprimento das obrigações” vem regulado no Capítulo VII, arts 762º e seguintes do Código Civil, sendo que o princípio da pontualidade no cumprimento das obrigações que tenham por fonte contratos se encontra materializado quer no nº1, do art. 763º, quer no nº1, do art. 406º.O cumprimento de acordo com o nº1, do art. 762º, consiste na realização da prestação debitória. É a realização voluntária da prestação pelo devedor, que a ela se vinculou[35], impondo o nº 2 que a conduta de ambas as partes na relação obrigacional se paute pelas regras da boa fé. E atuar de boa fé no cumprimento da obrigação é agir com o maior empenho, lealdade e correção na realização da prestação a que o devedor se encontra adstrito[36]. Assim, o vínculo obrigacional é uma realidade composta ou complexa, que não se reconduz ao mero dever de prestar a cargo do devedor, englobando deveres acessórios de conduta, baseados na boa fé: deveres de lealdade, de esclarecimento, de colaboração, de proteção[37]. O nº2 enuncia o princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações contratuais e no exercício do direito de crédito correspondente, revelando-se a aceção objetiva da boa-fé, enquanto norma de conduta ou critério do agir humano[38]. Tal princípio desdobra-se numa série interminável de deveres secundários da prestação e principalmente de deveres acessórios da conduta que recaem, por igual, sobre ambos os sujeitos da relação jurídica (RLJ, 106º, 52)[39]. Resulta, pois, que da boa fé no cumprimento decorrem, para o devedor, variados deveres acessórios e secundários, impondo-se-lhe, que omita todos os atos que possam por em causa um comportamento pontual e que empreenda todos os comportamentos que se mostrem necessários para que aquele tenha lugar[40]. No cumprimento vigora o princípio da autonomia da vontade (art. 405º), devendo, por isso, atender-se em primeiro lugar ao que as partes estipularam, de forma expressa ou tácita e no próprio contrato ou em convenção posterior, a respeito do cumprimento, apresentando as normas legais natureza supletiva[41]. A boa fé, imposta pelo nº2, do art. 762º, ilumina e reflete-se em toda a economia do contrato e durante todo o período da sua execução vinculando os contraentes não ao mero cumprimento formal dos deveres da prestação que recaem sobre eles, mas à observância do comportamento que não destoe da ideia fundamental da leal cooperação que está na base do contrato[42] e refere-se tanto aos deveres principais ou típicos da prestação e aos deveres secundários ou acidentais, como também aos deveres acessórios de conduta quer do lado do devedor quer do do credor[43]. As obrigações laterais ou acessórias surgem como o resultado do comprometimento das partes, ligadas ao cumprimento das obrigações principais, com estas coenvolvidas, estando muitas vezes, na base de todo o desenvolvimento negocial e, até, o determinando[44] , impondo-se, no cumprimento das obrigações, o dever de agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte[45]. O artigo 798º, ao estatuir “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”, enuncia o “princípio geral da responsabilidade obrigacional subjetiva”, que, “tal como a delitual (art. 483º), supõe um ilícito (o incumprimento), a culpa, um dano e uma relação causal entre aquele e este”[46], sendo que neste regime há uma presunção geral de culpa do devedor (nº1, do art. 799º), e na responsabilidade extracontratual a regra é a de que o credor da indemnização a tem de provar (art. 487º, nº1). Do nº1, do art. 799º decorre uma presunção de culpa do devedor pelo não cumprimento, tendo, contudo este de ser, efetivamente, provado, bem como os demais requisitos, seja qual for a modalidade, pelo credor[47], sendo a culpa, nos termos do nº2, “apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil”, remetendo-se, assim, para o nº2, do art. 487º, sendo esta “o não cumprimento de um dever jurídico: o dever de diligência e este dever legal de conteúdo indeterminado (diligência juridicamente devida) é a que teria tido um bom pai de família colocado nas circunstâncias do agente, daí decorrendo que tal diligência tem uma medida diversa para o mesmo ato se o agente for um profissional ou não, exigindo-se àquele uma perícia, conhecimento, qualificações não esperáveis deste[48]. E o não cumprimento/cumprimento defeituoso pode resultar do não cumprimento de deveres principais, essenciais ou de deveres acessórios e secundários. O princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações contratuais, que funciona em termos bidirecionais, impõe às partes outorgantes que atuem “na realização do direito e no cumprimento das obrigações correspondentes, de forma reta, leal e honesta, observando elevados padrões de lisura e de probidade, e em termos que contemplem o interesse da contraparte. A boa-fé conforma, nesta medida, os termos da execução da prestação debitória, impondo um cumprimento, não meramente formal, mas também (…) em termos adequados à realização do interesse do credor. O princípio da boa fé tem uma importância genética, na medida em que fundamenta a constituição de deveres acessórios ou laterais de conduta, não diretamente explicitados num preceito da lei nem no conteúdo contratual. Neste sentido, o cumprimento (integral e pontual – cfr. artigos 406º, nº1 e 763º) da prestação tem de ser acompanhado, sempre que as circunstâncias do caso o reclamem (v.g., o tipo de negócio, a natureza do bem ou do serviço contratado, as condicionantes objetivas e materiais do local ou do modo do cumprimento) pela observância de deveres de cuidado (v.g. a adequada embalagem do bem; o transporte cuidado do bem), de proteção, de informação e de lealdade. A boa-fé reclama dos contraentes, pois, estritos deveres de cooperação. (…) Entre os deveres acessórios, fundamentados – direta ou indiretamente – na boa fé, cumpre relevar deveres de proteção, certos deveres de lealdade e deveres de informação”[49], sendo abordados pela doutrina como, padrões de conduta, deveres laterais e deveres acessórios a observar os de proteção, de informação e de lealdade[50]. A boa-fé no cumprimento da obrigação abrange “os atos preparatórios e instrumentais quanto ao cumprimento, assim como os comportamentos subsequentes à entrega do bem ou à realização da prestação. Numa palavra, o cumprimento da obrigação deve pautar-se por exigências de informação e de esclarecimento, de proteção e de cuidado, e de diligência” e verificando-se a sua inobservância “há fundamento de responsabilidade civil obrigacional – v. Menezes Cordeiro, 2017:420. Por conseguinte, a responsabilidade obrigacional pode ancorar-se no incumprimento de deveres principais, secundários ou laterais – vd. Brandão Proença, 2017: 280.Vd., ainda, Almeida Costa, 2009:76-80”[51]. O Tribunal a quo analisou o pedido indemnizatório da Autora, de condenação, solidária ou conjunta, das Rés com base nas invocadas causas de pedir: responsabilidade civil contratual ou extracontratual e julgou a ação improcedente por falta de verificação dos requisitos da responsabilidade civil. Cumpre, pois, começar por analisar do incumprimento do contrato e a ter sido, de algum modo, incumprido, do direito da Autora a indemnização e do quantum indemnizatório. O incumprimento em sentido amplo, no qual se inclui o cumprimento defeituoso, vem previsto nos artigos 798° e 799°, sendo que apesar da referência que vem feita no artigo 799°, 1, todos do C.C., ao cumprimento defeituoso ele não vem regulado especialmente[52]. Consagra o referido artigo 799º, 1, do C.C., que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua. In casu, a existir incumprimento culposo do contrato pela Ré, estaríamos, na verdade, perante responsabilidade contratual regulada no art.º 798º, do C.C., consagrando este artigo que “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”. Porém, para que o devedor incorra em responsabilidade contratual e em obrigação de indemnizar seria necessário o preenchimento dos referidos pressupostos. À analise do requisito da ilicitude é essencial determinar quais as obrigações das partes, decorrentes do contrato celebrado, e comparar o conteúdo das mesmas com os comportamentos efetivamente empreendidos (alegados e provados), a fim de aferir se estes traduzem violações daquelas. E o devedor está obrigado não só ao que expressamente se estipulou, quer inicialmente quer em convenção posterior, mas também ao que do convencionado decorra das regras da boa fé, como resulta do referido nº2, do art. 762º. O credor tem de provar a ilicitude bem como o dano e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano, presumindo-se, contudo, a culpa (cfr. nº1, do art.º 799.º). * Não resultando provada atuação da Ré A... a infringir o contrato, as regras da boa fé no cumprimento dos contratos ou qualquer dever acessório de conduta, ou, mesmo, qualquer disposição legal e evidenciando os factos apurados que, apenas, à Autora pode ser imputado um comportamento ilícito e culposo, comportamento esse, causal da sua queda, não podem as Rés ser responsabilizadas pelos danos que, desta, resultaram para a Autora, sendo que a 2ª Ré, seguradora, só responde em caso de responsabilidade da 1ª Ré, segurada.E, na verdade, consagrando o nº1, do artigo 342º, do C. Civil, que regula a questão do ónus da prova, que “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, não tendo a Autora logrado provar os factos que alegou, constitutivos do direito de que se arroga, antes tendo resultado provada a sua culpa na produção do acidente, tem a mesma de sofrer as consequências desvantajosas de o não ter conseguido. Para fundar responsabilidade civil e, consequente, obrigação de indemnizar danos causados, necessário era estarem verificados os supra aludidos pressupostos da responsabilidade civil e forçoso é concluir, como bem analisou a 1ª instância, pela prova da culpa efetiva da própria lesada, pois que a queda da Autora se ficou a dever a ter a mesma invadido a zona de realização dos serviços de inspeção, devidamente assinalada como de circulação proibida, e a ter seguido distraída a, por aí, caminhar. E provada a culpa efetiva, e exclusiva, da Autora, como provou, nenhuma alteração tendo sido introduzida à decisão de facto, nunca as Rés poderiam ser responsabilizadas com base em responsabilidade civil, seja contratual, seja numa via intermédia, seja, ainda, extracontratual, pois que presunção de culpa sempre se mostraria afastada, pela prova da, efetiva, culpa da Autora, que entrou em zona proibida à circulação de pessoas estranhas ao serviço e por lá caminhou sem atenção ao chão que pisava, caindo em “meio” de trabalho da Ré A..., tendo sido a sua atuação a causa, única e exclusiva, da sua queda, das lesões e de todos os danos por si sofridos. Não pode, pois, deixar de improceder a pretensão que a Autora formula, assente em culpa da outra parte (presumida ou efetiva), a qual se mostra afastada pela, demostrada, culpa, exclusiva, da lesada. * Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida. E não declarado o direito da Autora, prejudicada fica a apreciação da ampliação do objeto do recurso (deduzida, apenas, para apreciação da prescrição do direito da Autora a ser o direito reconhecido, o que não ocorre). * 3. Da responsabilidade tributária. As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil). * III. DECISÃO Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida. * Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
Porto, 5 de fevereiro de 2024 ________________Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores Eugénia Cunha Mendes Coelho Jorge Martins Ribeiro [1] Com efeito, fixada foi, até, já, jurisprudência no sentido de “Nos termos da alínea c), do nº1, do artigo 640º, do Código de Processo Civil, o recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, nas alegações” - AUJ de 17/10/2023, proc. 8344/17.6T8STB.E1-A.S1 e v., ainda, Decisão do STJ de 27/9/2023, proferida no proc. nº2702/15.8T8VNG-C.S1. [2] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 823 e seg. [3] Ibidem, págs 824 e seg. [4] Ibidem, pág, 825. [5] Ibidem, pág, 825. [6] Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 348. [7] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, vol II, Almedina, pag.635. [8]Ac. RP de 19/9/2000, CJ, 2000, 4º, 186 e v., ainda, Ac. RP de 13/11/2023, proc. 12254/19.4T8PRT.P1 (Relatora: Ana Paula Amorim). Sobre a questão da alteração da decisão da matéria de facto pela Relação podem ser vistos Acórdãos desta Relação, em que a ora relatora foi adjunta, respetivamente, com os seguintes sumários: - Ac. RP 13/3/2023, proc. 124/18.8T8PVZ.P1: “I. Tendo em vista alcançar o duplo grau de jurisdição ao nível da decisão de facto, incumbe ao Tribunal da Relação proceder à reanálise crítica e autónoma da decisão de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância, convocando, para o efeito, todos os meios de prova disponíveis no processo (e não apenas os que foram convocados pelo apelante).II. Os poderes de alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um remédio a utilizar apenas nos casos em que os meios probatórios apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pelo Tribunal de 1ª instância e já não naqueles (como é o caso) em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, logrou firmar a sua convicção quanto à demonstração de determinado quadro factual, sem que se evidencie nesse seu juízo algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, assumindo uma opção que justificou de forma consonante, lógica e racional com toda a prova produzida nos autos” (Relator: Jorge Seabra); - Ac. da RP de 8/5/2023, proc. 9648/21.9T8PRT.P1:“… II- O tribunal de 1ª instância é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos em detrimento de outros, desde que na explicitação do iter formativo da sua convicção evidencie de forma coerente e convincente a adoção de uma das teses em confronto, mormente estribando-se na coerência e consistência dos elementos probatórios que a sustentam. III- Os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância e já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum” (Relator: Miguel Baldaia Morais); - Ac. RP de 24/10/2022, proc. 2270/20.9T8AVR.P1: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II- Nesta conformidade, a modificação da decisão de facto só deve ocorrer quando hajam razões fortes para que tal suceda, o que implica que, existindo uma convicção razoável da parte do tribunal recorrido, não deve o Tribunal da Relação substituir por uma outra, igualmente possível, mas formada na ausência dos elementos presenciais que podem ter levado à formação da primeira. O princípio da imediação é um princípio processual geral a respeitar e as consequências dele extraídas só devem ser afastadas quando tenha sido mal usado,não quando o Tribunal da Relação pareça, ouvida a gravação, que outra é mais plausível” (Relator: Pedro Damião e Cunha); - Ac. da RP de 25/1/2001, proc. 11472/18.7T8PRT.P1, onde se escreve “o juízo formulado pelo tribunal a quo não se mostra passível de censura em sede de julgamento, certo sendo que o mesmo beneficiou da imediação e oralidade. Nada evidencia uma errada valoração das provas produzidas, ou violação das regras da lógica ou da experiência no processo valorativo e justificativo expresso pelo tribunal a quo. Tal como decorre do já citado artigo 662º nº 1 do CPC a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuserem diversa decisão” (Relatora: Fátima Andrade). [9] j) No final do procedimento, o funcionário em questão dirigiu-se ao local onde a autora se encontrava, entregou-lhe a documentação respeitante à inspeção periódica e disse-lhe que podia retomar o veículo, que se encontrava parado em frente à fossa de verificação técnica, no final da linha de inspeção, no lado oposto da receção; [10] k) A autora dirigiu-se então ao seu veículo, atravessando de forma oblíqua a zona de inspeção, enquanto examinava os documentos entregues, e colocou inadvertidamente um pé na fossa e caiu dentro dela; [11] “y) Actualmente, a autora trabalha como gestora de produto, em Amsterdão”. [12] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 529. [13] Ibidem, pág. 532 [14] Ibidem, pág. 532 [15] Ac. STJ. de 25/11/2010, Proc. 3070/04.9TVLSB, in base de dados da DGSI. [16] Ac. TC. n.º 504/2004, D.R., II Série de 02/11/2004, pág.16.093. [17] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 309. No mesmo sentido, Lebre de Freitas, in “A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, onde, a pág. 278, escreve: “… importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outras não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efectivamente ouvidas…”. [18] Carolina Henriques Martins, in “Declarações de Parte”, pág. 58. [19] Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, Direito das obrigações, vol. I, 2017, 14ª edição, Almedina, pág. 275. [20] Ac. da RL de 19/4/2005, proc. 10341/2004-7 (Relator: Pimentel Marcos), acessível in dgsi. [21] Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, Idem, pág. 278. [22] Ibidem, pág. 278 [23] Ac. do STJ de 12/9/2019, proc. 2604/15.8T8LRA.C1.S1 (Relatora: Rosa Ribeiro Coelho), acessível in dgsi [24] Manuel A. Carneiro da Frada, FORJAR O DIREITO, 2ª Edição, Almedina, pág. 164-165 e cfr., ainda, a nota de rodapé ali citada (“Manuel A. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra, 2003, 99 ss, 381 ss, 431 ss, …”). [25] Ibidem, pág. 165 [26] Ibidem, pág. 168 a 170. [27] Pedro Romano Martinez, O direito das obrigações (Parte Especial) , 2ª Edição, Almedina, pág. 473 [28] Ibidem, pág 475 [29] Ac. do STJ de 20/11/2012, proc. 176/06.3TBMTJ.L1.S2 (Relator: Fonseca Ramos), acessível in dgsi, onde se entendeu “Classicamente, a responsabilidade civil coenvolve a responsabilidade contratual (a violação do contrato) e a extracontratual (a que não se filia na violação de deveres contratuais, mas em normas que tutelam interesses alheios, ou direitos absolutos) e ainda a responsabilidade objectiva: em não poucos casos, a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual miscigenam-se, mal se destrinçando os campos de aplicação e nem sequer a nitidez das fronteiras”. [30] Ac. da RL de 27/9/2012, proc. 512/10.8TCFUN.L1-2 (Relatora: Teresa Albuquerque), acessível in dgsi [31] Ac. do STJ de 7/2/2017, proc. 4444/03.8TBVIS.C1.S1 (Relator: Hélder Roque), acessível in dgsi [32] Ac. da RL de 24/9/2019, proc. (Relator: José Capacete), acessível in dgsi, onde esclarecendo-se a questão do concurso ou concorrência da responsabilidade civil contratual e da extracontratual, se refere “Conforme refere Vaz Serra, «o contrato não priva as partes da protecção geral, pois pela celebração de um negócio jurídico não se renuncia à defesa que se teria independentemente dele», antes «não sendo de presumir que, com o contrato, se tenha querido afastar a responsabilidade delitual, principalmente quando os contraentes teriam dificuldade em prever a possibilidade do dano.» «(…).» «Com a celebração do contrato, os direitos do credor são reforçados e não limitados» (…) «Se a existência de um contrato estabelece entre as partes mútuos deveres de protecção, mais intensos do que em relação a terceiros, não se justifica que a tutela do credor seja inferior à destes.»[2]. Trata-se, como esclarece Almeida Costa, «de um concurso aparente das duas modalidades da responsabilidade civil», estando em causa um concurso aparente das duas modalidades de responsabilidade civil.»[3]. Conforme nos revela o mesmo Autor, tem sido muito discutido o problema da equação «do concurso de ambas as espécies de ilícito civil. As diversas orientações dividem-se em dois grupos: os denominados sistemas do cúmulo e sistema do não cúmulo. Dentro do primeiro cabem três perspectivas: a de o lesado se socorrer, numa única acção, das normas da responsabilidade contratual e extracontratual, amparando-se nas que entenda mais favorável; a de conceder-se-lhe opção entre os procedimentos fundados apenas numa ou noutra dessas responsabilidades; e a de admitir, em acções autónomas, ao lado da responsabilidade contratual, a responsabilidade extracontratual. Pelo contrário, o sistema que exclui o cúmulo, consiste na aplicação do regime da responsabilidade contratual, em decorrência de um princípio de consunção. A lei omitiu preceito expresso que decidisse a controvérsia. Portanto, terá de procurar-se a solução que, no seu quadro, se apresente mais adequada ponderando, sobretudo, os interesses e valores contrapostos. Recordemos que o Código Civil vigente consagra regimes sem diferenças essenciais para a responsabilidade contratual e a extracontratual. Também advertiu que as poucas especificidades de cada um deles permitem concluir que a disciplina da primeira, globalmente encarada, confere maior protecção ao lesado. (...).» Afasta-se, naturalmente, a possibilidade de uma dupla indemnização, em correspondência a essas duas espécies de ilícito civil. Por outras palavras: havendo um só dano, resultante de um único facto, nada justifica a duplicação de acções ou concorrência de pretensões. Também parece inaceitável o sistema da acção híbrida. Afigura-se substancialmente injusto que o lesado beneficie das normas que considere mais favoráveis da responsabilidade contratual e da extracontratual, afastando as que nos respectivos sistemas - estabelecidas em paralelo e que com elas formam conjuntos orgânicos - repute desvantajosas. Por exemplo, prevalecer-se do ónus da prova que impende sobre o devedor na responsabilidade contratual (art. 799.º, n.º 1) e, ao mesmo tempo, do regime da solidariedade passiva, caso haja vários responsáveis, que vigora para a responsabilidade extracontratual (arts. 497.º e 507.º). Existiria ainda certo melindre quanto à determinação do foro competente: se o próprio da responsabilidade contratual ou o da extracontratual. Não menos insatisfatória se revela a teoria da opção. Ela equivale a deixar-se ao lesado a escolha de uma acção baseada no ilícito contratual ou no ilícito extracontratual. É que, além do resto, a questão se analisa no que pode considerar-se um concurso legal ou aparente, em que dois regimes têm campos de aplicação próprios. Infere-se do exposto que se adere à ideia da exclusão do cúmulo. Se, de um vínculo negocial, resultam danos para uma das partes, o pedido de indemnização deve alicerçar-se nas regras da responsabilidade contratual. A mesma directriz se impõe quando o facto que produz a violação do negócio – ou melhor, da relação que dele deriva – simultaneamente preenche os requisitos da responsabilidade aquiliana. Esta solução mostra-se correcta no plano sistemático e no da justiça material. Como se referiu, as hipóteses de concurso da responsabilidade contratual e da extracontratual, aqui abordadas, reconduzem-se à figura do aparente, legal ou de normas, Quer dizer, trata-se de situações em que só “aparentemente” se pode falar de um concurso, já que nos deparamos com uma única conduta ilícita, a merecer, portanto, uma só indemnização. A essência do problema reside, assim, na solução do conflito positivo regimes, que decorre da circunstância de uma mesma factualidade ser simultaneamente subsumível à responsabilidade contratual e à extracontratual. O critério terá, pois, de assentar num ponto de vista teleológico, que atenda ao juízo de valor e à função que subjazem àquelas duas figuras. A responsabilidade aquiliana intervém se o dano resulta da violação de um dever geral de conduta, ao passo que a responsabilidade contratual apenas actua quando se verifica a violação de um crédito. Cada uma possui esfera particular ou autónoma de actuação, pelo que se encontram numa relação de especialidade. Outras razões levam, contudo, à da subordinação exclusiva dos casos considerados às regras da responsabilidade contratual. Nas hipóteses de concurso das duas variantes da responsabilidade civil há-de convir-se que qualquer delas, a funcionar isoladamente, esgotaria a protecção que a ordem jurídica pretende dispensar a casos desse tipo. A integração de tais hipóteses num esquema ou no outro - e que equivale à correspondente qualificação como ilícito contratual ou extracontratual - depende, portanto, da perspectiva geral que preside à regulamentação do direito das obrigações. Ora, neste âmbito, impera, como não se ignora, o princípio da autonomia privada, segundo o qual compete às partes lixar a disciplina que deve reger as suas relações, com ressalva dos preceitos imperativos. Assim, parece que, perante uma situação concreta, sendo aplicáveis paralelamente as duas espécies de responsabilidade civil, de harmonia com o assinalado princípio da autonomia privada, o facto tenha, em primeira de considerar-se ilícito contratual. Se a responsabilidade foi disciplinada por negócio jurídico apresenta-se como contratual, posto que, na falta dele, existisse responsabilidade extracontratual. (...). Sintetizando: de um prisma dogmático, o regime da responsabilidade contratual «consome» o da extracontratual. Nisto se traduz o princípio da consunção. Saliente-se, por outro lado, o aspecto decisivo de que o caminho preconizado, além de uma adequação conceitual, dá plena satisfação aos interesses do lesado. Não se esqueça, na verdade, a ideia de relação obrigacional complexa, concebida como um todo e um processo dirigidos à tutela dos interesses globais das partes nela envolvidos. Aí se encontram, não só deveres de prestação, mas também deveres acessórios e laterais, que incluem deveres de protecção e cuidado para com a pessoa e o património dos intervenientes. Observe-se, ainda, que o devedor se encontra obrigado ao que expressamente convencionou e ao que resulta dos ditames da boa fé. Em idêntico sentido, postula o instituto do cumprimento defeituoso ou imperfeito, designadamente quanto à cobertura dos danos relativos à vida, à integridade física e ao património do credor. O cálculo da indemnização é feito nos mesmos termos básicos para as duas espécies de responsabilidade civil. E, inclusive, podem apurar-se e compensar-se danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade contratual. A posição adoptada acautela devidamente todos os interesses atendíveis do lesado, sem sacrifício injusto da posição do responsável: mostra-se correcta no plano da justiça material e também encarada de um ângulo sistemático. Só não se aplicará em face de preceito contrário da lei. Esta terá de ser a regra. O que não invalida que, diante de situações concretas, se lhe introduzam possíveis desvios, em homenagem à solução substancialmente mais justa. Estar-se-á, então, perante casos de consunção impura.»”. [33] Ac. da Rel de Lisboa de 24/10/2019, proc. 2069/13.9TCLRS.L1-6 (Relator: Nuno Ribeiro), acessível in dgsi [34] Manuel A. Carneiro da Frada, idem, pág. 163. [35] “Strito sensu, o cumprimento da obrigação é a realização voluntária da prestação debitória. É a actuação da relação obrigacional, no que toca ao dever de prestar (A. Varela, Obrigações, 2º-7)”, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 766. [36] A. Varela, CJ, 1987, 4º, 21. [37] Ac. do STJ de 12/6/2003, proc. 03B573.dgsi.net, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 768. [38] Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, pág. 1030. [39] Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 767. [40] Ana Prata, Código Civil Anotado, volume I, 2017, Almedina, pág. 960. [41] Almeida Costa, Introdução, 152, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum, pág. 767. [42] A. Varela, Obrigações, 187, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum, pág. 767. [43] Cunha de Sá, Abuso de Direito, 173, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum, pág. 767. [44] Ac. do STJ de 14/7/2009, proc. 2406/06.2TVSLB.S1.dgsi.net, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum, pág. 769. [45] Ac. do STJ de 17/9/2009, proc. 841/2002.S1.dgsi.net, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum, pág. 769. [46] Ana Prata, Idem, pág. 997. [47] Ibidem, pág. 998. [48] Ibidem, pág. 633. [49] Ana Filipa Morais Antunes, idem, pág. 1030. [50] Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado, I-1, p. 407 e Obrigações, 1º, págs 149 e segs e Da Boa Fé, págs. 586 e segs e Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 2017, 14ª Edição, Almedina, pág. 55. [51] Ana Filipa Morais Antunes, idem, pág 1031 e seg. [52] Vaz Serra, R.L.J., 108º, p. 144 e 147; Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, 1968, p. 26. [53] Pessoa Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina, 1995, pág. 88 [54] Ac. do STJ de 17/5/2017, proc. 1506/11.1TBOAZ.P1.S1, in dgsi.net [55] Ac. RP de 13/9/2016, proc. 1496/14.9T8PRT.P1, in dgsi.pt [56]Ac. RC de 18/5/2021, proc. 67/18.5T8GRD.C1, in dgsi, onde se decidiu “Não concretizando/definindo a lei o que deve entender-se por “atividades perigosas” - limitando-se à admissão genérica de que a perigosidade derive da própria natureza da atividade ou da natureza dos meios nela utilizados -, deverá, assim, tal matéria ser apreciada à luz de cada caso e segundo as circunstâncias concretas da ocorrência do mesmo”. Ac. RP de 8/2/2021, proc. 9754/17.4T8PRT.P1, in dgsi.pt “I. O conceito de atividade perigosa previsto no artigo 493, n.º 2 do CC é um conceito indeterminado, a preencher segundo as circunstâncias de cada caso concreto e ponderando, nomeadamente, o evento ou a lesão invocados pelo lesado e o acréscimo de risco que pressupõe o conceito. II - O artigo 493, n.º 2 do CC estabelece uma presunção de culpa, mas não uma presunção de causalidade. III- Sempre cabe ao lesado demonstrar a ocorrência de uma ação ou omissão do lesante que afete o seu direito ou um interesse protegido. |