Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
367/13.0PAOVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
NULIDADE
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RP20150506367/13.0PAOVR.P1
Data do Acordão: 05/06/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O artº 118º1 CPP consagra o princípio da legalidade das nulidades.
II – Não há norma que determine a nulidade em consequência da omissão ou deficiência da fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia.
III- Constitui irregularidade que influi na decisão da causa a omissão de descrição dos factos indiciados e não indiciados na decisão instrutória de não pronuncia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 367/13.0PAOVR.P1
Aveiro

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto.
(2ª secção criminal)

I. RELATÓRIO
No processo de instrução nº 367/13.0PAOVR, da Instrução Central de Aveiro, 1ª Secção de Instrução Criminal, Juiz 1, da Comarca de Aveiro, foi proferido despacho de não pronúncia da arguida B…, com os demais sinais dos autos.
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Inconformada, a assistente “C…, Lda.” interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
1. “Nos termos do artigo 308º, nº 2 do CPP, é aplicável ao despacho (de pronúncia ou não pronúncia) o referido no nº 1 desta norma e ainda o constante dos nºs 2 a 4 do artigo 283º do mesmo diploma.
2. Determinam as disposições supra que o julgador está vinculado à obrigatoriedade de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, ainda que de forma sintética.
3. Para que um Tribunal Superior possa aferir da bondade da decisão recorrida, valorando os indícios como suficientes ou insuficientes para pronunciar ou não um arguido, é necessário que saiba quais são os indícios dados como assentes pelo Tribunal a quo, confrontando-os com toda a prova carreada aos autos de instrução.
4. Na decisão recorrida, as referências efectuadas aos depoimentos das testemunhas arroladas limitam-se à questão da perícia realizada à letra constante dos sacos que continham as quantias monetárias furtadas, não sendo indicados outros factos relevantes para além de pequenos excertos dos depoimentos, que se circunscrevem à letra e condições de preenchimento dos sacos onde é guardado o dinheiro das vendas efectuadas por cada período do dia.
5. Os factos narrados no despacho de não pronúncia são claramente insuficientes para ajuizar da eventual pronúncia ou não pronúncia da arguida.
6. A ausência de descrição dos factos determina, nos termos dos art. 308º, nº 2, conjugado com o art. 283º, nº 3, b) do CPP, a nulidade do despacho de não pronúncia de que ora se recorre, deverá este vício ser apreciado pelo Tribunal da Relação.
7. O exame crítico das provas carreadas aos autos de inquérito consiste na explicação (e fundamentação) do que foi valorado ou não pelo Tribunal, para a formação da convicção do mesmo.
8. De acordo com o MM. Juiz, a assistente sustentou a sua posição no resultado de uma perícia à letra constante do objecto da mesma: os sacos de transporte de dinheiro.
9. É verdade que a perícia foi efectuada por peritos pagos pela assistente mas esta, no seu requerimento de abertura de instrução requereu “Que se oficie uma entidade certificada como Perita junto das Entidades judiciais na Peritagem da Caligrafia no sentido de efectuar uma contra peritagem aos sacos e à letra constante no auto de declarações da denunciada, todos documentos já juntos aos autos.”
10. Em despacho (com data de conclusão de 22.05.2014), proferia o MM. Juiz o seguinte: “Indefere-se a perícia proposta uma vez que no inquérito já foi realizada a perícia com igual objecto.”
11. Não foi, pois, efectuada qualquer outra perícia (como requereu a assistente em sede própria) à letra constante dos sacos porque o Tribunal não o permitiu, alegando que já tinha sido realizada uma ao mesmo objecto.
12. Apesar de não ter permitido que fosse efectuada nova perícia, desta vez por técnico especializado e imparcial, vem o MM. Juiz do Tribunal a quo fundamentar agora o despacho de não pronúncia da arguida no facto de a mesma não ter qualquer relevância probatória dado que não foi ordenada pela entidade judiciária competente.
13. Refere o despacho recorrido: “(…) Nos termos do preceituado no art.º 151º do CPP a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos. A perícia é realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não seja possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos ou, na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa – vide art.º 152º, nº 1 do CPP. Dispõe o art.º 154º, nº 1 do CPP que a perícia é ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho da autoridade judiciária, contendo a indicação do objecto da perícia e os quesitos a que os peritos devem responder, bem como a indicação da instituição ou o nome dos peritos que a realizarão.
A autoridade judiciária assiste, sempre que possível e conveniente, à realização da perícia, podendo a autoridade que a tiver ordenado permitir a presença do arguido e do assistente – art. 156º, nº 2 do CPP. (…) A perícia, qualquer perícia, deve, por isso, obrigatoriamente, ter assegurada a imparcialidade dos peritos e sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório.
Mas, além disso, o objecto da perícia – neste caso, os sacos de transporte do dinheiro – deve ser preservado para que, até à realização da perícia, seja possível determinar de que modo foi preservado e quem foram os responsáveis pelo seu manuseio. Essa preservação – a cadeia de custódia – é essencial para que dúvidas não existam sobre eventuais adulterações da prova. E quanto maior for o cuidado na preservação da prova, mais robusto e confiável será o procedimento, deixando o relatório técnico produzido com teor irrefutável. (…)
Porém, como é bom de ver, no caso dos autos a perícia não foi ordenada pela autoridade judiciária competente. Os peritos foram escolhidos e pagos pela assistente. A arguida não teve oportunidade de exercer o contraditório. Ou seja, não foi garantida a imparcialidade dos peritos e a perícia não respeitou os princípios da igualdade de armas e do contraditório.
E tanto bastaria para lhe retirar qualquer relevância probatória. (…)”
14. Salvo o devido respeito, que é muito, se a arguida não pôde exercer o contraditório, se não foi garantida a imparcialidade dos peritos e se não foram respeitados os princípios da igualdade de armas e do contraditório, tal não se deveu à assistente mas ao Tribunal a quo, que despachou no sentido de indeferir a realização da perícia requerida pela assistente, em sede de abertura de instrução.
15. Não, pode, pois, a decisão assentar em factos cuja responsabilidade não é imputável à assistente, mas sim ao MM. Juiz da causa que, por lapso ou não, decidiu não admitir a realização de perícia à caligrafia constante nos sacos do dinheiro, alegando que já havia sido efectuada uma ao mesmo objecto.
16. Ao referir a pretensa violação dos princípios da igualdade, imparcialidade e do contraditório como fundamentos para não pronunciar a arguida, quando, na verdade, a não observação dos mesmos unicamente se poderá imputar ao despacho proferido pelo MM. Juiz de Instrução, a decisão instrutória revela deficiências que acarretam a nulidade do despacho de não pronúncia, devendo o douto Tribunal da Relação ordenar a sua revogação.
17. Por outro lado, refere-se no despacho recorrido que “(…) os restantes elementos recolhidos não permitem, com a segurança exigida em processo penal, imputar à arguida a prática dos factos. (…) eram pelo menos seis as funcionárias com acesso aos cofres (…) Acresce que do depoimento de D… – vide fls. 72 – resulta que por vezes os sacos de transporte, já preenchidos, não eram utilizados. Nesse caso ficavam guardados para utilizações posteriores. O que vem corroborar o depoimento de E… que disse não se lembrar se tinha preenchido um saco novo ou utilizado um já preenchido. (…)”
18. Julga a Assistente que o depoimento da testemunha supra referida, D…, não foi devidamente apreciado, pois esta testemunha não se limitou a afirmar que os sacos de transporte, já preenchidos, não eram, por vezes, usados.
19. Quando foi inquirida, no âmbito do inquérito (que correu termos na Secção de Processos de Ovar, Serviços do Ministério Público da Comarca do Baixo Vouga), esta “(…) declarou que foi ela quem preencheu os cinco sacos na sexta-feira da parte da manhã (dia 1 de Março), que a sua colega E… inutilizou um saco no sábado, pelo que em sua substituição deverá ter utilizado um outro saco dos cinco que havia preenchido, e que a suspeita no dia 3 teve que preencher pelo seu punho um saco novo; reconheceu dois sacos como tendo sido preenchidos por si, dois pela suspeita B… e um outro provavelmente pela E….”
20. Tendo sido estas as declarações da testemunha D…, concluímos que o despacho de não pronúncia omitiu factos relevantes para uma correcta valoração da prova.
21. O despacho recorrido limita-se a tomar parte das declarações da testemunha, mais concretamente que “(…) resulta que por vezes os sacos de transporte, já preenchidos, não eram utilizados. Nesse caso ficavam guardados para utilizações posteriores.”
22. No entanto, esta testemunha não afirmou que “(…) por vezes os sacos de transporte, já preenchidos, não eram utilizados.” O que afirmou foi “(…) que foi ela quem preencheu os cinco sacos na sexta-feira da parte da manhã (dia 1 de Março), que a sua colega E… inutilizou um saco no sábado, pelo que em sua substituição deverá ter utilizado um outro saco dos cinco que havia preenchido, e que a suspeita no dia 3 teve que preencher pelo seu punho um saco novo; (…)”
23. No âmbito do inquérito, durante o qual foi inquirida, esta testemunha afirmou também que a arguida teve que preencher um saco novo, pelo seu próprio punho, na data dos factos. No entanto, no despacho de não pronúncia, nada é referido a este respeito.
24. Cabe ao Tribunal e não às partes a valoração das provas e que o exame das mesmas está sujeito à independência e discricionariedade do decisor mas a valoração de umas provas em detrimento de outras, que nem sequer são avaliadas mas sim omitidas, deverá ser explicitado na decisão, no âmbito do próprio criticismo da prova.
25. De acordo com o despacho recorrido, foi considerado apenas o facto de a D… afirmar que por vezes os sacos preenchidos não serem utilizados no próprio dia mas esta testemunha havia afirmado anteriormente que tinha que ter sido a arguida a preencher o saco novo, utilizado no dia 3 de Março para colocar as quantias obtidas com as vendas, assim como afirmou ter reconhecido a letra da arguida em dois sacos.
26. Não se compreende por que não foi o depoimento desta testemunha valorado no seu todo, na medida em que a decisão recorrida não contém a fundamentação da valoração da prova carreada aos autos, limitando-se o MM. Juiz a quo a, sinteticamente, afirmar que aquele depoimento corrobora o de uma outra testemunha, E…, “(…) que disse não se lembrar se tinha preenchido um saco novo ou utilizado um já preenchido.”
27. É, pois, legítimo questionar onde é que o depoimento da testemunha D… corrobora o da testemunha E…, sobretudo porque, de acordo com o despacho recorrido, esta E… apenas referiu não se recordar se tinha preenchido um saco novo ou utilizado um já preenchido anteriormente.
28. Suportando os depoimentos destas duas testemunhas, o MM. Juiz a quo concluiu que (…) no período em que o dinheiro foi retirado dos sacos foram várias as pessoas que, tendo acesso aos cofres, estiveram a trabalhar. E ainda que os dizeres constantes dos sacos tivessem sido escritos pela aqui arguida, tal facto não seria suficiente para a pronunciar porque, como referimos, bem pode ter acontecido que tais sacos tivessem sido preenchidos em datas anteriores e, porque não foram utilizados, estivessem disponíveis. Aliás, a testemunha E… disse mesmo não recordar se preencheu um saco novo ou utilizou um previamente preenchido pela aqui arguida.”
29. Acresce ainda que, não obstante ter sido desconsiderada pelo MM. Juiz a quo, a perícia realizada (por entidade competente para o efeito, apesar de não ter sido ordenada por entidade judiciária) à caligrafia constante dos sacos que continham o dinheiro da assistente, revelou, numa graduação de 9 categorias, estar na posição n.º 3, correspondente a ser “provável” ser a letra da arguida a encontrada no objecto analisado.
30. Um despacho de não pronúncia (ou de pronúncia) por indícios insuficientes para submeter o arguido a julgamento é um pressuposto de decisão processual e não de uma decisão de mérito, não se estabelecendo sobre aquela caso julgado, sempre teremos que admitir a possibilidade de não ter sido a prova carreada aos autos rigorosamente analisada, pelo que é legítimo questionar a bondade da decisão.
31. Desde logo porque do despacho (de não pronúncia) em questão não consta a narração dos factos não provados nem a fundamentação para a valoração da prova nesse sentido, o que constitui, desde logo, uma nulidade, nos termos doas artigos 308º, nº 2 e 283º, nºs 2 a 4 do CPC.
32. Neste sentido, “(…) Só com a indicação, expressa, de cada um dos factos que se consideram suficientemente indiciados, e de cada um dos que assim não se consideram, se viabilizará um entendimento unívoco sobre o despacho de não pronúncia (ou pronúncia), e se permitirá quer o seu controle, por parte do Tribunal de segunda instância, quer a hipótese de posterior prosseguimento dos autos, caso se revelem novos elementos de prova ou novos factos.(…) Porque do despacho em apreço não resulta sequer indiciado o entendimento do Sr. Juiz de Instrução sobre cada um dos factos constantes da acusação, há que reconhecer que está eivado de nulidade. Consequentemente, não resta senão ordenar a remessa dos autos ao Tribunal recorrido, para que seja lavrada nova decisão instrutória, com a enumeração, discriminada, de cada um dos factos que, vertidos no arquivamento e na acusação contida no requerimento de abertura de instrução, se encontram suficientemente indiciados e não indiciados, e dos demais factos que se mostrem pertinentes à avaliação das práticas clínicas executadas, em face daquelas práticas que integram as legis artis.” (Ac. TRL de Lisboa, 11.07.2013).
33. Nestes termos, deverá este Tribunal superior revogar o despacho de não pronúncia recorrido, com todas as legais consequências.”
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O Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, concluindo pelo não provimento do recurso e manutenção do despacho recorrido.
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho datado de 4 de dezembro de 2014.
Nesta Relação, a Ex.ma Senhora Procurador-Geral Adjunta emitiu douto parecer, no qual se pronuncia igualmente pelo não provimento do recurso, sufragando o entendimento e considerações expendidas na resposta do Ministério Público, na 1ª instância.
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Foi cumprido o artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
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1. Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação apresentada, as questões a apreciar são:
A. Nulidade da decisão instrutória por falta de fundamentação;
B. Nulidade da decisão instrutória, por omissão, na fase de instrução, de diligência (exame pericial) requerido pela assistente;
C. Existência de indícios integradores da prática, pela arguida, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º do Código Penal.
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2. A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“Declaro encerrada a instrução.
O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.
Não há nulidades ou questões prévias que cumpra conhecer.
A fls. 256 e ss., o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento.
Discordando do teor de tal despacho veio a assistente requerer a abertura de instrução pugnando pela pronúncia da arguida pela prática de um crime de abuso de confiança.
Por despacho de fls. 285 foi declarada aberta a instrução.
Procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância do devido formalismo legal, com formulação a final de conclusões pelo Ministério Público, assistente e arguida.
Cumpre decidir.
A assistente sustenta a sua posição, em parte, no resultado de uma perícia à letra que solicitou.
Nos termos do preceituado no art.º 151º do CPP a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos.
A perícia é realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não seja possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos ou, na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa – vide art.º 152º, n.º 1 do CPP.
Dispõe o art.º 154º, n.º 1 do CPP que a perícia é ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho da autoridade judiciária, contendo a indicação do objecto da perícia e os quesitos a que os peritos devem responder, bem como a indicação da instituição ou o nome dos peritos que a realizarão.
A autoridade judiciária assiste, sempre que possível e conveniente, à realização da perícia, podendo a autoridade que a tiver ordenado permitir a presença do arguido e do assistente – art.º 156º, n.º 2 do CPP.
Finda a perícia, os peritos elaboram relatório de acordo com as regras previstas no art.º 157º do CPP, podendo ser solicitados esclarecimentos aos peritos ou, se necessário, ser realizada nova perícia – art.º 158º do CPP.
Das normas enunciadas facilmente se percebe o cuidado que o legislador pôs na determinação do regime da prova pericial. Cuidado que se compreende na medida em que o juízo técnico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador – cfr. Art.º 163º do CPP.
A perícia, qualquer perícia, deve, por isso, obrigatoriamente, ter assegurada a imparcialidade dos peritos e sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório.
Mas, além disso, o objecto da perícia – neste caso, os sacos de transporte do dinheiro – deve ser preservado para que, até à realização da perícia, seja possível determinar de que modo foi preservado e quem foram os responsáveis pelo seu manuseio. Essa preservação - a cadeia de custódia – é essencial para que dúvidas não existam sobre eventuais adulterações da prova. E quanto maior for o cuidado na preservação da prova, mais robusto e confiável será o procedimento, deixando o relatório técnico produzido com teor irrefutável. Por isso, a sequência dos fatos é essencial: quem manuseou, como manuseou, onde o vestígio foi obtido, como foi armazenado.
Porém, como é bom de ver, no caso dos autos a perícia não foi ordenada pela autoridade judiciária competente. Os peritos foram escolhidos e pagos pela assistente. A arguida não teve oportunidade de exercer o contraditório. Ou seja, não foi garantida a imparcialidade dos peritos e a perícia não respeitou os princípios da igualdade de armas e do contraditório.
E tanto bastaria para lhe retirar qualquer relevância probatória.
Mas, ainda que assim não fosse, os restantes elementos recolhidos não permitem, com a segurança exigida em processo penal, imputar à arguida a autoria dos factos.
Do documento de fls. 11/12 resulta que eram pelo menos seis as funcionárias com acesso aos cofres (E…, F…, G…, B…, D… e I…).
A testemunha E… esclareceu que trabalhou nos dias 1 e 2 de Março entre as 12.30h e as 22.30h. Afirmou que teve de abrir um saco que estava no cofre para corrigir um erro. Mas afirma não se lembrar se depois preencheu um novo saco ou utilizou um saco já preenchido pela aqui arguida – vide fls. 84 e 227.
A testemunha F… declarou – vide fls. 229 - ter estado a trabalhar nos dias 2 e 3 de Março entre as 7.30h e as 17.30h. Confirmou que no dia 3 de Março a sua colega E… se deslocou à empresa e foi ao cofre onde permaneceu sozinha alguns minutos.
A testemunha J… disse – vide fls. 230 – que esteve de serviço nos dias 1 a 3 de Março. Contou que no dia 2 de Março, pelas 21h, solicitou a E… que procedesse à reposição de alguns produtos em falta, tendo a arguido ficado no lugar daquela durante uma hora. Nesse período não viu a arguida junto aos cofres.
K… – fls. 234 – declarou que no dia 1 de Março trabalhou até às 21h e no dia 2 trabalhou no período da manhã. Nesse dia não viu a arguida junto aos cofres.
Acresce que do depoimento de D… – vide fls. 72 - resulta que por vezes os sacos de transporte, já preenchidos, não eram utilizados. Nesse caso, ficavam guardados para utilizações posteriores. O que vem corroborar o depoimento de E… que disse não se lembrar se tinha preenchido um saco novo ou utilizado um já preenchido.
Ou seja, no período em que o dinheiro foi retirado dos sacos foram várias as pessoas que, tendo acesso aos cofres, estiveram a trabalhar.
E ainda que os dizeres constantes dos sacos tivessem sido escritos pela aqui arguida, tal facto não seria suficiente para a pronunciar porque, como referimos, bem pode ter acontecido que tais sacos tivessem sido preenchidos em datas anteriores e, porque não foram utilizados, estivessem disponíveis. Aliás, a testemunha E… disse mesmo não recordar se preencheu um saco novo ou utilizou um previamente preenchido pela aqui arguida.
Em resumo:
- não existe qualquer prova directa de que foi a arguida a autora dos factos;
- foram várias as pessoas que, tendo acesso aos cofres, trabalharam no período em que o dinheiro foi retirado;
- o facto de a letra dos sacos pertencer, eventualmente, à arguida não serve para lhe imputar a autoria porque poderiam tratar-se de sacos anteriormente preenchidos, que não foram utilizados e se encontravam nas instalações guardados.
Por tudo o exposto decido não pronunciar a arguida pela prática de um crime de abuso de confiança.
Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 1 Uc.
Notifique.
Transitado, arquive.”
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A primeira questão suscitada pela recorrente “C…, Lda.”, é a da omissão, na decisão instrutória de não pronúncia recorrida, da descrição dos factos que estão e dos que não estão suficientemente indiciados, o que em seu entender fere de nulidade essa mesma decisão, nos termos conjugados dos artigos 308º, nº 2 e 283, nº 3, al. b), ambos do Código de Processo Penal.
E, realmente, lida a decisão instrutória, vemos que apesar de nela se conhecer de mérito, concluindo-se pela não pronúncia da arguida, é por completo omitida a decisão fáctica, não se elencando ou por qualquer forma especificando, quais os factos do requerimento instrutório que se consideram e que não se consideram suficientemente indiciados.
Vejamos as consequências de tal omissão.
A instrução é uma fase processual que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, com vista a submeter ou não a causa a julgamento, com base em critérios de legalidade (cfr. artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Em casos como os dos autos, em que com a instrução se pretende reagir a um despacho de arquivamento do Ministério Público, logo o requerimento de abertura da instrução do assistente tem de conter, além do mais, os requisitos exigidos para a acusação, tal como constam do artigo 283º, nº3, do Código de Processo Penal (aplicável ao requerimento instrutório por força do disposto no nº2, do artigo 287º do mesmo diploma), entre os quais se contam a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
Nestes casos, é pois o requerimento de abertura de instrução que fixa o objeto do processo, definindo a temática dentro da qual se pode desenvolver a atividade investigatória e cognitória do Juiz de Instrução.
Daí decorrendo a razão de ser da proibição da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura da instrução, nos termos do disposto nos artigos 303º, nº3, e 309º, nº1, do Código de Processo Penal.
Dentro deste condicionalismo legal, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificados os pressuposto de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respetivos factos. De contrário, deverá ser proferido despacho de não pronúncia, nos termos do disposto no artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal.
No caso sub judice, foi proferido despacho de não pronúncia.
Tal despacho, enquanto ato decisório do juiz, tem necessariamente de ser fundamentado, o que significa que nele devem ser especificados os motivos de facto e de direito da respetiva decisão (cfr. artigo 97º, nº5, do Código de Processo Penal), de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
Aliás, no que respeita à decisão instrutória de não pronúncia que conheça do mérito, o cumprimento dessa exigência, nomeadamente no que respeita à indicação dos factos indiciados e não indiciados, é também essencial para a fixação dos efeitos do caso julgado.
Sendo que se pode dizer que a decisão instrutória de não pronúncia decidiu sobre o mérito da causa, sempre que, apesar de indiciados os factos descritos no requerimento de abertura da instrução, se conclua que eles não constituem crime ou que o arguido não pode ser responsabilizado criminalmente pelos mesmos.
Nestas situações, uma vez transitado o despacho de não pronúncia, o processo onde foi proferido só pode ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos prevenidos nos artigos 449º, nº2, e 450º, nº1, al. b), do Código de Processo Penal (Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 198 e 199) e, se for instaurado um outro processo pelos mesmos factos, o arguido poderá arguir, com sucesso, a exceção do caso julgado.
Já assim não acontecerá, quando a não pronúncia do arguido e o consequente arquivamento do processo se fica a dever à não indiciação dos factos essenciais para a integração dos elementos constitutivos do crime imputado ao arguido, no requerimento de abertura da instrução.
É que, neste último caso, porque se trata de insuficiência de prova indiciária, caso surjam novos elementos de prova, o processo pode ser reaberto, assim como pode, também, ser instaurado um novo processo, enquanto não ocorrer a prescrição.
Consequentemente - e como se escreveu no acórdão do TRG, de 27.09.2004, proferido no proc. n.º1008/04.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves (disponível em www.dgsi.pt) -, a reabertura do processo arquivado pelo despacho de não pronúncia depende indubitavelmente dos respectivos pressupostos factuais. É por essa razão que o Sr. Juiz de Instrução, ao proferir despacho de não pronúncia pela não verificação dos pressupostos materiais da punibilidade do arguido, deve descrever e especificar quais os factos que considera indiciados e os que considera não indiciados, indicando os respectivos fundamentos ou motivação, pois só dessa a forma se podem definir os verdadeiros efeitos do caso julgado e se garantem cabalmente os direitos de defesa”.
Ora, no caso sub judice, já vimos que o despacho de não pronúncia recorrido, apesar de conhecer de mérito, decidindo que a arguida não pode ser responsabilizada pelos factos que lhe são imputados, não enumera os factos alegados no requerimento de abertura da instrução que considera suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados, limitando-se a tecer considerações sobre a prova produzida.
Como consequência de tal omissão, a recorrente aponta a nulidade da decisão instrutória, no que é acompanhada por parte significativa da doutrina e jurisprudência que também assim se pronuncia, embora alguns entendendo ser a nulidade insanável e de conhecimento oficioso e, outros, sanável e dependente de arguição (cfr. entre outros, a título exemplificativo, os acórdãos, ambos deste TRP, de 17.02.2010, proferido no proc. nº 58/07.1TAVNH.P1, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo e de 21.01.2015, proferido no processo nº 9304/13.1TDPRT.P1, relatado pela Desembargadora Lígia Figueiredo, disponíveis em www.dgsi.pt).
Não perfilhamos de tal posição, antes seguindo aqueles que vêm na omissão da descrição factual do despacho de não pronuncia que conhece de mérito uma irregularidade. (Cfr., entre outros, a título exemplificativo, o acórdão do TRG, datado de 09.07.2009, proferido no proc. nº 504/07.4GBVVD-A.G1, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho e o acórdão deste TRP, de 10.12.2014, proferido no proc. nº 281/12.7TAVLG.P1, relatado pela Desembargadora Luísa Arantes)
Em matéria de invalidades, o nosso sistema processual penal consagra o princípio da legalidade das nulidades, plasmado no nº 1 do artigo 118º, do Código de Processo Penal, segundo o qual, a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei. Sendo o ato irregular nos casos em que a lei não determinar expressamente a nulidade (n.º 2 do mesmo artigo).
Ora, o certo é que não há norma que determine a nulidade como consequência da omissão ou deficiência da fundamentação das decisões jurisdicionais em geral, nem, tão pouco, qualquer norma específica que comine com a nulidade a omissão ou deficiência de fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia.
Contrariamente, aliás, com o que acontece com as sentenças e decisões instrutórias de pronúncia, nas quais se impõe a enunciação dos factos provados/indiciados e não provados/indiciados, sob pena de nulidade (cfr. artigos 379º, nº 1, al. a) e 283º, nº 3, ex vi do artigo 308º, nº 2, todos do Código de Processo Penal).
Afigura-se-nos, assim, que a omissão da descrição dos factos indiciados e/ou não indiciados na decisão instrutória de não pronúncia que conhece de mérito, configura apenas uma irregularidade.
Só que essa irregularidade influi na decisão da causa, na medida em que só depois da enumeração dos factos indiciados e/ou não indiciados se podia decidir se os primeiros são ou não suficientes para a sujeição da arguida a julgamento, pelo crime imputado no requerimento instrutório.
Sendo que a omissão da descrição fática na decisão instrutória de não pronúncia, consubstancia um hiato parcial da respetiva decisão jurisdicional, que afeta o seu valor e impede que o tribunal ad quem sobre ela se pronuncie.
Impõe-se, assim, ordenar a reparação de tal irregularidade, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso, julgando inválida a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra, que supra a omissão consistente na falta da enumeração dos factos indiciados e/ou dos não indiciados, por referência aos alegados no requerimento de abertura da instrução.
Sem custas.
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Porto, 6 de maio de 2015
(Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal)
Fátima Furtado
Elsa Paixão