Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1100/08.4TBSJM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: PERÍCIA COLEGIAL
CARTA ROGATÓRIA
Nº do Documento: RP201010251100/08.4TBSJM-A.P1
Data do Acordão: 10/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I- Admitida a realização de perícia sobre bens móveis localizados no estrangeiro, não deve recair sobre a parte onerada com o respectivo ónus probatório, o encargo de transportar os bens a examinar para Portugal, sob pena de poder ocorrer violação da garantia do direito à prova.
II- Localizando-se os bens na Dinamarca, deve ser enviada carta rogatória às autoridades dinamarquesas competentes, para realizarem a perícia, aplicando-se a Convenção da Haia de 18/03/1970, sobre a obtenção de provas no estrangeiro em matéria civil ou comercial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º1100/08.4TBSJM-A.P1 (Apelação)
Apelante: B……….
Apelada: C……….


SUMÁRIO (elaborado pela Relatora):
I- Admitida a realização de perícia sobre bens móveis localizados no estrangeiro, não deve recair sobre a parte onerada com o respectivo ónus probatório, o encargo de transportar os bens a examinar para Portugal, sob pena de poder ocorrer violação da garantia do direito à prova.
II- Localizando-se os bens na Dinamarca, deve ser enviada carta rogatória às autoridades dinamarquesas competentes, para realizarem a perícia, aplicando-se a Convenção da Haia de 18/03/1970, sobre a obtenção de provas no estrangeiro em matéria civil ou comercial.



Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I – RELATÓRIO
No acção que corre termos com processo comum, sob a forma ordinária, com o n.º 1100/08.4TBSJM, no ..º Juízo do Tribunal de São João da Madeira, intentada por C………. contra B………. esta, no requerimento probatório previsto no artigo 512.º do Código de Processo Civil (CPC), requereu, ao abrigo dos artigos 569.º e 577.º do mesmo Código, a realização de perícia colegial, tendo como objecto a verificação da existência de defeitos nos produtos que lhe foram fornecidos pela D………., Ld.ª, que se encontram na Dinamarca.
Requereu, ainda, ao abrigo dos artigos 1.º e 3.º, alínea g), in fine, da Convenção da Haia Sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial, de 18/03/1970, que a perícia seja realizada na Dinamarca, expedindo-se para o efeito carta rogatória.
Juntou as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da perícia e indicou um perito, domiciliado na Dinamarca.
Pronunciou-se a autora sobre tal requerimento, requerendo que a perícia seja realizada em Portugal, onde a ré deverá apresentar o equipamento objecto da perícia, admitindo, porém, suportar metade dos custos, sem prejuízo do direito ao reembolso se acção vier a ser julgada procedente.
Para fundamentar tal pedido, invoca, no essencial, que não tem possibilidades financeiras de custear a deslocação de um perito e do seu Advogado à Dinamarca; não tem qualquer contacto nesse país para poder indicar um perito local ou um Advogado que lá a represente; que o custo do transporte do objecto da perícia para Portugal, incluindo o respectivo armazenamento pelo tempo necessário, que diz não superior a uma semana, não custará mais de €3.000,00, valor largamente inferior aos custos que terá de suportar se a diligência se realizar na Dinamarca, já terá se suportar os custos do perito e do Advogado; que a perícia realizada em Portugal seria menos dispendiosa por não ser necessária a tradução e imprimia maior celeridade processual aos autos.
Por todas estas razões, concluiu que a realização da perícia em Portugal se revela absolutamente essencial ao efectivo exercício do contraditório.
Sobre a questão foi proferido o despacho de fls. 23 a 25 deste apenso (fls. 331 a 333 do processo principal), que determinou a realização da perícia em Portugal, ordenando à ré que, em 30 dias, disponibilizasse os objectos a peritar, em local da comarca onde corre termos o processo.
Para fundamentar a decisão, o tribunal pronunciou-se nos seguintes termos:
“[…]
Considerando a natureza dos bens a peritar (móveis);
Considerando as extremas dificuldades logísticas que a perícia levantaria caso ocorresse na Dinamarca – traduzida na necessidade do perito do Tribunal se deslocar àquele país, a necessidade de ser acompanhado por um tradutor, a necessidade de ser obtido alojamento, a necessidade de providenciar transporte, a necessidade de providenciar por alimentação e todas as demais situações que, muito provavelmente (segundo um juízo de experiência comum), apareceriam;
Considerando o facto de que o ónus da prova relativamente à existência de defeitos compete à R.;
Considerando que, num juízo de proporcionalidade (atendendo ao valor da causa € 272.047,36 e a dilação dilação temporal que o recurso à Convenção de Haia relativa à obtenção de provas no estrangeiro em matéria civil e comercial provocaria no regular andamento do processo) não é desadequado impor à R., o ónus de colocar à disposição do Tribunal os objectos em questão;
[…]”
Inconformada, apelou a ré, pugnando pela revogação do despacho e pela sua substituição por outro que determine a realização da perícia em Portugal.
Juntou, ao abrigo do artigo 524.º do CPC, um documento (fls. 40 e 41 deste apenso).
Contra-alegou a autora, defendendo a manutenção do despacho recorrido, sublinhando que se trata de um despacho proferido ao abrigo de um poder discricionário (artigo 265.º, n.º 1 do CPC), que não violou qualquer norma legal ou que se manifeste uma situação de desvio de poder.

Conclusões da apelação:
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II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objecto do Recurso:
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objecto do recurso nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1 do CPC, redacção actual, sem prejuízo do disposto no artigo 660.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, a questão essencial a decidir é se a perícia deve ser realizada na Dinamarca ou em Portugal.

B- De Facto:
A matéria de facto relevante é a que consta do antecedente relatório.
Acresce, ainda, a que resulta do documento junto com as alegações (o documento já constava do processo antes da fase de recurso, conforme se depreende do despacho que fixou ao recurso efeito suspensivo - cfr. fls. 3 e 4 -, razão pela qual não cabe emitir pronúncia nesta sede sobre a sua admissibilidade), donde resulta que foi orçamentado em €4.529.60 (IVA incluído) o custo do transporte dos objectos a peritar, da Dinamarca até Portugal, e em €3.774,67 (Isento de IVA), o valor do transporte dos mesmos objectos, de Portugal até à Dinamarca.

C- De Direito:
Enunciada a questão decidenda, importa, agora, escalpelizar as várias questões que a mesma suscita.

I. Os bens a examinar encontram-se na Dinamarca, visando a perícia a percepção de factos por meio de peritos, com conhecimentos especiais (artigo 288.º do Código Civil), de forma a aferir da existência de defeitos num conjunto (segundo refere a apelante, composto por um milhar) de panelas e frigideiras, vendidas à ré, por uma empresa portuguesa, a D………., Ld.ª (resultando da consulta da p.i. que a autora alega ter adquirido, através de cessão de créditos, a posição jurídica da vendedora).

II. Está, pois, em causa prática de um acto processual, de cariz probatório.
Sendo a prova pericial um dos meios de prova tipificados no CPC (artigos 568.º a 591.º), que, a par, dos demais previstos na lei, terão a virtualidade de demonstrar a realidade dos factos, conforme menciona o artigo 341.º do Código Civil, e considerando que o que está em causa é o exame de objectos com vista a detectar defeitos, é manifesto que este meio probatório, não se sobrepondo aos demais, já que é livremente apreciado pelo tribunal (artigo 389.º do Código Civil), pode revelar-se decisivo para o desfecho do litígio.

III. Ora bem, perante este quadro, o tribunal recorrido optou por ordenar a vinda dos bens para Portugal, impondo à ré o ónus de custear a seu transporte.
Antes de analisarmos os fundamentos do despacho, importa tecer algumas considerações, ainda que muito genéricas, sobre os instrumentos jurídicos que se aplicam em sede de obtenção de provas em matéria civil ou comercial, relativamente a bens que se encontram no estrangeiro.
a)- Na concretização dos objectivos enunciados no artigo 65.º, alínea a), 2.º travessão, do TCE, concernentes à melhoria e simplificação dos procedimentos com vista à cooperação judiciária na obtenção de provas, foi aprovado o Regulamento (CE) n.º 1206/2001 do Conselho, de 28/05/2001, relativo à cooperação judiciária entre os Estados-membros no domínio da obtenção de prova em matéria civil e comercial.[1]
No dizer de Teixeira de Sousa, este regulamento “…tem por finalidade simplificar e acelerar a cooperação entre os tribunais desses Estados no domínio da obtenção de provas (…) Visa, em concreto, assegurar o direito á prova que decorre da garantia do processo equitativo que se encontra estabelecida no art. 6.º, n.º 1, da CEDH e que é genericamente recebida enquanto princípio geral de direito comunitário, a par de outros direitos e garantias fundamentais, pelo art. 6.º, n.º 2, do TUE.” [2]
O Regulamento é vinculativo para todos os Estados-membros da União Europeia, com excepção da Dinamarca (artigo 1.º, n.º 3).
Assim sendo, nas relações entre Portugal, onde o mesmo se aplica, e a Dinamarca, continua a vigorar a Convenção Sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial, adoptada em Haia, em 18/03/1970 (que passaremos a designar por Convenção da Haia de 1970, ou apenas por Convenção).
Esta Convenção, vigora em Portugal desde 11/05/1975 [3] e, nos termos do artigo 8.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (princípio da recepção automática, mas condicionada[4] à aprovação ou ratificação), vigora na ordem interna e vincula internacionalmente o Estado Português.
Por sua vez, a mesma Convenção também vigora na Dinamarca, desde 07/10/1972.[5]
b)- Como bem se percebe, trata-se de uma Convenção, um instrumento de Direito Internacional Privado, e não de um Regulamento emitido no seio da União Europeia.
Como se sabe, o Regulamento é obrigatório em todos os seus elementos e é directamente aplicável em todos os Estados-membros (artigo 249.º do TCE).
Assim, se ao presente caso fosse aplicável o Regulamento (CE) n.º1206/2001, nem sequer o Estado Português se poderia socorrer do seu direito interno ou convencional, para obter prova que devesse ser obtida num outro Estado-membro. [6]
Ou seja, no caso em apreço, a prova teria de ser obtida no local onde se encontram os bens a examinar.
c)- Não sendo essa a situação, há que atentar no artigo 1.º da Convenção da Haia de 1970, que dispõe do seguinte modo:
“Em matéria Civil ou Comercial, a autoridade judiciária de um Estado contratante pode, de harmonia com as disposições da sua legislação, requerer por carta rogatória à autoridade competente de um outro Estado contratante a prática de qualquer acto de instrução ou de quaisquer outros actos judiciários.” (sublinhado nosso).
Esta regra está em perfeita harmonia com o direito interno português, já que o artigo 176.º, n.º 1 do CPC também prescreve que, quando a prática de actos processuais exigirem a intervenção de serviços judiciários de autoridade estrangeira, pode a realização do acto ser solicitada a essa autoridade estrangeira, através de carta rogatória (sublinhado nosso).
Trata-se, conforme refere a letra do preceito, de uma faculdade, cabendo ao tribunal, no uso desse poder discricionário conferido pela norma, e em face do seu prudente arbítrio e perante as circunstâncias concretas do caso (artigo 156.º, n.º 4 do CPC), decidir se deve ou não ser expedida a carta rogatória.
d)- Assim, também à luz da Convenção, cabe ao Estado contratante decidir se, perante o caso concreto, lança mão das regras da Convenção para obter a prova no outro Estado, ou se ao invés, e na pressuposição de tal ser exequível, ordena a realização do acto perante as instâncias judiciárias nacionais.
Concluiu-se, assim, contrariamente ao defendido pela apelante, que a realização da perícia requerida, em Portugal, não viola o artigo 8.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, porque não existe qualquer violação do princípio da recepção automática do Direito Internacional Privado, já que a Convenção da Haia de 1970, apesar de vigorar na ordem interna, transfere a decisão quanto à sua aplicação, para as regras do direito interno de cada Estado contratante.
Está, portanto, tudo em aberto. Impondo-se, então, apreciar os fundamentos do despacho recorrido.

IV. Argumenta o tribunal recorrido com as dificuldades logísticas que a perícia levada a efeito no estrangeiro suscita (deslocação do perito do tribunal e do tradutor, pagamentos diversos relacionados com o transporte, alojamento, etc.).
Também a apelada suscita idênticas dificuldades com a deslocação do seu perito, tradutor, mandatário, etc.
Estes argumentos não colhem. Radicam, salvo o devido respeito, numa incorrecta interpretação do que está regulado na Convenção.
Conforme está expresso no artigo 9.º, parágrafos 1 e 2, a autoridade judiciária que procede à execução de uma carta rogatória aplicará as leis do seu país no que diz respeito às formalidades a seguir, excepto se for pedida uma forma especial pelo Estado requerente.
Assim, e embora se desconheça as concretas regras dinamarquesas sobre a matéria, afigura-se-nos razoável pressupor que, se o tribunal português solicitar a realização de uma perícia colegial, com nomeação de um perito por cada parte e outro pelo tribunal, pedindo que seja aquela autoridade a designar o perito do tribunal ou da parte, se esta assim o pretender, as autoridades dinamarquesas agirão em conformidade com esse pedido.
Na verdade, só assim não seria se tal procedimento fosse incompatível com o direito do Estado requerido, com a praxe judiciária ali seguida ou com alguma dificuldade de ordem prática, conforme menciona o parágrafo 2 do artigo 8.º da Convenção.
Porém, as partes nada invocam quanto a esses aspectos, pelo que não se justifica dar prevalência a algo tão hipotético.
Por isso, no que concerne ao perito a nomear pelo tribunal, e pela parte, se esta não quiser ou não puder fazê-lo, não se afigura que se justifique a objecção do tribunal recorrido.
O mesmo se aplica ao tradutor, já que a carta rogatória é traduzida em Portugal, pela parte, enviada através da autoridade central portuguesa competente, no caso, a Direcção-Geral dos Serviços Judiciários do Ministério da Justiça,[7] não sendo necessário, para este efeito, a deslocação do tradutor. E, naturalmente, para os actos realizados no Estado estrangeiro sempre ali poderá ser nomeado um tradutor.

V. Subentende-se, ainda, dos considerandos expressos no despacho recorrido que, cabendo à ré o ónus de prova quanto à existência de defeitos nos bens a examinar, lhe caberá apresentar os bens, o que implicitamente, implica que suporte os custos com a apresentação.
Não podemos subscrever este entendimento.
O ónus de prova, à falta de noção legal, e atendendo à sua função, delineada nos artigos 341.º a 344.º do Código Civil, pode definir-se como um encargo para aquele que, segundo as regras de direito probatório material, tem de provar a factualidade alegada e, que, se for incumprido, pode acarretar-lhe prejuízo, já que sobre ele recai o risco da prova frustrada.
Este risco não se reporta aos custos ou encargos com a actividade probatória, enformada pelos vários meios probatórios previstos na lei (artigos 349.º a 396.º do Código Civil), e entre eles a prova pericial, já que os mesmos serão suportados pelas partes, em conformidade com as regras vigentes em matéria de custas.
Às partes compete requerer a produção das provas. Nalguns casos, apresentá-las (cfr. artigos 512.º, 523.º, 526.º, 528.º, n.º 2 do CPC); noutros, requerer a apresentação pela parte contrária ou por terceiro (cfr. artigos 528.º, 531.º, 535.º do CPC).
Compete ao tribunal admitir ou rejeitar os meios probatórios e, admitidos, providenciar pela sua realização, em conformidade com o disposto na lei.
No caso da prova pericial, a sua realização é, conforme refere o artigo 568.º, n.º 1 do CPC, requisitada a outras instituições ou realizada por peritos que o próprio tribunal encarregue de efectuar tal diligência, a pedido da partes ou oficiosamente, mas nunca a produção deste meio probatório fica a cargo e sob a responsabilidade das partes.
Ademais, a subscrever-se o entendimento do tribunal estaria posta em causa a garantia do direito à prova.
Este direito, “…é um pilar fundamental do direito à protecção jurídica por via judiciária, que compreende não só o direito das partes a disporem no processo dos meios de prova sobre os factos alegados, mas também o direito ao modo de participarem na produção da prova, nos termos previstos na lei, bem como o direito de aproveitarem a prova produzida no processo, mesmo emanada da parte contrária, segundo o princípio da aquisição processual, proclamado no artigo 515.º do CPC …”[8]
Portanto, impor a uma parte, uma espécie de actividade preparatória da produção da prova, manifestamente onerosa para a mesma, pode significar, na prática, impedi-la de beneficiar de um meio probatório, com a agravante de contra ela pender o respectivo ónus probatório.

VI. Aduz, ainda, o tribunal recorrido que, num juízo de proporcionalidade, atendendo ao valor da causa (€272.406,36), à dilação temporal que o recurso à Convenção provocaria no regular andamento da causa, não é desadequado impor à ré o ónus de colocar à disposição do tribunal os objectos em questão.
O argumento do valor da acção é incompreensível, por não se entender o que o tribunal tinha em mente quando mencionou este vector.
De qualquer modo, independentemente do valor da acção e do custo do transporte, orçamentado em mais de €8.300,00, valor inegavelmente considerável, independentemente do valor que está em jogo no processo, não tem suporte legal fazer recair sobre a parte esse custo, apenas porque requereu um meio de prova legalmente admissível.
No que concerne à maior dilação que o recurso à Convenção provocaria, para além de não ser absolutamente seguro que assim seja, já que decorre das regras da experiência, que os actos periciais realizados nos tribunais nacionais, arrastam-se, por vezes, ao longo de muitos meses, sobretudo se a matéria for muito técnica, se as partes requererem esclarecimentos ou mesmo a segunda perícia, é um argumento que não colhe, porque, a ser assim, estaria sempre afastada a possibilidade de accionar os instrumentos de cooperação judiciária quanto à obtenção de provas no estrangeiro.
Acresce que, o artigo 9.º, parágrafo 3 da Convenção, prescreve que as cartas rogatórias deverão ser cumpridas urgentemente, estabelecendo, assim, à partida, uma garantia de maior celeridade do que o direito interno que, no caso, não atribui ao acto pericial carácter urgente.
Por todas estas razões, não podemos subscrever a fundamentação do despacho recorrido.
Importa, contudo, analisar os fundamentos da oposição da autora ao pedido de expedição da carta rogatória, já que o despacho recorrido passou à margem dos mesmos.

VII. A autora argumenta com várias razões, que sintetizamos:
a)- Impossibilidade de custear as despesas com a deslocação do seu perito e mandatário, para além de não ter contactos na Dinamarca que lhe permitam indicar um perito e um mandatário local que a represente, pelo que, desse modo, fica comprometido o efectivo exercício do contraditório.
b)- Desproporcionalidade entre esses custos e o custo do transporte dos objectos para Portugal que, em seu entender, não será superior a €3.000,00.
c)- Maior onerosidade da diligência por ser necessária a tradução dos documentos e menor celeridade processual.
Algumas destas questões já antes foram abordadas, não sendo curial repetir o já se disse quanto à nomeação do perito e morosidade na execução da carta rogatória.
Acrescenta-se que, por força do artigo 14.º, parágrafos 1.º e 2.º da Convenção da Haia de 1970, quem suporta o reembolso de taxas ou custas de qualquer natureza, incluindo o pagamento a peritos e intérpretes, a serem exigidas pelo Estado requerido, é o Estado requerente e não as partes.
No que concerne à deslocação do mandatário da autora, o artigo 7.º contempla a possibilidade das partes e os seus representantes poderem estar presentes na diligência, podendo ser avisados directamente, se a autoridade do Estado requerente assim o solicitar, pois tal comunicação não é automática.[9]
Daqui decorre, sem margem para dúvida, que está salvaguardado o princípio do contraditório,[10] ainda que tenha de se coadunar com as formalidades e trâmites seguidos no Estado requerido, com a salvaguarda prevista no parágrafo 2 do artigo 9.º já antes mencionado.
Naturalmente, que a parte terá de suportar os custos com a sua deslocação e/ou do seu representante.
Como também terá de suportar os custos com a tradução, embora os mesmos venham a ser tidos em consideração aquando da elaboração da conta de custas.
Alega a autora que não tem meios para o efeito. Porém, nada mais diz ou prova sobre essa alegada falta de meios. Assim sendo, esse argumento, ainda que deva ser ponderado, não pode ser tido como decisivo na decisão a proferir.
Finalmente, quanto à invocada desproporcionalidade de custos:
A ré, contrariamente à autora, juntou um orçamento quanto aos custos que teria de suportar com a deslocação dos objectos. A autora discorda desse orçamento, mas não aduziu prova que o infirme e, para além disso, também nem sequer mencionou em quanto estima as despesas que invoca não poder suportar.
Consequentemente, a aferição da alegada desproporcionalidade está inviabilizada.
Acresce, ainda, e não podemos também descurar este aspecto, que a aceitar-se a argumentação da autora no que concerne às dificuldades invocadas, logísticas e financeiras, os instrumentos de cooperação judiciária em matéria de obtenção de provas no estrangeiro, ficariam desprovidos de qualquer aplicação, quando afinal, foram criados exactamente para assegurar o direito à prova, pressuposto de um processo equitativo, como já se referiu.
Por todo o exposto, não se vislumbra razão ponderosa, seja jurídica ou económica, que imponha a solução adoptada no despacho recorrido, nem sequer o bom senso o aconselha, o que também releva na aplicação do direito.
Na verdade, parece absurdo que, podendo a perícia ser realizada no local onde se encontram os objectos, nomeadamente com o cumprimento de todas as formalidades legais, sejam as vigentes no Estado requerido, sejam as vigentes no Estado requerente, conforme for solicitado, se ordene a deslocação de tão elevado número de objectos para serem examinados em Portugal e remetidos novamente ao local onde se encontravam, distando entre os dois lugares alguns milhares de quilómetros.
Em conclusão, a apelação procede, impondo-se a revogação do despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que ordene a expedição de carta rogatória às autoridades dinamarquesas competentes, com vista à realização da prova pericial admitida nos autos.
Dado o decaimento, as custas da apelação serão suportadas pela apelada (artigo 446.º, n.º 1 e 2 do CPC).

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que ordena a realização da perícia através da expedição de carta rogatória às autoridades competentes dinamarquesas, nos termos sobreditos.
Custas pela apelada.

Porto, 25 de Outubro de 2010
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Ana Paula Pereira Amorim
José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira

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[1] Publicado no JOCE L 174, de 27/06/2001.
[2] Teixeira de Sousa, “Linhas Gerais do Regulamento (CE) n.º 1206/2001 relativo à obtenção de provas em matéria civil e comercial”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 8, Out/Dez 2004, páginas 34 a 43. Veja-se, ainda, Salazar Casanova, “Cooperação Judiciária Europeia no Domínio da Obtenção de Prova”, in Scientia Ivridica, Set/Dez 2004, Tomo LIII, n.º 300, páginas 559 a 575 e João Aveiro Pereira, “Cooperação Judiciária Europeia em matéria civil e comercial – Obtenção de Provas”, in Direito e Justiça, 2002, vol. XVI, Tomo II, páginas 113 a 116.
[3] Aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 764/74 e publicada no DR I, n.º 302, 2.º suplemento, de 30/12/1974.
[4] Neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Coimbra Editora, 2007, página 255.
[5] Cfr., http://www.hcch.net/index_fr.php?act=conventions.status&cid=82
[6] Teixeira de Sousa, ob., cit., página 36. Cfr. Considerando (17) e artigo 21.º, n.º 1 do Regulamento.
[7] Cfr. Aviso publicado no DR, n.º 122, de 26/05/1984.
[8] Manuel Tomé Soares Gomes, “Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no Processo Civil”, in Revista do CEJ, 2.º semestre 2005, n.º 3, Almedina, página166.
[9] Cfr. Rapport Explicatif de M. PHILIP W. AMRAM, em http://hcch.e-vision.nl/upload/expl20f.pdf, que refere: “…cette communication n´est pas automatique (…) La demande peut être contenue dans la commission rogatoire elle-même ou dans un document qui accompagne celle-ci, ou enfin tranmise séparément.”
[10] Cfr., neste sentido, Ac. STJ, de 24.09.1996, proc. 97A340, em www.dgsi.pt