Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1385/23.6T8STS-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Nº do Documento: RP202403051385/23.6T8STS-C.P1
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O caso julgado consubstancia uma exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que conduz à absolvição do réu da instância, cfr. art.ºs 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. i), 578.º e 278.º, n.º 1, al. e), todos do C.P.Civil, ex vi do art.º 17.º do CIRE.
II – A causa de pedir é o facto jurídico concreto de onde procede a pretensão dos autos.
III - Se o passivo invocado para fundamentar o atual pedido de insolvência já existia é essencialmente o mesmo que existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro ativo relevante tiver acrescido àquele que existia naquele momento, a pretensão formulada (delimitada pelo pedido e respetiva causa de pedir) é idêntica àquela que já foi reconhecida e declarada na anterior sentença.
IV - Por via deste novo pedido de insolvência, ao que parece, pretendia-se a obtenção de uma segunda oportunidade de exoneração do passivo restante, mas a tal obsta a verificação da exceção do caso julgado, sendo que quanto à recusa de concessão da exoneração do passivo restante em sede da anterior insolvência “sibi imputet”.
V- A exoneração do passivo está sempre dependente da existência de um processo de insolvência e pressupõe, naturalmente, que nesse processo seja declarada a insolvência do devedor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 1385/23.6 T8STS-C.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 6
Recorrente – AA
Recorrida – BB
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntas – Desemb. Anabela Miranda
Desemb. João Diogo Rodrigues

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)

I – BB, divorciada, residente na Travessa ..., ..., habitação ..., ... Maia, freguesia ..., concelho da Maia, requereu no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso e, nos termos do disposto pelos artigos 3.º n.º 1, 18.º n.º 1, 23.º e ss. e, ainda pelos artigos 235.º e ss., a sua declaração de insolvência, assim como a exoneração do passivo restante e aí, depois do tribunal ter ouvido a requerente por ter ponderado indeferir a petição inicial de insolvência apresentada pela requerente por entender verificar-se a exceção de caso julgado, por sentença de 30.05.2023, foi proferida sentença de onde consta: “ Pelo exposto:
a) Declaro a insolvência de BB, divorciada, nif ..., residente na Travessa ..., ..., habitação ..., ... Maia, freguesia ..., concelho da Maia.
b) Fixo a residência da insolvente na Travessa ..., ..., habitação ..., ... Maia, freguesia ..., concelho da Maia, para onde serão enviadas as notificações eventualmente necessárias, devendo este comunicar de imediato qualquer alteração desta.
c) Nomeio administrador da insolvência mediante sorteio eletrónico o Sr. Dr. CC, inscrito na Lista dos administradores da insolvência (artigos 36.º, al. d) e 52.º, n.º 1, do CIRE e 13.º da Lei 22/2013, de 26/2).
d) Para já não se procede à nomeação de qualquer comissão de credores, atento o reduzido número de credores e a eventual simplicidade da liquidação ou mesmo ausência dela.
e) Determino a entrega imediata pela devedora ao administrador da insolvência dos documentos referidos no n.º 1 do art.º 24.º, n.º 1, do CIRE, que ainda não constem dos autos.
f) Decreto a apreensão, para imediata entrega, ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade da devedora e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, nos termos do disposto no art.º 149.º, n.º 1, do CIRE., sem prejuízo do disposto no n.º 1, do art.º 150.º, do mesmo diploma. Caso os bens já tenham sido vendidos, a apreensão tem por objeto o produto da venda caso este ainda não tenha sido pago aos credores ou entre eles repartido – artigos 36.º, al. g), 149.º, n.º 1, als. a) e b), e n.º 2 do CIRE.
g) Não declaro aberto o incidente da qualificação de insolvência, porquanto não resultam dos autos elementos que justifiquem, por ora, essa abertura – artigo 36.º, al. i), do CIRE.
h) Fixo em 30 dias o prazo para os credores apresentarem as reclamações de créditos, ficando os mesmos desde já advertidos que devem comunicar prontamente ao administrador da insolvência as garantias reais de que beneficiem.
i) Advirtam-se os devedores da insolvente de que as prestações a que estejam obrigados deverão ser feitas ao administrador da insolvência e não ao requerente.
j) Avocam-se quaisquer processos de execução fiscal entretanto instaurados contra a insolvente, nos termos do disposto no artigo 181.º, n.º 2, do Código de Processo Tributário.
k) Não se designa dia para realização da Assembleia de Apreciação do Relatório a que alude o art.º 156.º do CIRE, ao abrigo do art.º 36.º, n.º 1, al. n), parte final, do CIRE, dada a previsível composição da massa insolvente, o diminuto número de credores, o facto da devedora não colocar qualquer hipótese de recuperação e a simplicidade aparente das questões que serão equacionadas. Consequentemente, ao abrigo do disposto no artigo 36.º, n.º 5, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas o presente processo terá a seguinte marcha: a) Fixa-se o prazo de 45 dias para o Sr. Administrador de Insolvência juntar o relatório a elaborar nos termos do artigo 155.º do CIRE e comprovar a sua notificação aos credores e insolvente; b) Fixa-se o prazo de 10 dias, a contar do termo do prazo fixado para o Sr. Administrador de Insolvência juntar o seu Relatório, para os credores se pronunciarem sobre o pedido de exoneração do passivo restante, devendo ser aberta conclusão findo tal prazo; c) Se a proposta do Sr. Administrador de Insolvência for a liquidação, terão os credores o prazo de 10 dias após a notificação do indicado relatório para sobre ela se pronunciarem, com a advertência de que nada sendo dito, se determinará o prosseguimento do processo para liquidação (sem prejuízo do disposto no n.º 7 do art.º 233.º do CIRE); d) O prazo para o Sr. Administrador de Insolvência apresentar as Listas previstas no artigo 129.º, n.º 1, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, decorre da norma em causa.
l) Determino o pagamento ao Sr. Administrador de Insolvência supra nomeado da quantia de 2 UC a título de provisão para despesas e de €2.000,00 a título de remuneração, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 60.º, n.º 1, do CIRE, 29.º, n.º 1, 3 e 8, do Estatuto do Administrador de Insolvência e art.º 1º, n.º 1 e 3.º da Portaria n.º 51/2005, de 20.1, quantias que deverão ser adiantadas pelo IGFEJ nos momentos legalmente fixados, depois de o mesmo confirmar a aceitação do cargo e (no que respeita à segunda prestação da remuneração fixa) após prévia confirmação de iliquidez da massa insolvente.
m) Relega-se para momento processual oportuno a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante – cfr. art.º 236.º, n.º 4, do CIRE.
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Custas pela massa insolvente, nos termos do disposto no art.º 304.º do CIRE.
Uma vez que o alegado património da requerente é praticamente inexistente, fixa-se, por ora, o valor da ação em €5.000,00, sem prejuízo da sua oportuna correção – art.ºs 15.º do CIRE e 305.º, n.ºs 1 e 2, 306.º, n.º 2 e 308.º a contrario, do CPC.
Notifique, sendo o Sr. administrador da insolvência nomeado para, no prazo de 10 dias, confirmar a aceitação do cargo e indicar o seu número de contribuinte e o regime de tributação a que está sujeito para processamento da remuneração.
O registo processual da sentença será assegurado nos termos do art.º 153.º, n.º 4 do CPC, na redação dada pelo DL n.º 97/2019, de 26.7.
Proceda-se à notificação da presente sentença á insolvente, ao Ministério Público e ao Instituto da Segurança Social.
Cite os cinco maiores credores indicados pela insolvente nos termos previstos no art.º 37.º, n.º 3 e 4, e os demais credores editalmente, com as formalidades determinadas pela incerteza de pessoas, com anúncio no Portal Citius, designando-se o número do processo, indicando-se a possibilidade de recurso ou de dedução de embargos, advertindo-se que o prazo de recurso e dos embargos se conta da publicação do anúncio.
Cumpra-se o disposto no art.º 37.º, n.º 5, do CIRE.
Cite-se a Repartição de Finanças Competente – artigos 180.º e 181.º do Código de Processo Tributário.
Dê publicidade à sentença nos termos do disposto no art.º 38.º do CIRE.
Solicite o registo oficioso da declaração da insolvência, bem como da nomeação do Sr. Administrador de insolvência na Conservatória do Registo Civil.
Proceda-se ao registo da declaração da insolvência, bem como da nomeação do Sr. Administrador da insolvência no registo informático de execuções estabelecido no Código de
Processo Civil.
Comunique a declaração de insolvência ao Banco de Portugal.
Diligencie a secção pela inclusão das informações respeitantes à declaração de insolvência, à identificação do Sr. Administrador da insolvência e do prazo concedido para as reclamações na página informática do tribunal”.
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Não se conformando com tal decisão dela veio o credor da insolvente (e seu ex-marido) AA recorrer de apelação pedindo que a sua revogação e substituição por outra que julgue improcedente o pedido de declaração de insolvência da devedora.
O apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objeto a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” que declarou a insolvência de BB.
2. Foi entendimento que não se verifica a exceção de caso julgado, com o consequente indeferimento liminar da petição inicial. Isto porque, foi entendimento, passa-se a citar “efetivamente, os credores agora são exatamente os mesmos, ainda, que muitos se mantenham, e a situação de insolvência causa de pedir é igual e exatamente a mesma, já que a requerente logrou pagar alguns dos seus débitos, com o aquela se alterou em idêntica medida.”
3. O recorrente ressalvado o devido respeito por melhor opinião, entende que fez uma incorreta interpretação e aplicação do Direito, pois deveria ter decidido verificada a referida exceção.
4. Aliás, essa questão em face da devedora já ter sido declara insolvente, foi levantada oficiosamente pelo Tribunal, tendo a devedora se pronunciado sobre essa mesma questão.
5. Sendo que, a declaração da devedora sobre tal questão é desde logo esclarecedora e deveria ter tido como consequência decisão diversa. A devedora sobre tal matéria declarou o seguinte: “Acontece que, não obstante a requerente não tenha pago nenhum dos créditos reconhecidos no âmbito da insolvência anterior, a realidade é que realizou o pagamento de dívidas que surgiram posteriormente e que não mencionou, precisamente por já não se encontrarem em divida”.
6. Atendendo a que a devedora foi já declarada insolvente nos autos de processo 2066/18.8T8STS, deste mesmo juízo de comércio, onde também pediu a exoneração do passivo restante, que lhe foi inicialmente deferido, apenas tendo objeto de decisão antecipada de cessação devido ao facto da devedora não ter cumprido com as obrigações legais.
7. Pois bem quanto à identidade do pedido, atendendo a que o Tribunal “a quo” considerou que se verificava identidade concorda-se com tal decisão, na medida em que os pedidos naqueles e nestes autos são exatamente os mesmos, pedido de declaração de insolvência e pedido de exoneração do passivo restante.
8. Porém, quanto à identidade de causa de pedir e de sujeitos, o recorrente, obviamente, já não se pode conformar com o entendimento do Tribunal “a quo” constante da decisão em recurso.
9. Com efeito, para que não existisse identidade de causa de pedir necessário era que o passivo da devedora fosse outro, o que não é caso. O passivo é exatamente o mesmo.
10. Acresce que, a declaração/ esclarecimento da devedora a propósito de tal questão e descrita na cláusula 5.ª destas conclusões é por demais evidente. Dessa declaração, bem como dos autos, resulta claro que a devedora não pagou qualquer divida ou créditos reconhecidos no âmbito da insolvência anterior. A causa de pedir é assim exatamente a mesma, o passivo é exatamente o mesmo.
11. Como também se referiu, a única confusão que poderia existir mas não existe face ao declarado, foi o também realçado pelo credor Banco 1..., S.A., com a menção/repetição de credores que cederam créditos, como seja o Banco 2..., S.A., e o Banco 1..., S.A., e a A..., Limited e B..., S.A.
12. Acresce, ainda, que a devedora disse que pagou dividas que, entretanto, surgiram posteriormente e que não mencionou por já não se encontrarem em divida. Isto é, ao contrário do constante na decisão em recurso, a devedora terá pago alguns dos seus débitos que contraiu posteriormente a ter sido declarada insolvente, mas não qualquer divida que tinha sido reconhecida e que tinha determinado a sua declaração de insolvência.
13. Por essa razão, note-se, a devedora declarou nesse requerimento, não existem novos credores, nem dividas novas, porque as terá pago.
14. Pelo que, mostra-se evidente que causa de pedir e os sujeitos são exatamente os mesmos do processo 2066/18.8T8STS, verificando-se assim claramente a exceção do caso julgado, que é de conhecimento oficioso.
15. Devendo, consequentemente, a sentença proferida que declarou a insolvência de BB ser revogada, e ser proferida decisão que julgando provada a exceção de caso julgado, indefira liminarmente a petição de insolvência apresentada pela devedora.
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Não há contra-alegações.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1. A requerente BB apresentou-se neste processo à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante;
2. A requerente BB apresentou-se anteriormente à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante no processo n.º 2066/18.8T8STS;
3. No processo de insolvência n.º 2066/18.8T8STS foi proferida sentença a declarar a requerente insolvente, tendo sido proferido despacho de recusa da exoneração do passivo restante, conforme certidão junta aos autos em 5.05.2023;
4. Dá-se aqui por reproduzida a relação de créditos reconhecidos constante da certidão referida em 2 e a sentença de verificação e graduação de créditos; ou seja:
“1 AA ...
Reclamado pelo próprio
Metade do valor total dos bens comuns do ex-casal por partilhar 24.311,62 €
24.311,62 € Comum
SUB-TOTAL 24.311,62 € 16,52%
2 DD ...
Reclamado pela própria
Créditos devidos anterior Proc. Insolvência 87 820,00 €
87.820,00 € Comum
SUB-TOTAL 87820,00€ 59,67%
3 C..., S.A. ...
Faturas não liquidadas 1 334,09 €
1.334,09 € Comum
SUB-TOTAL 1 334,09 € 0,91%
4 ESTADO – FAZENDA NACIONAL
Dívidas IUC 11,40 € 0,40 €
11,80 € Garantido
Impostos, Coimas e Custas 806,87 € 26,24€
833,11 € Comum
SUB-TOTAL 844,91 € 0,57%
5 D..., S.A.
Relacionado Informação prestada p/insolvente 4 000,00€
4 000,00 € Comum
SUB-TOTAL 4. 000,00 € 2,72%
6 B..., S.A. ...
Contrato Cartão Crédito 5.598,31 €
5.598,31 € Comum
SUB-TOTAL 5.598,31 € 3,80%
7 EE
Relacionado
Informação prestada p/insolvente 1.608,51 €
1.608,51 € Comum
SUB-TOTAL 1.608,51 € 1,09%
8 FF
Relacionado
Informação prestada p/insolvente 1.608,51 €
1.608,51 € Comum
SUB-TOTAL 1.608,51 € 1,09%
9 Banco 1..., S.A. ...
Descoberto bancário/Cartão Crédito 14.217,09€
14.217,09 € Comum
SUB-TOTAL 14.217,09 € 9,66%
10 E..., S.A. ...
Contrato de Crédito 5.825,54 €
5. 825,54 € Comum
SUB-TOTAL 5.825,54 € 3,96%
TOTAL RECLAMADO 147.168,58 € 100%”

Da decisão da dita sentença de verificação e graduação de créditos consta:

a) Sem prejuízo da decisão proferida em 19.12.2018 e de onde resulta o reconhecimento aos credores EE de um crédito, comum, no valor de €1.479,83 e FF de um crédito, comum, no valor de €1.479,83, homologar a lista de credores reconhecidos elaborada pelo Sr. Administrador da Insolvência e junta aos autos em 29.08.2018, reconhecendo-se os créditos nela constantes;
b) Alterar a qualificação do crédito no valor de €11,80, reconhecido ao credor Estado – Fazenda Nacional, para comum;
c) Graduar os créditos reconhecidos e determinar que se proceda ao pagamento através dos valores que excedam o rendimento indisponível em sede de exoneração do passivo restante, depois do pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, do reembolso ao organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportados e do pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efetuadas, pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar os créditos reconhecidos, qualificados como comuns, aqui se incluindo também o crédito reconhecido no apenso D, em paridade e em rateio, se necessário”.

5. Dá-se aqui por reproduzido o documento 7 junto com a petição inicial deste processo, elaborado nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 24.º do CIRE; ou seja:



















6. Dá-se aqui por reproduzido o documento 9 junto com a petição inicial deste processo e ainda o alegado no ponto 15 do requerimento de 26.05.2023. ou seja:

e, “15.E mais, tem uma placa de vitrocerâmica, adquirida em novembro de 2022 e que, por
modesto que seja, tem valor comercial”.
Julga-se ainda provado, pelo teor dos documentos juntos aos autos e pela própria declaração da insolvente/apelada:
7. foi a mesma declarada insolvente no âmbito dos processos:
a) Proc. n.º 6478/13.5TBMAI, que correu termos no Juiz 1 deste tribunal, e cuja decisão foi proferida em 02 de dezembro de 2013, tendo sido encerrado por despacho de 13 de julho de 2017;
b) Proc. n.º 2066/18.8T8STS, que correu termos no Juiz 6 deste tribunal, e cuja decisão foi proferida em 13 de julho de 2018, tendo sido encerrado por despacho de 13 de março de 2019.
8. A insolvente/apelada não beneficiou da exoneração do passivo restante em nenhum dos supra identificados processos, pelo que os créditos sobre si nunca foram extintos.

III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões da recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
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Ora, visto o teor das alegações do credor/apelante é questão a apreciar no presente recurso:
– Da alegada verificação da exceção do caso julgado.
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Em jeito de introito, dir-se-á que o art.º 1.º do CIRE preceitua que “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.
Segundo o disposto no art.º 3.º do CIRE, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in “CIRE anotado”, pág. 85, deve entender-se que, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que verdadeiramente releva é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Poderá assim suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, da mesma forma que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante.
Logo, o estado de insolvência pode não ser assim imediatamente apreensível, pelo que para o tornar manifesto, o legislador lança mão de factos que revelam esse estado e que estão descritos nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, designados vulgarmente por factos-índices ou factos presuntivos da insolvência.
Assim, decorre do preceituado no art.º 20.º do CIRE que, a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas; por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito; ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos factos descritos nas suas alíneas a) a h) do seu n.º1, bastando-se a lei com a verificação de algum dos factos contidos nessas diversas alíneas, que constituem meros factos-índices ou factos presuntivos de insolvência.
Como bem se considerou no Ac. da Rel. de Coimbra de 20.11.2007, in www.dgsi.pt, trata-se de indicar ocorrências prototípicas de uma situação de insolvência, ou seja, de indicar situações através das quais, normalmente, se manifesta essa situação de insolvência do devedor, por corresponderem, tendencialmente, pelo menos, a uma impossibilidade do devedor cumprir as suas obrigações vencidas.
Em concreto, preceitua o art.º 20.º do CIRE, que:
“1 - A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:
a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º;
g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos:
i) Tributárias;
ii) De contribuições e quotizações para a segurança social;
iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;
iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;
h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no n.º 2 do artigo 3.º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de representação das entidades públicas nos termos do artigo 13.º”.
O estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objectivo permitir aos legitimados pelo requerimento de insolvência desencadearem o processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade de, a partir daí, fazer a demonstração efectiva da situação de penúria do devedor, traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida, no art.º 3.º, n.º 1 do CIRE, como característica nuclear da situação de insolvência. Pois que, de harmonia com o disposto no art.º 30.º n.ºs e 3 e 4 do CIRE, cabe, depois, ao devedor a prova da sua solvência, ilidindo a verdadeira presunção de insolvência que decorre dos referidos factos-índices. Isto é, o ónus da prova da solvência cabe ao requerido/devedor e não ao requerente.
O incumprimento de só alguma ou algumas obrigações apenas constitui facto-índice, quando pelas suas circunstâncias, evidencia a impossibilidade de pagar, devendo o requerente, então, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias, das quais seja razoável, uma vez demonstradas, deduzir a penúria generalizada do devedor. E só não será assim quando o incumprimento diga respeito a um dos tipos de obrigações enumeradas na alínea g), porquanto, tal ocorrência, verificada pelo período de seis meses aí referido, fundamenta, só por si, sem necessidade de outros complementos, a instauração de acção pelo legitimado, deixando para o devedor o ónus de demonstrar a inexistência da impossibilidade generalizada de cumprir e, logo, da insolvência, cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, in obra citada, pág. 205.
Assim, poder-se concluir que é ao requerente da insolvência que compete demonstrar (alegar e provar) um qualquer dos factos-índices enumerados no n.º 1 do art.º 20.º do CIRE em que o pedido se baseia, ou seja, a sua situação de insolvência.
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Questão única - Da alegada verificação da exceção do caso julgado.
Como se pode ver dos autos, apresentada a p. inicial o julgador de 1.ª instância proferiu o seguinte despacho: “Dispõe o art.º 27.º, n.º 1, al. b), do C.I.R.E. que “no próprio dia da distribuição, ou, não sendo tal viável, até ao 3.º dia subsequente, o juiz concede ao requerente, sob pena de indeferimento, o prazo máximo de cinco dias para corrigir os vícios sanáveis da petição, designadamente, quando esta (…) não venha acompanhada dos documentos que hajam de instruí-la, nos casos em que tal falta não seja devidamente justificada”.
Ora, o artigo 24º, n.º 1 do CIRE identifica os diversos documentos que o devedor, quando seja o requerente, junta com a petição inicial. Acresce o art.º 23º do mesmo diploma legal.
Analisando a petição inicial e documentos juntos, verifica-se que a Requerente juntou a lista de credores a que alude o art.º 24º, n.º 1, al. a) do CIRE, mas nela não indicou, em relação a cada credor, a data de vencimento do correspondente crédito, o que importa corrigir.
Em face do exposto, notifique a Requerente para juntar nova relação de credores, com indicação da data de vencimento de cada crédito, além dos demais elementos já indicados, sob pena de indeferimento liminar.
Notifique a requerente para esclarecer se em momento posterior à declaração de insolvência proferida no processo de insolvência 2066/18.8T8STS esteve solvente e em que período e ainda que créditos, dos reclamados e reconhecidos em tal processo, logrou pagar até ao momento”

Em resposta, por requerimento de 11.05.2023, a ora insolvente veio dizer, além do mais que: “(…) alguns dos credores não são já os credores iniciais, tendo ocorridos cessões de créditos.
Face a isso, a requerente relacionou os créditos com as informações de que dispõe.
Pelo que, tendo presente os motivos alegados, solicita a V. Exª que a concretização da data de vencimento seja efetuada apenas depois de reclamados os créditos, pois só nessa altura os mesmos estarão devidamente justificados e clarificada a sua origem.
Ainda assim, dentro do que lhe é possível conhecer, acrescenta o seguinte:
a. Crédito de GG (cessionária da sogra da insolvente DD), cuja data de vencimento remonta, pelo menos, à data do processo executivo em 19/03/2022.
b. Crédito de AA (ex-marido) cuja data de vencimento remonta, pelo menos, à data do processo executivo em 19/03/2022.
No que diz respeito ao período temporal decorrido após a declaração de insolvência proferida no processo de insolvência nº 2066/18.8T8STS, cumpre dar nota de que a requerente não logrou pagar quaisquer dívidas. Desde logo porque assim que lhe foi recusada a exoneração do passivo restante, a retribuição da requerente foi objeto de penhora, auferindo mensalmente a quantia de, cerca de €835,00. Quantia esta insuficiente para suprir todas as necessidades do seu agregado familiar, bem como para pagar aos credores”.

Tendo sido então proferido o seguinte despacho: “Na sequência da petição inicial e do despacho proferido em 3.5.2023, veio a requerente esclarecer, em 11.5.2023, que desde a insolvência declarada no processo de insolvência n.º 2066/18.8T8STS, não logrou pagar qualquer um dos créditos ali reconhecidos.
Nada disse quanto à possibilidade de ter estado desde então solvente e em que períodos.
Presume-se, assim, que não esteve, nunca, solvente, após a declaração de insolvência no processo n.º 2066/18.8T8STS.
Em face do exposto e porque a requerente mais alega que não possui quaisquer bens que possam ser apreendidos nestes autos, entende-se que ocorre uma situação de caso julgado, não podendo ser declarada nova situação de insolvência, pois deste estado a requerente não saiu.
Notifique, consequentemente, a requerente, para querendo se pronunciar (art.º 3º, n.º 3 do CPC)”.

E então veio a ora insolvente dizer, além do mais, que: “(…) a situação de insolvência da requerente não é a mesma que ditou a insolvência declarada em 2018, mormente porque as despesas do seu agregado familiar, particularmente de saúde, sofreram um agravamento substancial, conforme prova junta aos autos. Para além do mais, a sua disponibilidade financeira sofreu um revés atenta a penhora que se encontra a correr termos desde, pelo menos, março de 2022.
A fragilidade económica da requerente é inegável, motivo pelo qual a mesma veio apresentar-se à insolvência. Desde logo porque, não obstante não impenda sobre ela o dever de apresentação à insolvência, a verdade é que…. ficará precludida de, algum dia, beneficiar da exoneração do passivo restante. Ou seja, a ser indeferido o pedido de insolvência apresentado, a requerente nunca poderá vir a beneficiar da exoneração do passivo restante atento o disposto pelo art.º 238º, nº 1 d) CIRE.
(…) não obstante a requerente não tenha pago nenhum dos créditos reconhecidos no âmbito da insolvência anterior, a realidade é que realizou o pagamento de dívidas que surgiram posteriormente e que não mencionou, precisamente por já não se encontrarem em dívida (...) Ou seja, apenas não integram a qualidade de novos credores, nem de dívidas novas porque a requerente as solveu. Porque teve ativo.
(…) a situação patrimonial da requerente, ainda que tenha passado por momentos de solvabilidade, agudizou-se.
(…) a requerente logrou realizar pagamentos a alguns credores, evitando o avolumar das suas dívidas.
(…) se, tendencialmente, se verifica a identidade de credores, tal não basta para concluir pela total identidade dos objetos das lides em causa e em face da factualidade apresentada demonstra-se evidente que o circunstancialismo que hoje colocou a requerente numa situação de insolvência difere em muito daquela anteriormente declarada. Sendo certo que ainda que os maiores credores da requerente se mantenham essencialmente os mesmos, menos verdade não é que outros surgiram e apenas não figuram, atualmente, nessa qualidade, porque a requerente logrou pagar”.

A 1.ª instância veio a decidir, pela não verificação da exceção do caso julgado, com a seguinte fundamentação: “(…) Neste processo e no processo de insolvência n.º 2066/18.8T8STS, a requerente – que é a mesma - pretende exatamente o mesmo: ser declarada insolvente (com fundamento num ativo inferior ao passivo). Ao que acresce o pedido de ser exonerada do passivo restante, pedido exatamente igual ao formulado no processo de insolvência n.º 2066/18.8T8STS e que foi recusado por decisão de 12.7.2021.
Ora, no processo de insolvência n.º 2066/18.8T8STS a aqui requerente já foi declarada insolvente, por sentença transitada em julgado.
O que a requerente pretende nestes autos não é, verdadeiramente, ser declarada insolvente, pois já o foi no indicado processo. O que a requerente pretende é, essencialmente, ser exonerada do passivo restante, pois não logrou obter esta exoneração em tal anterior processo de insolvência, por ter incumprido as obrigações que para si advieram do despacho liminar previsto no art.º 237.º, al. b) do CIRE. Para tal desiderato não pode deixar de ser previamente declarada insolvente, razão do pedido de declaração de insolvência ora de novo apresentado.
Não obstante, verifica-se identidade de pedidos.
Passemos agora à causa de pedir.
Tendo em atenção a alegação assim efetuada – não relevando, salvo o devido respeito, a alegação relativa aos bens de que é proprietária (uma placa vitrocerâmica e um veículo automóvel), já que é a própria requerente que se trata de bens de reduzido valor, o que significa que ainda que os mesmos venham a ser localizados e apreendidos, não permitirão o pagamento de créditos alguns, nem a alegação no sentido de que ser indeferido o pedido de declaração de insolvência, ficará impedida a exoneração do passivo restante, pois aquela não é um meio para se lograr obter esta – entende-se, agora, que não existe verdadeira identidade quanto aos sujeitos e à causa de pedir, mas apenas quanto ao pedido.
Efetivamente, os credores agora não são exatamente os mesmos, ainda que muitos se mantenham, e a situação de insolvência (causa de pedir) não é igual e exatamente a mesma, já que a requerente logrou pagar alguns dos seus débitos, com o que aquela se alterou em idêntica medida”.

Ora o credor/apelante veio defender que a causa de pedir e os sujeitos são exatamente os mesmos do processo n.º 2066/18.8T8STS, verificando-se assim claramente a exceção do caso julgado, que é de conhecimento oficioso.

Vejamos então.
Em suma, sabemos que a ora insolvente, BB, apresentou-se, anteriormente, à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante. A tal processo coube o n.º 2066/18.8T8STS e aí foi proferida sentença a declarar a requerente insolvente, tendo sido proferido despacho de recusa da exoneração do passivo restante.
Por via dos presentes autos, a ora insolvente apresentou-se, de novo, à insolvência e requereu a exoneração do passivo restante. E por via da sentença ora recorrida foi a mesma declarada, de novo, insolvente.
Efetivamente preceitua a al. a) do n.º1 do art.º 27.º do CIRE, que, no “próprio dia da distribuição, ou, não sendo tal viável, até ao 3.º dia útil subsequente, o juiz” indefere “liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente, ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente”.
Como vimos, a 1.ª instância ponderou decidir-se pelo indeferimento liminar da p. inicial dos autos, por entender que eventualmente se verificava uma situação de existência de uma exceção dilatória insuprível de que devesse conhecer oficiosamente justificativa desse indeferimento liminar. Todavia, depois de ouvir, como era seu dever a requerente, veio a decidir pela improcedência de tal exceção. “In casu” tratava-se da exceção dilatória do caso julgado.
Como é sabido preceitua o n.º1 do art.º 580.º do C.P.Civil, que a exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário.
Na realidade, preceitua o art.º 628.º do C.P.Civil, que uma decisão judicial “considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”. E quando tal se verifica, e de harmonia com o que preceituam os art.ºs 619.º, n.º 1 e 620.º, n.º1, ambos do C.P.Civil, ela terá força obrigatória: dentro do processo e fora desse processo, e se for sentença ou despacho saneador que decida do mérito da causa (caso julgado material); ou apenas dentro do processo, se for sentença ou despacho que haja recaído unicamente sobre a relação processual (caso julgado formal). Tudo sem se olvidar que a “sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”, cfr. art.º 621.º do C.P.Civil
Preceitua o art.º 581.º do mesmo Código que: “repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”. Esclarecendo o n.º2 de tal preceito que: “Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” e, diz o n.º3 que: “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” e, por fim, diz o n.º4 desse mesmo preceito que: “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico”.
Ora, a exceção de caso julgado assenta na força e na autoridade da sentença transitada em julgado, na sua vertente negativa, como decorre do n.º1 do art.º 619.º do C.P.Civil, ou seja: “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos art.ºs 580.º e 581.º…” e tem o sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida pela sentença transitada, cfr. art.ºs 576.º, n.º 2 e 577.º, al. i), ambos do C.P.Civil.
Exige-se, neste caso, cfr. art.º 581.º do C.P.Civil, a verificação da tríplice identidade - de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
Logo, “in casu” há que apurar se existe (ou não) identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir entre a presente ação e a n.º 2066/18.8T8STS, ou seja, apura então se se verifica (ou não) a exceção do caso julgado, e consequentemente apurar se a 1.ª instância reproduziu (ou não) uma decisão anterior, cfr. n.º2 do art.º 580.º do C.P.Civil.
Estamos perante um recurso da decisão que decretou esta (3.ª insolvência) de BB interposto por um dos seus credores.
Ora, como é sabido, o processo de insolvência, considerando os termos em que o legislador o configurou, inicia-se com uma fase, que no entender de Maria do Rosário Epifânio, in “Manual de Direito da Insolvência”, pág. 15, se poderá denominar como declarativa, destinada à verificação da existência, ou não, da situação de insolvência e a declará-la, ou não. Tal fase pode ter como sujeitos, apenas o requerente que se apresenta à insolvência ou o credor requerente da insolvência e o devedor/requerido, cfr. art.ºs 27.º a 35.º do CIRE.
No caso, como o dos autos em que até declaração de insolvência de BB o processo apenas a teve a ela como sujeito processo, uma vez que foi declarada a sua insolvência, o processo passou a assumir-se, a partir daí como um processo de execução universal, cfr. art.º 1.º n.º1 do CIRE; e além do mais, dirige-se a todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre a insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração ou tenham sido adquiridos no decorrer do processo, cfr. art.º 47.º n.ºs 1 e 3 do CIRE. Logo, todos esses credores, legalmente considerados como credores da insolvência, cfr. art.º 47.º do CIRE e, nessa qualidade, estão habilitados a intervir nos autos, exercendo os seus direitos e reclamando os seus créditos no processo.
Daí a legitimidade “in casu” do credor da insolvente para interpor recurso, querendo, da decisão que decretou a insolvência daquela.
Vejamos, então, que ocorre, ou não, a supra referida tríplice identidade entre a presente ação e a pretérita ação n.º2066/18.8T8STS.
Comecemos pelo pedido.
Dúvidas não existem de que numa e noutra ação os pedidos são exatamente os mesmos – declaração de insolvência e exoneração do passivo restante, ou seja, “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico”, cfr. n.º 3 do art.º 581.º do C.P.Civil.
Quanto aos sujeitos.
Sem esquecer o que acima ficou consignado, na fase processual em que se encontra a presente ação e em que se encontrou, nos seus termos derradeiros, a n.º 2066/18.8T8STS, temos que a requerente/insolvente devedora é a mesma, a ora apelante - BB e, do lado oposto, temos os indicados credores conhecidos da insolvente e todos os demais por ora desconhecidos, havendo-os.
Quanto a este ponto, a 1.ª instância concluiu que “Efetivamente, os credores agora não são exatamente os mesmos, ainda que muitos se mantenham… “
Não aceitamos em absoluto tal afirmação.
Na verdade, todos os credores reconhecidos na anterior insolvência mantêm-se hoje como credores da insolvente e exatamente pelos mesmos créditos, não se podendo olvidar que a própria insolvente afirmou que nenhum desses créditos logrou liquidar e que alguns deles, foram objeto de cessão aos atuais credores, v.g. o caso do crédito anteriormente reclamado por DD, hoje, por cedência, titulado por GG. Mais é evidente que a relação de credores apresentada nos autos pela insolvente contém manifestos lapsos, v. g. o créditos apontado tendo como credor o Banco 2..., SA, como é do conhecimento geral não pode corresponder à verdade; por outro lado, o credor A..., também como é sabido, é uma entidade que gere carteiras de crédito com e sem garantias, assim como ativos imobiliários essencialmente oriundos de bancos e instituições financeiras, desconhecendo-se assim quem seria o original credor.
Perante tudo isto, é nossa segura convicção que entre um e outro processo de insolvência em apreço os respetivos sujeitos são potencialmente os mesmos, ou seja, “Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, cfr. n.º 2 do art.º 581.º do C.P.Civil.
Resta-nos ver a questão da causa de pedir.
Preceitua o n.º4 do art.º 581.º do C.P.Civil que “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico”.
A 1.ª instância entendeu que: “Passemos agora à causa de pedir.
Tendo em atenção a alegação assim efetuada – não relevando, salvo o devido respeito, a alegação relativa aos bens de que é proprietária (uma placa vitrocerâmica e um veículo automóvel), já que é a própria requerente que se trata de bens de reduzido valor, o que significa que ainda que os mesmos venham a ser localizados e apreendidos, não permitirão o pagamento de créditos alguns, nem a alegação no sentido de que ser indeferido o pedido de declaração de insolvência, ficará impedida a exoneração do passivo restante, pois aquela não é um meio para se lograr obter esta – entende-se, agora, que não existe verdadeira identidade quanto aos sujeitos e à causa de pedir, mas apenas quanto ao pedido.
Efetivamente, os credores agora não são exatamente os mesmos, ainda que muitos se mantenham, e a situação de insolvência (causa de pedir) não é igual e exatamente a mesma, já que a requerente logrou pagar alguns dos seus débitos, com o que aquela se alterou em idêntica medida”.
Não seguimos tal entendimento.
Ora, dúvidas não há que o efeito jurídico que se pretende obter nesta ação é formalmente idêntico àquele que se pretendia obter – e foi efetivamente obtido – na anterior ação: a declaração de insolvência. Mas essa identidade formal não equivale necessariamente a uma identidade material, uma vez que a declaração de insolvência com referência a uma determinada realidade ocorrida em determinado momento temporal não corresponde, em termos substanciais, à declaração de insolvência com referência a realidade diferente, e ocorrida em qualquer outro período temporal; ainda que formalmente idênticos, os efeitos jurídicos que se pretendem obter em cada uma dessas situações são substancialmente diferentes porque se reportam a realidades diferentes e ocorridas em momentos temporais distintos.
E assim, será assim a causa de pedir de cada uma dessas pretensões que nos permitirá aferir se o efeito jurídico e a concreta pretensão que se pretende obter nesta ação é idêntica àquela que já foi obtida na anterior ação.
Muito genericamente pode dizer-se que a causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponda, por regra, ao concreto passivo e ativo que exista em determinado momento temporal e à impossibilidade de o ativo do devedor lhe permitir cumprir o passivo que nesse momento se encontra vencido.
Mas, como é sabido toda a vida, mormente do ponto de vista pessoal e económico-financeiro, é essencialmente dinâmica. E como acima já se referiu, para se caracterizar uma situação de insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e já vencidas, pois o que verdadeiramente releva é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Logo, a situação invocada pela apelada de que após a sua anterior declaração de insolvência honrou algumas das suas dívidas entretanto constituídas, é manifestamente insuficiente para fundamentar a sua solvabilidade ainda que transitória.
Ou seja, o que “verdadeiramente releva (…) é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos”, cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, pág. 86.
Retornando ao caso dos autos, perante o alegado pela insolvente/apelada e o apurado nos autos, é nossa segura convicção que a situação de insolvência daquela não é mais dos que continuação no tempo da situação apurada no processo n.º 2066/18.8T8STS , ou seja, o passivo agora existente é essencialmente o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e nenhum ativo relevante acresceu àquele que existia naquele momento.
Em suma, manifestamente não está agora em causa está em causa uma realidade de facto diferente daquela que ocorria aquando do anterior processo que configure uma situação de insolvência distinta e que, como tal, possa justificar e conferir alguma utilidade a uma nova declaração de insolvência, mais não se evidencia minimamente uma qualquer situação de solvência ou de saúde financeira da ora apelada entre uma e outra declaração de insolvência, verifica-se, antes, um perdurar no tempo dessa mesma situação.
Neste sentido, Ac. Rel. de Coimbra de 3.12.2019, in www.dgsi.pt, onde se referiu que pode-se “concluir que a pretensão de ver declarada a insolvência nos presentes autos será idêntica à pretensão já obtida na ação anterior se a realidade a que se reporta - balizada pelo ativo e pelo passivo existente e pela impossibilidade de esse ativo assegurar a satisfação do passivo - for a mesma, ou seja, se o passivo em questão for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro ativo tiver acrescido àquele que existia naquele momento”.
“In casu” não estamos, pois, perante a invocação de “factos novos”. E assim sendo, conclui-se que a pretensão formulada nos autos é, efetivamente, idêntica à pretensão que já foi deduzida na ação anterior - ação n.º2066/18.8T8STS - sendo idêntica a causa de pedir nos dois processos.
Verifica-se, pois, tríplice identidade – pedido-causa de pedir e sujeito – de onde decorre verificada a exceção de caso julgado.
Mais se dirá ainda que, como a própria insolvente alega, e ao que parece impressionou a 1.ª instância, e no que toca ao pedido de exoneração do passivo restante, este está sempre dependente da existência de um processo (principal) de insolvência e da declaração da insolvência, não correspondendo, portanto, a uma pretensão que possa ser formulada de forma autónoma, como resulta do disposto nos art.ºs 235.º e 295.º, al. c) do CIRE. No anterior processo de insolvência foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela ora apelante, todavia a exoneração veio a ser-lhe recusada. Ora, por via deste novo pedido de insolvência, ao que parece, pretendia-se a obtenção de uma segunda oportunidade de exoneração do passivo restante, mas a tal obsta a verificação da exceção do caso julgado, sendo que quanto à recusa de concessão da exoneração do passivo restante em sede da anterior insolvência “sibi imputet”.
Em suma, a verificação da exceção do caso julgado conduz ao indeferimento liminar do pedido de insolvência, cfr. art.º 590.º, n.º1, do C.P.Civil, e tal obsta ao prosseguimento da ação quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, o que releva para a decisão a proferir na apelação pendente nesta mesma secção – p. n.º1385/23.6 T8STS – onde está em causa a decisão de 1.ª instância que admitiu liminarmente a exoneração do pedido restante formulado nos autos.
Procedem as conclusões do apelante, havendo de se revogar a decisão recorrida.

Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação procedente e em revogar a decisão recorrida, julgando-se improcedente o pedido de declaração de insolvência formulado nos autos, por verificação da exceção dilatória do caso julgado, insuprível e de conhecimento oficioso, cfr. art.ºs 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. i), 578.º e 278.º, n.º 1, al. e), todos do C.P.Civil, ex vi do art.º 17.º do CIRE.
Custas pela apelada.

Porto, 2024.03.05
Anabela Dias da Silva
Anabela Miranda
João Diogo Rodrigues