Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7153/13.6TBMAI-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
NOTIFICAÇÕES EFECTUADAS PELO ADMINISTRADOR
NULIDADE
Nº do Documento: RP201607077153/13.6TBMAI-D.P1
Data do Acordão: 07/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 726, FLS.126-130)
Área Temática: .
Sumário: É nula a decisão promovida pelo Administrador da Insolvência feita por correio eletrónico à margem do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n. 7153-13.6TBMAI-D– Apelação
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Nos autos de Liquidação que correm termos por apenso ao processo de insolvência em que são insolventes B… e C…, veio o credor hipotecário Banco D…, S.A. dizer que não lhe foi possível pronunciar-se no prazo estipulado pelo Administrador da Insolvência para os fins do art.º 164.º, n.º 2, do CIRE, invocando que tomou conhecimento do requerimento apresentado pelo Administrador da Insolvência datado de 21.08.2015 mediante consulta ao sistema Citius e que o e-mail que foi junto com o mesmo terá sido direccionado para a caixa de correio destinada ao SPAM.
Dos autos resulta que em 16/7/2014 o Administrador da Insolvência enviou à secretaria judicial um requerimento, com o qual juntou cópia de e-mail por si enviado em 16/7/2014 16:10, de E… <E…-….p@advogados.oa.pt> para F…@jpab.pt, com o seguinte texto:
“Assunto: Venda dos bens apreendidos para a massa insolvente, Proc. n.º 7153/13.6TBMAI do 3.º Juízo Cível do Tribunal judicial da Maia.
Insolvência de Pessoas Singulares: B… e C…
Constituinte: Banco D…, S.A.
Ex. ma Senhora Dra. F…
Distinta Advogada
Na qualidade de Administrador e insolvência nomeado no Processo em referência, nos termos e efeitos do art.º 164.º do CIRE, comunico a V. Exa., como Mandatária do Credor Banco D… S, A., garantido com hipoteca sobra o imóvel descrito como Verba n.º 1, do Auto de Apreensão de Bens, para se pronunciar nas termos e efeitos do art.º 164.º, n.º 2, do CIRE.
Informo:
Das várias diligências efectuadas até à presente data não chegou qualquer proposta concreta para a aquisição do imóvel.
Assim, comunico que irei fixar a modalidade de venda por proposta em carta fechada.
O valor base para as propostas fixado em € 60.000,00 (sessenta mil euros).
O credor garantido poderá propor a aquisição por si ou terceiro, nos termos do n.º 3 do art.º 164.º do CIRE.
Com os melhores cumprimentos, subscrevo-me. Atentamente e ao dispor E….”
Sobre o requerido por aquele credor incidiu despacho nos seguintes termos:
“Compulsados os autos verifica-se que a alegação não pode proceder uma vez que dos documentos de fls. 3, 7, 8, 11 e 15 resulta que as comunicações do Sr. Administrador de Insolvência foram remetidas sempre para o mesmo e-mail - o constante do papel timbrado do requerente e correspondente ao correio electrónico remetido pelo mesmo credor ao Administrador de Insolvência (fls. 10).
Por outro lado, é certo que o Banco havia apresentado proposta de adjudicação do bem imóvel, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 164° do CIRE, pelo valor € 58.207,93 mas não procedeu ao pagamento de 20% do montante da proposta, sendo de relevar que nenhuma prova junta que demonstre que questionou o Administrador de Insolvência ou requereu ao tribunal que não fosse admissível o pagamento da comissão de 5% exigida pela leiloeira contratada para a realização da venda por leilão público do bem imóvel.
Pelo exposto, não tendo procedido a pagamento, tendo o Administrador de Insolvência diligenciado pela obtenção de outras propostas e tendo comunicado a proposta ao credor, nada o mesmo tendo alegado, é manifesto que ao mesmo não assiste razão e, assim, indefere-se o requerido”.
Desse despacho interpõe o credor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
I. O recorrente não se conforma com a decisão recorrida, que indeferiu o requerimento do recorrente no sentido de dar sem efeito a aceitação pelo Senhor Administrador da Insolvência da proposta de aquisição do bem imóvel apreendido nos presentes autos apresentada por G….
efectivamente,
II. O Tribunal a quo entendeu que a pretensão do Banco recorrente não poderia proceder, na medida em que:
(i) - as comunicações do Senhor Administrador da Insolvência foram sempre remetidas para o mesmo e-mail, constante do papel timbrado dos autos; (ii)- o Banco havia apresentado proposta de adjudicação do imóvel, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 164.º do CIRE, mas não procedeu ao pagamento de 20% do montante da proposta.
III. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 247.º e seguintes do CPC, 344.s do CC, n.º 2 do 164.º do CIRE e n..º 2 do 18.º da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito,
IV. a consideração de que a notificação foi efectuada só porque as comunicações do Senhor Administrador da Insolvência foram sempre remetidas para o e-mail "constante do papel timbrado do requerente" surge ao arrepio dos princípios da certeza, segurança jurídica e do contraditório.
V. O Senhor Administrador da Insolvência desempenha a função de auxiliar da justiça e deve, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidor da justiça e do direito.
VI. Apesar da definição dos seus deveres e competências constarem da aludida Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, e do CIRE, a verdade é que existe um vazio legal relativamente à forma das notificações/comunicações entre os senhores administradores da insolvência e os intervenientes processuais, designadamente, os credores.
VII. note-se que o Título I do Livro II do Código de Processo Civil dedica-se à regulação dos actos processuais em geral, tratando, em especial, os actos das partes, os actos dos magistrados e os actos da secretaria. O aludido diploma legal manifesta, ainda, especial cuidado na forma das citações, notificações das secretarias e nas notificações entre os mandatários das partes - cfr. artigos 219 e seguintes do Código de Processo. Seria expectável que o próprio CIRE, que regula o processo de insolvência e de recuperação de empresas (e, actualmente, particulares) dedicasse um espaço à forma das notificações entre os senhores administradores da insolvência e os outros intervenientes processuais, à semelhança do que, em especial, efectuou para a notificação dos credores não reconhecidos (cfr. artigo 129 do CIRE) e para a forma da resolução em benefício da massa insolvente (cfr. artigo 123 do CIRE).
VIII. Verificada a lacuna - inexistência de forma legal das notificações/comunicações entre os senhores administradores da insolvência e os intervenientes processuais -, importa, nesta sede, proceder ao seu preenchimento, através do recurso à analogia, por aplicação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do CC.
Assim,
IX. tratando-se o Senhor Administrador da Insolvência de uma figura que se encontra ao serviço do direito e exerce a função de auxiliar da justiça, não se encontrando em situação de paridade com os outros intervenientes processuais (insolventes e credores), dúvidas não restam que deverão ser aplicados. Por analogia, os artigos 247 e seguintes do CPC, que preceituam a forma das notificações da secretaria.
Nesta decorrência,
X. determina o artigo 248 do CPC que "os mandatários são notificados nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 132, devendo o sistema informático certificar a data da elaboração da notificação, presumindo-se esta feita no 3.º dia posterior ao da elaboração ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja".
XI. Atento o facto de a referida Portaria (208/2013, de 26 de agosto) não ser aplicável aos processos de insolvência, deverá ser aplicado ao caso em apreço o disposto no n.º 1 do artigo 249 do CPC: "as notificações são feitas por carta registada, dirigida para a sua residência ou sede ou para o domicílio escolhido para o efeito de as receber, presumindo-se feita no 3.º dia posterior ao do registo ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja".
Nesta conformidade,
XII. tendo em devida consideração que a notificação do Senhor Administrador da Insolvência não podia ter sido realizada por correio electrónico - já que tal forma de notificação não consta das formas de notificação possíveis, previstas no n.º 1 do artigo 249 do CPC - deverá considerar-se a notificação realizada como não feita.
XIII. Daí deve extrair-se a necessária consequência da nulidade do acto, de harmonia com o disposto no artigo 195.º do CPC (ex vi artigo 17.º do CIRE).
XIV. O ora recorrente, credor titular de garantias reais, viu-se impedido de se opor à proposta apresentada e pugnar pela aceitação da proposta que apresentara.
XV. Uma vez que a diferença dos valores das propostas apresentadas se reputa em cerca de € 7.000,00, a omissão da notificação do reclamante da proposta de aquisição implica para este um concreto e determinado prejuízo económico, uma vez que, a manter-se o status quo existente - o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio - logrará recuperar uma quantia consideravelmente inferior àquela que recuperaria se a sua proposta fosse considerada.
Assim,
XVI. O produto da venda será manifestamente prejudicado pela omissão da referida notificação ao reclamante e terá, com as devidas adaptações influência na decisão causa. Logo, é uma nulidade processual - por preenchimento dos pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 195.º do CPC - o que determina a anulação dos "termos subsequentes que dele dependam" (cf. n.º 2).
Por conseguinte,
XVII. a nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC determina a nulidade do acto da adjudicação e dos actos subsequentes que dele dependam absolutamente.
XVIII. Haverá, portanto, que anular a notificação feita e os actos que dela dependam directamente e ordenar a repetição da notificação, por carta registada, ao recorrente, para se pronunciar em sede própria e, querendo, suplantar a proposta de aquisição oferecida pela proponente G….
Sem prejuízo,
XIX. A jurisprudência tem vindo a considerar que a dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse.
XX. Ora, importa ter em consideração que o recorrente já havia apresentado uma proposta de aquisição, e superior por sinal, à da proponente G…. É inequívoco que este facto, por si só, demonstra o interesse do recorrente na aquisição do imóvel e que, por sua vez, é uma prova convincente de que teria todo o interesse, caso tivesse recebido a aludida comunicação por parte do senhor administrador da insolvência, em reiterar a proposta de aquisição do bem por preço superior ao da alienação projectada, pelo que
XXI deverá ser dado relevo a este facto para prova de que o silêncio do recorrente, em face da alegada comunicação do senhor administrador da insolvência, se deveu, tão só, ao facto de não ter recebido a comunicação com a aludida proposta de aquisição.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar.
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A questão a decidir consiste em saber se ocorreu nulidade por falta de notificação, em relação à comunicação feita pelo Administrador da Insolvência, por correio electrónico, ou, caso deva considerar-se validamente efectuada, se foi ilidida a presunção legal de ter sido feita no 3.º dia posterior ao da elaboração (ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja).
Sendo a factualidade relevante a descrita no relatório supra.
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Em crise no presente recurso encontra-se o cumprimento das formalidades que deve observar a comunicação do administrador da insolvência para efeitos do n.º 2 do artigo 164.º do CIRE – “O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada”.
Dispondo o n.º 2 do artigo 9.º do CIRE que “Salvo disposição em contrário, as notificações de actos processuais praticados no processo de insolvência, seus incidentes e apensos, com excepção de actos das partes, podem ser efectuadas por qualquer das formas previstas no n.º 5 do artigo 176.º do Código de Processo Civil” (disposição equivalente ao art.º 172.º do actual CPC), afirmar-se-ia que é admissível, sem quaisquer restrições, o emprego do correio electrónico para a comunicação de ou para a prática de qualquer acto no âmbito do processo de insolvência, seus incidentes e apensos.
Tal não sucede, contudo, não podendo tal meio de comunicação ser discricionariamente usado por todo e qualquer interveniente processual. Desde logo, o artigo 132.º do actual CPC dispõe que a tramitação dos processos é efectuada electronicamente em termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, devendo as disposições processuais relativas a actos dos magistrados, das secretarias judiciais e dos agentes de execução ser objecto das adaptações práticas que se revelem necessárias (n.º 1); a tramitação electrónica dos processos deve garantir a respectiva integralidade, autenticidade e inviolabilidade. E, no tocante às formalidades das notificações aos mandatários judiciais, dispõe o artigo 248.º que os mesmos “são notificados nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 132.º, devendo o sistema informático certificar a data da elaboração da notificação, presumindo-se esta feita no 3.º dia posterior ao da elaboração ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja”.
A portaria aí considerada é, actualmente, a Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, que regula vários aspectos da tramitação electrónica dos processos judiciais.
De notar que o artigo 2.º deste diploma não abrange os processos de insolvência, dispondo, diversamente que a regulamentação dos aspectos previstos no n.º 1 do artigo anterior se aplica à tramitação electrónica: a) Das acções declarativas cíveis, procedimentos cautelares e notificações judiciais avulsas, com excepção dos processos de promoção e protecção das crianças e jovens em perigo e dos pedidos de indemnização civil ou dos processos de execução de natureza cível deduzidos no âmbito de um processo penal; b) Das acções executivas cíveis e de todos os incidentes que corram por apenso à execução, sem prejuízo do previsto em regulamentação específica do processo executivo.
Mas mesmo a fazer-se uma interpretação extensiva da alínea b), concebendo o processo de insolvência como execução universal, nunca a comunicação efectuada no caso vertente, nos termos em que o foi, poderia valer como notificação para efeitos do art.º 164.º, n.º 2, do CIRE. Vejamos.
O Administrador da Insolvência desempenha uma função de auxiliar da justiça, sujeito ao acompanhamento, fiscalização e disciplina da Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça - artigo 1.º da Lei n.º 77/2013, de 21 de Novembro; "é a pessoa incumbida da fiscalização e da orientação dos actos integrantes do processo especial de revitalização, bem como da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os actos que lhe são cometidos pelo presente estatuto e pela lei" – n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 22/2013.
Apesar da definição dos seus deveres e competências constarem da aludida Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, e do CIRE, o certo é que a lei é omissa relativamente à forma das notificações/comunicações entre os administradores da insolvência e os intervenientes processuais, designadamente, os credores da insolvência e seus mandatários judiciais. E na ausência de regras especiais aplicáveis ao administrador da insolvência, que exerce uma função de auxiliar da Justiça, não sendo parte e não se encontrando em situação de paridade com os demais intervenientes processuais (insolventes e credores), outra solução não resta excepto a aplicação das normas dos artigos 247.º e seguintes do CPC, que disciplinam a forma das notificações da secretaria.
Ora, exige o n.º 1 do artigo 25.º da Portaria n.º 280/2013: “As notificações por transmissão electrónica de dados são realizadas através do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais, que assegura automaticamente a sua disponibilização e consulta no endereço electrónico http://citius.tribunaisnet.mj.pt”. Perante tal normativo, nenhuma outra plataforma informática pode ser usada para o efeito, não o podendo ser o endereço de correio electrónico particular do Sr. Administrador da Insolvência, constante do e-mail de 16 de Julho de 2014 - 16:10, junto como doc. n.º 1 do seu requerimento entrado na mesma data (fls. 2 e 3 da certidão que instrui o presente recurso).
Como tal não dispondo o Sr. Administrador da Insolvência de endereço para transmissão electrónica de dados integrado no sistema informático de suporte à actividade dos tribunais, nem tendo recorrido à intermediação da secretaria para que, por solicitação sua, efectuasse a notificação, é aplicável ao caso em apreço o disposto no n.º 1 do artigo 249.º do CPC: "as notificações são feitas por carta registada, dirigida para a sua residência ou sede ou para o domicílio escolhido para o efeito de as receber, presumindo-se feita no 3.º dia posterior ao do registo ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja".
Por todo o exposto, não podia a notificação efectuada pelo Senhor Administrador da Insolvência ter empregado, como empregou, o correio electrónico, fora do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais. A consequência de tal irregularidade é a nulidade do acto, de harmonia com o disposto no artigo 195.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 17.º do CIRE. Sendo certo que a nulidade cometida influiu na decisão da causa, porquanto o recorrente resultou coarctado no exercício das faculdades conferidas pelo n.º 3 do art.º 164.º do CIRE, com prejuízo para o produto da venda.
Procede, em conformidade a apelação, com a consequente anulação da notificação arguida de nula e dos termos subsequentes que dela dependem.

Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, declarando a nulidade da notificação feita, ordene a sua repetição, por carta registada, ao recorrente.
Custas pela massa insolvente.

Porto, 2016/07/07
João Proença
Maria Graça Mira
Anabela Dias da Silva