Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1062/23.8PIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: MEDIDA DE COAÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
RECURSO
Nº do Documento: RP202402211062/23.8PIPRT.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão sobre a aplicação de uma medida de coacção sustenta–se, num plano de base, na verificação da existência, natureza e grau de intensidade de indícios de determinada prática criminosa pelo arguido ; depois, num plano intermédio, na aferição sobre se no caso se verifica alguma das exigências cautelares previstas no art. 204º do Cód. de Processo Penal ; finalmente, num plano de topo, na ponderação sobre qual das medidas de coacção aplicáveis no caso se mostra a mínima suficiente para, de forma adequada, dar satisfação à tutela de tais exigências cautelares, do mesmo passo que se mostre proporcional à compressão dos direitos individuais do arguido que a sua aplicação determina.
II - O que se analisa em sede de recurso ordinário é o acerto de uma decisão judicial, sendo que esse exercício de sindicância recursiva apenas pode ter por base as circunstâncias em que a decisão recorrida foi tomada, e não quaisquer factores supervenientes à prolação da decisão em primeira instância, e de que o juiz que a proferiu (recorrido), à data, não era conhecedor.
III - O crime de violência doméstica na sua forma agravada, sendo em abstracto punível com pena de prisão de máximo não superior a 5 anos, corresponde concomitantemente ao conceito de ‘criminalidade violenta’, nos termos e para os efeitos exigidos no 1º/j) do Cód. de Processo Penal, o que significa que é aplicável em tal caso, e se tal se mostrar necessário e adequado, a medida de coacção de prisão preventiva.

[Sumário da responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo de inquérito que, sob o nº 1062/23.8PIPRT, corre termos no Juízo de Instrução Criminal do Porto, Juiz 2, na sequência de interrogatório judicial a que foi sujeito o arguido AA no dia 17/11/2023, por se entender que se encontrava fortemente indiciada a prática pelo arguido, em autoria material e em concurso real, de 2 (dois) crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo art. 152º/1/b)/2/a) do Código Penal, foi determinado que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito – além das obrigações decorrentes do termo de identidade e residência prestado – às seguintes medidas de coacção :

– proibição de contactar por qualquer meio (escrito, falado ou tecnológico), directo ou por interposta pessoa, com a ofendida, ou dela se aproximar num raio de 300 metros, sendo esta proibição electronicamente fiscalizada,

– proibição de frequentar, permanecer ou aceder à residência da ofendida, sendo esta proibição electronicamente fiscalizada.

tudo ao abrigo do disposto nos arts. 191º, 192º, 193º/1, 194º, 196º, 200º/1/a/d), 204º/c) do Cód. de Processo Penal, e art. 35º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro.

Inconformado com esta decisão, dela recorre o arguido AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1. O Arguido recorrente não se conforma com a douta sentença. proferida nos presentes autos, que aplica as medidas de coação de proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida. ou dela se aproximar num raio de 300 (trezentos) metros, sendo esta proibição eletronicamente fiscalizada e proibiçãb de frequentar, permanecer ou aceder â residência da ofendida, sendo esta proibição também eletronicamente fiscalizada, por entender que a matéria foi incorretamente julgada e que não existiu correta aplicação do direito.

2; Entende o recorrente que não se verificam as condições e os pressupostos legais exigíveis para a aplicação de medida tão gravosa.

3. Atento o princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade patente no artigo 193.º do Código de Processo Penal, as medidas de Coação aplicadas in casu, apenas devem ser aplicadas quando as restantes medidas se r:evelem ínsuficientes ou ineficazes para acautelar as necessidades de prevenção.

4. Ora, pretende–se demonstrar que não estão verificados os perigos enuncíados.no artigo 204.º do Código de Processo Penal.

5. Quanto ao risco de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, tal não se verifica, apresentando o douto despacho Judicial como Justlficação do risco de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas a própria personalidade do Arguido, atendendo–se aos factos alegados no requerimento do Ministério Público.

6. Conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12–02-2019, Processo n.º 165/18.5PGSXL-A.L1-5, "O perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas deve ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que o mesmo pudesse gerar na comunidade", o que não se verifica na fundamentação do douto despacho que aplicou as medidas de coação,

7. Não ocorre, pois. o pressuposto da perturbação da ordem e da tranquilidade públicas da conduta do Arguido.

8. Analisados os alegados "perigos" entende o Arguido Recorrente que inexiste fundamento para a aplicação das medidas de coação de proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, ou dela se aproximar num raio de 300 (trezentos] metros e proibição de frequentar, permanecer ou aceder à residência da ofendida, sendo ambas as proibições, eletronicamente fiscalizadas,

9. Conforme supra referido, entende o arguido que inexiste qualquer perturbação da ordem e tranquilidade públicas ou perigo de continuação da actividade criminosa, em concreto.

10. Ora, as medidas de coação de proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, ou dela se aproximar num ralo de 300 (trezentos) metros e proibição de frequentar, permanecer ou aceder à residência da ofendida, podem ser ambas aplicadas sem a colocação de dispositivo de controlo de distância.

11. Esta limitação deve restringir-se ao estritamente necessário, conforme resulta do número 2 do artigo 18.º da Constituição da República portuguesa e, até por força do princípio da presunção da inocência bem como, do decorrente dos artigos 191,º e 193.º do Código de Processo Penal.

12. No caso, não se verifica critério de fuga ou perigo de fuga, nem o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo.

13. Pelo que, a finalidade que se pretende acautelar será a não continuação da alividade criminosa e perturbação da ordem e tranquilidades públicas, tal como previsto no artigo 204.º do Código de Processo Penal.

14. Acontece que, não se vislumbra de que forma é que a aplicação da pulseira electrónica ao arguido previne a continuação da prática do crime de violência doméstica, pois apenas Impedem o arguido de contactar a ofendida, a qual já não tem qualquer tipo de contacto com o arguido.

15. A colocação de dispositivo de controlo de distância só pode ser aplicada se no caso em concreto se revelarem inadequadas e insuficientes as restantes medidas, tendo um carácter excepcional e não obrigatório.

16. Além do mais, o horário de trabalho do arguido é das 9h00 às 18h00. No tempo de trabalho, o arguido não faz uso do telemóvel pessoal, por imposição da sua entidade patronal, usufruindo de um telemóvel fornecido pela empresa, uma vez que o seu trabalho compreende, maioritariamente, o contacto permanente com clientes e trabalhadores da empresa. Para manter o contacto com os clientes da sua empresa, o arguido, por diversas vezes, necessita de se deslocar para outros locais, fora do escritório e fora do país.

17. Sucede que o dispositivo facilmente esgota a bateria em poucas horas, emitindo inúmeras vezes ruídos sonoros, sendo que o Arguido se vê, impossibilitado de controlar a bateria do dispositivo no seu tempo de trabalho, para além de já ter recebido alertas do dispositivo e chamadas para o seu telefone pessoal, pela madrugada, quando se encontrava em casa a dormir.

18. Face ao exposto, o dispositivo atual não permite o exercício cabal da profissão do Arguida, para além do prejuízo pessoal com a interrupção dos seus períodos de descanso.

19. Pelo que, mesmo se mantendo as medidas de coação aplicadas, devem ser sem equipamento eletrónico pois a pulseira tem os inconvenientes apresentados e que prejudicam o trabalho e descanso, sendo um direito constitucionalmente consagrado, nos termos do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa.

20. Acresce ainda que, salvo o devido respeito por melhor opinião, resulta de todo o alegado que são adequadas e suficientes as medidas coativas sem a colocação de dispositivo de controlo de distância.

O recurso foi admitido.

A este recurso respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo, propugnando pela respectiva improcedência.

Nesta Relação, a Exmo. Procuradora-Geral Adjunta, no parecer que emitiu, propugna igualmente pela improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada veio a ser aditado ao processo.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.


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II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas – sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito –, podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (in Proc. nº 91/14.7YFLSB. S1)[1], e de 30/06/2016 (in Proc. nº 370/13.0PEVFX.L1.S1)[2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina o Professor Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, a questão a conhecer e decidir no âmbito do presente acórdão é a de saber se no caso se mostram reunidos os pressupostos de aplicação ao arguido das medidas de coacção de proibição de contactar por qualquer meio a ofendida ou dela se aproximar num raio de 300 metros, e de proibição de frequentar, permanecer ou aceder à residência da ofendida, qualquer das medidas com controlo por meios de vigilância electrónica.

Comecemos por fazer presente o teor da decisão recorrida, que aplicou a medida de coacção que vem impugnada pelo presente recurso:

«A detenção do arguido AA foi legal, porque efectuada nos termos do disposto nos artigos 254.º. nº1, alínea a) e 257.°,nº 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal.

A quando da apresentação dos autos para primeiro interrogatório judicial não se mostrava ultrapassado o prazo a que alude aque1a alínea a) do nº 1 do artigo 254.º e o n.º 1 do artigo 141.º, ambos do Código de Processo Penal.


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Depois de realizado o interrogatório do arguido e analisada toda a prova produzida até este momento, afigura–se-nos poder ser afirmado que indiciam fortemente os autos a seguinte factualidade alegada pelo Ministério Público:

– Factos indiciados : constantes do requerimento do Ministério Publico de fls. 340 a 361, os quais, ficam a fazer parte integrante do presente despacho.

– Motivação : a matéria de facto tida por fortemente indiciada e ora descrita fundamenta-se nos seguintes meios prova : os constantes do requerimento do Ministério Público de fls. 360 verso, os quais ficam a fazer parte integrante do presente despacho.

– Subsunção jurídica : a matéria de facto supra descrita permite afirmar que o arguido incorreu na prática de dois crimes de violência doméstica agravados, previstos e punidos pelo art. 152º nº 1 al, b) e nº 2 al. a) do Código Penal.


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Das necessidades cautelares e medidas de coacção

Feita a qualificação jurídica dos factos indiciados, cumpre agora determinar se ao arguido deve ou não ser aplicada alguma medida de coacção mais gravosa que o simples termo de identidade e residência e, em caso afirmativo, qual ou quais.

A este propósito importa começar por referir que o decretamento de uma qualquer medida de coacção, com excepção do termo de identidade e residência, está sujeito aos requisitos enunciados no artigo 204.° do Código de Processo Penal, os quais se devem verificar em concreto, ainda que não sejam cumulativos. Ou seja, basta a ocorrência de um destes pressupostos para justificar a restrição cautelar das liberdades fundamentais de um cidadão.

Assim, e de acordo com o previsto na citada disposição normativa, para que possa ser aplicada medida de coacção mais gravosa que o simples termo de identidade e residência exige-se a verificação em concreto de pelo menos um dos seguintes requisitos:

- Fuga ou perigo de fuga;

-Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;

- Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

De forma genérica diremos, desde já, que é relativamente elevada a gravidade objectiva dos factos imputados, consubstanciadores, conforme aludimos atrás, da prática de crimes punidos com pena de prisão.

A esta gravidade objectiva acresce aquela outra de índole subjectiva, consubstanciada no efeito que tais condutas têm nas vítimas e até na própria sociedade em geral (dispensando-nos de chamar à colação os números respeitantes aos crimes de violência doméstica, bem como o número de situações que acabam de forma trágica).

Ainda que se aceite que a sujeição do arguido a uma qualquer medida de coacção não pode ser entendida como antecipação do cumprimento de uma pena futura, também não deixa de ser verdade, cremos, que as necessidades de prevenção, até por força do efeito que tais factos causam na sociedade, sublinha-se, se devem fazer sentir desde logo em sede de primeiro interrogatório judicial,

E a este propósito remetemos supra pata o exarado pelo Ministério Público. Assim, sendo concreto e elevado pelo menos o perigo de continuação da actividade criminosa e, por força da própria, personalidade do arguido, o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, e sendo igualmente elevadas as necessidades cautelares do caso, afiguram-se adequadas as medidas de coacção concretamente propostas pelo Ministério Público.


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Decisão.

Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto deixei dito supra e sem necessidade de ulteriores considerações, decido que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito, cumulativamente:

1. Às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência, já prestado nos autos a fls. 378;

2. Proibição de contactar por qualquer meio (escrito, falado ou tecnológico), directo ou por interposta pessoa, com a ofendida, ou dela se aproximar num raio de 300 metros, sendo esta proibição electronicamente fiscalizada,

3. Proibição de frequentar, permanecer ou aceder à residência da ofendida, sendo esta proibição electronicamente fiscalizada.

Tudo ao abrigo do disposto nos 191.°, 192.,°, 193.°, n.º 1; 194.°, 196.°, 200.°, n.° 1 alíneas a), d), 204.°, alínea c), do Código de Processo Penal e artigo 35.º da Lei n.º 112/2009 de 16/09.


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Comunique à autoridade policial competente para a fiscalização das medidas de coacção aplicadas que qualquer infracção às mesmas deverá ser de imediato comunicada aos presentes autos.

Dê conhecimento do decidido a ofendida.

Solicite à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a realização das diligências necessárias rendo em vista a urgente efectivação das medidas de coacção aplicadas ao arguido, enviando para o efeito cópia da presente decisão.

Restitua o arguido à liberdade.».

Cumpre apreciar – não sem antes deixar a muito sucinta nota seguinte.

A decisão de que ora se recorre não é uma sentença, contrariamente à indicação que – ainda que por excesso retórico – o recorrente exara no seu requerimento.

Trata–se, sim, de uma decisão de determinação do estatuto coactivo do arguido no âmbito de um procedimento criminal que tem por objecto apurar da relevância criminal de determinadas condutas que lhe são indiciariamente imputadas, decisão essa que tem, pois, natureza e pressupostos absolutamente distintos daqueles que estão em causa aquando da prolação de uma sentença, enquanto decisão final sobre o objecto dos autos, e assenta por isso, naturalmente, também em critérios e fundamentos distintos.

Assim, e sempre contrariamente ao liminarmente referenciado no requerimento recursório, inexiste no caso qualquer «matéria julgada», pois que, no que tange à factualidade a considerar nesta fase e, em concreto, em sustento da decisão de aplicação de medidas de coacção, qualquer juízo sobre a mesma é meramente indiciário, não envolvendo qualquer julgamento no sentido processual de tal exercício.

Isto dito, prossigamos, pois.

Dispõe o art. 191º/1 do Cód. Processo Penal que “a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei”.

Porque estamos perante meios processuais restritivos da liberdade do arguido, e que contendem, assim, com os direitos, liberdades e garantias fundamentais do mesmo – sendo ademais certo que todo o processo penal se rege, no nosso ordenamento jurídico, pelo princípio constitucional da presunção de inocência (previsto no art. 32º/2 da Constituição da República Portuguesa, bem como no art. 9.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no art. 11º/1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no artigo 6º/2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), o qual impõe que qualquer limitação à liberdade do arguido antes do trânsito em julgado da condenação tem uma natureza excepcional –, as medidas de coacção têm natureza meramente cautelar, e apenas podem ser aplicadas quando, em concreto se verificar, no momento da respectiva aplicação, pelo menos uma das seguintes circunstâncias expressamente estatuídas no nº1 do art. 204º do Cód. de Processo Penal :

– a verificação de fuga ou de perigo de fuga do agente (alínea a)),

– o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova (alínea b)),

– ou o perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas (alínea c)).

Acresce ainda estipular o art. 192º do Cód. de Processo Penal, no seu nº6, uma condição genérica negativa, de cuja verificação depende a viabilidade de aplicar qualquer medida coactiva, qual seja a de que no caso concreto, e pese embora se constatem indícios de uma prática criminalmente relevante, inexistam «fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal». A referência às causas da isenção de responsabilidade deverá aqui ser entendida em alcance amplo, isto é, abrangendo todos os casos de afastamento da responsabilidade penal derivados das chamadas causas de justificação ou de exclusão da ilicitude ou da culpa, previstas em especial nos arts. 31º a 39º do Cód. Penal.

Nesta conformidade, e decorrentes do aludido princípio de presunção da inocência, emanam os demais princípios que deverão ser observados na aplicação das medidas de coacção, nomeadamente, o princípio da legalidade, o princípio da necessidade, o princípio da adequação, o princípio da proporcionalidade e o princípio da subsidiariedade – princípios que sempre devem presidir ao exercício de sopesagem das aludidas circunstâncias cautelares.

É isso que decorre do art. 193º do Cód. Processo Penal, onde se estabelecem quais os critérios gerais que devem presidir à ‘escolha’ da medida de coacção a aplicar em concreto, depois de verificada a existência das exigências cautelares (exigidas nos acima referidos arts. 191º/1 e 204º do Cód. de Processo Penal) para que seja necessário aplicar uma das legalmente previstas.

O princípio da legalidade das medidas de coacção concretiza o direito constitucional e o direito internacional dos direitos humanos (arts. 27º, 28º e 165º/1/c) da Constituição da República Portuguesa, e art. 5º da CEDH). Assim, só se admite a aplicação das medidas de coacção expressa e excludentemente catalogadas nos artigos 196º a 202º do Cód. Proc. Penal (ou em legislação avulsa). É, pois, uma enunciação taxativa, admitindo-se apenas as que se encontram previstas na lei.

O princípio da necessidade verifica-se sempre que o fim que se visa atingir com a concreta medida de coacção a aplicar não pode ser obtido por qualquer outro meio menos oneroso para os direitos do arguido. Este princípio encontra também evidência na fase de execução da medida, que deve igualmente (conforme previne o art. 193º/4 do Cód. de Processo Penal) “cingir-se ao estritamente necessário para o cumprimento das exigências cautelares, sendo ilegítimas quaisquer outras restrições ao exercício dos direitos fundamentais.” (cfr. Maia Costa, “Código Processo Penal Comentado”, 2014, pág. 859).

Segundo os princípios da adequação e da proporcionalidade, previstos no art. 193º/1 do Cód. de Processo Penal, as medidas de coacção a aplicar em concreto devem revelar-se adequadas às exigências cautelares que o caso requer, e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

Ou seja, por um lado, a medida a aplicar deve ser estritamente idónea à satisfação das necessidades cautelares do caso, isto é, deverá ser adequada para alcançar o fim cautelar pretendido no caso concreto ; e por outro, impõe–se que na aplicação de medida de coacção seja ponderada quer a gravidade do crime, quer a sanção que previsivelmente venha a ser aplicada ao arguido, de maneira a que a medida de coacção seja proporcional também a esses factores.

No que tange ao princípio da subsidiariedade, propugna que não deve ser aplicada medida mais grave do que aquela que, no caso concreto, for apta a afastar cautelarmente os perigos que se verificarem.

Em conformidade com os princípios assinalados, e como corolário dos mesmos assente no reconhecimento de que as situações jurídico–penais e processuais são realidades em si mesmas dinâmicas e susceptíveis de alteração na respectiva configuração concreta, todas as medidas de coacção têm uma natureza necessariamente provisória, pois podem ser revogadas, alterada, suspensas ou extintas – de acordo com os regimes prevenidos designadamente nos arts. 212º a 218.º do Cód. Proc. Penal –, e de forma a que, em cada momento, o estatuto coactivo do arguido seja aquele necessário, suficiente, proporcional e adequado à sua situação concreta e às exigências cautelares que o caso então demande.

In concreto, no caso particular das medidas de coacção aplicadas no caso dos autos ao ora recorrente e objecto de impugnação recursória, as mesmas mostram–se previstas desde logo no art. 200º/1/a)d) do Cód. de Processo Penal, do qual resulta que, quando existirem fortes indícios da prática de crime punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativa ou separadamente, entre outras, as medidas de :

«a) Não permanecer … na residência onde o crime tenha sido cometido ou onde habitem os ofendidos …;

d) Não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas …».

Ademais, no caso de a determinação do estatuto coactivo assentar na indiciada prática de factos susceptíveis de integrar crime de violência doméstica, resulta do disposto no art. 31º/1/c)d) da Lei 112/2009, de 16 de Setembro (que estabelece o Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas) que «o juiz pondera, no prazo máximo de 48 horas, a aplicação, com respeito pelos pressupostos gerais e específicos de aplicação das medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, de medida ou medidas de entre as seguintes:

(…)

c) Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família, impondo ao arguido a obrigação de a abandonar;

d) Não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios, bem como não contactar, aproximar-se ou visitar animais de companhia da vítima ou da família».

Para controlar o cumprimento destas medidas de coacção, e sempre no caso de se indiciar o ilícito criminal aqui em causa, foi criada a possibilidade de recurso à fiscalização através de meios de controlo à distância, prevendo exactamente o nº1 do art. 35º da citada Lei 112/2009, que «O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.».

Tendo presentes todas as considerações até aqui exaradas, e começando a reverter à análise da situação dos autos, cumpre então decompor os planos de análise que sucessivamente devem enformar a decisão de aplicação da medida de coacção que aqui teve lugar, e bem assim determinar a escolha concreta daquela (se alguma) a aplicar, planos esses que podem configurar–se no seguinte modelo :

– no plano de base da análise, deve ter–se por verificada uma situação em que se evidenciem fortes indícios da prática pelo arguido de um tipo criminal doloso de uma específica natureza, ou que seja em abstracto punível com um limite máximo de pena (pois que, como determina o art. 195º do Cód. de Processo Penal, «Se a aplicação de uma medida de coacção depender da pena aplicável, atende-se, na sua determinação, ao máximo da pena correspondente ao crime que justifica a medida»), que, em qualquer caso, permita a aplicação da medida de coacção que está concretamente em equação – e, do mesmo passo, verificar também se não há de todo o modo motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal,

– depois, num plano intermédio, e assente que esteja aquele primeiro pressuposto de base, cumpre aferir se no caso se verifica alguma das exigências cautelares que vimos previstas no art. 204º do Cód. de Processo Penal,

– finalmente, no plano de topo da análise, cabe ponderar qual das medidas de coacção aplicáveis no caso se mostra a mínima suficiente para, de forma adequada, dar satisfação à tutela de tais exigências cautelares, do mesmo passo que se mostre proporcional à compressão dos direitos individuais do arguido que a sua aplicação determina.

Começando precisamente pelo primeiro plano acabado de enunciar, deve desde logo ter–se presente que o arguido/recorrente, pese embora comece por anunciar que estamos perante «matéria incorrectamente julgada», não gasta uma vírgula de argumentação da sua petição sequer a ensaiar a colocação em causa de um único do acervo de factos considerados em sede de decisão recorrida como indiciariamente praticados pelo mesmo arguido, e que sustentam a jusante a apreciação e  decisão jurídico–penal (esta sim) impugnada.

Seja como for, cumpre deixar claro que, como a de cisão recorrida referencia, dos vários elementos probatórios recolhidos nos autos – e que naquela vêm enunciados –, decorre fortemente indiciada a ocorrência do seguinte conjunto de factos :

Em Setembro de 2022, a ofendida BB e o denunciado AA (também conhecido por «CC») assumiram uma relação de namoro e, decorrido cerca de um mês, passaram a coabitar na residência sita na Rua ... nº ..., 1 º Dto., no Porto, a qual tinha sido previamente arrendada por aquela.

Ora, ainda antes da assunção da relação de namoro (que já existia, mas de forma reservada) e, em concreto, em Junho de 2022, no decurso de um jantar entre ambos, o denunciado ingeriu álcool em excesso, o que lhe determinou uma alteração de comportamento, ficando exaltado.

E assim, no trajecto até à residência do mesmo (em Matosinhos), o AA saiu da viatura onde se faziam transportar, sentou-se na beira da estrada e começou aos berros para a ofendida, referindo-lhe «vai-te embora», «eu amo-te», «tu não percebes».

A partir dessa data, a ofendida ganhou consciência que, quando ébrio, o denunciado alterava o seu comportamento, ficando de tal forma exaltado que aquela deixava de responder para evitar problemas ou discussões.

No dia 3 de Setembro de 2022, a ofendida e denunciado encontravam-se na residência do pai daquela (sita na Rua ...), quando este a começou a questionar porque seguia (nas redes sociais) esta ou aquela pessoa.

Na realidade, o denunciado controlava as redes sociais da BB e, nessa data, questionou-a sobre um tal «DD», que nunca colocava gostos nas publicações da ofendida, embora esta o fizesse nas publicações do mesmo.

E porque a BB efectuou uma ligação em vídeo chamada para esse indivíduo (no sentido de justificar/demonstrar que o considerava como um irmão), o denunciado arrancou-lhe o telemóvel das mãos e arremessou-o para o chão.

De seguida, o mesmo questionou-a aos berros: «o que é isto, mas és alguma vagabunda?», insurgindo-se pelo facto de a ofendida conversar com outros rapazes.

Ainda nesse mês, a ofendida e denunciado foram comemorar o aniversário deste na ....

E assim, no dia 18 de Setembro de 2022 jantaram, passearam e estiveram numa esplanada, onde o denunciado ingeriu mais bebidas alcoólicas.

E quando a BB comentou não pretender, a curto prazo, ter (mais) filhos, o denunciado exaltou-se, levantou-se e abandonou o local, deixando-a para trás.

Para não ficar sozinha (em local que nem sequer conhecia) a BB seguiu o denunciado, mas - ao vê-lo dirigir-se para ruelas - regressou ao Hotel onde pernoitavam e onde, nessa data, permaneceu cerca de uma hora à espera do mesmo para poder entrar no quarto, não obstante ter telefonado várias vezes ao AA.

E a primeira coisa que o mesmo fez, quando ali chegou, foi retirar bruscamente o telemóvel das mãos da ofendida (no sentido de não poder contactar com ninguém para pedir ajuda ou relatar o sucedido) e de lhe referir aos gritos «não vales nada».

Com receio de escândalo, atento o local e adiantado da hora, a ofendida não descortinou reacção possível, pernoitando no mesmo quarto do denunciado, ainda que este decidisse dormir no chão.

No dia seguinte, o AA devolveu à ofendida o telemóvel, mas permaneceu em silêncio.

Em data não concretamente apurada (mas já após o início da coabítacão) e ciente que o pai da ofendida não aprovava/gostava a relação entre os dois, na Rua ..., nesta cidade, o denunciado - em jeito de provocação declarou para a ofendida que iam até à residência daquele.

A dado momento e porque o AA teve de imobilizar a viatura onde se faziam transportar, a ofendida aproveitou para fugir, dirigindo-se, apeada, até à morada de uma prima.

No entanto, o denunciado foi no seu encalce e, no meio da rua, puxou-a pelos

braços, conseguindo arrastá-la.

À época e, portanto, sensivelmente desde o início da coabitação, o denunciado nunca se absteve de ingerir álcool durante os fins de semana e em convívios sociais e, em consequência, já adoptava comportamentos de exaltação e de imposição das suas vontades.

Por outro lado, de modo frequente, o denunciado saía à noite para confratemizar com amigos, fazendo-o no veículo de marca Nissan, modelo ... e com a matrícula AD-..-IN, cujo uso havia sido facultado à ofendida, pelo pai, dono da empresa que o tinha alocado.

E o denunciado pegava na chave da citada viatura e usava-a sem o consentimento da ofendida.

No dia 7 de Dezembro de 2022, o AA apareceu em casa por volta do almoço e porque a ofendida demorou a abrir a porta, o mesmo começou aos berros, referindo «eu sou algum palhaço, para ficar à porta?» e «não brinques comigo».

Nessas circunstâncias de tempo e lugar, a ofendida decidiu sair de casa (para evitar qualquer escalada de violência verbal ou até física), pelo que, para retirar calçado, abriu o gavetão da cama. E o denunciado fechou-o bruscamente, trilhando lhe um dedo da mão que tem polifracturada por anterior acidente rodoviário.

Mercê desta conduta, a ofendida teve de recorrer a serviços médico–hospitalares, sendo que o denunciado a culpabilizou, declarando-lhe «magoaste-te e a culpa é minha?» e «estavas ao telefone e não abrias a porta».

Acresce que, também a partir dessa época, o AA passou a menorizar a ofendida com as expressões: «és fraca» e «estás a tomar-te uma pessoa fraca».

A 13 de Dezembro de 2022, depois de uma discussão durante o jantar, o denunciado saiu de casa, regressou cerca das 23:00/23:30 horas e declarou para a ofendida que a relação entre ambos não estava a funcionar, começando a arrumar os seus pertences.

No entanto, antes de abandonar a referida habitação, o AA decidiu que deviam ter uma conversa e, perante a recusa da ofendida, exaltou-se. Ainda assim, o mesmo deixou a chave de casa, o comando da garagem e saiu.

Só que, volvidos apenas cerca de 5 (cinco) minutos, o mesmo regressou, perguntando pelo telemóvel e pedindo à ofendida que lhe abrisse a porta para o recolher.

Esta, por seu turno, ligou para o respectivo número de contacto e confirmou que tal aparelho não estava dentro de casa.

Perante isso, o denunciado subiu pelos canos do prédio e entrou pela varanda da cozinha.

De imediato, o mesmo retirou o telemóvel das mãos da BB e fiscalizou as chamadas ou mensagens que a mesma, eventualmente, tivesse efectuado.

Deste modo, ao constatar que a ofendida havia tentado contactar a Polícia, o mesmo exaltou-se, dirigiu-se à cozinha, muniu-se com uma faca e, empunhando a mesma, questionou-a: «foste chamar a Polícia? Por minha causa? Mas eu sou algum bandido?».

De seguida, o mesmo pegou na chave do Nissan e, na posse do telemóvel da ofendida, saiu de casa, afirmando-lhe: «tu vais-te arrepender», «não sabes com quem te meteste».

E assim, a ofendida foi pernoitar na residência da sua prima EE, onde permaneceu durante uma semana, com receio de uma eventual retaliação do denunciado.

E este reteve os referidos bens até dia 20 de Dezembro de 2022 (argumentando que também não dispunha do seu passaporte), data em que acedeu em encontrar-se com a ofendida, junto à residência do pai desta.

Só que, nessa data e antes da hora do encontro, a ofendida deslocou-se à loja de uma amiga, de nome FF (sita nas imediações), onde o denunciado a viu e para onde se dirigiu, logo a questionando com quem estava a falar e referindo uma vez mais «estás a falar com a Policia, eu não sou nenhum bandido».

De facto, logo que o viu e com medo, a BB efectuou uma chamada telefónica para a Polícia de Segurança Pública. E quando o conseguiu, o denunciado pegou no novo aparelho desta e vistoriou os contactos efectuados.

Devolvidos os pertences de cada um e decorridos alguns dias, o denunciado mudou de atitude.

Assim, porque em época natalícia, o AA enviou à ofendida, por Whatsapp uma figura de Pai Natal, dando início a uma troca de mensagens, que culminou por irem almoçar juntos e voltarem a encontrar-se. Aí o denunciado presenteava a ofendida com flores e, no dia 27 de Dezembro de 2022, surpreendeu-a com uma rosa e chocolates.

Para além disso, o AA logrou convencer a ofendida que tudo ia ser diferente e que só lhe queria fazer bem, pelo que, em Janeiro de 2023, a mesma perdoou-o, acreditou que o mesmo mudaria de atitude e retomou a coabitação.

Em Fevereiro desse ano, o denunciado voltou ao seu comportamento anterior de controlo (nomeadamente fiscalização do conteúdo do seu telemóvel), de humilhação (com as expressões já descritas, que a menorizavam) e de frequente exaltação, com berros que lhe dirigia.

Também nesta época, o denunciado forçou à ofendida, com muita insistência, a apagar no seu telemóvel e das redes sociais todas as imagens do seu ex-marido (e pai da sua filha).

E o mesmo chegou a enviar-lhe uma mensagem com os dizeres: «mulher minha não anda sozinha na rua».

O denunciado - fortalecido pelo perdão da ofendida - passou a obstar aos convívios sociais e familiares da mesma, sobretudo em relação a pessoas que supunha não simpatizarem com ele.

No dia 3 de Março de 2023, o denunciado saiu de casa às 22:00 horas, alegadamente para tomar um café com o amigo GG, o qual ia uns tempos para a Colômbia.

Desde logo, a ofendida ficou preocupada porque sabia que o mesmo ia ingerir álcool e ficar alterado.

Depois de trocas de mensagens e depois de saber que tinha acontecido uma confusão, a ofendida decidiu ir ao encontro dele, procurando-o pela baixa do Porto. Mas porque não o encontrou e percebendo que o mesmo estaria afectado com álcool ou droga, colocou o seu telemóvel em «modo de voo» e, para não incomodar ninguém, foi dormir a um hotel.

À data, a BB estava decidida a terminar a relação de intimidade entre ambos.

E assim, a partir do momento em que a ofendida deixou de o contactar, foi o denunciado quem passou a remeter, à mesma, várias mensagens. Depois, foi à sua procura, quer na morada do pai, quer na residência de uma amiga (EE), onde, aos berros e a desferir pontapés em baldes do lixo, afirmava: «eu sei que ela está aí» e «eu vou entrar».

Quando, no final da manhã seguinte se encontraram na residência comum, o denunciado baixou os estores (para que do exterior, nada pudesse ser visto), começou a arremessar cadeiras e a perguntar - aos gritos - onde a ofendida tinha ido dormir.

Neste contexto e referindo que mulher dele não ia para hotel, o denunciado desatou a puxar-lhe o cabelo, apertou-lhe o pescoço com ambas as mãos, bateu-lhe com a cabeça na parede e apertou-lhe, com força, a mão esquerda (que sabe ser a lesionada e que, portanto, lhe provocaria dores fortes).

E ao mesmo tempo que a esganava e lhe batia com a cabeça na parede, o denunciado apontou-lhe uma faca à face e ao corpo (obstando, assim, a qualquer tentativa de reacção).

Nessas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o denunciado ainda declarou, para a BB - em tom sério, convincente e intimidatório - «sabes que te posso desfigurar aqui e agora, não sabes?».

Depois, o mesmo muniu-se com um copo em vidro e colocou a parte interior junto ao nariz e boca, impedindo-a de respirar, ao mesmo tempo que referia «só preciso de um dedo» e «não preciso de facas».

Tais destrates físicos perduraram durante cerca de meia hora, até à comparência da Polícia de Segurança Pública.

Nesse momento e enquanto - por ordens do mesmo - a ofendida limpava os vestígios do acontecido, o denunciado recusava franquear a porta àquela entidade, que acabou por se ausentar.

E não obstante esta ocorrência, no dia 22 de Março de 2023, na Esquadra de Investigação Criminal da Polícia de Segurança Pública, a ofendida escusou-se a prestar declarações (sobre factos até Dezembro de 2022), porque com muito medo de possíveis retaliações, mas também porque ainda se encontrava emocionalmente ligada ao AA e queria acreditar que o mesmo estava muito arrependido.

Na realidade, na véspera de tal diligência, o denunciado questionou a BB - de maneira inquisitiva e em tom ameaçador - sobre o que a mesma pretendia declarar no processo.

Na tarde de 15 de Abril de 2023, no interior de um estabelecimento de restauração, o denunciado - no sentido de menorizar a ofendida - declarou-lhe que a ex-namorada era diferente de qualquer mulher que ali estava, adiantando que a ofendida não perceberia o porquê.

E porque não gostou do referido comentário, a BB levantou-se (de início para ir embora, mas depois para se deslocar ao quarto de banho), quando, no meio da sala, o denunciado a agarrou por um braço e puxou-a até à mesa onde tinham estado sentados.

Humilhada, porque na presença de várias pessoas, a ofendida não esboçou qualquer reacção. E já sentados, o denunciado colocou um sorriso amistoso na face (para o público), mas em tom baixo e intimidatório, disse-lhe «se continuas com essa atitude esta faca que está aqui em cima da mesa vai parar até ao teu pescoço».

Uma vez mais e porque tolhida de medo, a ofendida calou-se e permaneceu sentada.

No dia 11 de Maio de 2023, e depois de um almoço com a mãe, a avó e um amigo do denunciado, a ofendida transportou as duas primeiras até à respectiva residência, enquanto o denunciado permaneceu em casa, com o amigo «HH».

Entretanto, o AA informou a ofendida, por mensagem, que ia «girar» com esse amigo e só regressou a casa já cerca das 22:00 horas, segurando um copo com sangria e em evidente estado de embriaguez.

E à pergunta, «como correu», o denunciado pegou na mão esquerda da ofendida (a lesionada) e apertou-a com força, acabando por agarrar no 4º dedo (o mais afetado) e torcê-lo, provocando dores intensas.

De seguida, o mesmo empurrou a BB contra a parede da cozinha e, com uma mão, apertou-lhe, com força, a frente do pescoço - fazendo-a sentir dificuldades em respirar - perguntando-lhe: «estás com falta de ar?» e afirmando: «tu tens medo de mim, BB».

Nesse momento, a mesma ficou aninhada no chão do hall de entrada e o denunciado continuou a repetir esta última frase.

Também nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o denunciado muniu–se de duas facas grandes e, depois, de uma de dimensões menores, apontando a ponta da lâmina para o corpo da ofendida e, depois, colocando o gume (parte da lâmina cortante) junto ao pescoço da mesma.

No decorrer da referida conduta, o copo com que havia regressado a casa caiu e partiu-se, pelo que o denunciado o recolheu, apontando na direcção da face da ofendida a parte estilhaçada (corto-perfurante).

Dias depois e porque havia ficado sem emprego (e, portanto, sem viatura de serviço para usar durante o dia), o denunciado tentou convencer a BB a adquirirem um veículo próprio e, em concreto, um Jaguar (alegando ser a marca preferida da mãe dele).

Nessa época, a ofendida já havia financiado um curso profissional ao denunciado, que o completou com êxito, pelo que o mesmo acabou por conseguir (à experiência) emprego na empresa denominada «A...», na área da distribuição.

Com o início de funções em Junho de 2023, a ofendida autorizou o AA a fazer-se transportar, para o efeito, no referido Nissan, passando ela a conduzir a viatura que havia sido da sua mãe, um Chevrolet.

Não obstante, depois da última agressão o denunciado ter prometido à ofendida que ia deixar de sair à noite, no dia 3 de Junho de 2023 (véspera de um encontro em Aveiro, marcado pelo denunciado, com um vendedor de um Jaguar), o mesmo deu conta à ofendida que, pela última vez, ia ao encontro do II (chegado de Moçambique) e do já referido «HH».

Durante o jantar, o denunciado foi enviando mensagens à BB, até que, a determinado momento, deixou de responder ou de mandar mensagens e não foi dormir a casa.

Percebendo que o AA teria ingerido bebidas alcoólicas em excesso, cerca das 11:00 horas da manhã seguinte, a mesma saiu de casa.

Ainda assim e perante o pedido de desculpa daquele, mas já decidida a terminar a relação entre ambos, a mesma acedeu em deslocarem-se a Aveiro, onde no sentido de evitar discussões e retaliações - não colocou obstáculos à aquisição da viatura pretendida.

No dia seguinte e porque a BB comentou ter visto um outro veículo que lhe agradava, o denunciado exaltou-se, afirmou que o Jaguar era o carro que ele queria, que a ofendida não percebia de nada, que nunca tinha tido de lutar para conseguir nada e pôs fim à discussão com a frase: «vamos lá treinar; entes que eu me passe».

Acresce, neste aspecto, que a ofendida não podia deslocar-se para o Ginásio, sito nas imediações da residência comum, sem ser previamente vistoriada pelo AA, que a proibia de usar determinadas peças de roupa e que controlava todo o treino da mesma.

Já no regresso, depois do jantar e ainda irritado, o AA saiu de casa.

Por seu turno, a ofendida recolheu alguns bens próprios e foi pernoitar na residência de uma antiga, disso informando o denunciado, que não respeitou esta decisão e que a contactou insistentemente, instando-a - aos gritos - a regressar a casa.

Ora, no sentido de reaver o referido Nissan e as chaves da residência e garagem, no dia 6 de Junho de 2023, a ofendida acedeu em encontrar-se com o denunciado na Rotunda ..., nesta cidade, onde a mesma se fez acompanhar com o pai.

Por seu turno, o denunciado foi ao encontro de ambos, fazendo-se transportar nessa mesma viatura; saiu para o exterior e, numa atitude intimidante (fazendo crer que poderia estar munido de uma qualquer arma), manteve as mãos nos bolsos. No final, declarou para a ofendida - em tom sério e convincente - «vou-me embora agora, para não te matar aqui».

E o denunciado não procedeu à devolução do citado veículo, mantendo-o na sua posse sem o consentimento e contra a vontade do legal usufrutuário, o pai da ofendida.

Ainda assim, o mesmo foi tentando sempre o contacto com a ofendida, até que pelas 02:41 horas da madrugada de 8 de Junho lhe enviou uma mensagem a dizer «é urgente, fui assaltado) vou para o Hospital».

Na realidade, o AA (socialmente também conhecido como «CC») tinha-se envolvido numa contenda física com um amigo, o qual decidiu relatar à ofendida que o mesmo, em data não apurada, lhe relatou tê-la agredido, comentando que esta «piou fininho» e que só não a matou «por um triz».

Mantendo a versão de assalto, no sentido de criar a convicção de ter sido vítima e de demover a ofendida na decisão sobre o fim da relação, o denunciado contactou-a, insistindo para que regressasse a casa e, quando percebeu que não conseguia vergá-la, passou a referir que pretendia renovar o contrato de arrendamento da citada habitação, mudando-o para o seu nome.

E isto, não obstante a ofendida o instar a sair da referida morada, pois que a mesma havia sido previamente arrendada a si.

Deste modo, quando percebeu que a BB não cedia no reatamento da relação e coabitação, o denunciado mudou de atitude.

Por um lado, o mesmo pediu a entrega do preço da venda de vestuário do irmão (que a ofendida se tinha proposto fazer), bem como a pagamento do montante reportado a um bilhete adquirido pela mãe.

Depois, o AA passou a insistir para que a ofendida lhe facultasse o número de contacto da proprietária e da intermediária do arrendamento do imóvel onde tinham morado juntos (e onde ele, indevidamente, se mantinha).

A 23 de Junho de 2023, a ofendida - com o pai, um funcionário deste e, ainda, com pessoal de uma empresa de transportes - dirigiu-se à citada residência para recolher os seus bens pessoais.

Após e ciente disso, o denunciado deslocou-se à residência do pai da ofendida (onde esta, entretanto, se tinha refugiado), tocou à campainha e tentou abrir (com uma chave) a porta de entrada da mesma.

Neste contexto, a ofendida e o seu pai passaram a deslocar-se de Uber, este deixou de fazer as suas caminhadas e ambos alternavam as dormidas, quer na residência de um familiar, quer na residência daquele.

Entretanto, o denunciado continuou a tentar o contacto telefónico com a BB, até que a mesma bloqueou o respectivo número.

E assim, o mesmo entrou no Messenger do Facebook da ofendida e, fazendo-se passar por ela, escreveu e endereçou mensagens a uma amiga; e entrou no Instagram aberto pela mesma, onde apagou uma conversa desta com a sua vizinha ucraniana, que o podia incriminar pelas agressões.

Entretanto, BB solicitou ao denunciado que saísse da referida morada e procedesse à restituição do Nissan, propondo-se a devolver-lhe a máquina de barbear, um saco de ginásio, um colar e quatro pulseiras (que eram pertença do mesmo).

Na data indicada por esta, o pai da ofendida entregou os objectos do AA num estabelecimento sito nas imediações da residência que tinha sido comum, mas este nada restituiu ; nem sequer o comando da garagem (onde estava estacionado o Chevrolet).

Para além disso, o denunciado propunha-se vender parte do mobiliário da citada habitação, estabelecendo os respectivos preços, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e era da ofendida e que actuava sem o consentimento e contra a vontade desta.

Só que, no dia 3 de Julho de 2023 o denunciado viu-se obrigado a fugir e abandonar a referida residência, deixando ficar as chaves todas, nomeadamente as do veículo de marca Nissan, uma vez que tal viatura ficou fortemente danificada (porventura por força de um forte embate ou, ao invés, de forma voluntária, uma vez que os airbags não foram accionados).

Ciente da situação, o denunciado desapareceu, até que, pelas 12:26 horas do dia 4 de Novembro de 2023 e, através de uma outra mensagem previamente enviada aos CTT, o mesmo escreveu e endereçou à ofendida o mail com os dizeres «BB, sei que isto é estranho mas preciso da tua ajuda», para cerca de uma hora depois, remeter um outro com o teor «Ignora como o fizeste, sem stress».

O AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente com o propósito de humilhar e menorizar, de atemorizar e de agredir a ofendida, atentando contra o respectivo direito de confiança - no estabelecimento e restabelecimento da relação de intimidade - que o mesmo se absteria de tal tipo de condutas.

E o denunciado agiu, amiúde, no interior da residência comum, a coberto da reserva de intimidade que tal locus lhe proporcionava (e, portanto, sem risco de ser surpreendido), e num espaço que deveria servir de conforto e de segurança para a ofendida.

Acresce que todas as agressões que o denunciado infligiu à ofendida iniciavam com o mesmo a baixar os esteres da residência (a fim de não ser visto pelo exterior), com o arremesso de cadeiras e de um cabide de pé e, por fim, com a recolha e exibição de facas de cozinha.

E numa das ocasiões, a raiva do denunciado era tanta, que chegou a arrancar a parte da frente da gaveta onde as mesmas se encontravam.

Tal acervo fáctico resulta indiciado pela análise dos meios de prova recolhidos nos autos á data do interrogatório do arguido, mormente, e desde logo, por via das declarações prestadas pela ofendida, quer no OPC (cfr. fl. 11 e segs.), quer já perante autoridade judiciária, nomeadamente Procuradora da República (cfr. fls. 82 e segs.)[3].

Alguns dos aspectos descritos pela mesma denunciada encontra corroboração indiciária no teor dos fotogramas constantes de fls. 26/27 (da cara e mão da ofendida, e captadas pela P.S.P. no dia 26/06/2023), de fls. 112/114 (da mão da ofendida), e fls. 124/132, fl. 134, fl. 141, fls. 162/164 (da cara e mãos da ofendida, de facas e de um copo, e de vários outros objectos acima referenciados), e nas cópias impressas do teor de mensagens trocadas via telemóvel entre o arguido e a ofendida (cfr. fls. 41 e segs., 115 e segs., 133, e 135 e segs., 142 e segs., e 165 e segs.).

O (vasto) acervo fáctico que assim se tem por indiciado, consubstancia efectivamente o preenchimento pelo arguido dos pressupostos de tipicidade, ilicitude e culpa do imputado tipo criminal de violência doméstica agravada (pelo menos), dirigido a sua ex–namorada e (durante um determinado período temporal) também companheira, a ofendida BB – enquadramento jurídico–criminal este que também não se mostra invectivado em sede de recurso, diga–se.

Na verdade, analisados todos os elementos probatórios indiciários recolhidos nos autos, é fora de dúvida que o juízo formulado pelo Tribunal a quo é não apenas coerente com essa prova indiciariamente considerada, como também com a sua valoração conjugada à luz das mais elementares regras da experiência comum.

O comportamento do arguido denota que este, numa actuação que veio em crescendo ao longo do respectivo relacionamento, adoptou um comportamento claramente perturbador da tranquilidade e bem-estar físico e psicológico da ofendida – traduzido em agressões verbais sob a forma de insultos e ameaças, em controle de movimentos e contactos pessoais e por outras vias (designadamente redes sociais), com ostensiva invasão e violação da privacidade pessoal da ofendida, e mesmo inclusive em agressões físicas de alguma gravidade e com sequelas no corpo da mesma –, sendo em alguns casos esse comportamento altamente sugestivo da reiteração de actos da mesma natureza, pese embora o termo daquela relação.

As condutas indiciadas por parte do arguido espelham um deliberado intuito de exercer violência psicológica, emocional e física sobre a vítima, e, analisadas na sua consideração globalizada, são reveladoras de um comportamento de constante importunar, de uma vontade de perturbar e constranger a ofendida.

Tudo se traduz numa especial desconsideração pela pessoa da sua ex–companheira e surgindo motivados precisamente por incidências directamente ligadas a esse relacionamento, e também à forma como o mesmo se mostra terminado.

E tudo consubstanciando, assim, a noção de maus tratos tipificada no art. 152º do Cód. Penal.

Não deixa de se realçar que o legislador penal de 2007 alargou (por via da alteração da redacção do art. 152º do Cód. Penal introduzido então pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro) o âmbito de aplicação do crime de violência doméstica aos maus tratos sobre ex-cônjuges ou ex-companheiros – e depois ainda àquelas dessas pessoas com quem inclusive apenas se verificou uma relação de namoro (nos termos da alteração introduzida pela Lei 19/2013, de 21 de Fevereiro).

Donde, e como bem concluiu o tribunal recorrido, no caso dos autos mostra–se fortemente indiciada a prática pelo arguido de factos integradores do cometimento, em autoria material, do aludido crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152°/1/b)/2/a) do Código Penal.

E assim temos por verificados, nos termos e para os efeitos exigidos no art. 200º/1 do Cód. de Processo Penal, “fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos” – isto é, sólidos e inequívocos sinais e vestígios que convencem da existência de um facto jurídico-penalmente relevante e de que o mesmo é imputável ao arguido, devendo ou podendo ser previsível que, num juízo de prognose, a manterem-se em julgamento, ocorrerão fundadas e sérias probabilidades de conduzir a uma condenação pelos factos típicos assim indiciados.

Mais se dirá não haver nesta fase qualquer razão para antever que relativamente à pessoa do arguido, ou por reporte às indiciadas circunstâncias da sua actuação, possa verificar–se alguma causa que exclua a ilicitude dos factos ou a culpa do recorrente, ou ainda que configure motivo de extinção da sua responsabilidade criminal sob investigação.

Não se suscita, pois, qualquer dúvida sobre o preenchimento dos pressupostos de que, neste primeiro plano de análise, depende a aplicação de uma medida de coacção ao arguido.

Passando ao segundo plano de análise, e no que tange, portanto, às exigências cautelares elencadas – sob a qualificação de perigos – no art. 204º do Cód. de Processo Penal, o tribunal a quo considerou verificados os perigos de perturbação do inquérito, e de continuação da actividade criminosa bem como de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.

Tal ponderação do tribunal recorrido mostra–se efectivada nos termos já cima transcritos, que aqui se dão por reproduzidos.

Reportando aos mesmos, julga–se ser no caso concreto sobremaneira mais acentuado o perigo de continuação da actividade criminosa.

É verdade que este perigo não se confunde, necessariamente, com a certeza de reiteração na consumação de actos criminosos, devendo antes ser o respectivo grau ser aferido em função de um juízo de prognose a partir dos factos indicados e personalidade do arguido por neles revelada – ou seja, como logo se adverte na alínea c) do nº1 do art. 204º do Cód. de Processo Penal, “em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido”.

Como observa, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/11/2011 (proc. 828/10.3JAPRT–D.P1)[4], o «perigo de continuação da actividade criminosa não pode deixar de assumir um carácter concreto e que terá que ser aferido a partir de elementos factuais que revelem ou o indiciem e não de mera presunção, abstracta ou genérica. O que significa que o perigo de continuação da actividade criminosa terá de ser apreciado, caso a caso, em função da contextualidade de cada caso concreto».

Ora, no presente caso o perigo de continuação da actividade criminosa julga–se patente em face da conduta concreta em causa nos presentes autos, sendo que, analisada a materialidade dos factos indiciados, se constata que o arguido revela algum descontrolo emocional e incapacidade de controlo dos impulsos, revelando uma personalidade violenta, agressiva e reiterada nos seus comportamentos ofensivos e persecutórios para a sua vítima ao longo de cerca de um ano – quer no decurso do relacionamento de ambos, quer após cessado o mesmo.

Ou seja, o que está em causa nos autos não é, de todo, um evento ocasional e esporádico, mas antes uma continuada e persistente actuação censurável, que indicia ser decorrente dos traços de personalidade do arguido.

Precisamente por estes últimos motivos – isto é, atento ainda e sempre quanto denota a personalidade revelada pelo arguido na sua conduta –, não podemos deixar de salientar a repulsa social decorrente da prática de actos como os do arguido, face ao relevante desvalor da acção e às gravosas consequências que podem advir. Donde, os factos fortemente indiciados suscitam acentuada censurabilidade pelo cidadão comum, representando a negação de valores ínsitos à vida em sociedade, acarretando consequências de instabilidade social a tibieza na resposta aos mesmos.

Julga–se, assim, não ser também despicienda a necessidade de acautelar a segurança e tranquilidade comunitárias, ainda que in concreto o perigo em causa se afigure de acentuado menor relevo face àquele anteriormente delimitado.

Cabe enfim, e no patamar que traduz essencial corolário da presente análise, ponderar sobre se as medidas de coacção de proibição de contactos com a ofendida e se frequência ou acesso á sua residência, tudo com controle por meios electrónicos, no caso se mostram as mínimas suficientes para, de forma adequada, dar satisfação à tutela das aludidas exigências cautelares – mormente aquela ligada ao perigo de continuação da actividade criminosa –, e bem assim se se mostram proporcionais na compressão dos direitos individuais do arguido que a aplicação das mesmas determina.

E a resposta crê–se dever ser também nesta parte claramente positiva.

Tendo em conta o modo de actuação do arguido, a natureza e gravidade das condutas que os autos fortemente indiciam e quanto denotam em termos de expressão da sua personalidade, afigura–se que as medidas de coacção impostas são absolutamente proporcionais, adequadas e necessárias para acautelar nomeadamente o perigo de continuação da actividade criminosa acima assinalado.

Bem se compreende, julga–se, que uma pessoa com os traços de personalidade do arguido, que sistematicamente perpetrou, mesmo após cessado o relacionamento entre ambos, actos de concreta agressão ao bem estar da ofendida – nos termos acima percorridos –, seja impedida de continuar a movimentar-se e a aceder à proximidade física com a ofendida, potenciando assim os seus desmandos.

Para tal efeito, afigura–se (por ora) como minimamente suficiente a aplicação das medidas em causa.

Sendo que tal suficiência assenta, precisamente, na circunstância de, concomitantemente, se determinar a monitorização das mesmas por meios electrónicos, como determinado, o que permite algum controlo por parte da ofendida relativamente a qualquer tentativa de aproximação do arguido, do mesmo passo que contribui para demover da parte deste qualquer intuito de reiterar em tais aproximações.

Ora, e revertendo de modo imediato à alegação do recorrente, o que se constata é que, precisamente, o principal foco da sua discordância quanto às medidas de coacção aplicadas reside na circunstância de haver sido determinado o acompanhamento das mesmas por meios de controle electrónico.

Não lhe assiste qualquer razão – sendo, aliás, que como bem assinala o Ministério Público na sua resposta ao recurso, em sede de primeiro interrogatório judicial, no âmbito do qual veio a ser determinada a aplicação das medidas de coacção no caso, se consigna que o arguido «autoriza que as medidas de coacção sejam controladas por meios técnicos à distância», pelo que esta sua actual pretensão quase consubstancia uma espécie de venire contra factum próprio.

Os motivos que o arguido invoca para propugnar pela revogação pelo menos da imposição de tal controlo à distância, além de radicarem, todos, em incómodos pessoais que para si acarreta a maçada de ter de assegurar o respectivo funcionamento técnico, são circunstâncias cuja consideração processual, inclusive, nem sequer pode ser ponderada nesta sede recursória.

E assim é pela simples razão de que não pode ser subtraída a sua ponderação a uma decisão em primeira instância.

Na verdade, pretender aditar elementos de suposto relevo de facto em fase de recurso, e extrair deles consequências a nível processual, viola o espírito e a letra da lei, sendo fora de toda a lógica pretender que o tribunal de recurso vá sindicar a forma como se formou a convicção do tribunal recorrido utilizando elementos que não estiveram disponíveis aquando da decisão que lhe competiu adoptar.

O que se analisa em sede de recurso ordinário é o acerto de uma decisão judicial, sendo que esse exercício de sindicância recursiva apenas pode ter por base as circunstâncias em que a decisão recorrida foi tomada, e não quaisquer factores supervenientes à prolação da decisão em primeira instância, e de que o juiz que a proferiu (recorrido), à data, não era conhecedor.

Limite temporal que, como se escreveu designadamente no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/05/2010 (proc. 418/08.0PAMAI–C.P2)[5], «visa, desde logo, garantir o respeito pelo princípio do contraditório, princípio fundamental do direito processual», aditando mais adiante que «Acresce que, para além dessa razão de disciplina da tramitação processual, o recurso destina-se a que o tribunal superior aprecie a decisão recorrida e não a decidir questões novas.

Ora, a bondade da decisão recorrida há-de ser apreciada tendo em conta o direito aplicável ao caso concreto e tendo em conta, também, os elementos existentes nos autos aquando da sua prolação.

Na verdade, ao tribunal de recurso não compete proferir decisões que não tenham sido colocadas ao tribunal recorrido, mas sim analisar as decisões por este proferidas e aferir da sua conformidade com as provas e com a lei e nesta análise terá que se circunscrever aos elementos a que o tribunal recorrido teve acesso. Daí que esses elementos devam manter-se inalterados ».

Os recursos estão, pois, configurados no nosso sistema processual penal como remédios jurídicos, visando apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas que não foram, nem podiam ter sido, suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido. Donde, à sindicância do acerto da decisão judicial proferida em primeira instância, não podem servir de fundamento elementos apenas invocados com o recurso em que aquela se suscita, uma vez que não foram objecto de apreciação e pronúncia pelo tribunal recorrido.

Em suma, e retomando a nossa análise, entende–se que bem decidiu o tribunal recorrido quando, sopesando tudo quanto acima já se enunciou relativamente à caracterização das exigências cautelares que aqui se fazem sentir, e que, no caso concreto, se revelam graves e elevadas, decidiu pela aplicação das aludidas medidas de coacção e pelo específico regime de execução e controle das mesmas.

Nesta exacta perspectiva, o equívoco em que, salvo o devido respeito, labora o recorrente, é o de que as medidas de coacção aplicadas pela forma como o foram, não traduzem um excesso cautelar relativamente às circunstâncias do caso, mas antes são a forma de procurar obstar a que a compressão da liberdade do arguido tenha de ser mais acentuadamente limitada por outras medidas de coacção mais gravosas.

Assim, deverá o recorrente ponderar em que a aplicação da proibição de contactos com controlo à distância se mostra estabelecida como um mínimo, para evitar terem de ser adoptadas outras formas de restrição de movimentos menos tolerantes.

Nesta perspectiva, julga–se pertinente assinalar, para que o recorrente de tal fique bem ciente, que o crime de violência doméstica na sua forma agravada, sendo em abstracto punível com pena de prisão de máximo não superior a 5 anos, corresponde concomitantemente ao conceito de ‘criminalidade violenta’ – nos termos e para os efeitos exigidos no 1º/j) do Cód. de Processo Penal, onde se prevê que, «Para efeitos do disposto no presente Código considera-se…‘Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos»), ambos do Cód. de Processo Penal.

O que significa que no presente caso é inclusive aplicável, se tal se mostrar necessário e adequado, a medida de coacção mais gravosa prevista no compêndio processual penal – cfr. arts. 202º/1/b) do Cód. de Processo Penal.

Em conclusão, ao determinar as medidas de coacção supra referenciadas ao arguido recorrente, e nos termos em que determinou a respectiva execução e controlo, o Tribunal a quo aplicou devidamente o disposto no art. 152º do Cód. Penal, nos arts. 191º a 193º, 196.º, 200º/1/a/d) e 204º/c) do Cód. de Processo Penal, e arts. 31º e 35º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, não merecendo, assim, censura a decisão recorrida.

Improcede, pois, o recurso interposto pelo arguido.


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III. DECISÃO

Nestes termos, e em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto por AA e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 (três) U.C.s a taxa de justiça.


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Porto, 21 de Fevereiro de 2024
Pedro Afonso Lucas
José Quaresma
Eduarda Lobo

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente – sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)
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[1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[3] Consigna–se que as referências às páginas do processo se reportam sempre à numeração própria do presente apenso de recurso.
[4] Relatado por Ernesto Nascimento, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[5] Relatado por Álvaro Melo, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf