Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
380/18.1T8ESP-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: SIMULAÇÃO RELATIVA
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
INSUFICIÊNCIA DE FACTOS
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RP20220124380/18.1T8ESP-A.P1
Data do Acordão: 01/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Se a autora aduz factos dos quais se pode concluir que invoca uma simulação relativa, mas tais factos são insuficientes para integralmente a caraterizar, desde logo quanto à eventual participação da vendedora no acordo simulatório, não estamos perante uma petição inicial inepta, mas perante o poder/dever de o tribunal convidar a autora ao suprimento na exposição da matéria de facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 380/18.1T8ESP-A.P1

Recorrente – AA…
Recorridos – BB… e outros

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório
BB…, representada pelo curador especial, Dr. CC…, instaurou, a 12.07.2018, a presente ação contra AA… e pediu: “a) Ser a fração doada submetida à colação através da restituição do bem à massa da herança aberta por óbito de DD…; b) Ser ordenada a alteração ou retificação do registo de transmissão a favor do R. do mesmo imóvel, em conformidade; c) Caso assim se não entenda, ser imputado o valor da doação, na quota hereditária do R.”.

Fundamentando a sua pretensão a autora começa por referir que “foi declarada incapaz por sentença proferida no Processo n.º 321/09.7BESP - Juiz 1 – Tribunal Judicial da Comarca de Espinho”. Diz que correm termos neste tribunal os autos de Inventário n.º 333/05.0TBESP, por óbito de DD…, onde a autora é interessada, na qualidade de herdeira. Nesses autos foi acusada a falta de relacionação do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho sob o n.º …., que a autora verificou estar registado a favor do réu, também interessado no Inventário, facto este desconhecido dos demais e da autora que, pese embora interveniente na escritura, por força da incapacidade de que padece, não estava consciente da qualidade em que o réu outorgou. A fração em causa foi adquirida pelo inventariado e por ele paga a totalidade do preço, sem que o réu tenha tido qualquer intervenção no negócio, nem despendido qualquer quantia, não havendo dúvidas do conluio entre ele e o réu para, com a doação da fração, ou do dinheiro com que a mesma foi adquirida, prejudicar os demais herdeiros, concretizando uma farsa, combinada entre ambos. Assim, conclui, o bem deve ser restituído à massa da herança, restituição que designa como colação, pois o doador, expressa ou tacitamente, não a dispensou.

O réu contestou. Excecionou a ilegitimidade ativa da autora, por estar desacompanhada dos restante herdeiros na presente ação, que qualifica como de reivindicação [11\ Conduz-nos à seguinte conclusão: - “...Na acção de reivindicação, havendo vários herdeiros, a acção tem que ser proposta por todos eles, sob pena de ilegitimidade ativa (art. 2091)...” conclusão esta aplicável também à restituição, extraída de um douto acórdão da RC de 28/6/05 n.º proc. 1122/05]; e a prescrição do direito que a autora pretende fazer valer [22\ Sempre se dirá que, mesmo tendo em consideração – no limite - o prazo ordinário previsto no art. 309 do CC de vinte anos, 23\ Sobre factos aliás conhecidos de todos os herdeiros e também da A. como a mesma confessa - art. 13.º da PI, 24\ Um qualquer eventual direito da A. sempre estará já prescrito pois terão decorrido já mais de vinte anos sobre o negócio em causa; 25\ O que conduz a que se tenha de considerar como verificada a prescrição para interpor a presente acção – exceção perentória - com o consequente decretar a absolvição do R. do pedido por força do supra citado arts. 309 CC e 571, e 576 3 do CPC]. Exceciona a sua própria aquisição, se outra não for reconhecida, por via da usucapião e impugna os factos que servem de causa de pedir à ação. Alega também que, estando a correr termos um processo especial de inventário é ali que devem ser decididas todas as questões relativas aos bens que compõem o acervo hereditário, pelo que ou se está perante uma situação de litispendência ou perante uma causa justificativa da suspensão desta instância. Por impugnação, refere que a aquisição da nua propriedade do imóvel resultou de dação em pagamento, em razão do empréstimo de 20.000.000$00 que havia feito ao seu falecido pai.

A autora respondeu à matéria de exceção na audiência prévia e defendeu a imprescritibilidade do direito à reivindicação, alegando que a presente ação resulta da remessa dos interessados para os meios comuns, para discussão da questão objeto dos autos, pelo que inexiste litispendência ou prejudicialidade da ação, no confronto com o processo de inventário.

Por despacho de 27.03.2019, e pressupondo a qualificação da ação como ação de reivindicação [Da análise da petição inicial, constata-se que, de acordo com a forma como a autora configura a relação material controvertida, a presente ação configura uma autêntica reivindicação, pelo que tem aqui aplicação, quanto a legitimidade, o art. 2091, n.º 1, do Cód. Civil, que prescreve, na sua parte final, que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros” (cfr. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de março de 2011, in dgsi], a autora foi convidada a fazer intervir na ação os demais interessados na herança, o que esta fez tendo EE…, FF…, GG…, HH…, II…, JJ…, viúva de KK…, LL… todos sido citados e admitidos como seus associados a título principal. Por via de declaração expressa ou tacitamente todos os intervenientes aceitaram os articulados da autora.

Foram designadas outras datas para audiência prévia e, após duas suspensões da instância, frustrada a conciliação, o Juízo Local Cível de Espinho declarou-se incompetente em razão do valor da causa e ordenou a remessa dos autos ao Juízo Central Cível. Neste Juízo Central Cível, a 4.01.2021, foi proferido despacho no qual se facultou o contraditório às partes relativamente à qualificação da presente ação como de petição da herança, à eventual falta de articulação de factos essenciais à procedência de uma tal ação e, ainda, quanto à possibilidade de o tribunal conhecer oficiosamente da caducidade da ação ou da prescrição do direito da autora à luz do previsto no artigo 322 do Código Civil [Procedendo-se à análise profunda dos atos praticados no processo, antes da sua remessa pelo Juízo Local Cível de Espinho, justifica-se proferir despacho de gestão inicial do processo, nos termos do disposto no art. 590 do Código de Processo Civil. (i) A presente ação, atenta a causa de pedir e os pedidos (apesar dos termos em que aquela foi deduzida), constitui uma ação de petição de herança, prevista e regulada no art. 2075, do Código Civil. (ii) A ação de petição de herança está subordinada, em sede de causa de pedir, da alegação de factos essenciais, que consubstanciam os seus próprios requisitos, distintos dos de uma ação de reivindicação (cfr. Ac. TRE, 08-06-2017, proc. 155/13.4TBORQ.E1; Ac. STJ, 02-03-2004, proc. 04A126, apenas a título exemplificativo); a falta da sua alegação, pela sua natureza essencial, não admite convite ao aperfeiçoamento (art. 590, n.º 2 e 4 a contrario), por não consubstanciar mera insuficiência ou imprecisão, sendo passível de constituir a nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial (art. 186, n.º 1 e 2, al. a), do CPC), de conhecimento oficioso (art. 196, do CPC). (iii) A tal configuração não obsta que, apesar de o réu ter podido deduzir reconvenção, tenha oposto em sede de exceção impeditiva, a usucapião, já que, conforme Ac. STJ, de 04-02-2014 (proc. 314/2000.P1.S1), “inexiste obrigação de dedução de reconvenção, estando dependente das conveniências do réu a sua dedução, juntamente com a contestação ou a apresentação da correspondente pretensão em ação autónoma” [esta, sim, que poderia constituir prejudicialidade na causa de petição de herança]. Cfr., igualmente, no âmbito da relação entre a ação de petição de herança e o direito de invocação de usucapião, Ac, STJ, 02-12-2004, proc. 04B3817. (iv) Por outro lado, se é certo que a uma ação de reivindicação não se lhe são aplicáveis prazos de prescrição (cfr., por todos, Ac. TRG, 08-10-2015, proc. 2687/12.2YXLSB.G1), já “é pacífico que o direito de petição da herança (seja por sucessão legal ou testamentária) caduca ao fim de dez anos, contados desde que o sucessível tem conhecimento de haver sido chamado à sucessão – art. 2059/1 CC” (Ac. TRL, 10-01-2017, proc. 117/14.4T8VLS.L1-7). Tendo por referência a ação de petição da herança, resulta dos autos que o decesso faleceu em 04-10-1997 e o processo de inventário no qual o sucessível tomou conhecimento de haver sido chamado à sucessão foi instaurado em 2005, sendo a partir desta data, salvo ocorrência de circunstância de suspensão do prazo de caducidade, que esta se passou a contar (o despacho que determinou a remessa das partes para os meios comuns não versa sobre o conhecimento de a parte ter tido conhecimento de ser chamada à sucessão). (v) A caducidade do direito à ação é de conhecimento oficioso porque estabelecida em matéria (prazos para o exercício do direito de sindicar judicialmente) que se encontra excluída da disponibilidade das partes (art. 333 do Código Civil). Cfr., por todos, Ac. STJ, 01-02-1995, proc. 004128 (pontos I a IV, do sumário). vi) Os termos em que o réu suscita a enunciada prescrição não permitem aferir, com certeza, da conceção jurídica subjacente, na medida em que aponta um prazo ordinário máximo, mas a fundamentação para o invocado assenta em factos que se relacionam com a caducidade da ação, sabendo que nesta matéria, além do referido em (iv) e (v), não é de excluir o disposto no art. 322, do Código Civil. Termos em que se determina a notificação das partes, nos termos do disposto nos artigos 590, n.º 1, 6.º, n.º 1 e 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil para, querendo, pronunciarem-se no prazo de quinze dias (atenta a extensão e complexidade subjacente às matérias enunciadas), considerando a eventualidade de conhecimento das questões supra enunciadas imediatamente no despacho saneador, com dispensa de (nova) audiência prévia [art. 592, n.º 1, al. b), do CPC]].

Pronunciaram-se autora e réu, tendo este último aceitado a qualificação da ação como de petição de herança e pugnado pela declaração da ineptidão da petição inicial e pela caducidade da ação (que, todavia, qualificara na sua contestação como de reivindicação ao sustentar a exceção de ilegitimidade ativa), e a primeira sustentando que a presente ação é de reivindicação pelo que não é inepta a petição inicial nem ocorre qualquer causa de extinção do direito da autora por força do decurso do tempo.

Foi, então, proferido, a 3.04.2021, que o despacho saneador que constitui objeto do presente recurso. Nesse despacho, as partes foram consideradas legítimas [De facto, tendo sido proferido despacho a convidar a Autora a fazer intervir na ação os demais interessados com vista a suprir a ilegitimidade ativa, a mesma respondeu favoravelmente a tal convite e já se encontram citadas como intervenientes principais todos os demais interessados na herança aberta por óbito de DD… pelo que está prejudicado o conhecimento de tal exceção] e conheceu-se das demais exceções invocadas pelo réu “quer das que foram avançadas como de eventual conhecimento oficioso no despacho que antecede para que não fiquem por se perceber as razões da discordância relativamente ao entendimento avançado pelo Mmo juiz que o subscreveu[1]”.

Relativamente à ineptidão da petição inicial “por falta de alegação de factos essenciais”, considerou-se que a mesma não ocorria [Para a decisão desta questão cumpre verter que está provado, por certidões judiciais junta com os requerimentos da autora de 22-01-2021 e de 20 de fevereiro de 2019, respetivamente, que: 1 - corre termos no Juízo de competência genérica de Espinho processo especial de inventário, sob o número 333/05.0TBESP, em que a autora é interessada e através do seu curador reclamou a omissão de relacionação do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho sob o número …., tendo ali sido os interessados remetidos para os meios comuns para decisão da referida questão, por despacho de 22-04-2016; 2 – no referido processo foram prestadas declarações pela cabeça de casal em 31-03-2005, ali se tendo afirmado que os interessados então por aquele identificados haviam sido habilitados como tal por escritura lavrada no escritório notarial de Espinho. No antecedente despacho foi ponderado e facultado contraditório relativamente à possibilidade de qualificar esta ação como de petição de herança. Opôs-se a autora alegando que configurou a presente ação como de reivindicação (o que, aliás, repetimo-lo, o próprio réu defendeu na sua contestação quando excecionou a ilegitimidade ativa). O despacho proferido na ata de 27-03-2019, aliás, já afirmara nos autos, com vista a sustentar o convite dirigido à autora para sanar a exceção de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio ativo, o seguinte: “constata-se que, de acordo com a forma como a autora configura a relação material controvertida, a presente ação configura uma autêntica reivindicação, pelo que tem aqui aplicação, quanto a legitimidade, o art. 2091, n.º 1, do Cód. Civil, que prescreve, na sua parte final, que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros””. Assim é de facto, não se vendo, salvo o devido respeito, como qualificar a presente ação como de petição da herança. É que esta, como bem defende a autora no antecedente articulado, tem como principal escopo o reconhecimento judicial da qualidade de herdeiro e a consequente devolução de bens à herança contra quem os possua como herdeiro, isto é, visa que um herdeiro preterido possa vir a ser reconhecido como tal mesmo após partilha ou que, antes desta, algum herdeiro possa reclamar a sua qualidade de herdeiro e reclamar de outrem uma universalidade de bens (todos ou parte) que constituam a herança. Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-10-2009 in CJ 219, Tomo III/2009 “Enquanto a ação de petição da herança tem, como pedido principal, o reconhecimento judicial da qualidade sucessória do herdeiro, já a ação de reivindicação tem como pedido principal o reconhecimento do direito de propriedade, sendo, em ambas as ações, a pretensão da restituição da coisa um pedido derivado daqueles pedidos principais. II - Essencial na petição de herança é o duplo fim que visa: por um lado, o reconhecimento judicial do título ou estatuto de herdeiro que o autor se arroga; por outro, a integração dos bens que o demandado possui no ativo da herança ou da fração hereditária pertencente ao herdeiro. III - Antes da partilha, o herdeiro usa a acção de petição de herança; partilhada a herança, quem quiser pedir a restituição de um bem que herdou há de usar a reivindicação, porque então é já proprietário. IV - Embora o direito à herança não prescreva, o exercício do direito de petição da herança, com vista à restituição ou entrega de bens hereditários, pode, como acontece com o direito de propriedade na reivindicação (art. 1.313), soçobrar perante a usucapião invocada pelo demandado”. Ora, como é manifesto, a autora é interessada nos autos de processo especial de inventário que correm termos no juízo de competência genérica de Espinho estando já reconhecida a sua qualidade de herdeira (facto provado número 2). Ali, por intermédio do seu curador, reclamou da omissão da relação de bens relativa ao imóvel objeto destes autos. Foi remetida para os meios comuns. Donde não temos dúvidas em afirmar que a presente acção vem intentada na sequência desse despacho visando apenas o reconhecimento da propriedade de um imóvel como sendo da herança, ou seja, reivindicando o mesmo para o património a partilhar. A autora alega factos integradores de uma possível nulidade por simulação de negócio onde ela e o réu outorgaram como outorgantes compradores da nua propriedade e do usufruto, respetivamente, do imóvel em disputa, sustentando que a aquisição foi feita pelo falecido DD…, que era quem o queria adquirir, o pagou e dele tomou posse após a escritura. Dessa simulação que a mesma pode arguir a todo o tempo decorre nulidade que pode mesmo ser conhecida oficiosamente e, como pretende a Autora, pode ser aplicado a tal contrato de compra e venda o regime legal do negócio que as partes quiseram de facto realizar, a saber, a aquisição a favor do falecido DD…, “não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado” cfr. artigos 241, número 1, 242 e 286 do Código Civil. É assim que se configura a ação por via da alegação de factos conducentes a uma alteração de um negócio de compra e venda que determinará o reconhecimento da propriedade do imóvel a favor do falecido DD…, ou seja, da herança aberta por seu óbito. Assim, salvo o devido respeito pelo Mmo Juiz que proferiu o antecedente despacho, que é muito, não podemos seguir o seu entendimento. A petição inicial não é, por tal, inepta contendo suficiente alegação dos factos necessários à eventual procedência do pedido] – sublinhado nosso.

Quanto à exceção da “litispendência ou de prejudicialidade do processo especial de inventário relativamente a esta açãoconsiderou-se que a mesma improcedia [Convoca-se de novo, para a decisão desta questão, a matéria de facto acima julgada provada, a saber que: - corre termos no Juízo de competência genérica de Espinho processo especial de inventário, sob o número 333/05.0TBESP, em que a autora é interessada e através do seu curador reclamou a omissão de relacionação do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Espinho sob o número 1124, tendo ali sido os interessados remetidos para os meios comuns para decisão da referida questão, por despacho de 22-04-2016. Isto reafirmado, pouco mais precisa de ser dito para fundamentar a improcedência dessa linha de defesa do réu. É manifesto que esta ação não está a repetir o julgamento de qualquer questão que tenha que ser decidida no inventário já que ali os interessados foram remetidos para os meios comuns para a sua discussão nos termos do artigo 135, número 1 do Código de Processo Civil, ou seja, ali se afirmou já que o objeto da presente acção não será decidido naquele processo especial. Tão pouco aquele inventário é prejudicial ou pode influenciar o destino desta acção sendo possível apenas o oposto, isto é que o juiz daquele processo entendesse de o suspender até que esta acção esteja decidida por forma a evitar, no caso da sua procedência uma emenda à partilha”]. Considerou-se, ainda, quanto à caducidade do direito de propor a ação: “Foi ponderada no anterior despacho a possibilidade de conhecimento oficioso da exceção de caducidade da ação por via da aplicação à mesma do regime legal previstos nos artigos 2075 e seguintes do Código Civil que regulam os pressupostos da acção de petição da herança. Face ao que acima se decidiu no sentido de afastar tal qualificação é manifesto que fica prejudicado o conhecimento da sua caducidade. Ainda assim cumpre também afirmar que é nosso entendimento que o prazo de caducidade que prevê o artigo 2059 do Código Civil para que remete a parte final do número 2 do artigo 2075 não é aplicável. De facto, a redação legal deste último preceito, onde se lê “a ação pode ser intentada a todo o tempo sem prejuízo (...) do disposto no artigo 2059 aponta em sentido oposto, isto é, de que a ação não está sujeita a prazo de caducidade salvo o aplicável ao direito de aceitar a herança que é de 10 anos contados desde o conhecimento, pelo sucessível, de a ela ter sido chamado. Ora, como acima dito, a autora já aceitou a herança quando foi celebrada escritura notarial de habilitação de herdeiros e a ela foi chamada na qualidade de interessada no processo especial de inventário, pelo que não está nesta acção em causa o exercício desse direito”.

Por fim, quanto à “prescrição do direito à reivindicação do imóvel” entende-se que a mesma também não procedia [O réu entende ocorrer tal prescrição por terem decorrido mais de 20 anos desde a sua aquisição, ocorrida em 1997. Como bem responde a autora e prevê o artigo 1313 do Código Civil, “Sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião, a acção de reivindicação não prescreve pelo decurso do tempo”. Pensamos ser de dispensar mais fundamentação para sustentar a improcedência da exceção em apreço pois dado o teor do transcrito preceito não procede nem a prescrição por via do decurso do prazo de 20 anos previsto no artigo 309 do Código Civil, como defende o réu, nem por via do artigo 322 do mesmo diploma, como aventado no anterior despacho”].

II – Do Recurso
Inconformado com o despacho, veio dele recorrer o réu, pretendendo: “deverá o presente recurso ser aceite (primeiramente sendo visto o pedido de atribuição de efeito suspensivo e incidente de prestação de caução) e em primeira análise, sendo dado provimento ao mesmo, deverá ser proferida decisão revogando aquela do despacho saneador ora em crise – de improcedência das exceções suscitadas (mas também da análise oficiosa à contradição que ocorre nos autos quanto ao modo de configurar a ação pelo próprio Tribunal a quo e aos reflexos do mesmo - substituindo-a por outra que contemple as conclusões atrás aduzidas, principais ou subsidiárias, conduzindo na prática a que seja proferida decisão de procedência das exceções suscitadas pelo recorrente e logo absolutória daquele do pedido da autora”. Formula, para tanto, as seguintes Conclusões:
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A autora respondeu ao recurso e, defendendo a bondade do despacho e a improcedência da apelação, concluiu:
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O recurso foi recebido ao abrigo do disposto no artigo 644, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil – CPC - (subindo de imediato e em separado), mas com efeito meramente devolutivo, por se ter entendido que não foi alegado qualquer prejuízo considerável, justificativo do efeito suspensivo que o apelante havia requerido e, nesta Relação, foi proferido despacho a restringir o objeto do recurso ao conteúdo do despacho saneador que decidiu/apreciou o mérito da causa e os autos correram Vistos, nada se observando que obste ao conhecimento. A este propósito, cumpre agora esclarecer, repensando a questão, que, não obstante as exceções dilatórias indeferidas não sejam objeto de recurso autónomo, há que entender que, uma vez admitido o recurso, já que interposto por ter havido apreciação do mérito da causa (exceções perentórias) há que conhecer todo o seu objeto, atento o disposto no atual artigo 644, n.º 3 do CPC, isto sem embargo do que se dirá sobre o concreto objeto deste recurso.

Tendo em conta as conclusões do apelante (e sem prejuízo das questões que o conhecimento oficioso imponha), o objeto do presente recurso traduz-se em saber se há vinculação do tribunal ao despacho de 4.01.2021; se a ação proposta pela autora padece de ineptidão, desde logo por insuficiência da matéria de facto alegada; se o direito da autora está prescrito e se a usucapião invocada pelo recorrente devia ser “remita para julgamento”.

III – Fundamentação
III.I – fundamentação de facto
Os factos constantes do relatório mostram-se bastantes à apreciação do recurso.

III.II – Fundamentação de Direito
A primeira questão suscitada no recurso, ainda que sem daí serem retiradas consequências diretas, pretende-se com a pretensão de ver definida a natureza da presente ação, sustentando o apelante que há despachos contraditórios sobre essa natureza. O recorrente não invoca, no entanto, o caso julgado formal (artigo 620, n.º 1 do CPC) ou a precedência de casos julgados contraditórios (625, n.º 1 do CPC), porquanto a tal obstaria o disposto no artigo 630 do mesmo diploma. O despacho repetidamente referido pelo apelante (despacho de 4.01.2021) é um despacho de cumprimento do contraditório, sem efeito de caso julgado e que, por isso, verdadeiramente, não pode estar em contradição com qualquer outro, pois não se trata de decisão definitiva. Diga-se, de imediato, que o mesmo sentido, o de não constituir decisão definitiva, deve ser dado ao despacho proferido a 27.03.2019 – ao contrário do que sustenta a recorrida/autora – já que se trata de um despacho convite, o qual, nada decidindo, é irrecorrível.

Quanto à questão da ineptidão da petição inicial, a primeira nota é que a mesma não foi suscitada na contestação do réu, mas, ainda assim – e sendo de conhecimento oficioso – foi apreciada no despacho de que se recorre, e invocada pelo réu em pronúncia anterior. Tal questão tem que ser vista perante a ação concreta interposta pela autora e perante o despacho que considerou que a mesma não ocorria. O que o apelante vem sustentar, agora, é que a ineptidão decorre de insuficiente alegação de factos na petição e de o imóvel “reivindicado” não está bem identificado, o que, à primeira vista, se revela insuficiente para considerar como ocorrido aquele vício. Mas importa apreciar melhor a questão.

Olhando aos pedidos formulados pela autora na sua petição inicial, diríamos, aos pedidos efetivamente expressos nesse articulado, a primeira conclusão a retirar é que, verdadeiramente, não estamos perante uma ação de reivindicação nem perante uma ação de petição de herança, uma vez que, quer a colação, quer a imputação da doação à quota hereditária pressupõem a subsistência da doação. De todo o modo, a autora não deixa de alegar as circunstâncias de facto de onde se retira a existência de um negócio simulado. Como se diz no despacho recorrido, a autora (e citamos) “alega factos integradores de uma possível nulidade por simulação de negócio onde ela e o réu outorgaram como outorgantes compradores da nua propriedade e do usufruto, respetivamente, do imóvel em disputa, sustentando que a aquisição foi feita pelo falecido DD…, que era quem o queria adquirir, o pagou e dele tomou posse após a escritura. Dessa simulação que a mesma pode arguir a todo o tempo decorre nulidade que pode mesmo ser conhecida oficiosamente e, como pretende a Autora, pode ser aplicado a tal contrato de compra e venda o regime legal do negócio que as partes quiseram de facto realizar, a saber, a aquisição a favor do falecido DD…”. Ora, não deixa de ser relevante que a nulidade possa ser invocada a todo o tempo e que é de conhecimento oficioso – o que se revela fundamental, porquanto a autora não formula, antecedendo os demais pedidos, um pedido expresso de declaração de nulidade do negócio. Sucede, porém, que não podemos acompanhar o despacho recorrido quando diz que a o negócio que as partes quiseram realizar era a aquisição da propriedade pelo falecido DD…, porquanto a autora expressamente formula o pedido de a fração doada ser restituída, ou seja, no sentido alegado, ser submetida à colação. Dito de outro modo, o que autora afirma – mesmo não tendo pedido a declaração de nulidade da compra e venda – é que o conluio entre o falecido e o réu levou a que, simulando-se uma compra e venda, tivesse sido – ou querendo-se que fosse – uma doação, em concreto da nua propriedade e em benefício do réu. Efetivamente, e repetimos, a autora pretende que a fração doada seja submetida à colação ou (alínea c) do pedido), pelo menos, o valor da doação seja imputado à quota hereditária do réu. Diríamos, de outra forma, que as pretensões concretamente formuladas pela autora pressupõem necessariamente a subsistência da doação.

Mas sendo assim, como entendemos que o é, parece-nos claro que da petição inicial, e ao contrário do decidido, não resulta factualidade bastante para integrar a simulação negocial que os demais pedidos pressupõem, ou seja, há uma insuficiência de matéria de facto para o acordo simulatório. Desde logo, mas relevantemente, porque a vendedora do imóvel (interveniente na escritura de compra e venda) não foi envolvida nesse acordo simulatório. Dito de outro modo – e sem descurar a posterior ponderação da eventual ilegitimidade passiva – é fundamental esclarecer se a sociedade vendedora tomou parte nesse acordo (invocado como ocorrido entre o réu e o de cujus) no sentido de, na venda, encobrirem uma doação. Podemos dizer, ainda, que, da conjugação do contrato de compra e venda documentado nos autos e da (insuficiente) alegação fáctica da autora, não podemos considerar, diversamente do que se entendeu no tribunal recorrido, que estejamos apenas perante uma simulação quanto aos sujeitos, mas também perante uma simulação relativa, pretendendo-se, a mais, a subsistência de uma parte do negócio, concretamente, a venda do usufruto à autora.

Assim, e não se estando perante um caso de ineptidão da petição inicial, os autos revelam a necessidade de suprimento de insuficiências na exposição da matéria de facto (artigo 590, n.º 4 do CPC), o que, não tendo sido feito “configura a omissão de um ato que a lei prescreve” [António Santos Abrantes Geraldes /Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pág. 681], devendo, por isso, a autora ser convidada ao referido suprimento.

A conclusão anterior prejudica o conhecimento das demais questões. Note-se, de todo o modo, que, não sendo a prescrição invocável nos termos em que o foi pelo réu, sempre a simulação é invocável a todo o tempo; a exceção da usucapião tinha sido admitida pelo tribunal (basta ler os temas de prova n.ºs 5 a 8) e a eventual caducidade que o apelante identifica como sendo do artigo 322 do CC, não se encontra aí, mas a prescrição aí pressuposta mostra-se prejudicada, pois não está em causa, desde logo nesta sede, uma ação de petição da herança. Seja como for, estas questões sempre se mostram, por ora, prejudicadas pela conclusão de, atenta a insuficiência da matéria de facto alegada pela autora e a natureza negócio dissimulado, se impor o convite previsto no n.º 4 do artigo 590 do CPC.

Por tudo, o recurso, ainda que por razões diversas das alegadas, o recurso é procedente, e as custas são devidas de acordo com o vencimento e decaimento finais.

IV - Dispositivo
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o presente recurso e, em conformidade, dando sem efeito os atos processuais subsequentes e concretamente o despacho saneador, determina-se a prolação do despacho previsto no artigo 590, n.º 4 do CPC, no sentido de a autora ser convidada a esclarecer se a vendedora do imóvel em causa nestes autos tomou ou não parte – e em que termos -, no acordo simulatório que a autora invocou.

Custas pelas partes nos termos do vencimento e decaimento finais.

Porto, 24.12.2021
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
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[1] Trata-se do despacho referido – e transcrito – no ponto 8.