Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6413/13.0TDPRT-A.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
LEGITIMIDADE
DANOS INDIRECTOS
Nº do Documento: RP201507016413/13.0tdprt-A.P2
Data do Acordão: 07/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A entidade empregadora dos arguidos [uma IPSS] não tem legitimidade para deduzir, no processo penal, pedido de indemnização civil contra eles por danos morais relacionados com a afetação do seu bom nome, prestígio e reputação decorrente da prática de crimes de que são ofendidos terceiros [menores utentes].
II – Não sendo “lesada” pelo crime, não são indemnizáveis, no processo penal, os danos reflexos ou indiretos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 6413/13.otdprt-A.P2
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C. C. nº 6413/13.OTDPRT do Tribunal da Comarca do Porto - Vila do Conde - Instância Central - 2a Secção Criminal - J 4 em que são arguidos B… e outras sete pessoas
e em que pretende intervir como demandante civil o
C…, que deduziu pedido civil contra os arguidos
No despacho a que se refere o artº 311º CPP, foi decidido indeferir liminarmente o pedido de indemnização civil contra o arguidos.

Recorre a demandante civil, a qual no final da sua motivação apresenta conclusões das quais emerge a seguinte questão:
- se o demandante é lesado para os fins do artº 74º CPP

O MºPº não respondeu ao recurso.
Os arguidos não responderam
Nesta Relação o ilustre PGA não emitiu parecer.

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência
Cumpre apreciar.
Consta do despacho recorrido (transcrição):
V - Pedido cível de fls. 2401 e segs.:
Veio C…, identificado a fls. 2401, deduzir pedido de indemnização civil contra os arguidos supra identificados, pelos fundamentos ali constantes, que aqui se dão por reproduzidos.
O art. 71.° do Código de Processo Penal estabelece que o direito à indemnização pelas perdas e danos ocasionados com a prática de um crime pode ser exercido no processo penal, pela adesão da acção civil à acção penal.
Pressuposto da formulação do pedido de indemnização, no processo penal, é, portanto, que quem o deduz seja um lesado, entendendo-se como tal a pessoa que tenha sofrido, por efeito de crime objecto da acusação, danos patrimoniais ou não patrimoniais que mereçam a tutela do direito (cfr. art. 74° do Código de Processo Penal).
Ora, a acusação proferida nos presentes autos consubstancia actuação criminosa dos arguidos relativamente a vários menores (utentes, à data dos factos, de "D…" através do qual o demandante desenvolve a sua actividade), sendo àqueles imputada a prática de crimes de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.0-A, n01, al. a), do C. Penal.
Com a incriminação em causa protege-se o bem jurídico saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental (tal como escreve Américo Taipa de Carvalho, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo I, pág. 332), sendo obviamente a saúde dos menores identificados na acusação o bem jurídico violado pela conduta imputada nesta aos arguidos.
Assim, é bom de ver que só os menores em causa são titulares do direito directamente violado (segundo a acusação), qual seja o direito absoluto à integridade da sua personalidade física e moral (consagrado no art. 70.° do C. Civil), cuja violação funda a obrigação de indemnizar, apenas reflexa ou indirectamente podendo ser prejudicado o demandante.
Tal como se pode ler no Ac. RP de 16110/2013 (disponível em www.dgsi.pt). sendo as considerações nele expendidas obviamente aplicáveis ao caso dos autos, «o n° 1 do artigo 483° do Código Civil - ao estipular que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger direitos alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação - visa tutelar, fundamentalmente, os direitos subjectivos absolutos e os direitos familiares com eficácia absoluta, pois os direitos de crédito vêm tratados no capítulo da responsabilidade contratual [Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil anotado", volume I, 4a edição, página 472].
Também Vaz Serra, in B.M.J. n° 86, designadamente a páginas 114 e seguintes, se debruça sobre este tema.
Assim, na página 114, escreve: "Na hipótese da chamada responsabilidade extracontratual, a indemnização só abrange, em princípio, o interesse do titular do bem que a lesão afecta imediatamente e não o de terceiro que indirectamente for prejudicado". A página 116, reforça esta ideia dizendo: "A regra é, como se viu, que o direito de indemnização cabe apenas àquele contra quem o ato ilícito foi praticado e não a terceiros mediatamente prejudicados".
Enfim, como se verte no parecer da Procuradoria-Geral da República de 31 de Outubro de 1969 [Publicado in B.M.J. 196°, 161, mas também na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103°, n° 3421, páginas 245 e seguintes, com anotação de Antunes Varela, a folhas 251 e seguintes] "a doutrina afirma e as leis consagram, em matéria de responsabilidade civil (...), o princípio de que só tem direito a ser indemnizado pelo obrigado à indemnização o titular do direito imediatamente afectado pelo facto danoso, não merecendo protecção legal os interesses de terceiros que indirectamente sofreram prejuízos". Importa ainda salientar a anotação de Antunes Varela ao mesmo parecer [R.LJ., ano e número citados, página 250, nota I da 2a coluna], nesta parte concordante, quando escreve: "A regra consiste, rigorosamente, em não incluir na obrigação de indemnizar os danos sofridos indirecta ou reflexamente por terceiro, limitando a reparação a cargo do lesante ou da pessoa onerada pelo risco aos danos causados ao titular do direito ou interesse ofendido. Este princípio é considerado válido não só para o domínio da responsabilidade extra contratual, como âmbito da responsabilidade contratual, apontando os autores para os excessos injustificáveis a que a solução contrária nos conduziria no cálculo da indemnização (...)".»
Ora, analisado o pedido cível em apreço, verifica-se que o direito indemnizatório que se pretende fazer valer não se funda (nem se podia fundar) directamente nos factos imputados aos arguidos (não é essa a causa de pedir), mas na repercussão pública dos mesmos, que constituiria, pelo seu carácter negativo, lesão do bom nome, prestígio e reputação do demandante.
Face ao exposto, é bom de ver que na acusação não é imputado aos arguidos qualquer crime em que possa ter-se por lesado o demandante, como titular do direito violado pela conduta daqueles e, assim, como portador de danos ocasionados pelo crime (cfr. o disposto pelo art. 74.°, n'T, do C. Penal).
Inexiste, assim, atento o teor da acusação, um nexo de causalidade entre os factos ilícitos criminosos objecto dos presentes autos e os danos alegados no pedido deduzido pelo demandante contra os arguidos.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto pelo art. 71.° do Código de Processo Penal, a contrario sensu interpretado, indefere-se liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido pelo C… contra os arguidos.
Sem custas.
Notifique.”
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É a seguinte a questão suscitada.
- se o demandante é lesado para os fins do artº 74º CPP
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O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in Dr. I-A de 28/12, que no caso não se vislumbram.
Assim e passando para a questão recursiva.
Como resulta da acusação e do despacho de pronuncia os arguidos foram pronunciados pela prática de diversos crimes em concurso real, de maus tratos p.p. pelo artº s152º 1 a) CP, por grosso modo terem submetido a maus tratos físicos e psíquicos, menores que se encontravam ao seu cuidado enquanto funcionários da demandante em cujo estabelecimento os mesmos se encontravam internados;
Alega a demandante que tais actos dos seus funcionários afectaram o bom nome e prestígio da instituição, causando-lhe danos morais de que pretende ver-se ressarcida.
Conhecendo:
Resulta dos artºs 71º e 74º CPP, que o “pedido de indemnização civil fundado na pratica de um crime” pode / deve ser deduzido no processo penal, e que tem legitimidade para o fazer a pessoa lesada, sendo que esta é a “ pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime”
No presente caso, duvidas não há que lesado / ofendido com o crime foi cada um dos menores maltratados pelos arguidos, pelo que estes têm legitimidade para demandar civilmente os arguidos.
A instituição onde estavam os menores internados e onde foram maltratados nem interveio em nome dos menores maltratados e que tinha à sua guarda (e não sabemos se representava - caso em que devia ter instaurado pedido de indemnização em nome dos menores), nem como responsável civil pelos danos que os seus funcionários causaram aos menores, mas vem apenas demandar os arguidos (seus funcionários) pelos danos que o conhecimento da situação criminal provocada pelos seus funcionários nos menores, lhe teria causado a si mesma no seu prestigio e reputação.
Como nos parece evidente a demandante não é lesada pelo crime, nem directa nem indirecta (pois não foi contra ela praticado, nem é vitima / ofendida pelos maus tratos), pois lesados são apenas os menores vitimas dos actos dos arguidos; a causa dos seus alegados danos morais (ofensa ao seu prestigio e reputação) emergirá não da prática do crime onde não é ofendida nem vitima mas de uma eventual ofensa ao seu bom nome, praticada pelos seus funcionários no exercício das suas funções, ou seja mera responsabilidade civil e in casu emergente do vínculo laboral e não responsabilidade criminal para com ela pelo que os seus eventuais danos não são “ocasionados pelo crime”, sendo este o objecto do processo que não poder ser extravasado - Ac. TRG de 10/07/2014 www.dgsi.pt
Sendo a causa de pedir numa tal demanda não o crime em causa, mas a ofensa ao bom nome da demandante, seja por que meio ela ocorreu, pois que os danos invocados não são as ofensas resultantes dos crimes em averiguação, não tem a demandante legitimidade para intervir no processo pois não foi o crime que lhe ocasionou os danos, e é o crime que fundamenta o princípio da adesão o que faz apenas em relação ao lesado pelo crime.
Por outro lado estando em causa danos morais (não patrimoniais) estes apenas são devidos ao titular do direito violado, no caso pelo crime (ou seja os menores) e não terceiros, aos quais por esse facto a lei não concede tal direito de indemnização (é essa a regra que emerge dos artº 483º CC, como assinala o despacho recorrido). Serve isto para dizer que não sendo o crime de maus tratos a menores a causa dos danos não patrimoniais da demandante, e não lhe concedendo a lei o direito a por esse facto ser indemnizada não pode deduzir um tal pedido no processo crime.
Deverá discutir o seu eventual direito a ser indemnizada por ofensa à sua reputação nos tribunais civis, não lhe concedendo a lei por ofensas aos menores sob seu cuidado o direito a ser indemnizada ao lado daqueles ou em vez deles;
Assim a eventual responsabilidade dos arguidos para com a demandante é responsabilidade meramente civil e não conexa com a responsabilidade criminal em causa;
E se pode considerar-se num conceito lato lesado “ todo aquele que perante o direito processual civil tiver legitimidade para formular o pedido de indenmização civil”- M Gonçalves, Cod Proc Penal 1ª ed. pág.223 evidente se torna que o direito processual civil não atribui legitimidade à demandante para deduzir indemnização civil pela pratica do crime de maus tratos de que foram vitimas menores entregues aos seus cuidados (e de que não foi vitima), e só este crime está em causa, que aliás tem como vitimas pessoas bem identificadas e não representadas pela demandante, pelo que esta não é lesada “pela infracção penal” de que são acusados os arguidos.
E se citando o ac STJ 17/5/2012 www.dgsi.pt se afirma que “II - A causa de pedir que sustenta o pedido cível tem que partir dos mesmos factos que integram a prática de um crime, ou seja, dos factos que são causa da responsabilidade criminal.” evidente se torna que no caso assim não é, pois a causa de pedir invocada é a ofensa do seu direito ao bom nome (que é objecto de alegação e tem de ser objecto de prova a sua ofensa e depois dos danos e seu nexo causal, pelo que estamos perante um itinerário probatório diferente (apud ac STJ de 10/12/2008, Pº3638/08, www.dgsi.pt “VIII - O itinerário probatório é exactamente o mesmo no que toca aos factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, havendo, apenas, que acrescentar que em relação a esta há, ainda, que provar os factos que indicam o dano e o nexo causal entre o dano e o facto ilícito.”) num e noutro caso, e não apenas as agressões de que os menores foram vitimas no seu direito à integridade física e psíquica, de que teriam resultado danos para a demandante;
Com Germano Marques da Silva, Curso de Proc Penal, I, Verbo, 2008, 5ª ed. pág. 128, diremos para que o pedido de indemnização civil possa ser deduzido no processo penal “ há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado” a que haveria apenas de acrescentar os danos e o nexo causal, e dado que assim não é (pois ainda haveria que demonstrar a ofensa do direito ao bom nome - causa do dano) é de julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.
+
Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar improcedente o recurso interposto pela demandante e em consequência mantém o despacho recorrido;
Condena a recorrente no pagamento da taxa de justiça de 3 Uc e nas demais custas.
Notifique.
Dn
+
Porto, 1/7/2015
José Carreto
Paula Guerreiro