Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6415/23.9JAPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: METADADOS
LOCALIZAÇÃO DE TELEMÓVEL DE VÍTIMA DE CRIME
OPERADORAS DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÕES
Nº do Documento: RP202402216415/23.9JAPRT-A.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE COM 2 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Estando em causa a localização de telemóvel de uma possível vítima de crime de homicídio ou outro, que a tenha posto na impossibilidade de comunicar, pode aceder-se aos dados conservados na posse de operadoras de serviços de comunicações, que continua previsto nos artigos 187 a 189 do CPP, que o Tribunal Constitucional entendeu não estarem feridas de inconstitucionalidade, nada impedindo que as autoridades a eles acedam quando estão em causa valores como a segurança, a legalidade democrática e o exercício da ação penal no combate à criminalidade.

[Sumário da responsabilidade da Relatora]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6415/23.9JAPRT-A.P1

1.Relatório
O presente recurso foi interposto pelo M. Público do despacho proferido em 29/11/2023 pelo Sr. Juiz de Instrução Criminal do Tribunal da Comarca do Porto, Juízo de Instrução Criminal do Porto, Juiz 4º, nos autos de inquérito registados sob o nº 6415/23.9JAPRT, o qual recaiu sobre a seguinte promoção:
« Nos presentes autos investiga-se a causa da morte de AA, a qual se deveu traumatismo craniano com fratura da base do crânio, sendo compatível com queda para trás da própria altura, não existindo ainda elementos que nos permitam concluir se a queda que o vitimou foi de origem acidental, por causa natural ou por intervenção de terceiros.
A vítima foi encontrada caída no chão, no dia 10.11.23, cerca das 01h30, junto ao ..., na rampa de acesso à marginal. Eventualmente podem os autos indiciar a prática de um crime de homicídio, p. e p. pelo art.° 131.° do Cód. Penal.
Até à presente data não foi possível localizar o telemóvel que a vítima utilizavacom o n.° ... da Operadora A....
Revela-se deste modo essencial para a descoberta da verdade material, a obtenção da listagem de chamadas e localização celular do referido n.° de telemóvel.
Assim, remeta os autos ao Mimo. Juiz de Instrução, a quem se promove, ao abrigo do disposto nos art°s. 187.°, n.° 1, a) e 269.°, n.° 1, e) do Cód. Proc. Penal, que determine:
- o fornecimento da listagem de chamadas/sms (recebidas/enviadas) e localização celular associados ao n.° ... da A..., desde 01.10.23 até à presente data.»
É o seguinte o teor do despacho recorrido:
«Tendo em consideração o teor do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19/04/2022, apenas a parte referente ao fornecimento da listagem de chamadas/sms (recebidas/enviadas) pode ser deferida.
O demais, por se tratar de dados de tráfego conservados, tem que ser indeferido.»
Passamos em seguida a transcrever o teor das conclusões elaboradas no recurso:
«1º) Conforme admitido pelo disposto nos art°s, 187º a 189º do Cód. Proc. Penal, o Ministério Público promoveu a obtenção da localização celular associada ao n.º ....
2.º) O Mmo. Juiz de Instrução Criminal indeferiu o referido segmento da promoção do Ministério Público por considerar ser inconstitucional a obtenção desses elementos, ao abrigo do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022.
3.º) Contudo, tal indeferimento é produto de uma indevida leitura do Acórdão do Tribunal Constitucional, já que o promovido não se prende com o regime constante da Lei nº 32/08, mas sim com o estipulado nos art°s. 187º n.° 1, a) e 189º, do Cód. Proc. Penal, normas habilitantes para obter os dados de tráfego e localização, conservados e em tempo real.
4.º) Estes artigos do Cód. Proc. Penal não foram revogados pela Lei n.º 32/08, de 17.07, quer de forma expressa, tácita ou sistemática, mantendo-se plenamente em vigor.
5.º) A declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional não abrangeu estes preceitos normativos.
6.º) Assim, seria sempre de deferir a obtenção de localização celular, nos termos dos artigos 187º n.º 1, a) e 4 e 189º do Cód. Proc. Penal (regime aplicável aos autos), não constituindo qualquer meio ilícito de obtenção de prova.
7.º) O Mmo. Juiz de Instrução Criminal ao sufragar o entendimento vertido no segmento da decisão ora impugnada, violou, assim o disposto nos art°s. 125º, 126º, 187º, 189º e 262º todos do Cód. Proc. Penal.»
Pugna pela revogação da decisão recorrida e pela obtenção de autorização da obtenção da localização do celular a que se reporta a promoção do MP sobre a qual recaiu o despacho recorrido.
Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto no seu parecer esclarece que nos presentes autos não está em causa o conteúdo de uma comunicação e por esse motivo concorda com os argumentos recursivos e emite parecer no sentido do provimento do recurso e do consequente deferimento da promoção sobre a qual recaiu o despacho recorrido.
2. Fundamentação:
O presente recurso está limitado ao indeferimento do pedido de localização do telemóvel com o nº ... da A..., desde 01.10.23 até à presente data pertencente ao falecido AA, o qual pode ter sido vítima de crime de homicídio, o que se investiga nos presentes autos.
Vejamos!
Em 19/04/2022 o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 268/22, declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35 e do n.º 1 do artigo 26, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18, todos da Constituição; e também da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35 e do n.º 1 do artigo 20, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18, todos da Constituição.
O que se pretende com o presente recurso é obter permissão para aceder aos dados de localização do telemóvel do falecido AA possível vítima de crime de homicídio.
Sobre os dados de localização refere-se no Acórdão 268/22:
«…dados de localização”, definidos pela alínea c) do artigo 2.º da Diretiva 2002/58/CE como «quaisquer dados tratados numa rede de comunicações eletrónicas que indiquem a posição geográfica do equipamento terminal de um utilizador de um serviço de comunicações eletrónicas publicamente disponível». Reconduzindo aquele conceito às categorias de metadados reconhecidas pelo Tribunal Constitucional, a informação relativa à localização do equipamento pode enquadrar-se nos dados de base (quando identifica a posição geográfica do aparelho, independentemente de qualquer comunicação) ou nos dados de tráfego (quando esta identificação está associada a uma comunicação ou tentativa de comunicação — onde estava o sujeito A quando comunicou com o sujeito B). Sucede que a primeira espécie dos dados de localização (a que não pressupõe comunicações) é residual, como notou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 464/2019: «segundo o parecer da CNPD n.º 38/2017, nos dias de hoje ocorrem comunicações mesmo quando o utilizador do equipamento de comunicação não o aciona direta e intencionalmente. É, por exemplo, o caso das atualizações efetuadas pelas aplicações de correio eletrónico ou outro tipo de mensagens, o que significa que a geração e troca de dados são praticamente constantes, mesmo quando os cidadãos utilizadores dos equipamentos nada fazem». Por essa razão, «tem-se considerado que os mesmos estão também incluídos no conceito mais amplo de “dados de tráfego”» (Acórdão n.º 403/2015), ideia que aqui se reafirma.» E mais adiante : «O tratamento de todos estes dados, ao manter o rastreio dos passos dos utilizadores, seja quanto à sua localização, seja quanto à utilização que faz da internet, seja quanto às pessoas com quem contacta ou tenta contactar, por telefone, correio eletrónico, mensagens escritas ou através da internet, é suscetível de comprimir os direitos à reserva da intimidade da vida privada, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação informativa.»
Temos pois, que a análise de conformidade com a constituição das normas dos artigos 4 e 6 da lei nº 32/2008, de 17 de julho foi feita: «…à luz dos direitos fundamentais que parametrizam todas as categorias de dados identificadas nas normas indicadas pela requerente — concretamente os direitos ao livre de desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação informativa.» por ser reconhecido que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade abrange a faculdade de comunicar com segurança, enquanto parte da liberdade de ação e de realização pessoal.
E mesmo fora do domínio das comunicações, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade abrange o direito ao sigilo dos dados pessoais, os quais não compreendem somente aqueles que diretamente identificam uma pessoa, mas também aqueles que, sem esforço excessivo, permitam chegar a essa identificação. Daqui resulta que a proibição de ingerência de terceiros na esfera de autonomia pessoal é indispensável à auto conformação da identidade. Garantindo a liberdade de cada sujeito, já que privacidade e liberdade se relacionam intimamente: a vida privada tutelada decorre da liberdade de condução da vida do titular, ou seja, o direito à reserva da intimidade da vida tutela os indivíduos contra o acesso a um conjunto de informações que dizem respeito apenas aos próprios (por onde circulam, em que momento, em que contextos), envolve a proteção constitucional dos dados que permitem retirar conclusões sobre essas circunstâncias. Daqui decorre o art. 35 da CRP que assegura ao titular o poder de decidir sobre o uso e divulgação dos seus dados pessoais, isto é, o poder de controlar a informação disponível a seu respeito. E isso implica para o Tribunal Constitucional no Acórdão citado que: «o disposto no artigo 35.º da Constituição, interpretado em conformidade com os artigos 7.º e 8.º da CDFUE, impõe ao legislador, como condição de efetividade das garantias nele consagradas, a previsão da obrigatoriedade de armazenamento dos dados pessoais num Estado-Membro da União Europeia.
(…)
Ao admitir que tais dados possam ser conservados em países subtraídos à fiscalização por autoridade administrativa independente e aos direitos de auditoria dos visados, o legislador transgride a injunção de previsão do seu armazenamento em local em que sejam efetivas as garantias constitucionais de proteção e a intervenção da autoridade administrativa independente (n.º 2 do artigo 35.º da Constituição), falecendo a garantia de proteção destes dados contra a devassa ou difusão. Com efeito, o ordenamento apenas tutelou a transferência para Estados terceiros de tais dados pessoais e somente no que respeita a pessoas singulares; não tendo determinado, como resultava da injunção constitucional, a obrigação de armazenamento desses dados num Estado-Membro da União Europeia.
É quanto basta para concluir pela inconstitucionalidade, por violação do direito à autodeterminação informativa, consagrado nos n.ºs 1 e 4 do artigo 35.º da Constituição, interpretado em conformidade com o disposto nos artigos 7.º e 8.º da CDFUE, das normas contidas nos artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho.» E conclui que: «a obrigação de conservação de dados de base (e de endereços de protocolo IP dinâmicos relativos à fonte de uma comunicação, independentemente da respetiva categorização) pelo período de um ano, constante da conjugação das normas dos artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, não seria em si mesma inconstitucional, se o legislador houvesse cumprido a injunção de prever o seu armazenamento no território da União Europeia.»
Já quanto à norma do art. 9º relativa ao regime de acesso aos dados pelas autoridades competentes em matéria de investigação criminal, o cerne da questão radica em que: «A inexistência da notificação aos visados de que os seus dados foram acedidos pelos órgãos competentes pela investigação criminal (uma vez terminado o processo em que tal tenha ocorrido) impedirá que estes possam exercer um controlo jurisdicional da legalidade daquela transmissão. O que é configurado como uma violação do direito de acesso à via judiciária efetiva, uma vez que se impede, na prática, o exercício de ação judicial contra eventuais arbitrariedades ou abusos naquele acesso: servindo a tutela jurisdicional efetiva para a salvaguarda dos direitos fundamentais, a impossibilidade da sua defesa materializará uma violação do direito à tutela jurisdicional efetiva.»
(…) «Ao não se prever tal notificação restringe-se de modo desproporcionado o direito à autodeterminação informativa, consagrado no artigo 35.º, n.º 1, da Constituição (na dimensão de controlo do acesso de terceiros a dados pessoais) afetando, igualmente, o direito a uma tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), por prejudicar a viabilidade prática de exercício de controlo judicial de acessos abusivos ou ilícitos aos dados conservados.»
São estas em síntese as razões que levaram à declaração de inconstitucionalidade do citado Acórdão 268/22.
Porém, para suprir tal vazio a jurisprudência tem vindo a sugerir a aplicação dos artigos 187 e 189 do CPP, por se considerar que o Tribunal Constitucional entendeu não estarem feridas de inconstitucionalidade as normas do CPP que preveem a possibilidade de obter e juntar aos autos dados sobre a localização celular ou registos de realização de conversações ou comunicações quanto a crimes previstos no nº 1 do artigo 187º, nem o TC afastou a possibilidade de conservação de dados ao abrigo de outros diplomas, por exemplo para fins contratuais, de que é exemplo a lei 41/2004 de 18.08, que prevê a conservação de dados de tráfego, por um período de 6 meses.
Assim, se o CPP prevê a possibilidade de obtenção de dados relativos a conversações e comunicações telefónicas, se eles existirem validamente conservados no âmbito de outros diplomas em vigor, (v.g. artigo 14º da lei 109/2009), nada impede que as autoridades a eles acedam ainda que observando as condições técnicas e de segurança exigidas pelo SAPDOC (Sistema de acesso ou pedido de dados às operadoras de comunicação) quando estão em causa valores como a segurança, a legalidade democrática e o exercício da ação penal no combate à criminalidade. De igual modo, se há dados que podem ser guardados, por exemplo, para fins contratuais, por exemplo, de faturação, nada impede que possam ser utilizados para fins de investigação criminal, tanto mais quanto a Lei 41/2004 de 18/08, o admite expressamente no seu art. 6 n º7, e no âmbito do processo criminal ao arguido são obrigatoriamente transmitidos nos termos do disposto no art.141 nº 4 al. e) do CPP os elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não ponha em causa a investigação, não dificulte a descoberta da verdade nem crie perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas de crime.
Não ignoramos que se tem vindo a entender que a interpretação dos artigos 187 e 189 do CPP, em conformidade com as normas europeias, sempre imporia que não fossem aplicadas pelas mesmas razões que levaram à declaração de inconstitucionalidade, pois, «De outro modo, estaríamos a “deixar entrar pela janela” aquilo a que o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 “fechou a porta”. - citação do Acórdão da Relação do Porto de 7/12/2022, relatado por Pedro Vaz Pato e disponível em www.dgsi.pt, o qual entende não ser possível aplicar o regime dos artigos 187 e 189 do Código de Processo Penal (relativo às comunicações em tempo real, não à conservação de dados de comunicações pretéritas), para colmatar a falta que a declaração de inconstitucionalidade provocou.
Mas o entendimento assim expresso, salvo melhor opinião, vai muito além do afirmado e pretendido pelo Tribunal Constitucional no referido Acórdão 268/2022. O Tribunal Constitucional não vedou o acesso, no âmbito do processo penal, a dados conservados na posse de operadoras de serviços de comunicações, que continua previsto nos artigos 187 a 189, na al. e ) do art. 269 do CPP e na Lei do Cibercrime, nem as operadoras de comunicações ficaram impedidas de conservar dados de tráfego dos seus clientes, v.g. para fins de faturação, como prevê a já citada Lei 41/2004 - que transpôs a Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas e, que contrariamente à Diretiva 2006/24/CE (transposta pela Lei 32/2008 de 17.07) se mantém válida – pelo prazo de 6 meses.
Acresce que, no caso concreto, apenas se pretende a localização de um telemóvel pertencente a uma possível vítima de crime de homicídio e não do telemóvel de um suspeito, não fazendo grande sentido, cremos, invocarem-se razões de salvaguarda da privacidade para se negar o pedido de obtenção de tais informações.
Por outro lado, o titular do aparelho infelizmente já não está entre nós e não poderá consentir na divulgação dos dados
Assim, afigura-se-nos que no caso concreto nada se opõe à aplicação do disposto nos artigos 187 nº2 al. a) e 189 nº2 do CPP, que se mantêm em vigor; porquanto, as razões que estiveram na base da declaração de inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/22, não colhem no caso em apreciação.
No sentido da aplicação do regime dos artigos 187 e 189 do CPP decidiu, entre outros, o Ac. da Relação de Guimarães de 2/05/2023 relatado por Armando Azevedo, disponível em www. dgsi.pt., e o Ac. da Relação de Lisboa de 22/02/2023 relatado por Alda Tomé Casimiro, também disponível em www.dgsi.pt, que considera que «a possibilidade de transmissão de dados de tráfego no âmbito de processo criminal não está prevista apenas na Lei 32/2008 de 17.07.
Efectivamente, não só o art. 189°, n° 2 do Cód. Proc. Penal (ao abrigo de que é solicitada a informação pretendida nestes autos), mas também o art. 14° da Lei 109/2009 de 15.09 (Lei do Cibercrime) permitem essa possibilidade.
E nenhum destes normativos foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral.
Ou seja, a investigação criminal no que se refere à obtenção, nomeadamente, de dados de tráfego, não está limitada à previsão da citada Lei 32/2008. Há que não esquecer os restantes quadros normativos que o permitem.
Acrescentamos, no que se refere ao n° 2 do art. 189° do Cód. Proc. Penal, que não parece razoável a interpretação de que este normativo apenas se reporta à obtenção de “dados dinâmicos”, ou seja, que estejam a ser transmitidos em tempo real, por oposição a dados “preservados ou armazenados” como são os que se pretendem obter.
Desde logo a letra do n° 2 do art. 189° do Cód. Proc. Penal não permite tal limitação - se podem ser obtidas intercepções e recolha de imagens/som, porque não o acesso à consulta de dados armazenados, seguramente actividade menos intrusiva?
Por outro lado, as normas dos arts. 187° e 189° do Cód. Proc. Penal não foram alvo de revogação, expressa ou tácita, pela Lei 32/08 de 17.07. De facto, os dois regimes coexistem e não visam exactamente o mesmo alvo, considerando que o primeiro só tem aplicação no caso de “crimes de catálogo” (âmbito mais restrito, portanto).»
Também no sentido da aplicação do regime previsto CPP o Acórdão do STJ de 8/11/2022, relatado por Conceição Gomes:
«…o art. 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal permite aceder a dados de tráfego, neste caso, dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações e, por maioria de razão [in eo quod plus est, semper inest et minus (no que é mais está sempre compreendido o que é menos)], a dados de base relacionados, neste caso, com a identificação dos titulares dos cartões de telemóvel [nos quais, como salienta o acórdão do TC 268/2022, «o grau de agressão ao direito à intimidade da vida privada (…) é menos gravoso do que os demais metadados elencados no artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho (pois apenas identificam o utilizador do meio de comunicação em causa)»], aos quais o MP sempre poderia aceder por via do disposto no art. 14.º, nºs 1 e 4, al. b), da Lei 109/2009, de 15.09 (Lei do Cibercrime), quando se investiguem os crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º, nomeadamente, crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.»
Tudo ponderado, entendemos que no caso em análise podemos autorizar a localização do telemóvel com o nº ..., da Operadora A..., pertencente ao falecido AA, possível vítima de crime de homicídio, ao abrigo do disposto nos artigos 187 nº2 al. a) e 189, ambos do CP, por no caso concreto não se aplicarem os fundamentos que estiveram na base da declaração de inconstitucionalidade feita no Acórdão nº 268/22, assim dando provimento ao presente recurso.
3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, com base nos argumentos que ficaram expostos acordam os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP, e em consequência revogam o despacho recorrido na parte em que indefere o acesso aos dados de localização do telemóvel com o nº ..., da Operadora A..., pertencente ao falecido AA, e ao abrigo do disposto nos artigos 187 nº2 al.a) e 189 nº2 do CPP autoriza-se o titular da ação penal a aceder aos dados de localização do referido telemóvel nestes autos de inquérito desde 10-10-2023 até à data do requerimento do MP.
Sem tributação.

Porto, 21/2/2024
Paula Guerreiro
Maria do Rosário Martins [que vota a decisão.]
Castela Rio [com a seguinte declaração de voto:
«Voto a decisão pela conjugação do segmento «localização celular» tout court in nº 2 do art 189, com o segmento crimes «Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos» in al a) do nº 1 do art 187, com o segmento «Vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido» in alínea c) do nº 4 do art 187 com o nº 2 do art 39 do CP,
Conforme o qual « Há consentimento presumido quando a situação em que o agente actua [numa interpretação teleológica, a pessoa de OPC em execução de Despacho de investigação ao abrigo de Despacho de autorização] permitir razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido [in casu o falecido AA] teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado» posto que:
Um «homem médio» prontamente representa mentalmente que o falecido AA quereria que OPC sob a direcção do MP titular do INQ investigasse causa / circunstância / facto / motivo / razão da «etiologia completa» de seu decesso, por apenas se saber de «morte (dir-se-á) violenta» a cause de «traumatismo craniano com fratura da base do crânio» causada directa e necessariamente por «queda» de «origem acidental, por causa natural» ou de origem incidental «por intervenção de terceiro/s».
Tal inusitado decesso pode e deve ser bem investigado em congruência com o princípio constitucional «a vida humana é inviolável» in art 24-1 da CRP - além do «fornecimento da listagem de chamadas / sms / (recebidas / enviadas)» deferido a quo - mediante a «localização celular associados ao n.º ... da A..., desde 01-10-2023 até à presente data» do Requerimento do MP indeferido a quo, por se afigurar diligência investigatória «essencial para a descoberta da verdade material» e menos intrusiva do que o «fornecimento da listagem ...» já deferido a quo.
Assim se conclui para além da fundamentação estruturalmente sistémica in ARP de 07-12-2022 de Pedro Pato & Eduarda Lobo & Castela Rio no Recurso Penal 5011/22.2JAPRT-A.P1 in www.dgsi.pt, após aprofundamento da investigação pessoal na matéria assaz científica e técnica dos «metadados» lato sensu decorrente da proliferação legislativa, sendo que tal aprofundamento emergiu de reflexão - mais uma - sobre:
As anotações de TIAGO CAIADO MILHEIRO aos arts 187 a 189 do CPP in pgs 721-847 da 2ª edição de FEV 2020 do Tomo II do «Comentário Judiciário do Código de Processo Penal» da estampa da Almedina tida como «ponto de partida» da investigação desenvolvida neste 6415/...;
A parte decisória - à luz dos seus fundamentos - do ATC 268/2022 de 19-4-2022 de Afonso Patrão no processo 828/2019 do TC que então decidiu:
«a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, [apenas] da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, ... conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, [apenas] por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;
«b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, [apenas] da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, ... relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, [apenas] na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição»;
Os conteúdos do artigo «A conservação e a utilização probatória de metadados de comunicações electrónicas após o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 - o que nasce torto ...» de RUI CARDOSO na Revista do Ministério Público ano 43 out-dez 2022 a pgs 09-77.
A parte decisória - à luz dos seus fundamentos - do ATC 800/2023 de 04-12-2023 de José Eduardo Figueiredo Dias no processo 1130/2023 do TC que então decidiu « Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2.º do Decreto n.º 91/XV, da Assembleia da República, publicado no Diário da Assembleia da República n.º 26, II Série A, de 26 de outubro de 2023, e enviado ao Presidente da República para promulgação como lei, [apenas] na parte em que altera o artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugado com o artigo 6.º da mesma lei, quanto aos dados previstos no n.º 2 do mencionado artigo 6.º, por violação [apenas] do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição».
Em síntese de tal aprofundamento evidenciou-se ora que a conservação e a utilização de «metadados» lato sensu reclama - além de compreensões sistémicas de princípio - sempre e decisivamente a ponderação - em qualquer fase do processo penal - das circunstâncias do caso individual e concreto, mormente se a diligência visa «suspeito ou arguido» - que inexiste in casu - ou «vítima de crime» - por «morte (supra dita) violenta».
A final releva-se como aparente divergência 6415/... versus 5011/... porque no caso sub judice está em causa o segmento «Vítima de crime» da alínea c) e não o segmento «Suspeito ou arguido» da alínea a) - ambas do nº 4 do art 187 do CPP - pelo que o deferimento ad quem do pedido a quo neste 6415/... não podia deixar de ser diferente da perfectibilizada no 5011/...]