Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11197/20.3T8PRT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DOMINGOS MORAIS
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL
CONTABILISTA CERTIFICADO
Nº do Documento: RP2021101811197/20.3T8PRT-C.P1
Data do Acordão: 10/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Decisão: DEFERIDO O LEVANTAMENTO DO SIGILO PROFISSIONAL
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: No confronto entre os direitos constitucionais da segurança no emprego e do direito à decisão judicial com prevalência da decisão de fundo sobre a mera decisão de forma, com o direito privado de reserva da actividade empresarial, reportado às transacções comerciais com empresa(s) do(s) mesmo(s) ramo(s) de actividade sobrepõem-se os enunciados direitos constitucionais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 11197/20.3T8PRT-C.P1
Origem: Comarca Porto -Porto-Juízo Trabalho-J1
Relator: Domingos Morais - Reg. 933
Adjuntos: Paula Leal Carvalho
Rui Penha

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

IRelatório
1. – B… apresentou o formulário a que reportam os artigos 98.º-C e 98.º-D, do Código de Processo de Trabalho (CPT), na Comarca Porto-Porto-Juízo Trabalho-J1.
C…, Lda., frustrada a conciliação na audiência de partes, apresentou o articulado motivador do despedimento com justa causa, alegando, em resumo, que:
O autor foi contratado pela ré, em 01 de junho de 2017, mediante celebração de contrato de trabalho por tempo indeterminado.
O autor tinha a categoria profissional de Diretor Financeiro, exercendo concretamente as suas tarefas na área da contabilidade e Fiscalidade, designadamente: Elaboração da contabilidade de acordo com os princípios da S.N.C., elaboração das demonstrações financeiras anuais e trimestrais, elaboração da faturação e a sua comunicação à Autoridade Tributária (AT), via SAFT, planeamento, preparação e entrega de todas as obrigações fiscais exigidas, planeamento, preparação e entrega de todas as declarações, execução de reconciliações de bancárias, execução de lançamentos de recibos, análise de contas correntes de clientes e fornecedores, de contas consolidadas, de relatório baseado em normas financeiras internacionais e análise financeira (projetos de investimento, financiamentos etc.), preparação das declarações fiscais e de processos de reembolso de IVA, garantia do cumprimento de todas obrigações fiscais e parafiscais (Modelo 22, IES, IVA, Dossier fiscal, entre outras), cálculo de impostos/imposto diferidos, elaboração de informação, pareceres relacionados com matérias fiscais de âmbito nacional ou internacional, preparação de reclamações na revisão de atas tributarias, preparação de pedidos de esclarecimento sobre situações tributárias, processamento de salários e recibos de vencimentos, cumprimento de todas as obrigações legais inerentes e inscrição dos colaboradores nas diversas autoridades.
O contrato de trabalho vigorou até ao dia 01 de julho de 2020, data em cessaram os efeitos do contrato por se produzirem os da extinção do respetivo posto.
A ré dedica-se ao comércio, importação e exportação de produtos alimentares, materiais e equipamentos para a construção civil, equipamentos de segurança e artes para pesca.
A ré é essencialmente uma empresa de trading internacional, ou seja, atua como intermediária entre empresas fabricantes e/ou fornecedoras dos bens referidos no artigo anterior e empresas compradoras estrangeiras em operações internacionais de importação e exportação.
Os clientes da ré (empresas compradoras) são exclusivamente empresas Angolanas ou que atuam no mercado Angolano, sendo que, atualmente, cerca de 100% da sua faturação respeita a transacções comerciais com empresas Angolanas suas associadas, isto é, com a C1…, Lda., D…, Lda., E…, Lda., F…, Lda., e G…, Lda..
No passado dia 18 de março de 2020, em Portugal foi decretado Estado de Emergência Nacional, face ao panorama acima vertido, Estado de Emergência esse que foi sucessivamente prorrogado até ao dia 2 de Maio de 2020, vigorando posteriormente o Estado de Calamidade até à situação atual.
Por sua vez, o Estado Angolano decretou o Estado de Emergência Nacional, através do Decreto Presidencial nº 81/20, de 25 de Março, tendo o mesmo sido sucessivamente renovado até ao dia 26 de Maio de 2020 e depois evoluído para estado de calamidade.
Acompanhando a declaração do Estado de Emergência, o Governo Angolano fez publicar várias medidas legislativas que condicionam a atividade das empresas Angolanas, incluindo, naturalmente, as clientes da C1….
Entre elas, a Circular nº 03/GMF/2020, de 21 de Abril de 2020, da Ministra das Finanças de Angola, que suspende a execução dos contratos celebrados e dos Procedimentos de Contratação Pública sem Financiamento Assegurado.
Como consequência, ficaram suspensos todos os contratos no âmbito do Programa de Investimento Público, cuja fonte de financiamento não estivesse assegurada e, ainda, suspensa a execução de todos os contratos de caráter não prioritário e estrutural no âmbito das despesas de apoio ao desenvolvimento (DAD), sem financiamento garantido.
Mas os efeitos económico-financeiros nefastos da Pandemia em todo o Mundo, e muito particularmente em Angola e Portugal, conseguem ir para além das consequências desastrosas ao nível do setor do petróleo.
Tudo isto afetou a ré, que já vinha tendo um decréscimo no seu sucesso financeiro e tomando a gerência várias medidas para a sua subsistência enquanto tal, foi iniciada uma absolutamente inevitável reestruturação da mesma.
Uma das referidas medidas incontornáveis foi, então, a extinção do posto de trabalho do A., passando as funções de contabilidade e de revisão acima descritas, que eram, no fundo, as funções do trabalhador, a ser prestadas por empresa terceira para efeitos do presente processo, no modo denominado de “outsourcing”, por se verificarem os requisitos legais para fazer operar este instituto e em estrito cumprimento dos normativos materiais e procedimentais aplicáveis.
Terminou, concluindo: “deve ser julgada improcedente a presente ação, declarando-se a regularidade e licitude do despedimento do a., com as legais consequências.”.
2. - Notificado, o autor apresentou contestação/reconvenção, impugnando os factos sobre a justa causa objectiva – extinção do posto de trabalho - alegados pela ré, requerendo a intervenção provocada de associadas da ré, e pedindo:
“(D)eve:
A) Ser julgado não provado e improcedente o Articulado da R., e em consequência dar-se provimento à presente acção de impugnação da regularidade e licitude do despedimento; e
B) Ser a presente Reconvenção julgada provada e procedente e, em consequência, serem:
1 – Todos os Intervenientes citados para os presentes autos;
2 – A R. e as Chamadas condenadas no reconhecimento de que o salário base do A. era de 3.094,60€;
3 – A R. e todos os chamados condenados no reconhecimento que o vínculo laboral do A. se iniciou em 01 de Janeiro de 2015;
4 - Declarada a ilicitude do despedimento do A. promovido pela R.;
5 – Declarado a licitude e justa causa de despedimento do A. da I…, S.A.;
6 – Condenadas a R. e as Chamadas no valor dos dois dias que foram indevidamente descontados ao A. em Junho de 2020, no montante de 206,30 €, bem como nas ajudas de custo no valor de 100,00 € mensais, que lhe foram retiradas em Abril e Maio de 2020, perfazendo 200,00 €;
7 - Condenada a R. e as Chamadas no pagamento ao A. do valor de 18.567,30 € (item 332º) a título de compensação pelo despedimento sem justa causa;
8 – Condenado o Chamado H… no pagamento do valor de 3.492,50 € (item 333º) a título de compensação pelo despedimento sem justa causa;
9 – Serem também condenadas a R. e todos os Chamados, solidariamente, a pagar o valor nunca inferior a 7.500,00 € (item 345º) a título de dano não patrimonial, por todo o sofrimento que o A. passou e ainda vive; e ainda,
10 – Ser condenada a R. e as Chamadas no pagamento ao A. da diferença dos direitos vencidos em face da fixação da sua justa e real retribuição mensal a que teria direito (3.094,60 €) o que perfaz uma diferença no montante de 13.925,70 € (item 346º) a título de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal e proporcionais de 2020;
11 – Serem condenadas a R. e as Chamadas nos valores atinentes a férias, subsídio de férias e subsídio de Natal, desde o reconhecimento do vínculo em 01 de Janeiro de 2015 até Junho de 2017, no montante de 22.435,85 € (item 349º);
12 – Serem condenadas as R e as Chamadas nas diferenças de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal de Junho de 2017 a Junho de 2020, no valor de 3.637,50 € (item 352º);
13 – Serem a R. e as Chamadas condenadas no pagamento das diferenças salariais mensais (descontado, o montante ganho em prestação de serviços, ao salário base agora reclamado), desde Janeiro de 2015 a Junho de 2017, no valor de 48.423,40 € (item 358º);
14 – Ser o Chamado H… condenado no pagamento do valor de 48.895,00 € (item 361º) por todos os valores resultantes da relação laboral estabelecida com o R. e nunca por si reconhecida;
15 – E todo o mais que for reconhecido extra vel ultra petitum:
16 - Nas custas e no que mais for de lei.”.
3. – E requereu:
O A., conforme resulta do teor do seu articulado, exerceu funções como Director Financeiro das entidades aí referidas.
Ora, incluídas em tais tarefas – quase de forma redundante – encontrava-se a prestação de serviços de contabilidade, uma vez que o A. também acumula o múnus de Contabilista Certificado.
Assim, e por cuidado, nos termos do art.º 72º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e do art.º 10º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, vem requerer a V.ª Ex.ª que se digne oficiar a Ordem dos Contabilistas Certificados para proceder ao levantamento do eventual sigilo profissional do A., a que possa haver lugar, para assim defender, sem restrições, os seus direitos em Tribunal.”.
4. – Após a resposta da ré, a Mma Juiz despachou:
No seu articulado de resposta e sob epígrafe “A) Do dever legal e contratual de sigilo e da nulidade da junção dos documentos juntos pelo autor”, veio a Ré arguir nulidade, nos termos do art.° 195°, n.° 1 Código de Processo Civil, defendendo que está impossibilitada a aquisição processual destes documentos.
Porém, na alegação que faz tendente a demonstrar a violação legal e contratual do dever de sigilo por parte do Autor, a Ré não identifica concretamente quais são os documentos e qual a informação sujeita a tal sigilo, sendo certo que o Autor junta inúmeros documentos, nestes autos e nos autos de providência cautelar apensos, e presta inúmera informação sobre a realidade da Ré, muita dela tendente a tentar demonstrar a falta dos fundamentos que foram invocados pela Ré para extinção do seu posto de trabalho, pelo que não consegue o Tribunal aquilatar qual é a matéria e quais são os documentos que a Ré entende ferirem tal dever de sigilo.
Assim, notifique a Ré para, em 10 dias, indicar quais os documentos e qual a informação que entende estar sujeita a sigilo, após o que fica o Autor notificado para se pronunciar, querendo, em igual prazo.”.
5. – A ré respondeu: “A Ré entende estarem sujeitos ao sigilo legal e/ou contratual, os seguintes:
- Factos sigilosos do articulado da Contestação/Reconvenção do Autor: (…).
- Documentos sujeitos a sigilo legal e/ou contratual: (…).”.
6. – O autor respondeu, concluindo: “Termos em que deverão tais factos e documentos ser considerados e mantidos nos presentes autos.”.
7. – A Mma Juiz proferiu despacho:
No seu articulado de resposta à contestação/reconvenção do Autor, sob epígrafe “A) Do dever legal e contratual de sigilo e da nulidade da junção dos documentos juntos pelo autor”, veio a Ré arguir nulidade, nos termos do art.° 195°, n.° 1 Código de Processo Civil, defendendo que está impossibilitada a aquisição processual destes documentos.
Notificada a Ré para indicar quais os documentos e qual a informação que entende estar sujeita a sigilo profissional, veio a mesma indicar:
“• Factos sigilosos do articulado da Contestação/Reconvenção do Autor: 92, 101, 123, 127, 140, 144 a 146, 148 a 150, 141 (que se repete por erro na numeração do próprio articulado doravante) a 144 (sendo violado inclusivamente, sem qualquer justificação, o sigilo bancário a que a Ré tem direito), 147, 176, 177, 180, 181, 199, 200 e 202.
“• Documentos sujeitos a sigilo legal e/ou contratual: Doc. 2, junto com a Contestação Reconvenção Doc. 15, 21 a 48, 51 e 52, juntos com a Providência Cautelar, do apenso aos presentes autos com o número 8893/20.9T8PRT-A. Docs. 1 e 2 juntos no decorrer da inquirição do Autor, pelo mesmo, no âmbito da já identificada Providência Cautelar – estando, novamente, a ser violada informação referente a conta bancária da Ré, no que concerne a informação manifestamente sigilosa.”
O Autor teve oportunidade de se pronunciar, o que fez, pugnando pela improcedência da alegada violação de sigilo profissional e da invocada nulidade.
Cumpre decidir:
Como bem refere a Ré, de acordo com o nº 1 do Art 72º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e, particularmente nas suas alíneas d) e e), constituem deveres dos contabilistas certificados perante as entidades para as quais prestam serviços:
d) Guardar segredo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, dele só podendo ser dispensados por tais entidades, por decisão judicial ou pelo conselho diretivo da Ordem;
e) Não se servir, em proveito próprio ou de terceiros, de factos de que tomem conhecimento em razão do exercício das suas funções;
No que se refere ao dever de confidencialidade, o Código Deontológico, refere no seu artigo 10º:
“1 - Os contabilistas certificados e os seus colaboradores estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adotar as medidas adequadas para a sua salvaguarda.
2 - O sigilo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
3 - A obrigação de sigilo profissional não está limitada no tempo, mantendo-se mesmo após a cessação de funções.
4 - Cessa a obrigação de sigilo profissional quando os contabilistas certificados tenham sido de tal dispensados pelas entidades a que, prestam serviços, por decisão judicial ou ainda quando previamente autorizados pelo conselho diretivo, em casos devidamente justificados.
5 - Os membros dos órgãos da Ordem não devem revelar nem utilizar informação confidencial de que tenham tomado conhecimento no exercício dos cargos associativos, exceto nos casos previstos na lei.”
Lidos os factos e compulsados os documentos que a Ré entende violarem tais deveres de sigilo e confidencialidade, concluímos que, efetivamente, a maior parte daqueles factos e documentos são do conhecimento do Autor em virtude das funções que exerceu para a Ré, ou seja, foram adquiridos no exercício da sua atividade profissional.
Sendo certo que os mesmos podem ser relevantes para a presente ação, na medida em que, com os mesmos, o Autor pretende colocar em causa os fundamentos invocados pela Ré de redução substancial da sua atividade e decorrentes de fatores de mercado, que determinaram a extinção do posto de trabalho do Autor, é também certo que os mesmos se encontram sujeitos a sigilo profissional.
Assim, deverá o Autor suscitar a dispensa de tal sigilo à respetiva Ordem dos Contabilistas Certificados.”.
8. - O autor expos e requereu:
“1 – Seguindo o ordenado no douto despacho de fls., o A. refere que já oportunamente, em 08 de Agosto de 2020, efectuou o pedido de levantamento de sigilo profissional, quanto ao seu depoimento, junto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Conta (OTOC), conforme melhor se alcança do documento que vai ao diante – doc. n.º 1;
2 – Constata-se que a decisão da OTOC foi após alguns considerandos genéricos foi que: “A Ordem não dispõe de informação que lhe permita apreciar da imprescindibilidade ou não, do seu depoimento, pelo que não existem condições para lhe levantarmos o sigilo profissional.
Isto posto, terá de se suscitar perante o tribunal que se iniciem os procedimentos necessários ao levantamento do sigilo profissional”.
(…).
REQUER-SE, a V.ª Ex.ª que se digne ordenar que seja oficiado ao Conselho Disciplinar da Ordem dos Contabilistas Certificados:
A) Se estão a coberto de sigilo profissional os seguintes factos e documentos:
a) Os factos do articulado da Contestação/Reconvenção do Autor: 92, 101, 123, 127, 140, 144 a 146, 148 a 150, 141 (que se repete por erro na numeração do próprio articulado doravante) a 144 147, 176, 177, 180, 181, 199, 200 e 202.
b) Documento n.º 2 junto com a Contestação/Reconvenção;
c) Documentos n.º 15, 21 a 48, 51 e 52, juntos com a Providência Cautelar, do apenso aos presentes autos com o número 8893/20.9T8PRT-A.
d) Documentos n.º 1 e 2 juntos no decorrer da inquirição do Autor, pelo mesmo, no âmbito da já identificada Providência Cautelar; ou
B) Caso se verifique que tais factos e documentos estão a coberto do sigilo profissional, a sua dispensa.
MAIS REQUER, Que sejam enviados ao Conselho Disciplinar da OTOC todos os articulados e os documentos em causa, referidos e identificados supra.”.
9. - A Mma Juiz despachou:
Requerimentos das partes, que antecedem:
É certo, como nota a Ré, que os articulados e documentos a que reporta o Autor estão na disponibilidade das partes, pelo que poderá ser o Autor a remetê-los à OCC.
Não obstante, considerando a resposta daquela OCC que já consta dos autos, e ainda o princípio da colaboração do tribunal com as partes, defere-se ao requerido pelo Autor.
Assim, com cópia do requerimento do Autor datado de 26/03/2021 (ref.ª 38398090), oficie à OCC, em conformidade com o ali requerido.”.
10. - A Ordem dos Contabilistas Certificados considerou e concluiu:
“(…).
O CASO VERTENTE
A acumulação de funções de director financeiro e de contabilista certificado torna impossível apurar qual a informação e documentos obteve numa ou noutra qualidade, de modo que se terá de entender que os obteve no exercício de funções e, assim sendo, estão sujeitos a sigilo profissional.
De facto, os documentos que pretende utilizar são e-mails e facturas das empresas e evidenciam as operações económicas e financeiras das mesmas.
O sigilo profissional a que estão sujeitos os contabilistas certificados não é um dever de natureza meramente contratual, isto é, adveniente da relação estabelecida entre o profissional e o cliente, Efetivamente, está-se perante um dever que tem uma natureza eminentemente pública, representando um dever do contabilista certificado não apenas para com o cliente, mas para com a própria classe, a Ordem e toda a comunidade em geral.
Este dever de sigilo profissional é de interesse público inerente ao carácter também público da profissão e à necessária relação de confiança que ela pressupõe para cabal e adequado exercício profissional.
Não sendo um dever absoluto, pois pode ser dispensado pela OCC, ou através de um incidente processual de quebra do segredo profissional, há que aferir qual o princípio preponderante, se o princípio da confiança no contabilista certificado e nas suas funções, se o princípio da descoberta da verdade material no âmbito de um processo de extinção do posto de trabalho.
Atendendo aos valores e interesses presentes, considera a Ordem dos Contabilistas Certificados que o dever de sigilo profissional deve ser dispensado para a prova da situação financeira da empresa no âmbito do presente processo na estrita medida do necessário, face aos fundamentos invocados pela Entidade Patronal.
O princípio constitucional do direito à segurança no emprego, nos termos e limites previstos no Código do Trabalho exige que no processo judicial em curso seja feita toda a prova dos factos que cada uma das partes invoca, soçobrando, se necessário o sigilo profissional.” (negrito nosso).
11. - Deduzido e instruído o incidente autónomo de “Quebra de sigilo profissional”, o expediente foi remetido ao Tribunal da Relação do Porto.

II. Fundamentação de Direito
1. - A questão em apreço consiste em saber se, em acção de impugnação de despedimento com justa causa objectiva – extinção do posto de trabalho, por “motivos de mercado” -, a recusa de colaboração, por parte do empregador, para a descoberta da verdade material, é admitida se, além do mais, implicar violação do sigilo profissional de contabilista certificado, atento o disposto no artigo 72.º, n.º 1, alínea d) do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e artigo 10.º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados.
Daí que, por força dos n.ºs 3 e 4 do artigo 417.º do CPC, seja aplicável o artigo 135.º do CPP, mormente o seu n.º 3, nos termos do qual cabe ao tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, no caso ao Tribunal da Relação do Porto - cf. Acórdão do STJ, de fixação de jurisprudência, n.º 2/2008, de 13.02.2008, DR de 31.03.2008 -, decidir sobre a dispensa do dever do sigilo profissional de contabilista certificado.
2.Quid iuris?
2.1. - Sobre os deveres para com as entidades a que prestem serviços, o artigo 72.º, n.º 1, alínea d), do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados (EOCC), prescreve:
“Nas suas relações com as entidades a que prestem serviços, constituem deveres dos contabilistas certificados: (…); d) Guardar segredo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, dele só podendo ser dispensados por tais entidades, por decisão judicial ou pelo conselho diretivo da Ordem; (…).”.
Por sua vez, o artigo 10.º - Confidencialidade – do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, estatui:
1 - Os contabilistas certificados e os seus colaboradores estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adotar as medidas adequadas para a sua salvaguarda.
2 - O sigilo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
3 - A obrigação de sigilo profissional não está limitada no tempo, mantendo-se mesmo após a cessação de funções.
4 - Cessa a obrigação de sigilo profissional quando os contabilistas certificados tenham sido de tal dispensados pelas entidades a que, prestam serviços, por decisão judicial ou ainda quando previamente autorizados pelo conselho diretivo, em casos devidamente justificados.
5 – (…)”. (negrito nosso)
2.2. – Resulta, pois, do exposto que os contabilistas certificados estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adoptar as medidas adequadas para a sua salvaguarda, obrigação essa que apenas cessa: (i) quando tenham sido de tal dispensados pelas entidades às quais prestem serviços; (ii) quando, previamente, autorizados pelo conselho directivo da respectiva entidade, em casos devidamente justificados; (iii) por decisão judicial, em incidente processual deduzido para o efeito.
Daqui decorre que o sigilo profissional dos contabilistas certificados não reveste uma obrigação de natureza absoluta.
No caso dos autos, o autor deduziu incidente de quebra de sigilo profissional, nos termos do disposto nos artigos 417.º do C.P.C. e 135.º do C.P.P., quebra essa reportada a “e-mails e facturas das empresas que negociaram com a ré e que evidenciam as operações económicas e financeiras das mesmas”.
A circunstância de o autor ter exercido dois tipos de funções, ao serviço da ré - de director financeiro e de contabilista certificado -, não obsta que se aprecie a questão suscitada nos autos, pois, uma parte importante da informação e dos documentos obtidos tê-lo-á sido no exercício das funções de contabilista certificado, como o próprio admite, e, como tal, sujeitos a sigilo profissional.
Aliás, as partes não colocam em causa que tal informação e documentos obtidos pelo autor, ao serviço da ré, estejam sujeitos a sigilo profissional.
A questão essencial é a de saber se tal sigilo deve ser levantado, tanto mais que não reveste uma obrigação de natureza absoluta, como supra referido.
É consabido que o segredo profissional consiste na proibição de revelar factos ou acontecimentos de que o obrigado teve conhecimento ou lhe foram confiados em razão e no exercício da sua actividade profissional.
[Cf. acórdão do STJ de 15.02.2000, in CJ, 2000, t 1, pág. 85 a 91].
No caso sub judice, o autor impugnou o despedimento com justa causa objectiva, alegando inexistir o fundamento invocando pela ré – “motivos de mercado” - para a extinção do seu posto de trabalho.
No quadro do dever de gestão processual que incumbe ao juiz, compete-lhe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer - cf. artigos 6.º e 411.º do CPC.
Em causa está o ónus de alegação das partes, em que, articuladamente, se enumeram os factos essenciais, os factos instrumentais e os factos complementares para uma cabal discussão da causa. O juiz conhecerá assim, por livre apreciação, dos factos notórios e de todos os outros enumerados pelas partes.
Contudo, o juiz não pode provocar, por via da requisição de alguma informação ou daquela (incluindo a sustentada em documentos) que é junta ao processo pelas partes, a violação do sigilo profissional a que cada uma das partes esteja obrigada.
No entanto, deve ser trazido à colação o “dever de cooperação para a descoberta da verdade”.
[cf. o acórdão do TRL, de 03.09.2012].
Estamos, pois, perante duas realidades jurídicas distintas: (i) o dever de sigilo profissional do contabilista certificado, estatutariamente protegido, e (ii) o princípio processual da descoberta da verdade material, em acção de impugnação de despedimento por extinção do posto de trabalho, ou seja, uma justa causa objectiva.
O sigilo profissional protege o direito de reserva empresarial da ré, reportado às transacções comerciais com empresa(s) do(s) mesmo(s) ramo(s) de actividade.
O princípio processual da descoberta da verdade material faculta ao autor a possibilidade de provar, através dos “e-mails e facturas das empresas que negociaram com a ré e que evidenciam as operações económicas e financeiras das mesmas”, o infundado argumento da ré – “motivos de mercado” - para a extinção do seu posto de trabalho. Sem a apreciação judicial dessa documentação, dificilmente, o autor poderá demonstrar a inexistência dos motivos de mercado invocados pela ré.
O direito ao trabalho - “Todos têm direito ao trabalho” – e à segurança no emprego - “É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa” - são imperativos constitucionais – cf. artigos 58.º, n.º 1, e 53.º da CRP.
Por sua vez, o artigo 20.º - Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, da CRP, consagra:
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
(…).
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”.
Em anotação ao artigo 20.º da CRP, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, vol. I, 4.ª ed., págs. 416-417, escrevem:
“Na epígrafe e no n.º 5 a Constituição alude expressis verbis ao direito à tutela jurisdicional efectiva (epígrafe) ou ao direito à tutela efectiva (nº 5). Não é suficiente garantia o direito de acesso aos tribunais ou o direito de acção. A tutela através dos tribunais deve ser efectiva. O princípio da efectividade articula-se, assim com uma compreensão unitária da relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais e organização e processo de protecção e garantia. Não obstante reconhecer o direito à protecção de direitos e interesses, não é suficiente garantia o direito de acção para se lograr uma tutela efectiva. O princípio da efectividade postula, desde logo, a existência de tipos de acções ou recursos adequados (cfr. Cód. Proc. Civil, art. 2.º-2), tipos de sentenças apropriados às pretensões de tutela deduzida em juízo e clareza quanto ao remédio ou acção à disposição do cidadão. A imposição constitucional da tutela jurisdicional efectiva impende, em primeiro lugar, sobre o legislador, que a deve tomar em consideração na organização dos tribunais e no recorte dos instrumentos processuais, sendo-lhe vedado: (1) a criação de dificuldades excessivas e materialmente injustificadas no direito de acesso aos tribunais; (2) a criação de «situações de indefesa» originadas por conflitos de competência negativos entre vários tribunais.
O princípio da tutela judicial efectiva encontra outras refracções no texto constitucional. Os exemplos porventura mais importantes são o direito à tutela jurisdicional efectiva em sede de justiça-administrativa (…) e o direito à decisão judicial em sede de processo civil com prevalência da decisão de fundo sobre a mera decisão de forma e com a adopção do princípio da adequação formal (cfr. Cód. Proc. Civil, art. 265º-2).” (sublinhado nosso) – fim de citação.
Trata-se, pois, de direitos constitucionais, direitos de ordem e interesse públicos.
O direito de reserva da actividade empresarial, subjacente ao dever do sigilo profissional, visa proteger as empresas no mercado concorrencial, no sentido da salvaguarda de informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios.
Assim, no confronto entre os direitos constitucionais da segurança no emprego e do direito à decisão judicial com prevalência da decisão de fundo sobre a mera decisão de forma, com o direito privado de reserva da actividade empresarial, sobrepõem-se os enunciados direitos constitucionais, no âmbito da presente acção.

IV. – Decisão
Atento o exposto, acordam os Juízes, que compõem esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, em deferir o levantamento do sigilo profissional de contabilista certificado, a que o autor estava obrigado, para a descoberta da verdade material, no âmbito da acção impugnação judicial regularidade e Licitude do despedimento n.º 11197/20.3T8PRT, a correr termos na Comarca Porto-Porto-Juízo Trabalho-J1.
Custas pela ré.

Porto, 2021.10.18.
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha