Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
478/10.4TBCHV-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO DE BENS
QUESTÃO A DECIDIR NO INVENTÁRIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
Nº do Documento: RP20130225478/10.4TBCHV-B.P1
Data do Acordão: 02/25/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 1336º, 1349º E 1350º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: A prova testemunhal para confirmar que o interessado utiliza um veículo, bem descrito no inventário, e que foi ele que o adquiriu deve ser realizada no âmbito do incidente de reclamação de bens.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pº nº 478/10.4TBCHV-B.P1
Apelação
(136)
ACÓRDÃO

Acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de inventário em que é cabeça de casal B… foi apresentada a relação de bens (cfr. fls. 52 e segs.).

O interessado C… veio reclamar quanto à mesma nos seguintes termos (cfr. fls. 41 e segs.):
- Acusou a falta de relacionamento da casa de habitação, anexos e logradouro que foi a casa de morada de família do dissolvido casal. Aceita que o terreno em que a casa foi construída foi doado à cabeça de casal, tendo sido o dissolvido casal que ao longo de vários anos edificaram a casa e os anexos;
- A mota é bem próprio de D… desde 03/12/2009;
- Acusa a omissão de um crédito pessoal contraído por si e pela cabeça de casal a 22/05/2007 na E… que deveria ser amortizado em 60 prestações mensais e que o reclamante sempre pagou;
- As verbas 36, 37, 38 e 40 a 61 ficaram na casa de morada de família, lá se encontrando em Novembro de 2011;
- As verbas 54, 55, 56, 57 e 61 desapareceram da casa de morada de família tendo o reclamante apresentado a respectiva queixa na GNR;
- Desconhece a verba 49;
- Acusa a falta de relacionamento de diversos bens móveis.

Respondeu a cabeça de casal (cfr. fls. 30 e segs.) afirmando que a casa de morada de família era bem próprio da cabeça de casal herdado por partilhas da herança aberta por óbito de seus pais.
Refere que na acção que corre termos sob o nº 1206/11.2TBCHV neste Tribunal e Juízo, o reclamante em reconvenção alegou que adquiriu a referida casa por acessão industrial imobiliária, peticionando que seja reconhecido dono, em igual proporção da autora do terreno e construções nele efectuadas.
Também a moto não é pertença de D… mas sim do reclamante, uma vez que foi este que sempre se arrogou dono da mesma, a conduziu e utilizou.
O crédito pessoal foi contraído apenas pelo reclamante para aquisição de uma viatura, a qual sempre utilizou de modo exclusivo.
Reconhece a existência de alguns bens nos moldes alegados pelo cabeça de casal.

Em 04/07/2012 foi proferida a seguinte decisão:
(…)
“Assim, no que se refere à inserção da casa de morada e família no património comum, resulta da certidão das peças processuais que tal questão se encontra, desde logo, a ser tratada no âmbito do Proc. 1206/11.2TBCHV que corre termos neste 2º Juízo.
Ora, o artº 1350º do Cód. Proc. Civil determina que quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do nº 2 do artº 1336º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns.
Nos autos há duas situações distintas:
Uma é a da casa de morada de família em relação à qual já se encontra pendente acção judicial. Outra é do veículo motorizado que o reclamante alega pertencer a D… e que a cabeça de casal afirma ser do reclamante.
Em relação ao segundo dos pontos, tendo em conta que o direito de propriedade sobre o veículo se encontra inscrito no registo a favor de D…, tendo de ser demonstrada a aquisição, por parte do cabeça de casal, afigura-se inconveniente que tal questão seja apreciada em sede do presente incidente, limitado por natureza, optando-se pela remessa das partes para os meios comuns para dirimir tal questão.
*
Já no que respeita à casa de morada de família, a questão da sua titularidade e do modo de aquisição do direito de propriedade sobre a mesma encontra-se a ser apreciada no âmbito da acção que corre termos sob a forma de processo ordinário sob o nº 1206/11.2TBCHV.
Assim, a decisão a proferir na referida acção decidindo a quem pertence o mencionado prédio – se à cabeça de casal se ao dissolvido casal – pode influir significativamente nos presentes autos de inventário (até porque se afigura que será o bem que revestirá maior valor).
Determina o artº 279º nº 1 do Cód. Proc. Civil que o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de uma outra já proposta ou quando existir outro motivo justificado.
Assim e tendo em conta que se apresenta de todo o interesse para os termos do presente inventário a decisão a proferir nos identificados autos decide-se, nos termos do mencionado artº 279º nº 1 do Cód. Proc. Civil, suspender os presentes autos de inventário até que se mostre decidida a questão da titularidade do direito de propriedade sobre a casa de morada de família.
Notique”.

Inconformada, apelou a cabeça-de-casal, apresentando as seguintes conclusões:
1- Ao remeter a decisão da questão versando a propriedade do apontado bem relacionado pela cabeça-de-casal e o seu titular, o Mmº Juiz fez incorrecta interpretação e aplicação dos artºs 1350º nº 1 e 1336º nº 2, ambos do CPC.
2- Isto porque, por um lado, o referido despacho não especifica a fundamentação de facto e de direito, para justificar a decisão – alínea c) do nº 1 do artº 668º do CPC.[1]
3- Por outro, tendo sido indicada prova testemunhal e documental, o Mmº Juiz não devia ter remetido as partes para os meios comuns, porquanto só após a produção de prova seria possível com segurança apurar da viabilidade ou não de conhecer com segurança a questão da titularidade do bem.
4- Afigurando-se que a prova indicada (testemunhal e documental) permite proferir despacho que com segurança e com um elevado grau de certeza decida em definitivo sobre a questão, deve a decisão apelada ser revogada, sendo substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos com produção de prova.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

II – QUESTÕES A RESOLVER

Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (artºs 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC), importando, assim, decidir as questões nelas colocadas – e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso –, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – artº 660º nº 2 também do CPC.
Assim, em face das conclusões apresentadas, as questões a resolver por este Tribunal são as seguintes:
1. Se a decisão recorrida não especifica a fundamentação de facto e de direito (artº 668º nº 1 al. b) do CPCivil).
2. Se é caso de se ordenar a remessa dos interessados para os meios comuns (para demonstrar quem adquiriu o veículo motorizado) ou de se conhecer da questão suscitada, no âmbito do incidente de reclamação de bens.

III – FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede, que aqui se dão por reproduzidos, sendo que o despacho recorrido é o que acima transcrevemos.

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Se a decisão recorrida não especifica a fundamentação de facto e de direito (artº 668º nº 1 al. b) do CPCivil).

Analisada a decisão recorrida, embora se aceite que é relativamente sintética, não se vislumbra a falta de especificação na mesma dos fundamentos de facto e, implicitamente, de direito.
Aliás, como vem sendo orientação unânime quer na jurisprudência quer na doutrina, só a falta absoluta de motivação e não a motivação deficiente, errada ou incompleta, produz a nulidade prevista na alínea b), do nº1, do arº 668º, do CPC (ver, entre outros, Antunes Varela, Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 1984, págs. 670-671 e por todos o Ac. do S.T.J. de 13709/2012 (relator Tavares de Paiva) consultável em www.dgsi.pt).
O Mmº Juiz a quo fundamentou a decisão, é certo, de forma bastante simplista. No entanto, há que ver que não incumbe ao juiz analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em defesa da sua posição, apesar de lhe incumbir tratar de todas as questões suscitadas pelas partes. A fundamentação é suficiente se se indicarem as razões jurídicas que serviram de suporte à solução adoptada.
Aliás, quer na sentença, quer nos despachos, apenas se exige que ali se mencionem os princípios, as regras, as normas em se apoiam.
Como tal, conquanto o douto despacho se não possa ter como modelo de fundamentação por pecar por deficiência e escassez de fundamentação, em nosso entender, não enferma da invocada falta de fundamentação.
Improcedem, deste modo, neste segmento recursivo, as conclusões da apelação.

2. Se é caso de se ordenar a remessa dos interessados para os meios comuns (para demonstrar quem adquiriu o veículo motorizado) ou de se conhecer da questão suscitada, no âmbito do incidente de reclamação de bens.

Decretado o divórcio e instaurado processo para partilha dos bens comuns do ex-casal, compete ao cabeça-de-casal relacionar os bens que integravam o património comum do ex-casal – arts. 1345º, n.º 1 e 3, e 1404º do CPC.
Apresentada a relação de bens, podem os interessados reclamar contra ela, acusando a falta de bens que devam ser relacionados, requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados, por não fazerem parte do acervo a dividir, ou arguindo qualquer inexactidão que releve para a partilha – art. 1348º, n.º 1, do CPC.
Produzidas as provas apresentadas e realizadas as diligências instrutórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas oficiosamente, segue-se a decisão do juiz – arts. 1344º, n.º2, e 1349º, n.º 3 e 4 CPC.
Essa decisão deve:
- resolver definitivamente a questão posta (art. 1336º, n.º 1, do CPC);
- resolver provisoriamente essa questão, com base numa apreciação sumária das provas produzidas, com ressalva do direito às acções competentes – art. 1350º, n.º 3, do CPC; ou,
- remeter os interessados para os meios comuns, abstendo-se de decidir, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes (arts. 1336º, n.º 2, 1349º, n.º 4, e 1350º, n.º 1, do CPC).
Deste enunciado deriva que o critério legal é no sentido de que no processo de inventário devem ser decididas definitivamente todas as questões de facto de que a partilha dependa salvo se essa decisão não se conformar com a discussão sumária comportada pelo processo de inventário e exigir mais ampla discussão no quadro do processo comum – art. 1350º n.ºs 1 e 3 do CPC.
In casu, a cabeça de casal relacionou sob a verba nº 1, um veículo motorizado, de marca Honda, matrícula ..-..-FR, com o valor de € 3.000,00.
Na reclamação contra a relação de bens apresentada, o interessado veio dizer que a mota não é do casal, mas antes de D… desde 03/12/2009, conforme resulta do certificado de matrícula junto a fls. 106 destes autos (doc. nº 43).
Por seu turno, em resposta, a cabeça de casal veio dizer que a dita mota não é pertença de D…, porquanto foi adquirida pelo reclamante, o qual sempre se arrogou dono da mesma, sendo ele o único que a utiliza e paga o respectivo seguro.
A decisão recorrida entendeu que a questão de se saber quem adquiriu efectivamente o dito veículo motorizado tem de ser resolvida nos meios comuns, para onde remeteu as partes.
A cabeça de casal/recorrente sustenta, contudo, que a questão da propriedade do dito veículo motorizado deve ser decidida no âmbito do incidente de reclamação de bens, com a produção da indicada prova testemunhal.
Vejamos a quem assiste razão.
Dispõe o artº 1350º, nº 1, do Cod. Proc. Civil que: “quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do nº 2 do artº 1336º, a decisão incidental das reclamações previstas no artigo anterior, o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns”.
Atendendo à natureza sumária da instrução do inventário, tem todo o cabimento a suspensão da instância quando qualquer dos interessados suscite questões que interfiram e influenciem a partilha do património hereditário e que necessitando de mais larga e aprofundada indagação devam ser precisamente remetidas para os meios comuns.
Mas, em nosso entender, não é o caso.
A cabeça de casal relacionou um veículo motorizado que se encontra registado em nome de terceiro, conforme doc. de fls. 106 destes autos que constitui o certificado de matrícula respeitante ao dito veículo motorizado.
Na verdade, a verba relacionada sob o nº 1 encontra-se registada em nome de D… desde 03/12/2009.
Alega a cabeça de casal que este veículo foi adquirido pelo interessado seu ex-cônjuge, é ele que o utiliza e é também ele que paga o respectivo seguro.
Quanto ao pagamento do seguro obrigatório respeitante ao aludido veículo motorizado, já se encontra feita prova documental nos autos, confirmando ser o interessado C… quem paga o seguro respeitante ao referido veículo (cfr. doc. emitido pelo Instituto de Seguros de Portugal a fls. 22 dos autos).
Quanto à prova testemunhal pretendida pela cabeça de casal, a confirmar que é o interessado C… que utiliza o dito veículo motorizado e que foi ele que efectivamente o adquiriu, é prova que se nos afigura poder ser realizada no âmbito do incidente de reclamação de bens, pois não se trata de nenhuma questão que contenda com os direitos dos interessados na partilha, que torne inconveniente a decisão incidental da reclamação ou sequer que revista qualquer complexidade.
O critério legal que emana dos artºs 1336º, 1349º e 1350º, todos do CPCivil, é no sentido de que, no processo de inventário devam ser decididas definitivamente todas as questões de facto de que a partilha dependa salvo se essa decisão não se conformar com a discussão sumária comportada pelo processo de inventário e exigir mais ampla discussão no quadro do processo comum, o que não é o caso, como facilmente se constata.
Aliás, “no incidente de reclamação contra a relação de bens, embora devam as provas ser indicadas com o requerimento inicial e resposta, o juiz deve, antes de decidir, atender não só às provas requeridas pelos interessados, mas, também promover as diligências “probatórias necessárias”, com vista à justa decisão do incidente.
As “diligências probatórias necessárias” a que se refere o art. 1344°, n° 2 do Código de Processo Civil, são as complementares ou esclarecedoras das provas que as partes indicaram, embora o tribunal não se deva substituir às partes, sobre quem recai o dever de apresentação das provas na estrutura processual incidental” – neste sentido, Ac. do TRP de 25/01/2007 (relator Fernando Baptista), disponível em www,dgsi.pt.
Por isso, é manifesto que a matéria de facto inerente a essa questão não reveste qualquer complexidade justificativa da remessa dos interessados para os meios comuns, podendo e devendo a mesma ser apreciada no âmbito do incidente de reclamação de bens, como defende a recorrente, com a produção da indicada prova testemunhal.

V – DECISÃO

Termos em que acordam os Juízes da 5ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que remeteu para os meios comuns a apreciação da questão relativa à inclusão ou não na relação de bens, da verba nº 1, devendo a mesma ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos com produção de prova.

Custas pela parte vencida a final.

(Processado por computador e integralmente revisto pela Relatora)

Porto, 25-02-2013
Maria José Rato da Silva Antunes Simões
Abílio Sá Gonçalves Costa
António Augusto de Carvalho
______________
[1] A recorrente certamente, por lapso, alude à al. c) do nº 1 do artº 668º do CPC quando certamente quereria referir-se à al. b) do mesmo preceito legal.