Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1111/11.2TJPRT-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR JUDICIAL
JUSTA CAUSA DE DESTITUIÇÃO
Nº do Documento: RP201402031111/11.2TJPRT-E.P1
Data do Acordão: 02/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 56º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
Sumário: I - O conceito normativo de ‘justa causa’ referido no n.º 1 do artigo 56.º do CIRE tem margens fluidas como todos os conceitos indeterminados, devendo ser recortado e densificado a partir da definição dos valores e princípios que a norma visa tutelar.
II - Importando para o processo de insolvência, mais especificamente para a interpretação do n.º 1 do artigo 56.º do CIRE, o conceito doutrinário de ‘justa causa’, tal como foi densificado e concretizado no direito civil, concluímos que o integrará toda a conduta do Administrador Judicial susceptível de pôr em causa a relação de confiança com o juiz titular do processo e com os credores, dificultando ou inviabilizando o objectivo ou finalidade do processo, enunciado no artigo 1.º do CIRE: «liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente».
III - O conceito de ‘justa causa’ legitimadora da destituição do Administrador Judicial num processo de insolvência preenche-se e concretiza-se: i) com a conduta do administrador reveladora de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo; ii) ou com a conduta do administrador traduzida na “inobservância culposa” dos seus deveres, “apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado” (art. 59/1 CIRE); iii) exigindo-se cumulativamente a qualquer dos requisitos anteriores, que tal conduta, pela sua gravidade justifique a quebra de confiança, inviabilizando, em termos de razoabilidade, a manutenção nas funções para que foi nomeado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 1111/11.2TJPRT-E.P1

Sumário do acórdão
I. O conceito normativo de ‘justa causa’ referido no n.º 1 do artigo 56.º do CIRE tem margens fluidas como todos os conceitos indeterminados, devendo ser recortado e densificado a partir da definição dos valores e princípios que a norma visa tutelar.
II. Importando para o processo de insolvência, mais especificamente para a interpretação do n.º 1 do artigo 56.º do CIRE, o conceito doutrinário de ‘justa causa’, tal como foi densificado e concretizado no direito civil, concluímos que o integrará toda a conduta do Administrador Judicial susceptível de pôr em causa a relação de confiança com o juiz titular do processo e com os credores, dificultando ou inviabilizando o objectivo ou finalidade do processo, enunciado no artigo 1.º do CIRE: «liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente».
III. O conceito de ‘justa causa’ legitimadora da destituição do Administrador Judicial num processo de insolvência preenche-se e concretiza-se: i) com a conduta do administrador reveladora de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo; ii) ou com a conduta do administrador traduzida na “inobservância culposa” dos seus deveres, “apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado” (art. 59/1 CIRE); iii) exigindo-se cumulativamente a qualquer dos requisitos anteriores, que tal conduta, pela sua gravidade justifique a quebra de confiança, inviabilizando, em termos de razoabilidade, a manutenção nas funções para que foi nomeado.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Nos autos de insolvência n.º 1111/11.2TJPRT, que corem termos no 2.º Juízo Cível do Porto, em que são requerentes B… e C…, foi proferida sentença em 11.07.2011, tendo sido na mesma data nomeado Administrador da Insolvência o Ex.mo Senhor Dr. D….
Em 21 de Outubro de 2013, o M.º Juiz destituiu o Administrador de Insolvência, substituindo-o pelo Dr. E… (fls. 51).
Não se conformou o Administrador da Insolvência, e interpôs o presente recurso de apelação, apresentando alegações que termina com as seguintes conclusões:
A - Ao atacar, por via de recurso, a decisão recorrida, ao Apelante compete alegar, concluir e especificar o erro de interpretação que imputa a tal decisão tudo, in abstrato, na busca de uma decisão final que corresponda á verdade e reponha a justiça.
B - O despacho em crise estribou-se nas disposições dos arts. 56º, 58º e 169º do CIRE , em cujo amplexo considerou integralmente subsumidos os factos (imputados ao A.I.) que determinaram a decretada destituição.
C - Percorrendo a decisão, constata-se que são exclusivamente três as críticas tecidas ao desempenho do A.I. : (1) relação de créditos reconhecidos mal elaborada, (2) a liquidação da massa insolvente não se mostra concluída, não tendo sido junto instrumento válido de transmissão de propriedade por negócio particular e, finalmente, (3) foi o A.I. diversas vezes notificado para praticar actos ou prestar informações, não o tendo feito nos prazos assinalados, nem apresentando justificação bastante.
D - Considera o Recorrente que são duas as questões jurídicas que in casu cumpre dilucidar: (1) a destituição do administrador de insolvência no quadro do regime geral do art. 56º CIRE e (2) a concreta conduta deste que esteve na origem da determinada destituição.
E - Quanto á primeira questão e não obstante a previsão contida no art. 56º do CIRE , a verdade é que a lei não fornece a definição ou o conceito de justa causa, tão pouco sequer enumerando casuisticamente as situações susceptíveis de constituírem justa causa.
F – Contudo, é por demais evidente que á luz da referida disposição legal a destituição do administrador SÓ pode ocorrer caso se verifique alguma situação que possa ser considerada como justa causa para tal destituição, o que APENAS sucede quando o administrador viole, de forma culposa, os deveres que lhe são legalmente impostos ou quando demonstre inaptidão ou incompetência para o exercício do cargo.
G – É precisamente dessa clarificação conceitual que se vêm ocupando a doutrina e jurisprudência do sector, cujas conclusões são unânimes quanto ao recorte da figura de “ justa causa de destituição “, todas apontando para um conceito vago, aberto e indeterminado, embora com toda a segurança sinteticamente abranja “todos os casos de violação e deveres por parte do nomeado, aqueles em que se verifica a inaptidão ou incompetência para o exercício do cargo, traduzidas na administração ou liquidação deficientes, inapropriadas ou ineficazes da massa, e, segundo o entendimento que temos por correcto, aqueles que traduzam uma situação em que, atentas as circunstâncias concretas, é inexigível a manutenção da relação com ele e infundada a possível pretensão do administrador de se manter em funções.”
H - Impondo-se igualmente considerar que ao Administrador compete, no desempenho das suas funções, uma actuação especialmente diligente, designadamente perante Tribunal e interessados, orientada por critérios de transparência, ordem e rigor, conforme se exige, em particular, a alguém está incumbido de gerir bens alheios.
I - Porém, em qualquer situação, a justa causa será sempre alguma circunstância ligada à pessoa ou a uma conduta do administrador que, pela sua gravidade inviabilize, em termos de objectiva razoabilidade, a manutenção das suas funções, devendo sempre ser apreciada em concreto, face à factualidade que se provar, tendo em conta os vários aspectos relacionados com a sua gestão. Ou seja, a justa causa, a existir, terá de ser revelada nos factos alegados e provados no processo.
J - Devendo ainda acentuar-se que a justa causa tem carácter funcional, relacionando-se com consequências evidentes, directas e necessárias na administração da massa e que o A.I. deverá comportar-se e ser visto como um servidor da Justiça e do direito, conforme se encontra consagrado no respectivo estatuto profissional.
L – Assim retratada (justa causa), forçoso é concluir que os factos fornecidos nos autos não suportam a conclusão que a conduta atribuída ao Administrador da Insolvência constitui justa causa a justificar a sua destituição.
M - Porquanto em nenhum deles sobressai um comportamento que objectivamente inviabilize a manutenção das suas funções e, muito menos, que tenha produzido consequências negativas, directas e necessárias na administração da massa, em severo prejuízo dos credores e dos demais princípios norteadores do CIRE.
N – Desde logo, porque o manifesto, grosseiro e ostensivo lapso incorrido (corporizado na junção aos autos de uma relação de credores respeitante a outra entidade insolvente) está longe de consubstanciar uma impreparação, inépcia ou incompetência técnica com base na qual se possa objectivamente concluir que o respectivo autor material (A.I.) não possui as necessárias qualidades ou atributos para desempenho das funções que lhe estão cometidas.
O – Ao que acresce que as relações de créditos apresentadas (a errónea e a correcta) são documentos graficamente muito semelhantes, emitidos ou elaborados pela mesma entidade (A.I.) e com igual finalidade, tendo o lapso ficado in totum a dever-se, como está bom de ver, á junção de uma relação de créditos que se destinava a outro processo ….
P - Pelo que sem necessidade de maiores considerações, se deverá concluir estar-se perante um mero lapso material praticado pelo A.I., que , embora não tendo sido prontamente detectado na origem , podia (e devia …) sê-lo com toda a facilidade por qualquer interveniente judicial, em ordem á respectiva imediata correcção … Porém, não o foi, tendo apenas sido sanado por iniciativa do Recorrente, 15 meses decorridos.
Q – Segue-se que a aplicabilidade in casu do art. 169º CIRE está, salvo distinto entendimento, inteiramente prejudicada por não verificação do duplo requisito de que depende (decurso dos prazos, inicial ou subsequentes, e, com base nisso, um qualquer interessado desencadear o pedido de destituição), a menos que o dilatar daqueles mesmos prazos tenha sido ditado por incompetência, impreparação ou outra qualquer causa atinente á conduta do A.I., o que também não se mostra ser o caso.
R - Acresce que no caso dos autos a condução / tramitação do processo é igualmente apta a permitir uma avaliação comportamental do A.I. distinta daquela que, desadequadamente, inspirou o despacho de sua destituição, conforme se acha espelhado na documentação carreada aos autos, maxime ao longo do período decorrido entre 22/Setembro/2011 e Julho/2012 ;
S – Não podendo o tribunal alhear-se, nem, com o devido respeito, fazer “vista grossa”, do (também) clamoroso atraso (8 meses) incorrido pelo credor hipotecário F… nos procedimentos legais e fiscais que para si directamente resultavam.
T - Sendo igualmente verdade que, no seu desempenho, o A.I. se depara e confronta constantemente com situações alheias ao seu querer e esfera de actuação, ainda que provindas de interesses dignos da tutela insolvencial …
U – Quanto á invocada ineficácia do título translativo do bem imóvel, constata-se que o A.I. tudo fez a preceito e “by the book” (arts. 55º e 165º CIRE) tendo optado pela modalidade de venda por negociação particular, após prévia consulta ao credor F….
W - E assim procedeu porquanto no caso dos autos (1) a proposta do credor hipotecário se revelou ser muitíssimo superior ás demais, em claro benefício da massa e dos interesses nesta corporizados, (2) que a mesma foi pelo próprio A.I. antecipadamente comunicada ao Tribunal (3/Maio/2012), aos insolventes e demais credores, que sobre ela nunca se pronunciaram.
V – O recorrido despacho suscita, porém, uma questão de forma, que não de natureza substantiva, para o que invocou o incumprimento do disposto no art. 875º CCivil, que impõe e consagra a necessidade de escritura pública ou de documento particular autenticado.
X - Contudo, vistos os autos e, concretamente o recorrido despacho, deles não consta ter sido recusado o registo de transmissão do imóvel em razão do título utilizado, pelo que terá de concluir-se que o registo de registo de transmissão da propriedade do imóvel foi concretizado e, por consequência, definitivamente averbada a respectiva transmissão, ao que acresce que o produto da respectiva venda já se encontrava depositado a crédito da massa insolvente.
Z - Valendo o exposto por dizer que in casu o administrador de insolvência decidiu-se pela venda na modalidade de negociação particular, (art. 904º CPCivil) consultou previamente o credor hipotecário, comunicou essa sua decisão ao tribunal e demais interessados, tendo-se observado o procedimento típico previsto no art. 905º do mesmo diploma, com as adaptações, que o regime insolvencial, a sua inequívoca desjudicialização e as amplas funções / poderes atribuídos ao administrador de insolvência determinam.
AA – Dir-se-á, pois, no que ao A.I. exclusivamente respeita, que o encerramento dos presentes autos de insolvência está desde Julho/13 APENAS E SÓ dependente (1) da realização da escritura de transmissão do imóvel ou da autenticação do documento particular que serviu de base á transmissão do imóvel e (2) da prestação final de contas, coisa de que este está impossibilitado de fazer enquanto não se der por suprido ou sanado o alegado vício formal de que alegadamente padece a eficácia da transmissão operada.
BB - Porém, sendo também estas as únicas e exclusivas tarefas que, a vingar o despacho em crise, aguardam o novo administrador de insolvência, não se percebe muito bem qual o sentido e alcance da determinada destituição, nomeadamente em sede de vantagens ou benefícios para a massa insolvente e/ou direitos nela corporizados.
CC - Não se entendendo igualmente em que é que o Recorrente ultrapassou os limites da boa fé, dos bons costumes e com violação dos fins económico e social dos direitos que lhe cumpre exercer ou se tenha mostrado manifestamente incapaz para o exercício das funções ou ainda como e onde está posta em causa a sua isenção e competência.
DD - Por último e quanto á não colaboração com o Tribunal, consubstanciada no silêncio dado a algumas notificações que lhe foram endereçadas, reconhece o Apelante, em nome da transparência e rigor que sempre incutiu á sua actuação profissional, que poderia ter actuado de forma bem mais célere na prestação das informações que lhe foram solicitadas pelo tribunal ad quo.
EE – Porém, não é menos verdade que desse silêncio COMPROVADAMENTE nada resultou em prejuízo da massa insolvente, tão pouco para os credores reclamantes.
FF - Pelo que não é sustentável uma destituição fundada num exercício de funções que nada de negativo transportou para os interesses da insolvência, facto que, de resto, nem foi invocado, quer pelo tribunal recorrido quer por qualquer credor.
GG - E salvo o devido respeito, igualmente não poderá colher que desse espaçado silêncio tenha resultado uma quebra de confiança inerente à relação funcional com o tribunal a quo, já que, pese inegavelmente ser digno de alguma censura, essa mesma ausência de respostas jamais poderá assumir uma grau de gravidade que ( no plano da objectiva razoabilidade ) justifique a aplicação de uma tão dura e desprestigiante sanção, reservada conceitualmente que está para situações de violação grave (nunca para comportamentos menos modelares ou convencionais …).
HH – Efectivamente, não podendo ter passado despercebido ao Tribunal a celeridade e eficiência que caracterizaram a actuação do A.I. no período que decorreu entre 22/Setembro/2011 e Julho/2012, o mesmo se diga quanto ao diligente e proveitoso (para a massa) desempenho do Recorrente na paciente busca de uma solução que muito beneficiou os interesses á sua guarda.
V - Pelo que, pelo prisma da tutela dos interesses em causa, não pode ser assacável ao aqui Recorrente qualquer incúria ou inaptidão, muito menos uma actuação lesiva dos interesses que lhe competia representar.
Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos[1]), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, in fine), consubstancia-se na seguinte questão: saber se estão reunidos os pressupostos para a destituição do Administrador Judicial (recorrente).

2. Fundamentos de facto
O Tribunal de 1.ª instância considerou provada a factualidade que se reproduz:
1 – A sentença de insolvência foi proferida em 11.07.2011 (fls. 134);
2 – A nomeação do Sr. Administrador de Insolvência ocorreu na mesma data;
3 – Em 29.11.2011 (fls. 242), teve lugar a Assembleia de Credores para apreciação do relatório (art. 156º do CIRE);
4 – O Sr. Administrador de Insolvência apresentou a relação dos créditos reconhecidos em 26.01.2012 (fls. 2 do apenso B);
5 – Esta relação encontrava-se mal elaborada, o que levou a que viesse a ser apresentada uma nova relação em 26 de Maio de 2013 (fls. 29 do apenso B);
6 – A liquidação da massa insolvente não se mostra concluída, não tendo sido junto instrumento válido de transmissão de propriedade por negócio particular;
7 – A massa insolvente é constituída pelos bens descritos no inventário/auto junto (fls. 2 e segs. do apenso A);
8 – Por despachos proferidos nos autos, designadamente a fls. 4, 6, 29, 34, 36, 40, 51 e 55 do apenso B, que aqui se dão por integralmente transcritos, foi o Sr. Administrador de Insolvência notificado para praticar actos ou prestar informações, não o tendo feito nos prazos assinalados, não apresentando justificação bastante.
À factualidade fixada pelo Tribunal recorrido acresce ainda a seguinte, recortada dos documentos juntos aos autos:
9 – O G…, S.A., em 22 de Maio de 2013 veio declarar pretender “na sua qualidade de membro da Comissão de Credores, deixar expresso que entende que, por violação dos seus deveres de funcionário, o administrador de insolvência deve ser substituído, designando V.Exa. um outro” (fls. 98).
10 – Notificado para exercer o contraditório, pronunciando-se “sobre a sua eventual destituição” (fls. 140), veio o Administrado da Insolvência veio através do requerimento de fls. 143, apresentar a sua defesa, alegando em síntese: realizou intervenções cirúrgicas no final de 2009 e meados de 2010; divorciou-se; realizou obras de remodelação do escritório; teve um acréscimo “inusitado de volume de trabalho”; foi responsável por processo de “elevada complexidade”.
11. E conclui: “11. Nada do quer atrás se expõe justifica, por si só, a sua falta de resposta atempada ao que lhe foi doutamente ordenado. 12. Humildemente assume e penitencia-se pela sua falta, por não ter em devido tempo, perante as diversas insistências, informado e requerido nos autos tempo adicional para satisfazer o que lhe foi doutamente ordenado; 13. Sendo certo, porém, que em tempo algum pretendeu desrespeitar o Tribunal…”.
12. Em requerimento de 7 de Agosto de 2013, a credora H…, S.A., veio informar o Tribunal, nos seguintes termos (fls. 179): “A Credora tem tentado contactar o Sr. Administrador de Insolvência para tomar conhecimento sobre diligências feitas para liquidação do património da Insolvente, nomeadamente quanto á venda do veículo automóvel de que a Credora tem reserva de propriedade. Todavia, todas as tentativas revelaram-se infrutíferas, uma vez que o Sr. Administrador não responde aos emails da mandatária da Credora nem restitui as suas chamadas”.
13. Notificado pelo Tribunal, para esclarecer a omissão que lhe era imputada, o Administrador da Insolvência respondeu nos termos que constam de fls. 189, que se reproduzem parcialmente: “1. Assiste parcial razão à Ilustre Mandatária do Credor H…, SA na parte relativa aos contactos por e-mail, mas quanto aos telefonemas invocados o AJ tem por prática retribuir/atender…”.
14. Em 21 de Outubro de 2013, o M.º Juiz destituiu o Administrador de Insolvência, substituindo-o pelo Dr. E… (fls. 106).

3. Fundamentos de direito
3.1. Questão prévia – a incorrecção da relação de créditos
O recorrente não apresentou recurso da decisão sobre a matéria de facto, alegando, no entanto, que não ocorreu, propriamente, a incorrecta elaboração da relação de créditos, nos termos consignados nos pontos 4. e 5. do elenco factual, tendo-se antes verificado um engano.
Vejamos.
Consta dos pontos 4. e 5. do elenco factual da sentença: «4 – O Sr. Administrador de Insolvência apresentou a relação dos créditos reconhecidos em 26.01.2012 (fls. 2 do apenso B); 5 – Esta relação encontrava-se mal elaborada, o que levou a que viesse a ser apresentada uma nova relação em 26 de Maio de 2013 (fls. 29 do apenso B)».
Alega o recorrente: «N – Desde logo, porque o manifesto, grosseiro e ostensivo lapso incorrido (corporizado na junção aos autos de uma relação de credores respeitante a outra entidade insolvente) está longe de consubstanciar uma impreparação, inépcia ou incompetência técnica com base na qual se possa objectivamente concluir que o respectivo autor material (A.I.) não possui as necessárias qualidades ou atributos para desempenho das funções que lhe estão cometidas. O – Ao que acresce que as relações de créditos apresentadas (a errónea e a correcta) são documentos graficamente muito semelhantes, emitidos ou elaborados pela mesma entidade (A.I.) e com igual finalidade, tendo o lapso ficado in totum a dever-se, como está bom de ver, á junção de uma relação de créditos que se destinava a outro processo …. P - Pelo que sem necessidade de maiores considerações, se deverá concluir estar-se perante um mero lapso material praticado pelo A.I., que , embora não tendo sido prontamente detectado na origem, podia (e devia …) sê-lo com toda a facilidade por qualquer interveniente judicial, em ordem á respectiva imediata correcção … Porém, não o foi, tendo apenas sido sanado por iniciativa do Recorrente, 15 meses decorridos».
Em suma, o recorrente considera que se verificou um lapso “manifesto, grosseiro e ostensivo”, na medida em que a relação de créditos que apresentou nos autos não estava incorrecta, simplesmente, dizia respeito a outro processo.
Com o devido respeito, a divergência reduz-se a mera questão semântica. No que respeita a este processo de insolvência, a relação estava incorrecta, na medida em que os credores e créditos que dela constavam nada tinham a ver com ele.
Sempre se dirá, por acréscimo e a latere, que se trata de um erro grosseiro, tal como o recorrente expressamente o assume, afigurando-se irrelevante a semelhança gráfica invocada pelo recorrente.

3.2. Definição e aferição da «justa causa»
Preceitua o n.º 1 do artigo 56.º do CIRE[2]: «O juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa».
Há que averiguar se a conduta do recorrente integra ou não o conceito de ‘justa causa’ enunciado na norma transcrita, e só na medida em que respondermos positivamente a esta questão, se poderão considerar reunidos os pressupostos legais da destituição contra a qual o recorrente se insurge.
O conceito normativo em apreço tem margens fluidas como todos os conceitos, devendo ser recortado e densificado a partir da definição dos valores e princípios que a norma visa tutelar. Tal definição tem, necessariamente, como ponto de partida, a lei.
O n.º 1 do artigo 16º do Estatuto do Administrador de Insolvência, aprovado pela Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, define genericamente os deveres do administrador da insolvência, preceituando que o mesmo «deve, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se um servidor da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes».
Em sede de definição da responsabilidade do Administrador de Insolvência, prescreve o n.º 1 do artigo 59.º do CIRE: «O administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado».
Em anotação ao artigo 56.º do CIRE, referem Carvalho Fernandes e João Labareda[3], que a ‘justa causa’ legitimadora da destituição do administrador se cobrem “todos os casos de violação de deveres por parte do nomeado, aqueles em que se verifica a inaptidão ou incompetência para o exercício do cargo, traduzidas na administração ou liquidação deficientes, inapropriadas ou ineficazes da massa, e, segundo o entendimento que temos por melhor, aqueles que traduzam uma situação em que, atentas as circunstâncias concretas, é inexigível a manutenção das relações com ele e infundada a possível pretensão do administrador de se manter em funções”.
Traçando a fronteira entre as vertentes objectiva e subjectiva do conceito de ‘justa causa’, Pires de Lima e Antunes Varela[4] referem o facto de, na doutrina italiana, ser “unanimemente reconhecida como causa justa não a causa subjectiva - a falta de confiança, superveniente, do mandante no mandatário - mas a causa objectiva, considerando-se como tal toda a circunstância que torne contrário aos interesses do mandante o prosseguimento da relação jurídica”.
Em sede de análise dos pressupostos da resolução por incumprimento, o Professor Baptista Machado recorta o conceito em apreço a partir da vertente objectiva de prossecução do fim que a relação pressupõe, aferindo da sua verificação, em função da resposta à questão sobre se uma determinada conduta, se revela ou não susceptível de pôr em causa o fim do contrato.
Escreve o Insigne Professor[5]: “Pode dizer-se, em síntese, que nos contratos de que decorre uma relação particularmente estreita de confiança mútua e de leal colaboração (…) todo o comportamento que afecte gravemente essa relação põe em perigo o próprio fim do contrato, abala o fundamento deste, e pode justificar, por isso, a resolução”[6].
A partir da ideia enunciada, de adequação da conduta de cada um dos contraentes à boa realização do fim visado com a celebração do contrato, Baptista Machado concretiza lapidarmente nestes termos o conceito de ‘justa causa’:
“O conceito de «justa causa» é um conceito indeterminado cuja aplicação exige necessariamente uma apreciação valorativa do caso concreto. Será uma «justa causa» ou um «fundamento importante» qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade”.
Importando o conceito doutrinário de ‘justa causa’ para o processo de insolvência, mais especificamente para a interpretação do n.º 1 do artigo 56.º do CIRE, tal como foi densificado e concretizado no direito civil, concluímos que o integrará toda a conduta do Administrador Judicial susceptível de pôr em causa a relação de confiança com o juiz titular do processo e com os credores, dificultando ou inviabilizando o objectivo ou finalidade do processo, enunciado no artigo 1.º do CIRE: «liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente».
Como refere Lebre de Freitas[7], com o actual regime da insolvência privilegiou-se a “garantia patrimonial dos credores”, desígnio expressamente assumido pelo legislador no preâmbulo, nestes termos: “O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
Face a tal objectivo do legislador, faz sentido erigir o interesse dos credores como subordinante da actividade (e aferição da competência) do administrador judicial, como o fazem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[8]: “Mesmo quando a lei lhe atribui a possibilidade de opção entre várias alternativas, o administrador deve agir de acordo com aquela que, segundo as circunstâncias concretas e ao olhar de um gestor criterioso e ordenado, se evidenciar como a mais favorável e proveitosa para a melhor tutela dos interesse dos credores. É a esta luz que têm sempre que ser avaliadas as faculdades múltiplas que cabem ao administrador, bem como os deveres que sobre ele impendem. E a essa mesma luz será apreciado o seu procedimento e, correspondentemente, medida a sua responsabilidade”.
De todo o exposto se poderá, em síntese, concluir que o conceito de ‘justa causa’ legitimadora da destituição do Administrador Judicial num processo de insolvência se preenche e concretiza: i) com a conduta do administrador reveladora de inaptidão ou de incompetência para o exercício do cargo; ii) ou com a conduta traduzida na “inobservância culposa” dos seus deveres, “apreciada de acordo com a diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado” (art. 59/1 CIRE); iii) exigindo-se cumulativamente a qualquer dos requisitos anteriores, que tal conduta, pela sua gravidade justifique a quebra de confiança, inviabilizando, em termos de razoabilidade, a manutenção nas funções para que foi nomeado.
Regressando à situação concreta em debate nos autos, há que reequacionar a questão nestes termos: a conduta do recorrente preenche os requisitos expostos?
Pensamos que a resposta terá que ser afirmativa.
Com efeito, a gestão do processo na parte de competência funcional exclusiva do recorrente é um verdadeiro caos: a Assembleia de Credores para apreciação do relatório realizou-se em 29.11.2011; a relação dos créditos apresentada dois meses depois (26.01.2012) não dizia, sequer, respeito a este processo; a nova relação apenas foi apresentada em 26 de Maio de 2013 (um ano e meio depois da realização da assembleia!); apesar de se tratar de um processo urgente, a liquidação da massa insolvente não se mostra concluída, não tendo sido junto instrumento válido de transmissão de propriedade por negócio particular; instado a diligenciar pelo andamento do processo, por despachos proferidos nos autos, designadamente a fls. 4, 6, 29, 34, 36, 40, 51 e 55 do apenso B, o recorrente não o fez nos prazos assinalados, nem apresentou razões justificadoras para as suas sucessivas omissões; perante a queixa de uma credora, de que o recorrente não respondia aos seus sucessivos emails, nem aos telefonemas (e por isso a credora teve necessidade de reclamar junto do M.º Juiz), o recorrente admitiu que “assiste parcial razão à Ilustre Mandatária (…) na parte relativa aos contactos por e-mail, mas quanto aos telefonemas invocados o AJ tem por prática retribuir/atender…”; tendo-lhe sido concedida a possibilidade de se pronunciar relativamente à eventualidade de destituição, o recorrente invocou razões que não constituem justificação – intervenção cirúrgica (em 2008 e 2009, sendo a sentença de insolvência, de Julho de 2011), divórcio, remodelação do escritório e complexidade dos processos que lhe estão confiados.
Registe-se que o recorrente admite expressamente as suas omissões, sem no entanto as justificar: “11. Nada do quer atrás se expõe justifica, por si só, a sua falta de resposta atempada ao que lhe foi doutamente ordenado. 12. Humildemente assume e penitencia-se pela sua falta, por não ter em devido tempo, perante as diversas insistências, informado e requerido nos autos tempo adicional para satisfazer o que lhe foi doutamente ordenado”.
Perante o quadro factual descrito, concluímos, salvo o devido respeito, que o recorrente revelou inaptidão para o exercício do cargo, e violou de forma negligente os deveres inerentes à função, não se vislumbrando condições que permitam manter uma relação de confiança para o futuro.
Por isso entendemos que andou bem o M.º Juiz ao determinar a destituição do recorrente.
Nas suas longas conclusões de recurso, alega o recorrente (alínea Q), que “a aplicabilidade in casu do art. 169º CIRE está, salvo distinto entendimento, inteiramente prejudicada por não verificação do duplo requisito de que depende (decurso dos prazos, inicial ou subsequentes, e, com base nisso, um qualquer interessado desencadear o pedido de destituição)”.
No entanto, ao contrário do que se infere da alegação em apreço, um dos credores veio requerer a destituição, como se colhe do facto provado n.º 9: «O G…, S.A., em 22 de Maio de 2013 veio declarar pretender “na sua qualidade de membro da Comissão de Credores, deixar expresso que entende que, por violação dos seus deveres de funcionário, o administrador de insolvência deve ser substituído, designando V.Exa. um outro” (fls. 98)»[9].
Em conclusão, a conduta processual do recorrente criou uma situação que coloca, definitivamente, em causa a relação de confiança com o Tribunal e com os credores, integrando o conceito de ‘justa causa’ tal como atrás se concretizou, não merecendo censura o despacho recorrido.

III. Dispositivo
Com os fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento, mantendo, em consequência, a sentença recorrida.
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Custas do recurso a cargo do recorrente.
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O presente acórdão compõe-se de dezasseis páginas e foi elaborado em processador de texto pelo signatário.
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Porto, 3 de Fevereiro de 2014
Carlos Querido
Soares de Oliveira
Alberto Ruço
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[1] Trata-se de acção instaurada após 1 de Janeiro de 2008, tendo sido o recurso distribuído neste tribunal após 1 de Setembro de 2013, pelo que, atento o disposto no n.º 1 do artigo 5.º e no n.º 1 do artigo 7º (a contrario), da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, é aplicável ao presente recurso; no que respeita as formalidades de preparação, instrução e julgamento, o regime emergente do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho: no que respeita aos pressupostos da sua admissibilidade, a lei vigente à data de interposição do recurso.
[2] Aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, com as actualizações resultantes dos seguintes diplomas: DL nº 200/2004, de 18 de Agosto; DL nº 76-A/2006, de 29 de Março; DL nº 282/2007, de 7 de Agosto; DL nº 116/2008, de 4 de Julho, e DL n.º 185/2009, de 12 de Agosto.
[3] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2009, página 262.
[4] Código Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1981, pág. 648.
[5] João Baptista Machado, Obra Dispersa, Scientia Ivridica, Braga, 1991, Volume I, página 141 a 145.
[6] Neste sentido, vide acórdão do STJ, de 18.06.1996, Proc. 96A219, acessível no site da DGSI: “Constitui justa causa de revogação do contrato de prestação de serviços de longa duração todo o facto, objectivo ou subjectivo, que torne inexigível a um dos contratantes a sua permanência na relação contratual, pondo em crise a relação de confiança e de lealdade em que assentava o contrato”.
[7] Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Almedina, 2005, pág. 12. O autor citado, refere mesmo que “o fim da recuperação é subalternizado e a garantia patrimonial dos credores elevada a finalidade única”. No entanto, com o regime da “Revitalização” introduzido no CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, esta crítica ficou desactualizada.
[8] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2009, página 259.
[9] Registe-se que na obra anteriormente citada - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2009, página 565 r 566 – Carvalho Fernandes e João labareda respondem afirmativamente à questão de saber “se o juiz do processo não poderá, ele próprio, tomar a iniciativa de desencadear o procedimento de destituição, exactamente com fundamento no arrastamento da actividade do administrador”, previsto no art. 169.º do CIRE.