Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
397/21.9PAOVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS A ANIMAIS DE COMPANHIA
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE PENAL
Nº do Documento: RP20230308397/21.9PAOVR.P1
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: A aplicação do art. 387 nº 3 do Código Penal colocado no Título VI do diploma, sob a epígrafe “Dos crimes contra animais de companhia, deve ser recusada por violar os artigos 18 nº 2 e 29 nº 1 da Constituição da República portuguesa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 397/21.9PAOVR.P1


1. Relatório
Nos autos de processo comum com julgamento perante tribunal singular nº 397/21.9PAOVR do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Ovar, foi em 3/11/2022 depositada sentença que julgou parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público contra AA e, em consequência, condenou o arguido pela prática de um crime de maus tratos de animal de companhia, p. p. pelo artigo 387 nº3 do Código Penal na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 500,00 (quinhentos euros), e absolveu o mesmo da prática de cinco crimes de maus tratos de animal de companhia, p. p. pelo artigo 387 nº3 do Código Penal.
Inconformado com a decisão veio o arguido interpor o presente recurso de cujas conclusões se retiram, em síntese, os seguintes argumentos:
O recorrente pretende analisar o enquadramento jurídico dos factos.
Considera o recorrente que o art. 387 do CP é materialmente inconstitucional pelas seguintes razões:
a) não se encontrar, na ordem axiológica jurídico-constitucional, uma imposição ou uma necessidade de tutela (penal) do bem-estar animal, à luz do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, em termos que possa justificar a restrição de direitos fundamentais que lhe vem impregnada, conforme resulta n.º 2 do art. 18 da CRP;
b) violar o princípio da legalidade penal, expresso pelo brocardo latino “nullum crimen, nulla poena, sine lege stricta”, a que se reporta o n.º 1 do art. 29 da CRP.
No ilícito típico do crime de maus tratos de animal de companhia, seja pela respetiva conformação descritiva, seja, ainda, pela sua inserção sistemática, não se evidencia o bem jurídico que visa proteger.
A descrição típica do ilícito de maus tratos a animal de companhia apresenta um nível de indeterminação que é incompatível com o princípio da legalidade penal.
A indeterminação do que possa cogitar-se serem quaisquer outros maus tratos físicos e a não menor indeterminação do que seja o próprio objeto da infração, (animal de companhia), põe em causa o disposto no art. 29, n.º 1 da CRP.
A sentença recorrida ao condenar pelo crime previsto no art. 387 do CP violou os artigos 18 nº2, 27 e 29 nº1 todos da CRP.
Conclui pedindo que na procedência do presente recurso seja o arguido absolvido do crime que lhe foi imputado nos autos.
O recurso foi admitido por despacho proferido nos autos em 12/12/2022.
Em primeira instância o MP veio responder ao recurso considerando que o quadro de valores constitucionais constitui para o legislador ordinário, o quadro referencial dos valores suscetíveis de terem proteção penal e que , tendo o direito penal a função primordial de tutelar os bens jurídicos fundamentais, isto é, os valores individuais e comunitários essenciais à realização pessoal e à convivência social num Estado de Direito - como impõe o art. 1º da CRP -, não restam dúvidas que a preservação da integridade física, do bem estar e da vida dos animais por que intimamente ligada à proteção das condições essenciais necessárias à sobrevivência do homem, faz parte dos valores constitucionalmente protegidos, dignos de tutela penal.
Defende a posição de que a norma legal que configura o crime em apreço não é materialmente inconstitucional e pugna pela improcedência do recurso.
Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto considera que do conceito de dignidade da pessoa humana se pode retirar como princípio jurisgenético, o reconhecimento do estatuto dos animais enquanto seres vivos dotados de sensibilidade e a consequente relevância constitucional dos interesses que estes tenham em virtude da sua natureza.
Mais entende que a norma incriminatória em causa, embora recorra a conceitos de manifesta amplitude, que podem levar a uma também alargada, (e mesmo subjetiva) amplitude interpretativa, não viola ainda assim o princípio da tipicidade penal.
Conclui afirmando que crê que é compatível com a CRP o facto de se tutelarem penalmente bens jurídicos que não constem expressamente do catálogo constitucional, como ocorre na norma pela qual o arguido/recorrente foi condenado e emite parecer no sentido do não provimento do presente recurso.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foi apresentada resposta ao parecer.

2. Fundamentação
A – Circunstâncias com interesse para a decisão
Pelo seu inequívoco interesse passamos a transcrever a decisão recorrida no que respeita aos seus fundamentos de facto e de direito, na parte que releva para a decisão a proferir:
«II. Fundamentação
De Facto
Com relevo para a decisão da causa, resultaram os seguintes:
Factos Provados:
1º No dia 1 de Novembro de 2021, pelas 18:10h, verificando que no quintal da sua residência sita no nº... da Rua ... em Ovar se encontravam seis crias de gato, recém-nascidas, removeu-as do local, colocou-as dentro de um saco plástico e foi depositá-las no contentor do lixo, existente nas proximidades da sua residência, naquela Rua ....
2º O arguido agiu do modo descrito de forma livre, voluntária e consciente, depositando no contentor, dentro do saco as crias de gato recém-nascidas, cuja fragilidade conhecia, deixando-as à sua sorte, ciente que dessa forma lhes infligia dor e sofrimento, como aconteceu.
3º O arguido sabia que praticava factos ilícitos e criminalmente punidos.
4º O arguido confessou os factos.
5º Está arrependido.
6º O arguido tem outros gatos, dos quais trata.
7º Actuou da forma descrita em 1º por terem as crias sido abandonadas pela mãe e não conseguir que as mesmas se alimentassem.
8º O arguido está desempregado, auferindo RSI no valor de cerca de € 125,00.
9º Reside com a mãe em casa desta.
10º Tem uma filha a qual já está autonomizada.
11º O arguido não tem antecedentes criminais.
Factos não provados
Não resultaram factos não provados, com relevo para a boa decisão da causa.
Motivação da decisão de facto:
A decisão de facto teve por base a prova produzida em audiência, globalmente considerada, que consistiu no seguinte:
O tribunal considerou essencialmente a confissão dos factos pelo arguido, o qual acaba por assumir a sua conduta, percebendo-se que o mesmo compreende o desvalor da sua actuação. Na verdade, ainda que procurando explicar-se, dizendo que atuou por os animais terem sido abandonados pela mãe e não comerem, percebe-se que o arguido compreendeu o sofrimento a que votou os animais que colocou num saco plástico e dentro do contentor do lixo. Na verdade, decorre das regras da experiência comum que 6 gatos recém-nascidos colocados dentro de um saco, dentro de um contentor são incapazes de subsistir, por falta de comida, água e ar e, instintivamente, sentem sofrimento. Não colhe, obviamente, a alegação de que o arguido esperava que alguém pegasse nos gatos, pois que não só a forma como o arguido o disse foi manifestamente titubeante e pouco convicta, como fosse essa a intenção e certamente a solução achada não seria colocar os animais no interior de um saco no caixote do lixo.
De todo o modo, como se começou por dizer, percebeu-se arrependimento no arguido, bem como a compreensão do desvalor da sua actuação.
O certificado de registo criminal junto aos autos e obtido em 20.10.2022 foi considerado para dar como provada a falta de antecedentes criminais do arguido.
As suas condições sócio-económicas resultaram provadas em face das declarações a propósito prestadas pelo arguido, as quais, também nesta matéria, se afiguraram credíveis.
De Direito
Enquadramento jurídico-penal
O arguido vem acusado da prática de um crime de maus tratos de animal de companhia, ilícito previsto no artigo 387º do Código Penal.
Determina tal norma legal que: Artigo 387º
“1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o limite máximo da pena referida no número anterior é agravado em um terço.
3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.”
Não se desconhecem as problemáticas que rodeiam esta nova incriminação e, nomeadamente a destrinça do bem jurídico com tutela constitucional que legitime a punição.
Não há dúvida que não se protege a integridade física e vida do animal em si, contudo, tal como referem Pedro Sores Albergaria e Pedro Mendes Lima em “Sete Vidas: A difícil determinação do bem jurídico protegido nos crimes de maus tratos e abandono de animais”, “A impossibilidade de encontrar no texto constitucional um fundamento directo para a protecção de animais individualmente considerados, remete-nos para a indagação de formas de protecção indirecta”, o que implicará, necessariamente que, em rigor, o bem jurídico radicará, não no animal, mas sim no Homem. Isto mesmo se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação Évora, de 18.06.2019, disponível para consulta integral em www.dgsi.pt, onde é possível ler-se: “Após desenvolvida exposição sobre os variados diálogos doutrinários em confronto, a autora afirma que o bem jurídico protegido pelo tipo aplicado não reside na integridade física e na vida do animal de companhia.
É sim um “bem colectivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais directos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação actual (passada e/ou potencial) que com eles mantém.
Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afectados pelas suas decisões e acções”.”
Este entendimento, que se sufraga, assenta o bem jurídico na tutela do ambiente, consagrada no artigo 66º da CRP. Mais especificamente, e de acordo com a autora que sustenta a posição defendida naquele Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Teresa Quintela de Brito (agora em “Os crimes de maus tratos e de abandono de animais de companhia: Direito Penal Simbólico?”, Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, n.º 19 (2016), p. 16 ss.), nas alíneas c) e g) do seu n.º 2, porquanto promovem a conservação da natureza e a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente.
Assim, se por um lado esta análise faz concluir pela conformidade constitucional da norma pena incriminadora, por outro, impõe a conclusão de que o arguido não poderá ser punido pela prática de tantos crimes quantos os animais, pois que está em causa uma única resolução criminosa, não sendo, como se viu, protegidos bens eminentemente pessoais.

Sobre o que deve ser considerado animal de companhia há que atender no que dispõe o artigo 389º, o qual estabelece que “1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.
2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.
3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância.”
O SIAC foi estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 82/2019 de 27 de junho, que no seu preâmbulo assume a regulação da detenção dos animais de companhia como uma «medida destinada a contrariar o abandono e as suas consequências para a saúde e segurança das pessoas e bem-estar dos animais» e que estabelece, entre outras, a obrigação de «identificação e registo dos animais de companhia», a qual, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, desse diploma, é obrigatória para cães, gatos e furões, «nos termos da parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e a parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016».
Ora, estando-se perante actuações incidentes sobre gatos é indubitável que estamos perante animais de companhia para efeitos do disposto no artigo 387º.
Se assim é, atendendo-se a que o arguido infligiu com a sua conduta sofrimento a gatos, sem motivo legítimo, há que concluir se mostram preenchidos todos os elementos objectivos do tipo de crime pelo qual vem acusado.
Resulta ainda, da prova produzida, que o arguido agiu deliberada, voluntária e conscientemente, sabendo ser toda a sua conduta proibida e punida por lei.
Estão, pois, reunidos os elementos do dolo, presentes no artigo 14º do Código Penal: o elemento intelectual (o conhecimento das circunstâncias de facto, que no presente crime se traduz no conhecimento de que se pratica um acto que acomete de sofrimento animais de companhia) e o elemento volitivo (a decisão de praticar esse facto).
Assim sendo, impõe-se a condenação do arguido pela prática do crime pelos qual vem acusado.»
B- Fundamentação de direito
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que os recorrentes extraem das respetivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto o recorrente suscita ao tribunal que aprecie a constitucionalidade material do preceito incriminador pelo qual foi condenado nos presentes autos, a qual é também uma questão do conhecimento oficioso atento o disposto no art. 204 da CRP.
Cumpre apreciar e decidir!
O preceito legal cuja conformidade com a constituição importa analisar é o nº3 do art. 387 do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08, que dispõe:
«Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.»
A primeira questão que se suscita é a da conformidade da norma incriminadora com o teor do art.18 nº2 da CRP: «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.»
Estabelece-se que o direito penal só adquire legitimidade quando está em causa a tutela de direitos ou interesses protegidos pela Constituição.
Acresce que se tem vindo a entender que tal preceito é também violador do princípio da tipicidade consagrado no art. 29 nº1 da CRP : «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.»
A conduta típica penalmente proibida tem de estar descrita de modo especialmente preciso e determinado, de forma que os destinatários da norma incriminadora possam, com segurança, conhecer os elementos objetivos e subjetivos que integram a infração.
Vejamos!
O Tratado de Lisboa firmado em 13 de dezembro de 2007 reconheceu os animais como seres sencientes, e posteriormente o legislador ordinário procedeu à tutela do seu bem estar através do preceito cuja constitucionalidade ora foi posta em causa.
Em 2017 do C.C., no art. 201- B, passou a constar que «Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza.»
Entretanto, em 2014 o legislador ordinário havia procurado proteger o bem estar dos animais de companhia com através do art. 387 do CP, entretanto alterado pela lei 39/2020 de 18/08.
Atentemos no disposto no art. 3º da CRP :
«1. A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.
2. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática.
3. A validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição.», donde se extrai que a tutela penal dos bens jurídicos tem de ser enquadrada no quadro de valores e interesses consagrados pela lei fundamental. Assim não sendo, fica, portanto, inviabilizada a constitucionalidade de qualquer norma incriminadora.
Para o efeito de determinar a conformidade constitucional do art. 387 nº3 do CP cumpre em primeira linha determinar qual o bem jurídico, - (enquanto interesse pessoal ou comunitário juridicamente considerado valioso) -, protegido pelo preceito em causa.
Ora, tendo em conta a colocação sistemática do preceito no Título VI do C. Penal, sob a epígrafe “Dos crimes contra animais de companhia”, somos de opinião que o legislador visou tutelar o bem estar, a integridade física e a vida deste tipo de animais.
Aqui chegados, temos de reconhecer que no texto constitucional não existe expressamente, qualquer normativo de onde se possa retirar, de forma explícita, a proteção do bem-estar dos animais de companhia, não sendo, portanto, estes animais considerados, objeto de tutela jurídico-constitucional.
E esta constatação, - de que não existe qualquer bem jurídico constitucionalmente tutelado que justifique a existência da incriminação prevista no art. 387 do CP -, pesou na decisão do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 867/2021 de 10 de novembro, no sentido inconstitucionalidade do art. 387 do CP por violação dos artigos 27 e 18 nº2 da CRP.
Podemos reconhecer que a falta desta referência constitucional se ficou a dever certamente ao contexto histórico em que a CRP foi escrita, época em que não existia de forma tão generalizada na nossa sociedade, o sentimento de preocupação pelo bem estar dos animais e o direito ainda não tinha evoluído no sentido de lhes conferir alguma proteção.
Porém, não estando a dignidade e bem estar dos animais consagrada no texto constitucional como interesse protegido, temos de concluir que o preceito criminal pelo qual o arguido foi condenado é inconstitucional e como tal não pode ser aplicado pelos Tribunais.
Não ignoramos as posições que fazem depender a tutela do bem estar dos animais de uma tutela mais ampla da proteção do ambiente prevista no art. 66 da CRP, e da própria dignidade humana, como fez a sentença recorrida e o Sr. Procurador-geral-adjunto no seu parecer, mas tais posições afiguram-se-nos de difícil sustentação e algo forçadas nos seus argumentos, já que essa tutela ambiental ampla se encontra sempre subordinada aos interesses humanos e da vida em comunidade, e em caso de conflito com o um interesse próprio dos animais, sobrepõem-se necessariamente os interesses humanos.
Neste sentido, citamos o Ac. desta Relação de 19/10/2022 relatado por Jorge Langweg e publicado in www.dgsi.pt, onde se salienta que: «… o direito fundamental ao ambiente não protege diretamente os animais “qua tale”, enquanto seres individuais, mas apenas na medida da sua relevância para o ambiente como um todo…» e se alerta para os riscos de indefinição que poderia surgir se fizermos depender a incriminação do princípio da proteção da dignidade humana, passamos a citar: «O artigo 1º da CRP consagra Portugal enquanto “República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.
O princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1º da CRP e o direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º do mesmo texto legal não podem servir de suporte constitucional à incriminação dos maus tratos a animais de companhia, na medida em que tal entendimento viabilizaria a criminalização de praticamente qualquer conduta que o legislador ordinário considerasse relevante sancionar, de modo a assegurar ou mesmo forçar a implementação de certas conceções morais ou políticas – mesmo as mais controversas -, potenciando a aprovação irrestrita de leis penais, por exemplo, em resposta à pressão mediática e social gerada por determinados casos mediáticos, em nome de uma pretensa preocupação de proteção da dignidade da pessoa humana, sem que os bens jurídicos em causa estivessem relacionados com qualquer direito ou interesse constitucionalmente salvaguardado. Certas correntes da criminologia, também suportadas por estudos científicos, associam as condutas integradoras do tipo legal de crime de maus tratos contra animais de companhia como um possível sintoma de perigosidade e desumanidade do agente do crime (perfil psicológico e de personalidade), reconhecendo nessas condutas a revelação de uma personalidade com propensão para gerar também um perigo abstrato de ofensa à vida ou à integridade de seres humanos. No entanto, os crimes de perigo abstrato têm particulares exigências de tipicidade, impondo que a conduta típica seja descrita de modo especialmente preciso existindo um nexo causal de perigosidade entre a conduta que é proibida e a lesão do bem jurídico que sustenta a proibição – o que não é manifestamente o caso do tipo legal de crime em discussão -, o que afasta essa referência constitucional – o direito à vida humana e à integridade física (artigos 24º, 1 e 25º, 1, da CRP) - enquanto suporte da incriminação em discussão neste recurso.»
Por ultimo fazemos referência ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 843/2022, de 20 de dezembro, que considerou que a norma penal em causa que sanciona as agressões ao bem estar dos animais de companhia não cumpre as exigências mínimas de determinabilidade da lei penal decorrentes do princípio da legalidade acolhido no artigo 29 n.º 1 da CRP, e conclui pela inconstitucionalidade do artigo 387 n.º 3 do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, em conjugação com o artigo 389 nºs 1 e 3, do Código Penal, igualmente na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto.
O art. 29 da CRP estabelece regras para a aplicação da lei criminal e consagra o princípio da legalidade penal, pretendendo-se evitar que o direito penal seja utilizado para favorecimento de objetivos meramente políticos.
Estabelece a proibição de retroatividade da lei criminal, a exigência de que os preceitos criminalizadores constem de Lei, - conjugar com o art.165 nº1 al. c) da CRP - e por último exige que o conteúdo da lei criminal seja rigorosamente determinado.
O conteúdo da lei criminal tem de ser isento de conceitos vagos e imprecisos. A conduta qualificada como crime tem de ser descrita de forma pormenorizada. Só assim o cidadão pode ter consciência das ações e omissões a evitar. Daqui decorre também o princípio da tipicidade penal: nullum crimen sine lege certa.
Sobre o citado preceito constitucional veja-se Constituição da República Portuguesa Anotada por Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo I, anotação ao art. 29.
E citando o Ac. do Tribunal Constitucional nº500/2021:
«O princípio da legalidade penal constitui um elemento central do regime constitucional da lei penal nos Estados de direito democráticos, encontrando-se expressamente consagrado artigo 29.º da Constituição enquanto garantia pessoal de não punição fora do âmbito de uma lei escrita, prévia, certa e estrita.
Com a exigência de lei certa — aquela que agora releva — quer-se significar que a lei que cria ou agrava responsabilidade criminal deve especificar suficientemente os factos que integram o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança) e definir as penas (e as medidas de segurança) que lhes correspondem. Nesta aceção, o princípio da legalidade penal tem como corolário o princípio da tipicidade, condicionando a margem de conformação legislativa no âmbito da definição típica dos factos puníveis.»
Em suma o princípio da legalidade penal acolhido na CRP encontra o seu fundamento na tutela da liberdade individual, a qual implica para o legislador ordinário o dever de formular as normas penais de forma clara e precisa, tanto no que se refere à delimitação dos factos que constituem crime, como no que respeita às próprias sanções associadas aos crimes concretamente tipificados. É fundamental, que os cidadãos, destinatários naturais e normais das normas penais, possam ter conhecimento sem margem para incertezas ou erros, quais as condutas que lhes estão penalmente vedadas.
Aqui chegados tem de se aferir se o teor dos artigos 387 e 389 do CP cumpre as exigências do princípio da legalidade penal, ou seja, se tipo legal se encontra suficientemente determinado.
Suscitam-se desde logo dúvidas sobre quais os animais que estão tutelados pela norma penal em causa.
Dispõe o art. 389 nº1 do CP:
«Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.»
Perante este conceito pode questionar-se se: (entre outras coisas…)
A norma abrange um animal selvagem domesticado na medida em que é detido por seres humanos?
As formigas ou iguanas detidas num terrário estão abrangidas pela norma?
A norma abrange todo o tipo de animais ou apenas aqueles capazes de demonstrar afeição pelos seres humanos?
Ou só abrange aqueles que tradicionalmente têm sido considerados animais domésticos?
Em que consiste em concreto o entretenimento humano a que se refere a norma?
E o que se entende por lar no âmbito deste preceito? Coincide com a residência ou é mais amplo abrangendo outro tipo de propriedades e estendendo este tipo legal a todos e quaisquer espaços em que se encontrem esses animais?
E quanto ao nº3 do art. 389 do CP passamos a citar o Ac.do Tribunal Constitucional nº843/2022:
«Por sua vez, o n.º 3 do artigo 389.º pouco ou nada esclarece quanto à abrangência da noção em apreço, dado que remete para o Sistema de Informação de Animais de Companhia, criado pelo Decreto-Lei n.º 82/2019, de 27 de junho, que determina que “aplica-se à identificação de animais de companhia das espécies referidas no anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e no anexo I do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, nascidos ou presentes no território nacional”. Este normativo remete, pois, para esses anexos, em que consta uma série de animais que poderão ser objeto deste crime mesmo “que se encontrem em estado de abandono ou errância”, estendendo, no fundo, a abrangência do n.º 1 a esses animais, mas não servindo para clarificar ou esclarecer o conceito de “animal de companhia” constante nesse primeiro normativo.
Aliás, recorde-se que, nos termos do artigo 4.º do citado Decreto-Lei n.º 82/2019, “1 - A identificação de animais de companhia é obrigatória para cães, gatos e furões, nos termos da parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e a parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, sendo facultativa para as espécies abrangidas na parte B do anexo I dos referidos Regulamentos. 2 - Por despacho do diretor-geral de Alimentação e Veterinária, pode ser determinada a obrigatoriedade de identificação, nos termos do presente decreto-lei, de qualquer das espécies referidas na parte B do anexo I dos Regulamentos mencionados no número anterior ou de outras espécies de animais detidos para fins de companhia, com fundamento na necessidade de implementar medidas de natureza sanitária para combate a surtos de doenças epizoóticas ou zoonoses”, pelo que essa remissão, além de nada adiantar quanto à delimitação do conceito de ‘animal de companhia’, ainda parece permitir que algumas outras espécies sejam sujeitas a registo e abrangidas, por intermédio de um ato administrativo, por este tipo penal, redundando numa ainda maior indefinição desse conceito (que é, recorde-se, essencial neste tipo-de-ilícito, dado que só os “animais de companhia”, tal como definidos no artigo 389.º podem ser objeto da ação ilícita), que, como acabado de ver, pode ser ampliado, a qualquer momento, por via administrativa.»
Pelas razões expostas, concordamos que o preceito legal em causa não cumpre minimamente as exigências de rigor e clarificação, desde logo, quanto aos sujeitos, (potenciais vitimas), tutelados pela norma, assim violando o princípio da legalidade penal e, por consequência, o art. 29 da CRP.
Seguindo a citada jurisprudência do Tribunal Constitucional que considera o preceito legal pelo qual o arguido foi condenado inconstitucional, com a qual concordamos, pelas razões que deixámos supra elencadas, decidimos recusar a aplicação da norma prevista no nº3 do art. 387 do CP por ser inconstitucional por violação dos artigos 18 nº2 e 29 nº1 da CRP.
Também no sentido de que o preceito em causa é inconstitucional por violação, conjugadamente, dos artigos 27 e 18 n.º 2, da Constituição, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 781/2022 de 17 de novembro.

3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, tendo por base os fundamentos expostos, acordam os Juízes na 1ª secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso do arguido AA e, em consequência, recusam a aplicação da norma contida no art. 387 nº3 do CP por ser inconstitucional por violação dos artigos 18 nº2 e 29 nº1 da CRP.

Face à recusa de aplicação do art. 387 nº3 do CP, revogam a decisão recorrida e absolvem o recorrente do crime pelo qual foi condenado em primeira instância.

Sem tributação.
*
Porto 8.03.2023
Paula Guerreiro
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo