Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0555486
Nº Convencional: JTRP00040443
Relator: MARQUES PEREIRA
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
Nº do Documento: RP200706250555486
Data do Acordão: 06/25/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO.
Área Temática: .
Sumário: I - O transporte de mercadorias por mar está sujeito ao regime de conhecimento de carga da Convenção de Bruxelas, assinada em 25 de Agosto de 1924, tornado direito interno pelo DL n.º 37.748 de 1/2/1952.
II - A responsabilidade do transportador será excluída se os danos derivarem de perigos ou riscos ou acidentes do mar ou de outras águas navegáveis.
III - Tais eventos têm de ter carácter de imprevissibilidade e de irresistibilidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Cível da Comarca do Porto, Companhia de Seguros X………., SA intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra B………., SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 15.200.648$00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação.
Alegou, em resumo, que “C………., Lda.”, com sede em Vila Nova de Famalicão, vendeu a “D……….”, com sede nos EUA, as quantidades de artigos têxteis de algodão constantes das facturas juntas, no valor global de USD 84.183,80.
Tendo-se aquela incumbido de conseguir o transporte da mercadoria para os EUA, contactou uma empresa transitária, a qual, por sua vez, contactou a agente da Ré, em Portugal, que aceitou realizar o transporte em causa, por via marítima.
Que a mercadoria, introduzida no contentor F………. – ……/., foi carregada no navio “E………., propriedade da Ré, o qual, em 14 de Novembro de 1997, zarpou de Portugal com destino aos EUA.
Que, porém, em 19 de Novembro de 1997, quando navegava ao largo dos Açores, o navio sofreu uma avaria, quando ocorria uma forte tempestade, o que levou o capitão a rumar a Lisboa, onde chegou em 21 de Novembro do mesmo ano.
Que, inspeccionado o navio, em 26 de Novembro, se verificou a perda do dito contentor.
Que a perda da mercadoria em causa ocorreu, durante o referido transporte, tendo-se devido a má estiva e deficiente acondicionamento do navio.
Que, por virtude do contrato de seguro celebrado com a “C……….., Lda.”, a Autora pagou à sua segurada a quantia de 15.200.648$00, correspondente á totalidade do valor seguro, quantia que agora, como sub-rogada, vem exigir da Ré.
Invocou a Convenção de Bruxelas relativa a conhecimentos de carga.

A Ré apresentou contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação, concluindo pela improcedência da acção.
Alegou, designadamente, que o mencionado contentor caiu ao mar, devido à forte e imprevista tempestade com que foi assolado o navio, com ventos de força 10 e vagas de 9 metros, sofrendo oscilações de 23 graus para todos os lados (arts. 33 da contestação).

Na réplica, a Autora impugnando, designadamente, o vertido no art. 33 da contestação, concluiu como na petição inicial.

No saneador, declararam-se improcedentes as excepções da incompetência internacional do Tribunal, da incompetência em razão da matéria e da ilegitimidade passiva deduzidas pela Ré.
Seleccionaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória.

Realizada a audiência de julgamento, com gravação das provas oralmente produzidas, foi proferida sentença, em que se julgou a acção procedente, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 75.820,51, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação. Custas, pela Ré.

Apelou a Ré, com os seguintes fundamentos:
A - Dispõe a Convenção de Bruxelas de 1924, aplicável em Portugal – DL 97748 - no artigo 4.°, n.º 2, al. c)
"Nem o armador nem o navio serão responsáveis por perda ou dano resultante ou proveniente:
c) De perigos ou acidentes de mar ou de outras águas navegáveis"
B - Nos perigos de mar, para efeitos daquele normativo são comummente aceites eventos que, dada a sua natureza, são idóneos para pôr em risco o navio ou a sua carga.
C - A situação concreta de vento (força de 9 e 10 da escala de Beaufort) de vagas (8 e 9 metros de altura), que provocaram baloiço e adornamento do navio a bombordo e a estibordo com afundamento á proa e à ré, abaixo da linha de água, com inclinações de 23 graus, tem forçosamente de ser entendida como grave e mesmo muito grave em termos de navegação.
D - Na escala de Beaufort a força 9 segundo a tabela da WMO (World Meteorolical Organisation) tem a classificação de FORTE TEMPESTADE.
E - A força 10, na mesma escala, tem a classificação CICLONE.
F - Uma inclinação de 23 graus é suficiente e necessária para, em situações de Tempestade e Ciclone, fazer cair borda fora um ou mais contentores por força das leis da física (diminuição do atrito, sobreposição da força horizontal à força vertical, deslocação do centro de gravidade e acção da inércia).
G - A situação de avaria reportada nos factos dados como provados fez agravar os riscos criados ao navio na situação de Forte Tempestade e Ciclone na mencionada na conclusão C, aumentou o grau dos riscos de mar que o navio enfrentou no dia 19/11/1997.
H - A situação mencionada na conclusão C foi a única causa directa e necessário da queda do contentor F………. ao mar.
I - Ao decidir, nas circunstâncias concretas de grave perigo, recolher a porto seguro, retomando a Lisboa, o capitão do navio denotou boa prática, apurado sentido de responsabilidade e preocupação pela carga que transportava e tripulação que o acompanhava.
J - Esta sensata atitude do capitão é reveladora de cuidada diligência e sentido de responsabilidade nas suas funções com elevado zelo no seu desempenho e grande acerto na decisão.
L - As condições concretas pormenorizadamente descritas nos factos dados como provados não podem, em concreto e no caso dos autos, deixar de ser consideradas como perigos de mar, com gravidade de tal modo elevada que têm de ser consideradas como causa de exclusão da responsabilidade da R.
M - A douta decisão recorrida violou, além do mais, o disposto no artigo 4.º n.º 2 alínea c) da Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924.

Nas contra-alegações, a Autora pugnou pela improcedência da apelação.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Factos provados:
1.“C………., Lda.ª incumbiu a “G……….” para que diligenciasse o que fosse necessário para se efectuar o transporte de diversa mercadoria para os Estados Unidos da América.
2.A “H………., SA” é agente da Ré em Portugal e tem poderes para, em seu nome, celebrar “contratos de transporte”.
3.No desempenho da incumbência referida em 1, a “G……….” contactou a “H……….., SA”e encarregou a Ré, através da referida "H………., SA" do transporte da mercadoria referida em 1, para os Estados Unidos da América, por via marítima.
4.A R. aceitou efectuar esse transporte.
5.Emitiu o conhecimento de embarque junto aos autos a fls. 10.
6.O contentor "F………. -……/." foi carregado no navio "E……….".
7.No dia 19NOV97, no decurso da viagem, quando o "E………." navegava ao largo dos Açores, sofreu uma avaria.
8.Nessa altura ocorria forte tempestade no mar.
9.No contexto referido em 7 e 8, o capitão do navio resolveu alterar a rota e dirigir-se ao Porto de Lisboa.
10.Onde chegou no dia 21NOV97.
11.No dia 26NOV97, em inspecção efectuada ao navio, detectou-se que desaparecera o contentor aludido em 6.
12.Esse contentor caíu ao mar no dia 19NOV97, em pleno alto mar, e não foi possível recuperá-lo, como aos demais 21 contentores.
13.Face ao que consta das facturas juntas a fls. . 8 e 9 e do conhecimento de embarque de fls. 10, a "C………., Lda" vendeu a "D………., Estados Unidos da América, a mercadoria descriminada nas facturas.
14.O valor global dessa mercadoria era de USD 84.183,80.
15.O acordo referido em 3, 4 e 5 teve por objecto o transporte da mercadoria referida em 14.
16.Essa mercadoria tinha o peso total de 6.447 Kg e foi embalada em 338 cartões.
17.Todos esses cartões foram introduzidos no contentor "F………. -……/.".
18.Em consequência do aludido em 12 toda a mercadoria que havia sido introduzida no contentor "F……….-……/." perdeu-se definitivamente.
19.A “C………., Lda.ª” acordou com a Autora que a última a indemnizaria pelo valor das mercadorias constantes das facturas de fls. 8 e 9, que eventualmente viesse a extraviar-se ou a danificar-se em consequência do transporte referido em 3.
20.Em consequência do referido em 18 e 19, a Autora pagou à “C………., Lda.ª” a quantia d 15.200.648$00.
21.Aquando da ocorrência do vertido em 12, a Ré tinha tomado da “I……….” a disposição do navio “E……….”, com a permissão de o utilizar durante um certo período de tempo.
22.O navio “E……….” encontrava-se na altura sob a administração da “J……….”.
23.De acordo com o que consta do documento de fls. 32 e 33, quando ocorreu o vertido em 12, o navio suportou forte tempestade, com ventos de 9 e 10 na escala de Beaufort e com vagas de 8/9 metros de altura, o que ocasionou que o navio sofresse efeitos do vento, baloiçando e adornando a bombordo e a estibordo, com afundamento à proa e à ré, abaixo da linha de água, com inclinações de 23 graus.

Enquadramento jurídico:
Analisa-se, no caso dos autos, inquestionavelmente, um contrato de transporte de mercadorias por mar, definido no art. 1 do DL n.º 352/86, de 21 de Outubro, como “aquele em que uma das partes se obriga em relação á outra a transportar determinada mercadoria, de um porto para porto diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada “frete”.
De acordo com o n.º 2 do citado DL n.º 352/86, o contrato de transporte de mercadorias por mar “é disciplinado pelos tratados e convenções internacionais vigentes em Portugal e, subsidiariamente, pelas disposições do presente diploma”.
O contrato em causa é um contrato de transporte marítimo de mercadoria sujeito ao regime de conhecimento de carga da Convenção de Bruxelas, assinada em 25 de Agosto de 1924, tornada direito interno pelo DL n.º 37.748, de 1.2.1950 (ex vi do art. 9 do citado DL n.º 352/86, sobre o transporte no convés). [1]

O problema:
Na sentença recorrida, considerou-se que a Ré/transportadora não logrou provar, como era se ónus, qualquer das causas de exclusão da sua responsabilidade, invocadas na contestação, maxime, a prevista na al. c) do art. 4, n.º 2 da Convenção de Bruxelas de 1924 (“Regras de Haia”).
Daí, ter condenado a Ré no pedido de indemnização civil deduzido na acção.
Ora, o problema (o único) que se levanta no recurso consiste, precisamente, em averiguar se, em face da matéria de facto provada, se deve entender, ou não, como demonstrada a causa de exoneração da responsabilidade (presumida) do transportador da al. c) do art. 4, n.º 2, da citada Convenção de Bruxelas, que refere os “perigos, riscos ou acidentes do mar ou de outras águas navegáveis”.

Apreciação:
O problema que se discute, de responsabilidade civil por perda de mercadoria objecto de um contrato de transporte marítimo, realizado em 1997, tem de ser examinado, como vimos, à luz da Convenção de Bruxelas de 1924.
Obrigação essencial do transportador é a de deslocar (ou a fazer deslocar) por mar determinada mercadoria e de a entregar ao destinatário, no mesmo estado em que as recebeu.
Por outro lado, não se suscitam dúvidas quanto existência de uma presunção de responsabilidade do transportador marítimo pelos danos sofridos pela carga (ou sua perda) durante o período coberto pelo contrato de transporte (presunção de responsabilidade que decorre dos arts. 2 e 3, n.º 1 e 2, e 4 da Convenção em apreço).
Bem como, de que sobre o transportador recai o ónus da prova dos factos exoneratórios da sua responsabilidade presumida (cfr. arts. 4, n.º 1 e 2 da Convenção): relativamente aos factos especificados na als. a) a p) do n.º 2 do art. 4 da Convenção, por se tratar de factos extintivos do direito do autor (cfr. art. 342, n.º 2 do C. Civil). [2]
Pois bem. Na al. c) do art. 4, n.º 2 da Convenção prevê-se, como dissemos, a exclusão da responsabilidade civil da transportadora por perda ou dano resultante ou proveniente de “perigos, riscos ou acidentes do mar ou de outras águas navegáveis”.

Entende-se, no entanto, geralmente, que para o funcionamento desta causa de liberação da responsabilidade do transportador deve exigir-se que os eventos em causa tenham carácter de imprevisibilidade e de irresistibilidade.

Neste sentido, Azevedo Matos, [3] segundo o qual:
“…Trata-se de tempestades, ventos, bancos de areia, escolhos, etc., acidentes a cargo das mercadorias, se o navio lhes não deu causa, por falta de razoável diligência. Entende-se que não são forçosamente, e por si, causas de exoneração, pois, normalmente, o navio deve enfrentá-los, mas só quando são casos de força maior, que não tivessem sido previstos, acontecendo na rota marcada ou habitual e não nos desvios desta, pelo menos com a intensidade com que se manifestaram. Constituem as chamadas fortunas de mar”.

Também, José M. P. Vasconcelos Esteves, [4] ao escrever que “…estes acidentes só serão causas de exoneração se forem casos de força maior, de características anormais, irresistíveis e não previsíveis. Constituem aquilo a que se designa vulgarmente por fortuna de mar. Não basta contudo invocá-los. É necessário provar não só as suas características anormais (recurso à escala de ventos de Beufort) como ainda a sua irresistibilidade e imprevisibilidade. Não nos podemos esquecer que um navio é construído tendo em conta as tempestades que inevitavelmente irá defrontar. Há pois que avaliar, também, se houve ou não diligência razoável por parte do armador”.

Na doutrina espanhola, encontramos, na mesma linha de orientação, vários autores, embora com algumas nuances de autor para autor.
Assim, segundo José Luís Gabaldón Garcia e José Maria Ruiz Soroa: [5]
“Para que sea estimable como tal, esta exceptión debe referir-se a eventos peculiares marítimos que no hayan podido evitarse com una diligente práctica marinera por parte del capitán, haciendo uso de las previsiones meteoróligicas difundidas. Además, los eventos en cuestión deben exceder de lo que es normal u ordinário en la navegación marítima, que por su naturaleza implica el someterse a condiciones adversas”.
Acrescentando que: “La tendência de nuestros tribunales es la de admitir muy restrictivamente esta causa de exoneración cuando se invoca en base al mal tiempo o mala mar sufridos durante una traversía marítima por el buque porteador (sts de 30-4-1990, Arz. 2.807, y sap Vizcaya 10-03-2000, Arz. 1076).

Segundo F. Sánchez Calero: [6]
“(…)
Estas causas tradicionalmente se reúnem bajo la expresión de “peril of the sea” y constituyen las causas de exoneración de la responsabilidad del porteador al producirse una causa no imputable que hace imposible la ejecución de la prestación del transporte de las mercancías en buen estado; causas a las que se refieren las pólizas de los contratos de seguro marítimo y también que más antiguamente aparecen en los conocimientos de embarque. Se indica igualmente que estos “peligros, daños o accidentes de mar” han de referirse a hechos fortuitos en sentido amplio, que dan lugar a unas consecuencias dañosas inevitables. La doctrina inglesa recoge una larga casuística sobre los supuestos que podem encuadrarse dentro de esta categoria los cuales tinenen como dato común el de que se trata de riesgos especiales y de especial gravedad de la navegación marítima, como vientos, tempestades, etc. Normalmente se trata de eventos imprevisibles, pêro esta nota no es esencial sino es más relevante que sean inevitables”. [7]

O problema poderá equacionar-se, de modo algo diverso, no direito francês. A lei francesa (La loi n.º 66-420 du 18 juin 1966), mais sintética, optou por reunir em nove os chamados “cas exceptés” (que, na Convenção, são dezassete), tendo enquadrado os casos de “fortuna de mar” entre “les faits constituant un évènement non imputable au transporteur”. [8]
Acerca da “fortune de mer”, lê-se no Dicitionnaire de droit maritime de Alain Le Bayon: [9]
“Expression désignant tout évènement, survenu au cours d’un voyage maritime, et dû à des circonstances liées à l’état de la mer et du vent. Dans la Convention de Bruxelles du 25 août 1924, la fortune de mer exonère le transporteur maritime de marchandises de toutr responsabilité sans qu’il soit exige que lévènement presente les caracteres de la force majeure (Art. 4, § 2, litt. C : périls, dangers ou accidents de la mer). En revanche, la fortune de mer est appréciée três restrictivement par la jurisprudence, en application de la loi n.º 66-420 du 18 juin 1966 (Art. 27-d) qui envisage, comme exonérant le transporteur, “les faits constituant un évènement non imputable au transporteur”.

Assim, comparando o texto da Convenção, com a lei francesa, refere Alain Sérieaux [10] que, “…alors que, suivant la convention, il suffit au transporteur d’établir l’un de ces cas pour être libéré, le droit français, plus sévère, exige en outre que l’évènement en cause n’ait été pour lui ni prévisible ni surmontable, c’est-à-dire qu’il soit constitutif de force majeure”.
E mais adiante:
“…La pratique a parfois du mal à s’accommoder de cette disparité entre regime interne et international: périodiquement la jurisprudence est conduite à rappeler que la fortune de mer visée par la convention doit s’apprécier moins sévèrement que la force majeure française (…)”.

Estão longe de ser pequenas as dificuldades, suscitadas na sua aplicação, pela cláusula de exoneração de responsabilidade do transportador estabelecida no art. 4, n.º 2, al. c) da Convenção de Bruxelas de 1924, ligadas, até, à própria longevidade da convenção. [11]

Dificuldades que advêm, também, dos intricados problemas de repartição do ónus da prova (entre o carregador e o transportador), que, nesta matéria, se levantam. [12]

Cremos que ao transportador sempre caberá, para conseguir a qualificação do facto como um excepted peril, o ónus de alegação e de prova (mesmo que, num primeiro momento, do iter probatório, possa não ser completa) dos aludidos requisitos da imprevisibilidade e da irresistibilidade. [13]
Assim, por exemplo, que o mau tempo ou a tempestade, de que resultou a perda ou dano das mercadorias transportadas, eram imprevisíveis (tidas em conta as informações e avisos das entidades competentes no âmbito da meteorologia marítima) e as suas consequências não podiam ter sido evitadas.

No caso em análise, não são abundantes os factos alegados pelas partes, nos articulados da acção, acerca das circunstâncias concretas que estiveram na origem da perda do referido contentor, no decurso da tempestade ocorrida, naquele dia, ao largo dos Açores.

Sem curar, agora, de apreciar da irresistibilidade da tempestade, em face dos factos provados (para o que poderá ser útil a consulta da Escala de Beaufort), [14] vemos que, em relação á imprevisibilidade da mesma, nada foi averiguado (não há sobre o ponto, factos provados ou não provados).
Na contestação (art. 33), a Ré alegou que o navio E………. foi assolado por forte e imprevista tempestade, com ventos de força 10 e vagas de 9 metros…
Mas, que a tempestade em causa foi “imprevista” foi facto (controvertido) que não se levou à base instrutória.
A parte poderia ter dito mais, sobre a imprevisibilidade, por exemplo, que a tempestade, com aquela intensidade, não foi prevista pelo Instituto de Meteorologia.
Apesar disso, o que disse (o mínimo) justificar-se-ia, a nosso ver, que tivesse integrado a base instrutória, permitindo, desse modo, ao tribunal que averiguasse e respondesse sobre tal ponto (essencial), com a concretização adequada. [15]

Somos, assim, confrontados com a necessidade de determinar a ampliação da matéria de facto, no uso do poder conferido à Relação pelo disposto no art. 712, n.º 4 do CPC, a fim de ser averiguado este ponto factual.

Decisão:
Com os fundamentos expostos, acorda-se em anular a decisão proferida na 1.ª instância, devendo a matéria de facto ser ampliada, a fim de ser averiguado o mencionado ponto de facto, constante do artigo 33 da contestação (na parte que, ainda, não foi objecto de averiguação).
A repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo do disposto na parte final do n.º 4 do artigo 712 do Código de Processo Civil.
Custas pela parte vencida a final.
Porto, 25 de Junho de 2007
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues

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[1] A Convenção de Bruxelas veio a sofrer alterações com os Protocolos de 1968 (regras de Visby) e de 1979, que não se encontram em vigor entre nós.
O regime de responsabilidade do transportador foi modificado pelas Regras de Hamburgo de 1978 que, todavia, não vigoram entre nós, nem na maioria dos países com importantes frotas mercantis.
[2] Escreve Mário Raposo, em Estudos sobre Arbitragem Comercial e Direito Marítimo, p. 145, que: “é um ponto assente que cabe ao transportador o ónus da prova dos factos exoneradores da sua responsabilidade presumida (art. 4, n.º 1 e 2, da Convenção).
[3] Princípios de Direito marítimo, II (Do Transporte Marítimo), p. 273.
[4] Contratos de Utilização do Navio, p. 148.
[5] Manual de Derecho de la Navegatión Marítima, 2.ª ed., p. 529.
[6] El Contrato de Transporte Marítimo de Mercancias: reglas de la Haya_Visby, Aranzadi Editorial, 2000, p. 370.
[7] Vejam-se, ainda, Rodolfo A. González _ Lebrero, Manual de Derecho de la Navegación, 4.ª ed., p. 438, Ediciones Depalma Buenos Aires, 2000; Ignacio Arroyo, Curso de derecho marítimo, p. 155, J. M. Bosch Editor, 2001; Alfonso Luís Calvo Caravaca e Javier Carrascosa González, Curso de Contratación Internacional, p. 399 e ss.
[8] Lembre-se que, de acordo com o Protocolo de Assinatura da Convenção de Bruxelas de 1924, “As Altas Partes Contratantes poderão pôr em vigor esta Convenção, seja dando-lhe força de lei, seja introduzindo na sua legislação nacional as regras adoptadas pela Convenção sob uma forma apropriada a esta legislação”.
[9] Presses Universitaires de Rennes, p. 124.
[10] La Faute du Transporteur, 2.ª ed., p. 78 e ss.
Na doutrina francesa, é fundamental a obra de René Rodière, Traité general de droit maritime. Évenements de mer, Dalloz, Paris, 1972, p. 332 e ss.
[11] Acompanhamos, inteiramente, o Prof. Dr. Manuel Januário da Costa Gomes, ao referir-se à parca atenção que, nas nossas Faculdades de Direito, tem sido dada à matéria marítima, apesar da sua enorme importância prática (Cfr. O Ensino do Direito Marítimo, O Soltar das Amarras do Direito da Navegação Marítima).
Sobre a disciplina do Direito Marítimo, especialmente, no que respeita ao contrato internacional de transporte marítimo de mercadorias, cfr., ainda, do mesmo Autor, Direito marítimo, Jurisprudência Seleccionada para as aulas práticas; Acontecimentos e relatório de mar, O Direito, Ano 139, 2007, I, p. 89 e ss.; Leis Marítimas; Mário Raposo, Estudos Sobre o Novo Direito Marítimo; Mário Júlio Almeida Costa, Direito e Justiça, volume IX, 1995, Tomo 1, p. 171 e ss; João Calvão da Silva, Estudos de Direito Comercial (Pareceres), p. 49 e ss.; Francisco Costeira da Rocha, O Contrato de Transporte de Mercadorias; Carlos Oliveira Coelho, Três Datas, Um Século de Direito Marítimo, Esboço de evolução do direito comercial marítimo no século XX, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume I, p. 629 e ss. Sobre os “acontecimentos de mar”, v., p. e., o Glossário marítimo-comercial da Sociedade de Geografia de Lisboa, publicado em 2003 (citado pelo Prof. Dr. Manuel Januário da Costa Gomes, no seu referido estudo publicado na revista O Direito).
[12] Como sabemos, no contrato de transporte de mercadorias por mar, encontra-se latente um conflito de interesses entre carregadores e transportadores.
[13] Sobre este tema da distribuição do ónus probandi e do iter probatório, v. Nuno Manuel Castello-Branco Bastos, Da Disciplina do Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Mar, p.283 e ss. Do mesmo Autor, Direito dos Transportes, p. 262 e ss.
[14] V., por exemplo, http://pt.wikipedia.org/wiki/Escala_de_Beaufort
[15] Dado o n.º 3 do art. 264 do CPC referir-se, não só aos factos complementares, mas também aos que sirvam para concretizar outros já alegados, parece que “devem inserir-se nesta última expressão os factos que melhor traduzam certas afirmações de cariz conclusivo, desde que tenham algum conteúdo fáctico, e bem assim aqueles que sirvam para clarificar determinadas afirmações imprecisas ou dubitativas” (António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I volume, 2.ª ed., p. 65).