Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1733/15.2T8STS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
CULPA GRAVE
GERENTE
Nº do Documento: RP201902211733/15.2T8STS-B.P1
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º164, FLS.206-221)
Área Temática: .
Sumário: I - A insolvência deve ser qualificada como culposa quando num curto espaço de tempo os trabalhadores da insolvente foram todos transferidos para outra sociedade do “grupo” que se dedica à mesma actividade e a totalidade dos bens da insolvente tiveram o mesmo destino, ainda que neste caso com emissão de uma factura de venda que não correspondeu ao recebimento pela insolvente de qualquer quantia ou preço.
II - Deve ser afectada por essa qualificação a pessoa que no momento da prática de parte desses factos era gerente da insolvente (não o era quando os outros foram praticados) e que em qualquer das alturas era gerente da sociedade para a qual foram transferidos os trabalhadores e os bens.
III - Não obsta a essa qualificação a circunstância de posteriormente, no âmbito da acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, a empresa adquirente ter acordado com a massa o pagamento de uma indemnização destinada a ressarcir a massa da perda dos bens.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2019:
Proc n.º 1.733/15.2T8STS-B.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
A administradora da insolvência de B…, Lda. apresentou parecer sobre a qualificação da insolvência sustentando o seu carácter culposo da insolvência e indicando como pessoas a afectar pela qualificação a devedora e os gerentes C…, D… e E….
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B] da matéria de direito:
Na parte que interessa para a apreciação do recurso, na decisão recorrida a insolvência foi qualificada como culposa com base na seguinte fundamentação:
«Dos factos provados o que salta à vista é a alienação, em Outubro de 2013, da globalidade dos elementos patrimoniais da empresa, a favor da sociedade F…, Lda., pelo valor facturado de 120.556,40€. Isto numa altura em que já não tinha trabalhadores, transferidos num dos dois meses anteriores para a mesma empresa.
Verificou-se, aqui, um esvaziamento completo da insolvente. Logicamente, sem bens nem trabalhadores não poderia gerar receitas. Ficou impossibilitada de pagar as dívidas. A alienação do activo a uma empresa terceira, que tem uma sócia comum à insolvente, constitui uma disposição dos bens em proveito de terceiro. O que preenche a hipótese da alínea d), do nº 2: Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
Não se diga contra esta conclusão que não houve proveito porque a adquirente, a F…, era também credora da insolvente. O proveito existiu porque a F… não teve que concorrer com os demais credores para satisfazer os seus créditos. Em especial com a Irmãos Peixoto, à data já credora por créditos já vencidos. Ora, se tivesse que vir ao processo de insolvência reclamar os seus créditos, a probabilidade de os satisfazer na medida em que foram satisfeitos seria, naturalmente, inferior. E, por isso, se entende que se verifica a previsão da alínea d).»
Para fundamentar a afectação do ora recorrente por essa qualificação da insolvência, escreveu-se: «Também D… será afectado. Pois, ele era o gerente da F…, a empresa que adquiriu o activo da insolvente. E foi gerente desta até Setembro de 2013. No mês anterior ao negócio. Está, por conseguinte, ligado directamente a este negócio
O recorrente discorda desta solução jurídica e defende que não estão provados factos para preencher a previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que não sendo ele mais gerente da insolvente não pode ser afectado, que não se provou o valor dos bens transferidos para a outra sociedade e, por fim, que a massa já foi indemnizada em virtude da transacção lavrada no apenso de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente.
Quid iuris?[1]
Com a declaração de insolvência, abre-se oficiosamente um incidente tendente à obrigatória qualificação da insolvência como culposa ou fortuita (artigos 185.º e 189.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março).
A insolvência pode ser qualificada como fortuita ou como culposa (artigo 185.º do CIRE). Uma vez que a lei apenas define os pressupostos da insolvência culposa, por exclusão de partes se não for culposa a insolvência é fortuita.
O artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estatui o seguinte:
«1- A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.»
De acordo com este preceito, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
São assim pressupostos desta qualificação da insolvência (i) uma conduta do devedor (ou dos seus administradores, de facto ou de direito), (ii) ocorrida nos três anos anteriores ao início do processo, (iii) que seja dolosa ou com culpa grave e (iv) tenha criado ou agravado a situação de insolvência.
Segundo Alexandre de Soveral Martins, in Um curso de direito da insolvência, 2016, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 404, “considera-se culposa a insolvência se a situação (de insolvência) foi «criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, de devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência» (artigo 186.º, 1). Assim, a lei exige que esteja em causa um comportamento de certos sujeitos (o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto), a existência de dolo ou culpa grave, uma relação causal entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência e, por fim, que o comportamento tenha lugar dentro de um certo lapso de tempo (nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência). A situação de insolvência pode ter sido criada sem que existisse culpa mas pode ter havido culpa no agravamento da situação de insolvência. Em ambos os casos a insolvência pode ser qualificada como culposa.”
A este propósito assinalou-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.10.2010, relatado por Cecília Agante, no processo n.º 243/09.1TJPRT-G.P1, in www.dgsi.pt, que “o que se qualifica é o comportamento do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, de modo a que se averigúe se existe, à luz da teoria da causalidade adequada, um nexo de causalidade entre os factos por si cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, e o nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor, estabelecido a título de dolo ou culpa grave. Dolo que, enquanto conhecimento e vontade de realização do facto em causa, pode revestir-se das modalidades de directo, necessário e eventual. Culpa, (stricto sensu) quando o autor prevê como possível a produção do resultado, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte da culpa consciente, já que na culpa inconsciente se enquadram as situações em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida. Estes os termos em que devem ser entendidas estas noções usadas pelo CIRE (artigo 186º, 1). Nada dispondo em particular sobre essa matéria, tais conceitos devem ser entendidos nos termos gerais do Direito. E, por isso, também repescada a tese da culpa em abstracto consagrada no Código Civil, apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, 2). A norma exige, no entanto, a culpa grave, traduzida em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, observam, contraposta à culpa leve, vertida na omissão da diligência normal, e à culpa levíssima, correspondente à omissão de cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes e escrupulosas observam».
O n.º 2 do artigo 186.º acrescenta que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham praticado algum dos factos descritos nas várias alíneas do preceito.
Por sua vez o n.º 3 do preceito estatui que se presume a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência ou a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.07.2009, relatado por Henrique Araújo, no processo n.º 725/06.7TYVNG-C.P1, in www.dgsi.pt, afirma-se a este respeito o seguinte:
«A generalidade da doutrina [o relator refere-se a Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, pág. 14; Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, pág. 175, 2ª edição; e Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Vol. II, pág. 963] considera que as várias alíneas do n.º 2 constituem presunções legais jure et jure, isto é, inilidíveis, conducentes à qualificação da insolvência como culposa. Apesar disso, e partindo do conceito de presunção legal desenhado no artigo 349º do Código Civil, inclinamo-nos mais para o entendimento de que essas alíneas integram factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa. No acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11.2008 [in DR, 2ª Série, n.º 9, de 14.01.2009], escreveu-se a este propósito: «… é duvidoso que na previsão do artigo 186º do CIRE se instituam verdadeiras presunções. Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal … de situações típicas de insolvência culposa». De todo o modo, sejam presunções ou factos-índice, o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa. Provada qualquer uma das situações enunciadas nas citadas alíneas, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. O n.º 3 do mesmo artigo apresenta, por seu turno, um conjunto de situações de presunção de culpa grave. Trata-se, contudo, de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária. A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres, se actuou com culpa grave. Com efeito, como nas hipóteses do n.º 3 já se não presume o nexo de causalidade de que a omissão dos deveres aí descritos determinou a situação de insolvência da empresa, ou que para ela contribuiu, agravando-a, além da prova desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram.
Maria do Rosário Epifânio, in Manual do Direito da Insolvência, 5.ª edição, pág. 131, escreve que “para auxiliar o intérprete, o art. 186.º … prevê dois conjuntos de presunções: o n.º 2 contém um elenco de presunções iuris et de iure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular; por seu turno, o n.º 3 prevê um elenco de presunções iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular. A opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior «eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências», para além disso favorece a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos.”
Também Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 2009, pág. 271, acentua que o que resulta do artigo 186.º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos administradores, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º nº 1 que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta. No mesmo sentido, Soveral Martins, loc. cit, pág. 422, afirma que «o art. 186.º, 3, permite no entanto perguntar se a presunção é apenas relativa à culpa grave ou se também é presumida a insolvência culposa. Perante o disposto no artigo 186.º, 1, parece-nos que as presunções previstas no n.º 3 seguinte apenas dizem respeito à actuação do devedor. Será, ainda, necessário provar que tal actuação com culpa grave (presumida) criou ou agravou a situação de insolvência». Na jurisprudência pronunciaram-se nesse sentido, entre outros os Acórdãos da Relação do Porto de 26.01.2010, proc. 110/08.6TBAND-D.C1, de 04.05.2010, proc. 427/07.TBAGD-G.C1, e de 07.07.2016, proc. 353/09.5TYVNG-E.P1, da Relação de Lisboa de 13.09.2007, proc. n.º 0731516, in www.dgsi.pt.
Igualmente no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/2012, de 08.12.2012, in www.tribunalconstitucional.pt, se afirma que «o legislador utilizou duas técnicas de previsão distintas, fazendo acompanhar uma estatuição genérica, com a natureza de cláusula geral (n.º 1), de regras específicas, atinentes a determinadas formas de comportamento ilícito dos administradores (alíneas a) a i) do n.º 2). Daqui resulta que a insolvência é culposa quando estão cumulativamente preenchidos os elementos da cláusula geral do n.º 1, ou quando, não sendo o devedor uma pessoa singular, os seus administradores tenham praticado algum ou alguns dos actos previstos nas várias alíneas do n.º 2. A violação de deveres que as previsões dessas regras incorporam acarreta sempre a qualificação como culposa (v. o corpo do n.º 2), sem que se admita a possibilidade de justificação ou de prova de factos desculpabilizantes. Para além disso, o n.º 3 do mesmo artigo estabelece uma presunção relativa de culpa grave, exigível, em alternativa ao dolo, nos termos do n.º 1».
Podemos pois assentar no seguinte: para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência.
Todavia, verificada uma das situações do n.º 2 do artigo 186.º presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa. Por isso, perante a presunção inilidível «quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário» (cf. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito da insolvência, 2011, Almedina, pág. 284) verificado algum dos factos elencados no n.º 2 do artigo 186.º o juiz terá que decidir «necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa».
Já se apenas estiver verificada uma das situações previstas no nº 3, para a insolvência ser declarada culposa é necessário que se demonstre que a actuação com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência, presumindo-se a culpa grave mas facultando-se ao insolvente a faculdade de ilidir essa presunção iuris tantum.
Este n.º 3 prevê não presunções (absolutas) de insolvência culposa, melhor dizendo, situações típicas de insolvência culposa, mas apenas presunções (relativas) de culpa grave na actuação, em função do que para a insolvência ser qualificada como culposa é necessário que estejam reunidos os demais pressupostos[2] do n.º 1 da norma, podendo o devedor impedir essa qualificação demonstrando que a falha cometida não se deveu a culpa grave.
A diferença de redacção entre o n.º 2 e o n.º 3 do artigo 186.º denuncia que o legislador teve a intenção clara de distinguir as consequências que associa às situações previstas em cada um dos números do preceito, pelo que qualquer raciocínio baseado na comparação entre as situações só pode ter acolhimento em sede de lei a fazer (contra esta leitura p. ex. o Acórdão da Relação de Coimbra de 22.05.2012, proc. 1053/10.9TJCBR-K.C1, in www.dgsi.pt)[3].
Na sentença recorrida a insolvência foi qualificada como culposa com fundamento, na parte que interessa, no preenchimento da previsão das alíneas d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas que gera a consequência dessa qualificação.
Conforme temos escrito por diversas vezes e aqui vamos repetir, embora o legislador tenha pretendido nas diversas alíneas do n.º 2 descrever hipóteses de facto distintas, essas previsões não são necessariamente exclusivas ou excludentes, nada obstando a que a mesma actuação possa preencher em simultâneo a previsão de mais de uma alínea.
Tal como assinalado no Acórdão da Relação de Coimbra de 28.05.2013, proc. 102/12.0TBFAG-B.C1, in www.dgsi.pt, na interpretação da alínea a) deve entender-se que, «a ocultação … deve abranger casos … em que o bem é vendido a um terceiro, podendo, inclusive, este revendê-lo, e assim sucessivamente. Tal alienação, retirando os bens da esfera jurídica do devedor, implica um descaminho que pode impedir, ou, pelo menos - o que é o bastante para satisfazer a ratio legis -, dificultar, o seu acesso e o seu accionamento por parte do credor. A lei não exige a ocultação total no sentido de se tornar impossível o seu acesso ou conhecimento, mas apenas parcial no sentido de vontade, concretizada, de subtrair o bem ao direito/conhecimento do credor e respectiva acção legal, pelo que, e precisamente por isso, não exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspecto da situação jurídica do bem. Aliás concomitantemente à ocultação a lei prevê o desaparecimento, o qual se revela um mais, no sentido da gravidade do descaminho….».
Já na interpretação da previsão da alínea d), entendemos que o proveito pessoal ou de terceiros compreende todas as situações em que os bens da sociedade insolvente são colocados à disposição do administrador ou de terceiros, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando independentemente disso é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio e sem qualquer retorno para a insolvente e esta fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos (conforme defendemos já no Acórdão de 07.12.2016, proc. n.º 262/15.9T8AMT-D.P1, in www.dgsi.pt; no mesmo sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2018, proc. n.º 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1 e da Relação do Porto de 13.06.2018, proc. n.º 3144/12.2TBPRD-C.P1, relatado pela aqui 1.ª Adjunta, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos, sabemos que em Agosto ou Setembro de 2013 os trabalhadores da insolvente passaram a trabalhar para a sociedade comercial F…, e em Outubro de 2013 a insolvente transferiu todos os seus activos para esta sociedade, a qual emitiu uma factura no montante de 120.556,40 € para dar suporte contabilístico à transferência mas não efectuou de facto qualquer pagamento à insolvente a título de preço dos bens que fez seus. Com esses actos, a insolvente ficou sem activo e sem trabalhadores.
A F…, Lda. e a insolvente têm um sócio em comum, a também sociedade G…, Lda., sendo que o gerente da F…, Lda., era e é o recorrente D…, o qual, foi igualmente gerente da insolvente entre o início de Junho e o fim de Setembro de 2013.
A F…, Lda. era fornecedora e cliente da Insolvente e vice-versa. A transferência do património da insolvente para a F…, Lda., visou anular o crédito desta sobre a insolvente. Esse património tinha um valor comercial não determinado mas inferior ao montante pelo qual foi facturado.
Estes actos consubstanciam a desactivação total da sociedade insolvente e a dissipação da totalidade do seu património em favor de outra sociedade, cujo capital social era titulado basicamente pela mesma sociedade que detinha a quase totalidade do capital social da insolvente, portanto, pelo mesmo universo de pessoas que detinham o capital social da insolvente e beneficiavam assim da transferência de património entre as empresas. Por outras palavras, os titulares do capital social da sociedade insolvente operaram na prática a dissolução da sociedade à margem das respectivas regras legais, dispondo conforme entenderam do património da insolvente que respondia perante os respectivos credores pela satisfação das dívidas da insolvente. E fizeram-no em seu próprio benefício direito, através de outra sociedade comercial que também detinham para exercer a mesma área de actividade, através do subterfúgio da emissão de uma factura de venda que não foi realizada e que não foi acompanhada do pagamento de qualquer preço.
Não se diga que não está demonstrado que nessa altura a insolvente já se encontrava em estado de insolvência. Se ficou sem qualquer trabalhador ao seu serviço e sem qualquer património e tinha, ao menos, o passivo que depois veio a ser reclamado e verificado nos autos, a sociedade ficou automática e instantaneamente em estado de insolvência por não ter mais quaisquer meios (nem património nem recursos humanos para o gerar no desenvolvimento de uma actividade social) para satisfazer as suas obrigações vencidas que a sentença de verificação e graduação de créditos evidencia.
Acresce que não se pode dizer que a utilização do património da sociedade para satisfação do crédito de um credor tenha sido ou pudesse ter sido um acto normal de gestão. Com efeito, é a própria sociedade beneficiária do património que na petição inicial do apenso da impugnação da resolução em benefício da massa insolvente vem dizer, referindo-se à insolvente como empresa do mesmo Grupo, que «no final do ano de 2008 que os sócios da B… decidiram medidas que tinham em vista a curto e médio prazo a cessação das compras e das vendas e a liquidação comercial da empresa», assim confessando que a transferência do património da insolvente para o seu foi o desenvolvimento desse plano de «liquidação comercial» arquitectado pelo «Grupo» e não uma busca desesperada para obter meios para continuar a desenvolver a actividade e satisfazer os créditos dos credores sociais.
Não se pode, igualmente, objectar com a circunstância de não se ter provado o valor exacto desse património (o qual tinha um valor comercial não determinado mas inferior ao montante da factura) e de se ter provado que a facturação do património «visou anular o crédito» da emitente da factura sobre a insolvente. Tratando-se de empresas do mesmo grupo a explorar a mesma área de actividade, nenhuma razão válida há para confiar na existência de um crédito real, correspondente a reais actos de comércio e/ou no seu valor. A forma como as sociedades formalizaram esta operação com a emissão de uma factura que titula uma venda que confessadamente não existiu, destrói toda a credibilidade dos envolvidos e verosimilhança da expressão contabilística das respectivas relações comerciais.
Não por acaso, aliás, no artigo 23.º da petição inicial da já mencionada acção de impugnação da resolução, a empresa adquirente do património alega que «a venda foi feita e teve como contrapartida a anulação do crédito da F… Lda. na contabilidade da Insolvente». É pois ela mesma que não consegue afirmar sequer qual era o valor do seu crédito sobre a insolvente e que se limita a invocar a operação contabilística de lançamento da factura, quando esta é confessadamente falsa e só podia fazer a compensação de um crédito que existisse realmente e cujo valor não fosse inferior ao do património obtido dessa forma falseada. Se cerca de dois meses antes, os bens permitiam aos trabalhadores da insolvente exercerem as suas funções laborais, não se tratava certamente de bens obsoletos e sem qualquer valor comercial. Não por acaso também, na referida acção a F… celebrou transacção obrigando-se a pagar à massa insolvente a indemnização de €10.000!
A nosso ver, portanto, os factos provados são suficientes para preencher quer a previsão da alínea a) quer a previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º e por isso justificam cabalmente a qualificação da insolvência como culposa. Pode mesmo dizer-se que na génese da previsão pelo artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas de situações típicas de insolvência culposa se encontram precisamente actuações deste jaez, delineadas pelos titulares do capital social da sociedade que se aproveitam da personalidade jurídica das sociedades que criam na mesma área de negócios para movimentarem a seu bel - prazer património entre elas, consoante a sua conveniência e em seu proveito exclusivo, redundando a final em prejuízo para os credores que decidiram não privilegiar, por vezes, admitimo-lo, com a expectativa ou mesmo a intenção de por essa via conseguirem resolver todos os problemas, mas actuando à margem das normas legais, através da falsificação de documentos de suporte a actos comerciais sem correspondência com a realidade.
Não obsta a isso a circunstância de posteriormente à prática dos actos, da declaração de insolvência e da resolução dos actos pela administradora de insolvência, ter sido celebrado um acordo entre a massa insolvente e a sociedade que se apoderou do património da insolvente no sentido de estes pagarem à massa um determinado valor e a massa se considerar ressarcida.
A propósito de um caso em que houve uma actuação dos administradores destinada a “reverter os efeitos” dos actos que tinham praticado sobre bens da insolvente e que eram objectivamente causadores da qualificação da insolvência dolosa, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.09.2017, proc. n.º 733/14.4TJPRT-C.P1.S1, in www.dgsi.pt, o seguinte:
«A situação de insolvência iminente pode constituir uma tentação para os devedores escamotearem o seu património. Por isso, é que a lei insolvencial encerra conceitos como situação económica difícil e insolvência iminente, entre outros, e pretende através da imposição aos devedores pré-insolventes de certas actuações, que salvaguardem a posição dos seus credores.
Em sede de qualificação da insolvência, importa analisar os actos e omissões do devedor: a sua actuação. Os actos que são decisivos para a qualificação da insolvência, como fortuita ou culposa, assentam em presunções ilidíveis umas, inilidíveis outras, mas sempre radicando em actuações volitivas, conscientes, deliberadas do devedor insolvente.
Um dos actos que no direito insolvencial, como no direito civil, revela acentuado desvalor jurídico e ético-negocial é a simulação – art. 240º do Código Civil – por implicar um fingimento, um deliberado conluio, um pacto doloso, tendo os pactuantes simuladores a intenção deliberada de enganar terceiros, no caso os credores.
Por tal, irreleva o “arrependimento”, se disso se pode falar. Olhar a actuação dos devedores sob o prisma do resultado final, mesmo que, por força da sua censurável actuação, não seja nefasto: ponderar o acto em si mesmo, deixando de apreciar e valorar a actuação dos insolventes, relevando apenas o resultado, levaria a considerar, que, não tendo havido prejuízo final para os credores, a insolvência deveria ser considerada fortuita, não querida; se os credores, porventura, tiverem sido prejudicados a insolvência deveria considerar-se culposa. Cremos que este critério é inaceitável.
Na ponderação de que o Direito não acolhe comportamentos antiéticos e lesivos da boa fé, tendo em conta os interesses que se jogam no contexto da insolvência, mormente, quando se trata de apreciar, em termos não penais a conduta dos devedores, o que interessa é olhar a sua actuação à luz das normas infringidas e dos valores que tutelam, sob pena de, casos como o que versamos, ficarem colocados no mesmo patamar de avaliação: o devedor que não alienou património, não fez doações a próximos e, honradamente, assumiu que deveria expor o seu património em benefício dos seus credores, e aquele que, fazendo ao invés, acabou por distratar ou revogar os negócios lesivos, seriam considerados da mesma maneira.
Na convicção de que a qualificação da insolvência visa punir ou não punir, civilmente, a actuação de quem no mundo dos negócios, ou da sua vida económica, se pauta por actuações que devem merecer a reprovação do direito, não se pode considerar que os recorridos actuaram de modo a não deverem sofrer a reprovação dos seus actos: as “sanções” previstas no art.189º do CIRE, inerentes à insolvência culposa em que, dolosamente, incorreram.»
Acrescentamos apenas que no caso concreto nem sequer se pode falar em acto voluntário de arrependimento porque a actuação da sociedade F… foi forçada pela resolução do acto em benefício da massa insolvente, e não é a circunstância de o valor a pagar para evitar os efeitos da resolução ter sido fixado por acordo que evita que tal traduza um reconhecimento de que esse acto gerou um prejuízo para a insolvente.
Por outro lado, a qualificação da insolvência como culposa tem essencialmente uma função punitiva dos comportamentos contrários ao normal funcionamento do mercado e ao devido respeito pelos interesses dos credores da insolvente[4]. O que se pretende reprimir para evitar são os prejuízos que essa actuação causa aos credores em particular e à economia e ao mercado em geral.
Porém, o dano não é nem a medida exacta dos efeitos da qualificação nem pressupostos inalienável da própria qualificação (como resulta das previsões, nomeadamente, das alíneas h) e i) do n.º 2 do artigo 186.º). Logo, também o eventual ressarcimento do dano em momento posterior à declaração da insolvência, forçado pelo accionamento de mecanismos jurídicos destinados a recuperar a situação que teria existido se os actos vedados pela lei não tivessem sido praticados, não pode evitar a qualificação resultante de actos praticados no período de três anos anteriores à declaração de insolvência.
A decisão de qualificar a insolvência como culposa, com fundamento na previsão do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, é assim inteiramente correcta e deve ser confirmada.
Questão diferente consiste em saber se o recorrente D… pode ser declarada afectada pela qualificação da insolvência quando se sabe que a transferência dos trabalhadores ocorreu quando ele era gerente da insolvente e gerente da empresa que passou a ter os trabalhadores ao seu serviço, mas quando foi feita a transferência do património da insolvente já não era gerente daquela, apenas era gerente desta. Por outras palavras, se o recorrente pode ser declarado afectado por actos praticados quando já não tinha a qualidade de administrador de direito (e não vem demonstrado que o fosse de facto apenas) da insolvente.
A alínea a) do n.º 2 do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelece que na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve «identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afectadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa.»
As redacções não conciliadas do artigo 186.º e do artigo 189.º, n.º 2, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aquele circunscrevendo os sujeitos da actuação susceptível de conduzir à qualificação da insolvência como dolosa aos administradores de direito ou de facto, este alargando as pessoas passíveis de serem afectadas pela qualificação aos técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas e acrescentando que essa indicação é meramente exemplificativa [“nomeadamente”] e que podem ainda ser afectadas outras pessoas[5], gera uma dificuldade interpretativa que suscita duas questões.
A primeira consiste em saber se pessoas que não sejam administradores de direito ou de facto da insolvente, nem os respectivos técnicos ou revisores oficiais de contas, podem mesmo ser afectadas pela qualificação da insolvência. Se a resposta a esta questão for positiva, caberá de seguida definir em que condições essas pessoas podem ser afectadas [leia-se: quais os pressupostos legais da sua afectação].
A resposta à primeira questão parece não motivar grandes dúvidas. Afinal é a norma legal que o afirma[6]. Assim o interpretou o Acórdão da Relação de Guimarães de 20.10.2016, proc. n.º 1257/13.2TJCBR-C.G1, in www.dgsi.pt, ao sustentar que a redacção do preceito não é taxativa e permite a afectação de outras pessoas para além dos administradores de facto ou de direito e dos técnicos ou revisores oficiais de contas, «desde que sobre elas se possa, também, formular um juízo de culpabilidade relativamente à qualificação da insolvência como culposa, juízo este que, necessariamente, se há-de aferir em concreto, face ao circunstancialismo de cada caso».
A nosso ver, o objecto da qualificação da insolvência culposa é a responsabilização das pessoas que podendo e devendo actuar de forma proba na administração do devedor, acabam por praticar actos que estão na origem, comprovada ou presumivelmente, da insolvência do devedor e dos prejuízos que isso acarreta para os credores e para a economia em geral.
Por isso, não parece contender com qualquer princípio jurídico que essa responsabilização se estenda não apenas aos administradores, de direito ou de facto (a quem incumpre o dever de actuação), mas também às pessoas que têm a obrigação legal de assegurar que determinadas práticas não ocorrem ou de acusar de imediato a sua ocorrência (os técnicos e os revisores oficiais de contas no que concerne à existência, fidelidade e rigor da contabilidade organizada) ou ainda àquelas que comparticipem com os administradores nas práticas proibidas para tutela dos direitos dos credores. Ao invés, essa responsabilidade encontra mesmo apoio na regra geral do instituto a responsabilidade civil consagrada no artigo 490.º do Código Civil segundo a qual «se forem vários os autores, instigadores ou auxiliares do acto ilícito, todos eles respondem pelos danos que hajam causado».
Daí que a questão essencial seja a segunda.
Tendo sido mantida a redacção do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, para poder ser qualificada como insolvência dolosa continua a ser necessário que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência. Se os administradores não tiverem actuado de modo a gerar essa consequência, a qualificação não tem lugar, mesmo que outras pessoas, designadamente os técnicos e revisores oficiais de contas, possam ter praticado actos que, se eles fossem os administradores de direito ou de facto da devedora, teriam justificado a qualificação da respectiva insolvência.
O primeiro pressuposto da responsabilização dos não administradores, rectius da afectação dos não administradores pela qualificação, é por isso a existência de uma actuação dos administradores que justifique (preencha os pressupostos legais) a qualificação da insolvência, seja por preenchimento da cláusula geral do n.º 1 do artigo 186.º (usando ou sem a presunção de culpa grave do n.º 3), seja por preenchimento das situações típicas de insolvência culposa estabelecidas no n.º 2 do mesmo preceito.
Todavia, não parece que isso seja suficiente.
Se para conduzir à qualificação da insolvência é necessário que os administradores tenham actuado com dolo ou culpa grave (demonstrada ou presumida com sucesso), os efeitos da qualificação não se poderão estender a terceiros não onerados com os deveres específicos de actuação inerentes à posição de administradores de um património alheio se não for possível, ao menos, afirmar que também eles actuaram com dolo ou culpa grave[7].
Esse dolo (directo, necessário ou eventual) ou culpa (negligência) grave não são porém genéricos, são específicos. O juízo de censura subjacente à afirmação desse grau de culpa prende-se com o conhecimento ou o dever de conhecimento da situação financeira em que se encontra a devedora e do contributo da actuação para a criação ou agravamento da situação.
O terceiro pode, por exemplo, ter actuado com a intenção directa de adquirir à devedora mercadoria a um preço que sabe ser muito inferior ao do mercado - alínea c) do n.º 2 do artigo 186.º -, mas parece seguro que ele não poderá ser afectado pela qualificação da insolvência se, ao contrário do administrador que realizou esse negócio em representação da devedora, não souber em que situação financeira a devedora se encontra e/ou que esse acto irá gerar uma situação de insolvência ou o seu agravamento. Ainda que tenha participado num acto objectivamente contrário aos interesses da devedora, com consciência e vontade de o realizar, o terceiro não pode ser afectado pela qualificação se desconhecia que a devedora se encontrava em situação de insolvência actual ou iminente.
O terceiro também não pode ser afectado apenas por ter sido contraparte na actuação dos administradores que conduz à qualificação. Mais que o seu envolvimento, é necessário que o terceiro tenha, com dolo ou culpa grave, comparticipado ou auxiliado o administrador na prática dos actos que conduzem à qualificação da insolvência. É esse contributo consciente para o processo causal que conduz à qualificação que justifica a afectação. Daí que seja necessário que o terceiro tenha conhecimento de que a actuação do administrador é contrária aos interesses da pessoa administrada e violadora dos deveres de administrador zeloso e criterioso e, com dolo ou com culpa grave, tenha decidido colaborar com essa actuação, tornando possível a concretização dos seus resultados.
São esses pressupostos que cabe averiguar se estão preenchidos pela actuação do recorrente.
A resposta parece clara a partir do momento em que parte dos factos censuráveis foram praticados ainda sob a gerência do recorrente e a parte restante foi praticada muito pouco tempo depois com uma sociedade na qual o recorrente era gerente ao mesmo tempo que era gerente da insolvente e continuou a ser depois disso daquela, havendo entre as sociedades uma sócia comum com uma participação social maioritária e uma relação de grupo.
Atenta a relação dos envolvidos e a proximidade temporal dos factos, podemos concluir que o recorrente sabia certamente da situação em que a insolvente (da qual fora gerente até cerca de um mês antes) se encontrava na data da emissão da factura. Atenta a relação entre as empresas, a F… e o recorrente não eram estranhos à vida da sociedade insolvente e aos actos praticados pelo seu novo gerente, sendo o acto em causa um negócio necessariamente praticado por acordo de ambos e em execução de uma intenção em cuja execução ambos decidiram participar (o que, como vimos, é confessado na petição inicial da acção de impugnação da resolução).
Nessa medida, podemos concluir que o recorrente comparticipou com dolo directo num acto que sabia ser contrário aos interesses da sociedade insolvente e dos respectivos credores, conhecendo a situação económico-financeira da sociedade e querendo, não obstante, obter para si e para a sociedade de que era gerente, sem o dispêndio de qualquer contrapartida, bens da sociedade que até pouco tempo antes tinha gerido.
Sendo assim, o recorrente deve ser afectada pela qualificação da insolvência como culposa, razão pela qual o recurso improcede quanto a esta questão.
Refira-se que como o recorrente não se insurge de forma específica contra qualquer das implicações dessa afectação, esses segmentos da decisão estão excluídos do objecto do recurso e não serão por isso apreciados.
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V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente.
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Porto, 21 de Fevereiro de 2019.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]
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[1] Na fundamentação jurídica que se vai expor, seguiremos de perto o que já escrevemos em vários Acórdãos, designadamente no Acórdão de 07-12-2016, proc. n.º 262/15.9T8AMT-D.P1, (citado nas alegações de recurso sem atenção à diferença factual que justifica a diferença de resultados finais) in www.dgsi.pt, e no Acórdão de 13-09-2018, proc. 189/13.9TBPNF-L.P2 e 189/13.9TBPNF-M.P1, inédito.
[2] Nuno Manuel Pinto Oliveira, in Responsabilidade civil dos administradores pela violação do dever de apresentação à insolvência, www.revistadedireitocomercial.com, 2018-04-05, 525, defende, com bons argumentos reconheça-se, que mais que a presunção de culpa grave as situações do n.º 3 encerram ainda a presunção de causalidade, pelo que não seria necessário demonstrar a relação de causalidade entre a actuação com culpa grave e a situação de insolvência ou o seu agravamento (nesse sentido também o recente Acórdão desta Relação de 23.04.2018, proc. n.º 523/15.7T8AMT-A.P1, in www.dgsi.pt).
[3] «São dois os tipos de presunções constantes do artigo 186.º No n.º 2 da norma citada prevêem-se presunções inilidíveis da qualificação culposa da insolvência. No n.º 3 prevêem-se presunções ilidíveis de culpa grave. Ali, a consequência, absoluta, determina o sentido da decisão; aqui a consequência, relativa, determina o preenchimento de um dos pressupostos da qualificação. Primeiro, as do n.º 2. Esta norma consagra um sistema de imputação semi-objectivo, definindo causas puramente objectivas e causas semi-objectivas da insolvência culposa, para os casos de insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular. Provados os factos pressupostos nas várias hipóteses normativas a insolvência tem-se, sempre, por culposa. Provados esses factos, não se admite prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil).» - Apud Rui Estrela de Oliveira, in Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência, Julgar, n.º 11, 2010, pág. 199 e seg.
[4] Como refere Coutinho de Abreu, in Direito das sociedades e direito da insolvência: interacções, em IV Congresso de direito da insolvência, Catarina Serra (coord.), Coimbra, 2017, pág. 192, a responsabilização pela insolvência culposa é «não somente ressarcitória, mas também punitiva».
[5] Nesse sentido Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, 2016, pág. 424.
[6] Para Luís Martins, in Processo de Insolvência Anotado e Comentado, pág. 48, «a culpa pela insolvência pode ser estendida a terceiros pela intervenção que tiveram junto do património do devedor, incluindo aqueles que cooperaram com o devedor em actos relacionados com a insolvência da empresa. As pessoas afectadas pela qualificação serão aquelas que directa ou indirectamente intervieram nos actos/negócios realizados pelo devedor que deram origem à situação de insolvência…».
[7] Soveral Martins, loc. cit., pág. 425, afirma com inteira propriedade que essa exigência deve ser feita aos terceiros «por maioria de razão».