Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4257/13.9TBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: COMPRA SOB ENCOMENDA
RESOLUÇÃO
DEVOLUÇÃO DO PREÇO
CULPA
Nº do Documento: RP201504274257/13.9TBMTS.P1
Data do Acordão: 04/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Uma vez que a finalidade da relação de liquidação emergente da resolução contratual é a de colocar as partes na situação em que se encontravam quando celebraram o contrato, a obrigação de restituição prevista no nº 1, do artigo 8º do decreto-lei nº 143/2001, ao invés do direito de indemnização e à semelhança do cumprimento contratual, não depende da existência de culpa do obrigado à restituição ou da causação de qualquer dano na esfera jurídica do consumidor credor da importância que entregou ao fornecedor.
II - A obrigação de devolução em dobro prevista no nº 2, do artigo 8º do decreto-lei nº 143/2001 tem carácter sancionatório da mora do obrigado à devolução, dependendo dos pressupostos gerais do nascimento da obrigação de indemnização, salvo no que respeita a demonstração da existência e extensão do dano, que são legalmente ficcionadas pela própria lei em montante igual ao da devolução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 4257/13.9TBMTS.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 4257/13.9TBMTS.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
1. Uma vez que a finalidade da relação de liquidação emergente da resolução contratual é a de colocar as partes na situação em que se encontravam quando celebraram o contrato, a obrigação de restituição prevista no nº 1, do artigo 8º do decreto-lei nº 143/2001, ao invés do direito de indemnização e à semelhança do cumprimento contratual, não depende da existência de culpa do obrigado à restituição ou da causação de qualquer dano na esfera jurídica do consumidor credor da importância que entregou ao fornecedor.
2. A obrigação de devolução em dobro prevista no nº 2, do artigo 8º do decreto-lei nº 143/2001 tem carácter sancionatório da mora do obrigado à devolução, dependendo dos pressupostos gerais do nascimento da obrigação de indemnização, salvo no que respeita a demonstração da existência e extensão do dano, que são legalmente ficcionadas pela própria lei em montante igual ao da devolução.
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório[1]
A 09 de Julho de 2013, no Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, com apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono, B… instaurou acção declarativa com processo experimental contra “C…, S.A.”, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 5.998,00, acrescida dos juros de mora vencidos, os quais, até à data da petição, liquida em € 374,01, bem como nos vincendos até integral pagamento.
Para fundamentar as suas pretensões, o autor alega que em 30 de Novembro de 2011 efectuou uma compra sob encomenda na loja on-line da ré, correspondente a dois televisores da marca Samsung, no valor total de € 5.998,00; em 10 de Dezembro de 2011 foi efectuada, pela ré, a entrega dos televisores na sua residência; o pagamento foi efectuado pelo autor através de cartão de crédito; acontece que o Autor, a 14 de Dezembro de 2012, decidiu exercer o seu direito de livre resolução, pelo que nessa mesma data enviou uma carta registada com aviso de recepção à ré, recepcionada na sede da mesma a 15 de Dezembro de 2011; nessa missiva, o autor solicitou ainda que lhe comunicassem como e quando pretendia a ré proceder à recolha dos televisores; contudo, o autor não obteve uma resposta rápida da parte da ré, tendo por diversas vezes interpelado a mesma por e-mail e telefone; só a 09 de Janeiro de 2012, por telefone, o autor foi autorizado pela ré a devolver os televisores ao balcão da loja da ré em … – Coimbra; a 08 de Fevereiro de 2012, sem que tivesse ainda sido reembolsado do montante relativo ao preço pago pelos televisores devolvidos, o autor enviou um e-mail à ré a solicitar uma justificação para o atraso; não obteve resposta, e a esse e-mail outros se seguiram, sempre com o propósito do autor, de saber a razão do atraso na devolução/reembolso; a ré apenas procedeu à devolução/reembolso do montante pago pelo autor a 16 de Março de 2012, mais de 90 dias após a resolução do contrato celebrado; em 26 de Setembro de 2012 o autor enviou uma carta à ré, a solicitar o reembolso do valor em falta (mais € 5.998,00), por incumprimento do prazo de 30 dias para reembolsar o autor pelo preço pago pelos televisores.
Efectuada a citação da ré, esta veio contestar alegando que no dia 06 de Janeiro de 2012 o autor contactou a “Linha de Apoio ao Cliente C…”, informando o funcionário que o atendeu de que havia procedido ao envio, no dia 14 de Dezembro de 2011, de uma carta registada com aviso de recepção para a sede da ré, tendo esta o objectivo de exigir a devolução dos dois artigos encomendados a 30 de Novembro e entregues a 10 de Dezembro, mais tendo informado que pretendia exercer o direito que a lei lhe faculta; o autor foi informado, nesse mesmo contacto telefónico, de que o pedido de devolução iria ser tratado com a maior brevidade possível; de acordo com os “Termos de Uso relativos às Devoluções”, o consumidor dispõe de um prazo de quinze dias para proceder à devolução da sua encomenda, devendo, para o efeito, dirigir-se a uma loja física da C… ou contactar a linha de apoio C… através do número ………; contudo, o autor optou por solicitar a devolução através de carta registada com aviso de recepção para a sede da ré; no dia 9 de Janeiro de 2012, na sequência de um e-mail enviado pelo próprio, a ré, através dos seus funcionários, entrou em contacto telefónico com o autor de forma a agendar o levantamento dos dois televisores logo no dia 10 de Janeiro, em hora marcada, possibilidade liminarmente recusada pelo autor, tendo esclarecido que os bens teriam de ser devolvidos até ao final daquele mesmo dia 9 de Janeiro; uma vez informado que naquela data não havia disponibilidade do carro bombeiro necessário ao transporte dos artigos em causa, o autor reiterou a sua intenção de entregar os televisores naquela data, tendo exigido deslocar-se, ele próprio, a uma loja C… para o efeito; não obstante tal situação consubstanciar um “desvirtuamento” dos procedimentos relativos às devoluções, a exigência do autor levou a que tivesse sido acordada a sua deslocação à loja C… Coimbra …, para devolver os dois televisores, tendo o próprio solicitado que a devolução do preço pago pelos mesmos fosse efectuada no seu cartão de crédito, através da C1…, isto, não obstante a indicação do NIB na sua carta de 14 de Dezembro de 2011 e a possibilidade, que lhe foi apresentada, da realização da devolução do montante pago pela loja C… Coimbra … aquando da entrega dos artigos; a entrega dos artigos foi concretizada pelo autor no dia 9 de Janeiro de 2012, tendo-se constatado que os dois televisores devolvidos ainda se encontravam selados, o que criou na ré a necessidade de acautelar a inexistência de qualquer tentativa de fraude, tendo em conta o meio de pagamento utilizado, o elevado valor dos artigos em causa e o facto de o autor ter aceite a encomenda sem reservas e, logo em seguida, ter exigido a respectiva devolução; concluída a análise da situação e confirmado o bom estado dos equipamentos devolvidos, a ré desenvolveu as medidas necessárias à concretização da devolução do montante pago, sendo que, uma vez tentada a mesma através da C1…, foi detectada a impossibilidade técnica por força do elevado valor em causa e do meio de pagamento utilizado; isto porque o cartão Mastercard titulado pelo Autor não permitiu a devolução do valor em causa, o que se continuou a verificar nos dias seguintes e que obrigou a que fosse aberto registo no Help Desk com a informação “devolução Mastercard gera erro ao tentar processar”; de forma a resolver a situação, os funcionários da ré sentiram necessidade de proceder à articulação com o Departamento Financeiro, de forma a alcançar um meio alternativo através do qual fosse permitida a devolução do valor pago pelo autor, sendo que tal devolução teve de ser validada pela D…, S.A. e comunicada à E…, S.A., diligências que se mostraram morosas e que levaram a que a devolução do valor de € 5.998,00 ao autor apenas tivesse sido possível a 15 de Março de 2012; na presente situação e não obstante o aparente preenchimento dos requisitos que, à partida, justificariam o exercício do direito que o autor visa agora reclamar, há que atender às circunstâncias do caso concreto e que estiveram na base da devolução do montante de € 5.998,00 para além dos trinta dias legalmente previstos; considera, face ao exposto, que a presente acção e o pedido formulado pelo autor consubstanciam um abuso de direito e uma tentativa de enriquecimento sem causa.
Após ter sido notificado para, querendo, responder, o autor apresentou resposta à contestação impugnando a matéria de excepção invocada pela ré e pronunciando-se pela sua total improcedência.
As partes foram notificadas para, querendo, oferecer as suas provas e ambas ofereceram as suas provas.
Fixou-se o valor da causa no montante de € 6.372,01 e proferiu-se saneador tabelar.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
A 03 de Novembro de 2014, foi proferida sentença que julgando procedente a acção condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 5.998,00, acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde 04 de Fevereiro de 2014 até efectivo e integral pagamento.
A 20 de Novembro de 2014, o autor veio requerer a rectificação do ano do termo inicial de contagem dos juros de mora, pretensão que foi deferida, devendo ler-se “2012” onde ficou escrito “2014”.
A 01 de Dezembro de 2014, “C…, S.A.”, inconformada com a sentença, interpôs recurso de apelação[2], terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. Conforme o disposto no n.º 2 do artigo 483.º do Código Cívil “só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”,
B. Ora, da lei não resulta a objetividade da obrigação de devolver em dobro prevista no n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/2001, de 26 de abril, com as alterações que lhe foram introduzidas posteriormente, o que implica que a mesma seja integrada no regime geral previsto no Código Civil no que respeita à obrigação de indemnizar,
C. Assim, a Recorrente só estaria obrigada a devolver em dobro o montante pago pelo Autor/Recorrido, caso a ultrapassagem do prazo legalmente previsto no n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/2001, de 26 de abril, com as alterações que lhe foram introduzidas posteriormente, tivesse resultado de culpa sua, a qual terá de ser apreciada nos termos do artigo 487.º do Código Civil,
D. Prevendo o do n.º 1 do artigo 790.º do Código Civil que a obrigação se extingue quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor, e o o n.º 1 do artigo 792.º que “se a impossibilidade for temporária o devedor não responde pela mora no cumprimento”,
E. “A impossibilidade a que se refere os arts. 790º e segts., é aquela que resulta de uma perturbação do programa contratual que atinge directamente, ou a capacidade de prestar do devedor, ou o objecto da prestação em si mesmo, ou o processo de prestação, isto é, a actividade ou conduta do devedor que permitiria satisfazer o interesse do credor e cumprir a obrigação (Baptista Machado, RLJ, 116.º-226)”, sendo que “todas as causas geradoras da impossibilidade objectiva da prestação debitória, que não sejam imputáveis ao devedor, originam a extinção da obrigação”, in anotações ao artigo 790.º, “Código Civil Anotado, 11.ª Edição Refundida e Actualizada”, de Abílio Neto,
F. O que tudo evidencia que só pode ser responsabilizado o devedor que culposamente faltar ao cumprimento da obrigação, o que jamais se pode considerar ter acontecido in casu,
G. Pois, a ultrapassagem do prazo concretamente verificada deveu-se, tão só e apenas, às dificuldades acrescidas causadas pela atuação do Autor/Recorrido e à impossibilidade técnica com que se depararam os funcionários da Recorrente ao tentar proceder à devolução do montante de € 5.998,00 e que foi dada como provada na douta sentença de que se recorre,
H. Impossibilidade técnica que, para além de imprevisível e totalmente alheia à vontade e à atuação da Recorrente, exigiu o desenvolvimento de uma série de diligências complementares para que fosse alcançada a sua resolução,
I. O Tribunal a quo entra em contradição ao julgar como provados os factos descriminados nos pontos 1.24, 1.25, 1.26, 1.27, 1.28, 1.29 e 1.30 da douta sentença, nomeadamente:
a) - o facto dos televisores devolvidos se encontrarem selados é anormal e criou na Ré/Recorrente a necessidade de acautelar a inexistência de tentativa de fraude,
b) - confirmado o bom estado dos equipamentos devolvidos, a Ré/Recorrente desenvolveu as medidas necessárias à concretização da devolução do montante pago pelo Autor/Recorrido, no valor total de € 5.998,00,
c) - uma vez tentada a devolução para o cartão Mastercard, através da C1…, os funcionários da Ré/Recorrente depararam-se com uma impossibilidade técnica de o fazer, por força do elevado valor em causa e meio de pagamento utilizado,
d) - impossibilidade que continuou a verificar-se nos dias seguintes e obrigou a que fosse aberto registo no Help Desk com o número …-…..,
e) - necessidade de proceder à articulação com o Departamento Financeiro,
f) - devolução teve de ser validada pela D…, S.A., entidade gestora do cartão Mastercard utilizado para pagamento dos bens encomendados no dia 30 de novembro de 2011, e comunicada à E…, S.A.,
g) - no dia 14 de fevereiro de 2012 foi enviado e-mail ao Autor/Recorrido em que se informou que a devolução ainda não se encontrava realizada, mas que já tinham sido tomadas as devidas diligências para que a situação fosse resolvida com brevidade, e desconsiderar a existência de uma causa justificativa para o atraso verificado na devolução, a qual não poderá ser imputável à Recorrente,
J. Sendo evidente o incorreto julgamento dos factos discriminados como não provados nos pontos 2.2, 2.3 e 2.4 da sentença e que, atendendo aos factos descriminados como provados, à prova documental junta com a Contestação e a prova testemunhal produzida e gravada durante a realização de audiência de julgamento, teriam obrigatoriamente de resultar provados,
K. Pois, relativamente ao facto constante no ponto 2.2 dos factos não provados, bastaria que o Tribunal a quo tivesse atendido, como lhe competia, ao teor do documento junto com a Contestação da Ré/Recorrente como doc. n.º 2 (que em momento algum foi impugnado) para que o julgasse como provado, isto porque, trata-se de um e-mail enviado, no dia 14 de janeiro de 2012, pelas 9:48, pela funcionária F…, da Direção de Apoio a Clientes e Lojas da Recorrente, ao funcionário G…, e no qual se pode ler “(…) garantimos ao cliente que iríamos proceder a recolha no dia seguinte, contudo o mesmo recusou e foi a loja de … devolver o artigo mas que pretendia a devolução de valor pelo online”, negrito e sublinhado nosso,
L. Pretensão, esta, que foi confirmada pelo depoimento prestado pela testemunha G… na audiência de julgamento (gravação 00.09.00 a 00.49.01), que, apesar de nunca ter tido qualquer contacto direto com o Autor/Recorrido, não pode deixar de ter um conhecimento privilegiado de toda a situação pelas funções que exerce como responsável pelas operações da loja online da Recorrente desde o ano 2000, sendo a pessoa mais adequada para, de forma precisa e coerente, descrever ao Tribunal a quo todas as etapas verificadas relativamente à encomenda n.º 1165401, para além de ser o destinatário do referido e-mail,
M. Motivo pelo qual, não poderia deixar de ter conhecimento da exigência do Autor/Recorrido em receber a devolução através da C1…, bem como da possibilidade apresentada na loja de C… de Coimbra …, aquando da entrega dos televisores, em se proceder à devolução imediata do valor correspondente aos mesmos e que sempre teria de resultar provada, ao contrário do que efetivamente foi feito,
N. Estranhando-se, a este respeito, o afirmado pelo Autor/Recorrido na audiência de julgamento (gravação 00.00.01 a 00.08.37), quando refere que, no dia 09 de janeiro de 2012, a loja de Coimbra … não tinha o valor de € 6.000,00 em caixa,
O. Impondo-se questionar como é que Autor/Recorrido tinha conhecimento do montante existente em caixa no dia da devolução dos televisores, se não tivesse sido tentada a devolução naquela data? E por que razão não referiu ele a possibilidade de, em caso de insuficiência de valor, se recorrer à caixa das outras lojas do Grupo H… existentes no mesmo local?
P. Mostrando-se difícil de perceber, também, a razão pela qual o Tribunal a quo julga como provada a existência da impossibilidade técnica, a necessidade de articulação com o Departamento Financeiro, a abertura do registo no Help Desk, a validação pela D…, bem como a necessidade de comunicação à E…, sem ter dado como provadas as datas que constam nos mesmos documentos onde constam as referidas diligências, e que não podem deixar de evidenciar que as mesmas se mostraram morosas, não tendo sido permitida a devolução do valor de € 5.998,00 numa data anterior a 15 de março de 2012,
Q. Pois, conforme resulta do documento junto com a Contestação da Ré/Recorrente como doc. n.º 3, a falta de autorização que obrigou a que fosse aberto registo no Help Desk com o número …-….., com a informação “devolução Mastercard gera erro ao tentar processar” – facto dado como provado no ponto 1.27 na douta sentença - ainda se verificava no dia 14 de fevereiro de 2014 (data do e-mail enviado ao Autor/Recorrido) e no dia 01 de março de 2012 (data dos detalhes do incidente …-…..),
R. Tendo os funcionários da Ré sentido necessidade de proceder à articulação com o Departamento Financeiro para resolução do erro verificado - facto dado como provado no ponto 1.28 na sentença de que se recorre – sendo que, a devolução teve de ser validada pela D…, S.A. e comunicada à E…, S.A. - facto dado como provado no ponto 1.29,
S. Demonstrando-se, ainda, pelo Print Screen junto com a Contestação da Ré/Recorrente como doc. n.º 3 que o erro relacionado com a transação ainda se verificava, pelo menos, entre os dias 03 e 12 de março de 2012,
T. O que claramente evidencia que a impossibilidade de concretização da devolução do valor devido ao Autor/Recorrido se manteve até, pelo menos, 12 de março de 2012, o que se percebe face às várias diligências que tiveram de ser desenvolvidas e que implicaram a intervenção de entidades terceiras,
U. E, devidamente analisado pelo Tribunal a quo, deveria ter resultado na prova do facto que incorretamente foi descriminado como não provado no ponto 2.4 da douta sentença de que se recorre,
V. Pois, conforme é do conhecimento de qualquer homem médio, as diversas diligências efetivamente desenvolvidas pela Recorrente e dadas como provadas são inevitavelmente morosas e foram totalmente alheias à sua vontade e atuação,
W. Devendo afastar-se, por isso, a existência de qualquer culpa por parte da Sociedade Recorrente no que à ultrapassagem do prazo para concretização da devolução diz respeito, até porque, nenhum benefício obteria com tal situação.
X. Para além da impossibilidade técnica verificada e das diligências necessárias à sua resolução, sempre importará atender, ainda, à atuação evidenciada pelo Autor/Recorrido desde o inicio da relação contratual e que levou ao desenvolvimento, por parte da Recorrente, de uma série de ações excecionais e complementares às tidas como necessárias em situações semelhantes, prejudicando, assim, o tratamento mais adequado e célere da situação,
Y. Pois, o Autor/Recorrido:
- resolveu exercer o seu direito de livre resolução de uma forma diferente da prevista nos “Termos de Uso relativos às Devoluções”, acessíveis através do endereço eletrónico www.C....pt e dados como provados no ponto 1.18 da douta sentença,
- enviou carta registada com aviso de receção para uma morada diferente da constante na fatura relativa aos artigos encomendados e entregue juntamente com os mesmos, - alegou fundamentos para a desejada resolução que bem sabia não corresponderem à verdade,
- exigiu entregar os equipamentos numa loja C…, o que fez no dia 09 de janeiro de 2012, apesar da disponibilidade demonstrada pela Recorrente em proceder ao levantamento dos mesmos logo no dia seguinte - conforme resultou provado no ponto 1.21 da douta sentença -, o que consubstanciou um “desvirtuamento” dos procedimentos relativos às devoluções dos artigos adquiridos através da C1… e implicou diligências complementares, nomeadamente para confirmação do estado dos bens devolvidos,
- entregou os bens ainda selados, o que, atento o valor dos bens e ao meio de pagamento utilizado, obrigou à adoção, por parte da Recorrente, de medidas excecionais, de forma a acautelar a inexistência de tentativa de fraude, conforme resultou provado no ponto 1.24 da douta sentença,
- indicou, na carta através da qual exerceu o direito de livre resolução, a possibilidade da devolução ser efetuada através de transferência bancária ou qualquer outro meio de pagamento remetido para o seu domicilio, mas posteriormente, aquando do contacto telefónico efetuado no dia 09 de janeiro de 2012, solicitou que a devolução fosse efetuada através da C1… para o seu Cartão Mastercard, conforme se encontra claramente indicado no documento junto com a Contestação como doc. n.º 2,
- exigiu o pagamento do valor de € 5.998,00 a título de indemnização, acrescido de juros, por carta enviada à Recorrente num envelope pertencente aos Juízos Cíveis de Coimbra - com referência a um processo totalmente alheio ao caso em análise -, o que fez já passados seis meses e dez dias da realização da devolução para o seu Cartão Mastercard (cfr. doc. n.º 7 junto com a Petição Inicial),
Z. O que devidamente ponderado, evidencia toda uma estratégia moldada de forma a obter um determinado resultado: receber o que pagou em dobro,
AA. Não se podendo deixar de considerar, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, a existência de um claro abuso de direito por parte do Autor/Recorrido, pois o legislador, ao criar o direito de livre resolução no Decreto-Lei n.º 143/2001, de 26 de abril, não pretendeu abrir portas ao consumidor para, de forma infundada ou abusiva, enriquecer às custas do fornecedor,
BB. Defendendo a doutrina relativamente ao direito de livre resolução, nomeadamente Romano Martinez, in “Da Cessação do Contrato”, 2.ª Edição, 2006, pág. 161, que “(…) apesar de não carecer de uma justificação, não pode o direito ser exercido em manifesto abuso, contrariando a directiz do art. 334.º do CC, nem em violação da boa fé, como prescreve o n.º 2 do art. 762.º do CC”,
CC. O Autor/Recorrido pretendeu beneficiar de uma situação que, conforme seu conhecimento, foi gerada pela sua própria conduta e se deveu a uma circunstância técnica totalmente excecional e alheia à vontade da Ré,
DD. Resultando das anotações ao artigo 334.º do “Código Civil Anotado, 11.ª Edição Refundida e Actualizada”, de Abílio Neto que “o abuso de direito equivale à falta de direito, gerando as mesmas consequências jurídicas que se produzam quando uma pessoa pratica um acto que não tem o direito de realizar”,
EE. “O exercício de um direito (de um qualquer direito) deve ser excluído no caso do titular ter protelado, contra a boa fé, esse exercício, que se traduziria, ao caso e ao resto, num «venire contra factum proprium»”,
FF. “I – O instituto mais claro de abuso de direito, a que alude o art. 334.º do Código Civil, é a chamada conduta contraditória («venire contra factum proprium») em combinação com o princípio da tutela da confiança, mas existem duas figuras próximas: a renúncia e a «neutralização do direito». II – Para que a «neutralização do direito» se verifique é necessária a combinação das seguintes circunstâncias: o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer; com base nesse decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido.”,
GG. “A boa fé exigida pelo n.º 2 do artigo 762.º do Cód. Civil, mo cumprimento dos contratos, traduz-se no dever de agir segundo um comportamento de lealdade e correcção que visa contribuir para a realização dos interesses legítimos que as partes pretendem obter com a celebração do contrato. (…) A boa fé, enquanto regra de conduta (objectiva) vai projectar-se na situação jurídica das pessoas. Caso seja acatada, estaremos face a uma situação de boa fé (subjectiva); no inverso há má fé (…). Está de má fé aquele que age com fito, directo ou necessário, de lesar os interesses de outra pessoa.”,
HH. Boa fé que, efetivamente, se considera não existir no caso concreto, o que não poderá deixar de ser devidamente valorado no julgamento da presente causa,
II. Importando reiterar que a Recorrente cumpriu escrupulosamente com as obrigações a que estava vinculada, não lhe podendo ser assacada qualquer responsabilidade no que concerne ao incumprimento do prazo legalmente previsto para a concretização da devolução dos valores pagos pelo Autor/Recorrido,
JJ. Pois, atendendo às concretas circunstâncias verificadas, in casu, jamais se poderá concluir pela omissão da diligência que à Recorrente era exigível,
KK. Pelo que, se impõe a modificação da douta sentença proferida em primeira instância, absolvendo-se a Recorrente de qualquer pedido.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações[3] (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da reapreciação da decisão da matéria de facto contida nos factos não provados sob os nºs 2.2, 2.3 e 2.4 dos fundamentos de facto da sentença recorrida;
2.2 Da não demonstração de culpa da ré no atraso na devolução da prestação efectuada pelo autor;
2.3 Do abuso do direito por parte do autor no exercício do direito a exigir o dobro do que prestou à ré com fundamento no atraso desta na restituição da prestação que recebeu.
3. Fundamentos
3.1 Da reapreciação da decisão da matéria de facto contida nos factos não provados sob os nºs 2.2, 2.3 e 2.4 dos fundamentos de facto da sentença recorrida
A recorrente requer a reapreciação da factualidade não provada nos pontos 2.2 a 2.4 dos factos não provados, pedindo que toda essa factualidade não provada seja considerada provada.
Para sustentar a sua pretensão a recorrente alega que atenta a factualidade dada como provada em 1.24 a 1.30 dos fundamentos de facto da sentença recorrida, a prova documental por si oferecida com a contestação e que não foi impugnada e o depoimento da testemunha G…, a aludida factualidade não podia deixar de se considerar como provada.
Uma vez que se mostram observados os ónus que incidem sobre o impugnante da decisão da matéria de facto, cumpre reapreciar essa decisão nos aludidos segmentos.
Os pontos da decisão da matéria de facto impugnados pela recorrente têm o seguinte conteúdo:
- “O Autor exigiu que a devolução do preço pago pelos dois televisores fosse efectuada no seu cartão Mastercard através da C1…” (ponto 2.2 dos fundamentos de facto da sentença recorrida e que inclui a matéria que foi alegada na parte final do artigo 22º da contestação);
- “Foi apresentada ao Autor a possibilidade de realização do montante pago pelos televisores directamente pela loja C… Coimbra …, aquando da entrega dos artigos naquele local” (ponto 2.3 dos fundamentos de facto da sentença recorrida e que inclui a matéria que foi alegada na segunda parte do artigo 23º da contestação);
- “As diligências referidas em 1.26 a 1.29 revelaram-se morosas e levaram a que a devolução do valor de € 5.998,00 ao Autor apenas tivesse sido possível a 15 de Março de 2012” (ponto 2.4 dos fundamentos de facto da sentença recorrida e que inclui a matéria que foi alegada no artigo 35º da contestação).
O tribunal a quo motivou a sua decisão da matéria de facto, nos termos que seguem:
A convicção do Tribunal, relativamente à factualidade considerada como provada, alicerçou-se na análise das posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados, no teor dos documentos juntos aos autos e no depoimento da testemunha inquirida.
Desde logo, no que concerne à factualidade contida nos pontos 1.1., 1.2., 1.3., 1.4., 1.6., 1.7., 1.8. e 1.9., verifica-se que a mesma está assente entre as partes, porquanto constitui matéria alegada pelo Autor que não sofreu impugnação por parte da Ré, sendo certo que a factualidade contida nos pontos 1.4., 1.6. e 1.9. encontra ainda confirmação nos documentos juntos, respectivamente, a fls. 11 a 13 (carta do Autor na qual comunica à Ré a sua decisão de proceder à “resolução de compra online”), 14 (declaração que confirma a entrega dos artigos devolvidos pelo Autor na loja da Ré em …), e 15 a 17 (carta do Autor a interpelar a Ré para o pagamento da indemnização prevista no “DL 82/2008 Art. 8º 2”).
Relativamente à demais matéria considerada como provada, foi desde logo valorado o teor dos documentos juntos aos autos a fls. 43 a 47 (registo dos contactos estabelecidos entre o Autor e a Ré e respectivo teor) e 48 a 49 (documento comprovativo das dificuldades surgidas na tentativa de devolução do valor pago pelo autor através do cartão Mastercard).
E foi também relevante o depoimento da testemunha G… (responsável pelo departamento de encomendas on-line da Ré), depoimento esse devidamente ponderado no confronto com o teor dos documentos acima mencionados, atendendo a que o mesmo nunca contactou directamente com o Autor, resultando o conhecimento que tem dos factos em discussão da análise dos registos na posse da Ré. Pelo mesmo foi relatado todo o processo desencadeado pela encomenda efectuada pelo Autor, relato esse que, no essencial, encontrou correspondência nos documentos acima mencionados. No entanto, relativamente à proposta que alegadamente terá sido efectuada ao Autor aquando da devolução dos artigos na loja da Ré de …, proposta essa de reembolso imediato do preço pago, não logrou o mesmo convencer o tribunal, desde logo porque não presenciou nem autorizou tal proposta, a qual também não encontra confirmação nos documentos juntos aos autos. Também quanto à morosidade das diligências encetadas tendo em vista o reembolso do preço pago pelo Autor, a verdade é que, apesar de ter descrito tais diligências, não indicou as datas em que foram realizadas nem quantificou o tempo que intermediou entre as mesmas e os respectivos resultados, por forma a permitir a conclusão de que a Ré efectivamente necessitou de ultrapassar o prazo de que dispunha para reembolsar o Autor.
Assim sendo, passando agora para a factualidade considerada como não provada, cumpre desde logo referir que, relativamente à elencada em 2.3. e 2.4. a prova produzida foi de todo insuficiente para permitir solução contrária.
Já quanto à matéria elencada em 2.1., a mesma resultou contrariada pela prova produzida e, quanto à contida em 2.2., não foi produzida qualquer prova que a confirmasse.
Relativamente às declarações de parte do Autor, as mesmas não assumiram qualquer relevo, porquanto o mesmo se limitou a relatar factos não impugnados pela Ré.
Procedeu-se à audição da prova pessoal produzida em audiência, constituída por declarações de parte do autor e por um depoimento testemunhal prestado por G…, empregado da ré desde o ano 2000 e responsável pelas operações no sector de vendas online, bem como ao exame da prova documental junta aos autos de folhas 9 a 17 e 43 a 53 e, tudo sopesado, a nossa convicção probatória coincide com a do tribunal a quo.
Detalhemos as nossas razões, na parte em que não se esgotam nas que foram enunciadas na motivação do tribunal a quo e que se subscrevem e ainda para tomar posição sobre os argumentos probatórios invocados pela recorrente para firmar o sucesso da sua pretensão recursória.
Assim, relativamente aos factos não provados em 2.2 e 2.3, a nossa convicção probatória derivou, por um lado, da afirmação da testemunha G… de que a C…, por princípio, procedia à devolução do preço pago no caso de “anulação” de encomenda, pela mesma forma por que havia sido efectuado o pagamento.
A referência desta testemunha de que teria recebido a informação que a loja onde foram entregues os equipamentos adquiridos se teria disponibilizado para proceder à devolução logo em dinheiro, não merece credibilidade por não identificar a fonte dessa informação e, por essa mesma razão, também não merece credibilidade a menção à alegada exigência por parte do autor de que a devolução do preço pago se processasse “online” constante do documento nº 2, junto a folhas 46. Atente-se que este documento é sui generis, na medida em que verdadeiramente é um depoimento por escrito, sem observância das formalidades legais, e ainda por cima indirecto.
Repare-se que o autor, nas declarações que prestou, referiu que aquando da entrega dos equipamentos lhe foi dito que a devolução do preço pago já tinha sido efectuada, o que se coaduna com a menção constante do documento nº 3, junto a folhas 47, onde se refere “Relativamente à questão exposta, lamentamos a informação prestada anteriormente. Após verificação interna, temos indicação que efectivamente a devolução de valores relativa à encomenda ……. ainda não se encontra realizada.
No que respeita o facto não provado em 2.4 deve começar por salientar-se que é eminentemente conclusivo e que, em vez de se aludir à morosidade das diligências e à possibilidade da devolução apenas se processar a 15 de Março de 2012, melhor seria que se tivessem alegado concretamente as diligências alegadamente efectuadas, situando-as de forma precisa no tempo e identificando sem margem para dúvidas as razões concretas para a demora verificada. Atente-se que a própria documentação oferecida pela recorrente não é inequívoca quanto a esta matéria, já que no documento nº 3, junto a folhas 47, se refere que o erro na devolução via “Mastercard” pode derivar ou da ultrapassagem do prazo para a devolução ou da circunstância do valor da devolução exceder o valor facturado.
Ao invés do que afirma a recorrente, da factualidade dada como provada nos pontos 1.24 a 1.30 dos fundamentos de facto da sentença recorrida não decorre, necessariamente, que se deva ter por provada a matéria vertida no ponto 2.4 dos factos não provados da mesma sentença, pois as diligências aí aludidas não estão situadas temporalmente. Por outro lado, resulta da documentação oferecida pela recorrente que logo a 14 de Fevereiro de 2012 foi aberto registo no Help Desk (veja-se folhas 47), não resultando da documentação oferecida pela recorrente a data em que foi estabelecido o contacto com a D…, nem se colhendo da mesma qualquer justificação para que o incidente registado no Help Desk apenas tenha sido encerrado a 01 de Março de 2012 (documento junto a folhas 49).
Assim, pelas razões que precedem, também esta matéria não podia deixar de receber, como recebeu, resposta negativa.
Face ao exposto, improcede integralmente a reapreciação da decisão da matéria de facto requerida pela recorrente.
3.2 Fundamentos de facto exarados na decisão sob censura[4] e que se mantêm face à improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto e à inexistência de fundamento legal para a sua oficiosa alteração
3.2.1 Factos provados
3.2.1.1
A 30 de Novembro de 2011, o autor efectuou uma compra sob a encomenda com o n.º ……., na loja on-line da ré, em http://www.C....pt, correspondente a dois televisores da marca Samsung, modelo 3D LED 55' UE55D8000, no valor total de € 5.998,00 (artigo 1º da petição inicial).
3.2.1.2
Em 10 Dezembro de 2011 foi efectuada pela ré a entrega dos televisores na residência do autor (artigo 2º da petição inicial).
3.2.1.3
A compra efectuada pelo autor foi paga através de cartão de crédito da Mastercard (artigo 3º da petição inicial).
3.2.1.4
O autor, a 14 de Dezembro de 2011, enviou uma carta registada com aviso de recepção à ré, junta aos autos por cópia a fls. 11 a 13, recepcionada na sede da ré a 15.12.2011, da qual consta, designadamente:
Assunto: Resolução de compra on-line, encomenda nº …….
Em cumprimento do art. 6.º do Decreto-Lei n.º 143/2001 venho comunicar a minha inequívoca intenção de devolver a encomenda nº …… de 2011-11-30, entregue em 2011-12-10 e da qual não entregou a C… qualquer factura.
(…)
Devem comunicar atempadamente quando e como pretendem fazer a recolha dos televisores, nomeadamente identificando as pessoas ou empresa que o fará, atendendo à cautela que artigos deste valor exigem (…).
De acordo com os termos da lei, deverão realizar o reembolso, no total de 5.998,00€ até 30 dias passados da corrente data (até 2012-01-13). Poderão remeter qualquer meio de pagamento para o meu domicílio, ou efectuar transferências bancárias para a conta NIB ………………….” (artigos 4º a 6º da petição inicial).
3.2.1.5
Não obteve o autor uma resposta da parte da ré à carta identificada em 3.2.1.4, tendo interpelado a ré por telefone, no dia 6 de Janeiro de 2012 e por e-mail no dia 9 de Janeiro de 2012 (primeira parte do artigo 9º da petição inicial).
3.2.1.6
A 9 de Janeiro de 2012, por telefone, foi o autor autorizado pela ré a devolver os televisores ao balcão da loja da ré, em … – Coimbra (segunda parte do artigo 9º da petição inicial).
3.2.1.7
A 8 de Fevereiro de 2012, e sem que tenha ainda sido reembolsado do montante relativo ao preço pago pelos televisores devolvidos, o autor enviou um email à ré a solicitar uma justificação para o atraso (artigo 10º da petição inicial).
3.2.1.8
A ré procedeu à devolução/reembolso do montante pago pelo autor (€ 5.998,00) em 16 de Março de 2012 (artigo 12º da petição inicial).
3.2.1.9
Em 26 de Setembro de 2012, o autor enviou uma carta à ré, junta por cópia aos autos a fls. 15 a 17, da qual consta, nomeadamente:
ASSUNTO: Indemnização DL 82/2008 Art 8º 2
(…)
Pelo exposto (…) solicita-se o pagamento de 5998 EUR a título de indemnização prevista no Artigo 8º.” (artigo 14º da petição inicial).
3.2.1.10
Na encomenda identificada em 3.2.1.1. foram registados pelo cliente, ora autor, os seguintes dados: B…, …, …. – …, com um contacto telefónico (artigo 3º da contestação).
3.2.1.11
Atenta a necessidade de confirmar os dados registados, nomeadamente a morada para entrega dos bens e a titularidade do cartão Mastercard indicado como meio de pagamento, a ré remeteu ao autor, no dia 2 de Dezembro de 2011, um e-mail para validar esses mesmos dados (artigo 4º da contestação).
3.2.1.12
No dia seguinte, foi efectuada pela ré uma tentativa de contacto telefónico, para o contacto registado aquando da realização da encomenda, sem sucesso, sendo que, através de mensagem de voice mail, o autor informava que não se encontrava em Portugal, solicitando, por isso, que fosse remetida mensagem através do correio electrónico I…@gmail.com (artigo 5º da contestação).
3.2.1.13
Nesse mesmo dia a ré remeteu novo e-mail ao autor, solicitando-lhe o envio de determinados documentos para confirmação dos dados inseridos, o que deveria ser feito no prazo de 72 horas de modo a evitar o cancelamento da encomenda (artigo 6º da contestação).
3.2.1.14
Os documentos foram remetidos pelo autor, via e-mail, no dia 5 de Dezembro de 2011, e permitiram a confirmação dos dados anteriormente facultados e o processamento da encomenda realizada (artigo 7º da contestação).
3.2.1.15
Posteriormente, foi agendada com o autor a entrega dos artigos encomendados para o dia 10 de Dezembro 2011, entrega que veio a ser realizada, o que levou ao encerramento da encomenda n.º … (artigos 8º e 9º da contestação).
3.2.1.16
O contacto telefónico de 6 de Janeiro de 2012, referido em 3.2.1.5, foi efectuado pelo autor para a Linha de Apoio ao Cliente C…, através do número ………, tendo o autor informado o funcionário que o atendeu de que havia procedido ao envio, no dia 14 de Dezembro de 2011, de uma carta registada com aviso de recepção para a sede da C…, tendo esta o objectivo de exigir a devolução dos dois artigos encomendados a 30 de Novembro e entregues a 10 de Dezembro (artigo 10º da contestação).
3.2.1.17
Mais informou o autor que pretendia exercer o direito que a lei lhe faculta, uma vez que a ré não tinha procedido à entrega atempada dos bens, nem à entrega da factura de compra (artigo 11º da contestação).
3.2.1.18
De acordo com os “Termos de Uso relativos às Devoluções” acessíveis através do endereço eletrónico www.C....pt, e no qual foi registada a encomenda do autor, o consumidor dispõe de um prazo de quinze dias para proceder à devolução da sua encomenda, devendo, para o efeito, dirigir-se a uma loja física da C… ou contactar a linha de apoio C… através do número ………. (artigo 14º da contestação).
3.2.1.19
No dia 9 de Janeiro de 2012, na sequência do e-mail enviado pelo autor e referido em 3.2.1.5, a ré, através dos seus funcionários, entrou em contacto telefónico com o autor de forma a agendar o levantamento dos dois televisores para o dia seguinte, dia 10 de Janeiro (artigo 18º da contestação).
3.2.1.20
Essa possibilidade foi liminarmente recusada pelo autor, tendo esclarecido que os bens teriam de ser devolvidos até ao final daquele mesmo dia 9 de Janeiro (artigo 19º da contestação).
3.2.1.21
Uma vez informado de que no dia 9 de Janeiro não havia disponibilidade do carro bombeiro necessário ao transporte dos artigos em causa, motivo pelo qual se justificava o agendamento do levantamento dos artigos para o dia seguinte, o autor reiterou a sua intenção em entregar os televisores naquela data, tendo afirmado que se deslocava, ele próprio, para esse efeito, a uma loja C… (artigo 20º da contestação).
3.2.1.22
A posição do autor levou a que tivesse sido acordada a sua deslocação à loja C… Coimbra …, sita no …, em Coimbra, para devolver os dois televisores (primeira parte do artigo 22º da contestação).
3.2.1.23
A entrega dos artigos, acompanhados pelos respectivos acessórios e factura, foi concretizada pelo autor no dia 9 de Janeiro de 2012, tendo-se constatado que os dois televisores devolvidos ainda se encontravam selados (artigo 24º da contestação).
3.2.1.24
O facto de os televisores devolvidos se encontrarem selados é anormal e criou na ré a necessidade de acautelar a inexistência de qualquer tentativa de fraude (artigo 25º da contestação).
3.2.1.25
Concluída a análise da situação e uma vez confirmado o bom estado dos equipamentos devolvidos, a ré desenvolveu as medidas necessárias à concretização da devolução do montante pago pelo autor, no valor total de € 5.998,00 (artigo 27º da contestação).
3.2.1.26
Os funcionários da ré, uma vez tentada a devolução para o cartão Mastercard do valor de € 5.998,00 através da C1…, depararam-se com uma impossibilidade técnica de o fazer, por força do elevado valor em causa e do meio de pagamento utilizado, isto porque o cartão Mastercard titulado pelo Autor não permitiu a devolução do valor em causa por este ser superior ao valor facturado naquele mesmo cartão, durante o dia em que se procedeu à tentativa de devolução (artigos 28º e 29º da contestação).
3.2.1.27
A situação referida em 3.2.1.26. continuou a verificar-se nos dias seguintes e obrigou a que fosse aberto registo no Help Desk com o número …-….. com a informação “devolução Mastercard gera erro ao tentar processar” (artigo 31º da contestação).
3.2.1.28
Os funcionários da ré sentiram necessidade de proceder à articulação com o Departamento Financeiro, de forma a alcançar um meio alternativo através do qual fosse permitida a devolução do valor pago pelo autor (artigos 32º e 33º da contestação).
3.2.1.29
A devolução teve de ser validada pela D…, S.A., entidade gestora do cartão Mastercard utilizado pelo autor para pagamento dos bens encomendados no dia 30 de Novembro de 2011 e comunicada à E…, S.A. (artigo 34º da contestação).
3.2.1.30
No dia 14 de Fevereiro de 2012 e em resposta ao e-mail de 08 de Fevereiro anterior, ao qual se alude em 3.2.1.7, o autor foi informado, via e-mail, junto aos autos por cópia a fls. 47, de “(…) que efectivamente a devolução de valores relativa à encomenda ……. ainda não se encontrava realizada.
No entanto, gostaríamos de lhe indicar que já foram tomadas as devidas diligências para que a situação seja resolvida com a maior brevidade possível.
Encontramo-nos ao seu dispor para todo e qualquer esclarecimento adicional
(…)”, indicando para o efeito os contactos ……… e cliente@C....pt. (artigo 41º da contestação)
3.2.2 Factos não Provados
3.2.2.1
O autor não obteve resposta ao e-mail identificado em 3.2.1.7. e, a esse, outros se seguiram, a 10 e 19 de Fevereiro, a 11, 13 e 16 de Março de 2012, sempre com o mesmo propósito do Autor, o de saber o porquê do atraso na devolução/reembolso (artigo 11º da petição inicial).
3.2.2.2
O autor exigiu que a devolução do preço pago pelos dois televisores fosse efectuada no seu cartão Mastercard através da C1… (segunda parte do artigo 22º da contestação).
3.2.2.3
Foi apresentada ao autor a possibilidade da realização da devolução do montante pago pelos televisores directamente pela loja C… Coimbra …, aquando da entrega dos artigos naquele local (segunda parte do artigo 23º da contestação).
3.2.2.4
As diligências referidas em 3.2.1.26. a 3.2.1.29. revelaram-se morosas e levaram a que a devolução do valor de € 5.998,00 ao Autor apenas tivesse sido possível a 15 de Março de 2012 (artigo 35º da contestação).
4. Fundamentos de direito
4.1 Da não demonstração de culpa da ré no atraso na devolução da prestação efectuada pelo autor
A recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida afirmando que da factualidade provada e daquela que pretendia ver provada resulta que o atraso na devolução do preço recebido não lhe é imputável, não derivou de culpa sua, faltando assim a demonstração da culpa para que possa ser responsabilizada pelo atraso na devolução com o pagamento do dobro daquilo que estava obrigada a restituir.
Cumpre apreciar e decidir.
No caso dos autos não se controverte a eficácia da resolução contratual efectuada pelo recorrido ao abrigo do regime jurídico dos contratos celebrados à distância aprovado pelo decreto-lei nº 143/2001, de 26 de Abril, nem tão-pouco a aplicação das regras legais previstas nesse diploma sobre os efeitos da resolução do contrato.
A recorrente apenas questiona, nesta sede, a existência de culpa da sua parte, pressuposto em seu entender imprescindível para que seja aplicável a sanção legal de devolução do preço recebido em dobro.
Nos termos do disposto no nº 1, do artigo 8º, do decreto-lei nº 143/2001, de 26 de Abril, “[q]uando o direito de livre resolução tiver sido exercido pelo consumidor, nos termos do artigo 6º, o fornecedor fica obrigado a reembolsar no prazo máximo de 30 dias os montantes pagos pelo consumidor, sem quaisquer despesas para este, salvo eventuais despesas decorrentes da devolução do bem quando não reclamadas pelo consumidor.
Decorrido o prazo previsto no número anterior sem que o consumidor tenha sido reembolsado, o fornecedor fica obrigado a devolver em dobro, no prazo de 15 dias úteis, os montantes pagos pelo consumidor, sem prejuízo do direito do consumidor a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais” (artigo 8º, nº 2, do decreto-lei nº 143/2001).
Não obstante legalmente a resolução seja equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (artigo 433º do Código Civil), tem-se vindo a entender que a resolução não faz desaparecer totalmente a relação contratual, antes a converte numa relação de liquidação[5].
A entender-se que esta relação de liquidação ainda tem fonte contratual, ao menos de modo mediato, é sustentável a afirmação de que o devedor da obrigação de restituição, continua onerado com a presunção de culpa prevista no nº 1, do artigo 799º, do Código Civil, não carecendo o credor da restituição devida de demonstrar, pela positiva, a culpa do obrigado à restituição[6].
No entanto, afigura-se-nos que, atenta a finalidade da relação de liquidação emergente da resolução contratual, ou seja colocar as partes na situação em que se encontravam quando celebraram o contrato, a obrigação de restituição, ao invés do direito de indemnização e à semelhança do cumprimento contratual[7], não depende da existência de culpa do obrigado à restituição ou da causação de qualquer dano na esfera jurídica do consumidor credor da importância que entregou ao fornecedor.
Porém, no caso dos autos será que se deve distinguir a obrigação de restituição em singelo que opera objectivamente, da obrigação de restituição de igual montante, de carácter sancionatório, pela violação do prazo legal de restituição, a depender da existência de culpa do obrigado à restituição?
Na nossa perspectiva, tendo em conta que esta última restituição decorre da violação do prazo legalmente fixado para a devolução do recebido, ou seja, da mora do obrigado à devolução, que tem carácter sancionatório e que é cumulável com a indemnização ao consumidor dos danos patrimoniais e não patrimoniais por este sofridos[8], afigura-se-nos que depende dos pressupostos gerais do nascimento da obrigação de indemnização, salvo no que respeita a demonstração da existência e medida do dano, que são legalmente ficcionadas pela própria lei em montante equivalente ao montante a devolver. Contudo, estando em causa o incumprimento de uma obrigação legal, sobre o fornecedor impende a presunção de culpa prevista no nº 1, do artigo 799º do Código Civil, cabendo-lhe alegar e provar factos que ilidam essa presunção.
Assim, importa aferir se no caso dos autos estão provados factos que ilidam a presunção de culpa que onera a recorrente[9], no que respeita a sanção pela mora na devolução do preço recebido.
A recorrente intenta demonstrar a sua falta de culpa na devolução do preço recebido nalguns factos que não ficaram provados, como seja a alegada exigência do autor de que a devolução se processasse pela mesma via por que havia sido efectuado o pagamento e noutros factos provados que, na sua perspectiva, revelariam que o atraso na devolução se deveu a causas que não lhe são imputáveis, mas sim decorrentes do meio por que se operou a devolução (vejam-se os factos provados de 3.2.1.24 a 3.2.1.30).
Ora, salvo melhor opinião, toda essa factualidade é bem reveladora de uma culpa efectiva da recorrente na não efectivação do reembolso devido, no prazo legalmente fixado.
Na verdade, recebida pela ré a declaração de resolução, a 15 de Dezembro de 2011, na morada mencionada no documento nº 2[10], oferecido pelo autor com a sua petição inicial, iniciou-se no dia seguinte o prazo de trinta dias para a devolução do preço[11], prazo que se conta de forma contínua (artigo 35º do decreto-lei nº 143/2001) e que por isso expirou a 14 de Janeiro de 2012. Assim, não tem qualquer justificação a conduta da ré de apenas diligenciar pelo reembolso do preço recebido após a recepção dos equipamentos vendidos.
A única conduta legalmente aceitável por parte da recorrente para não correr o risco de efectuar o reembolso do preço sem ter a certeza de que os equipamentos fornecidos se encontravam nas devidas condições era proceder ao reembolso no momento em que o recorrido procedeu à entrega dos bens e depois de feita uma diligente verificação do seu estado (artigo 290º do Código Civil, aplicável à resolução contratual ex vi artigo 433º do mesmo diploma legal).
Revela, no mínimo, uma enorme ineficiência a unidade empresarial que estando obrigada a proceder à devolução de um montante até 14 de Janeiro de 2012, apenas em 16 de Março de 2012 procede a essa devolução, decorridos mais de dois meses sobre o termo do prazo legalmente fixado.
De facto, a recorrente, enquanto fornecedora e contraente em contratos celebrados à distância tem obrigação de saber que o consumidor pode dentro do prazo legal de catorze dias, imotivadamente, resolver o contrato e que, nessa eventualidade, tem que proceder ao reembolso daquilo que haja recebido do consumidor, no prazo de trinta dias a contar da data em que a declaração de resolução se torna eficaz e, por isso, deve zelar por ter operacionais meios técnicos que lhe permitam o cumprimento dessa obrigação legal.
No caso em apreço, a recorrente até tinha a sua tarefa facilitada porquanto na declaração de resolução o recorrido teve o cuidado de indicar o NIB para o qual poderia ser efectuada a transferência bancária para cumprimento da obrigação legal de restituição.
A recorrente, apesar de se achar em mora, não terá tido o cuidado de comunicar algo ao consumidor para tentar justificar essa demora, apenas o tendo feito, reactivamente, em resposta a interpelação do consumidor efectuada quase um mês depois do termo do prazo para a efectivação da devolução (vejam-se os pontos 3.2.1.7 e 3.2.1.30 da factualidade provada).
Ao invés do que afirma a recorrente, pode haver efectivamente um interesse da sua parte na retenção para além do prazo legal da importância que está obrigada a devolver, pois poderá rentabilizar financeiramente os capitais que detém, confiando que os consumidores se conformarão com essas demoras, receosos dos custos de um pleito e da incerteza do seu resultado, custos que são sempre proporcionalmente mais elevados quanto menor é o valor em discussão.
Em suma, por tudo quanto precede, conclui-se que não só a recorrente não ilidiu a presunção de culpa que sobre si impende, enquanto obrigada à restituição do preço recebido do recorrido, mas também que o conjunto da factualidade provada revela uma culpa efectiva da sua parte, razão pela qual improcede esta questão suscitada pela recorrente.
4.2 Do abuso do direito por parte do autor no exercício do direito a exigir o dobro do que prestou à ré com fundamento no atraso desta na restituição da prestação que recebeu
A recorrente pugna pela revogação da sentença recorrida em virtude de, na sua perspectiva, o autor ter tido uma actuação de má fé, preordenada ao recebimento em dobro do montante que havia prestado à recorrente a título de preço dos bens que lhe adquiriu, beneficiando de uma situação que gerou com a sua própria conduta e devida a algo totalmente excepcional e alheio à vontade da recorrente.
Na sentença recorrida, a propósito de um eventual abuso do direito por parte do recorrido escreveu-se o seguinte:
Nos termos do disposto no art. 334 do CC, o abuso de direito traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Comentando a citada disposição legal, dizem Pires de Lima e Antunes Varela, em "Código Civil Anotado", Volume I, 4ª edição, pág. 298 e ss. que “(...) a concepção adoptada de abuso de direito é objectiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites”. E, mais adiante, acrescentam: “Exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso”.
O abuso de direito pressupõe logicamente a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso de direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido (cfr. Castanheira Neves, “Questão de facto – Questão de direito”, I, pág. 513 e ss. ut Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 300.
Entendemos que o julgador deve aplicar o regime do abuso de direito com as cautelas devidas a um instrumento jurídico de rara utilização e que funciona como uma válvula de escape do sistema, quando todos os mecanismos de equilíbrio que o compõem falharam. Como instrumento a usar por excepção, a figura do abuso de direito deve apenas ser aplicada nos casos concretos em que a aplicação seca desse direito conduz a um resultado manifestamente injusto, embora em abstracto seja o regime legal mais adequado para a maior parte das situações que visa regular.
Tendo presente o que ficou exposto, entendemos que na situação dos autos não é possível concluir no sentido de terem sido excedidos os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito exercido, muito menos de forma manifesta.
De facto, a Ré não logrou provar que o Autor exigiu que a devolução do preço pago fosse efectuada no seu cartão Mastercard através da C1…, muito menos que ao Autor tenha sido apresentada a possibilidade da realização da devolução do montante pago pelos televisores directamente pela loja C… Coimbra …, aquando da entrega dos artigos naquele local.
Aliás, a Ré nem sequer provou que as diligências por si efectuadas após a devolução dos televisores (referentes à restituição do preço pago) se revelaram morosas ao ponto de a devolução do valor de € 5.998,00 apenas ter sido possível a 15 de Março de 2012, ou seja, não provou a Ré que só por razões excepcionais e alheias à sua vontade necessitou, efectivamente, de 3 meses para concretizar a devolução do preço pago.
Em tais circunstâncias, entendemos que o exercício do direito que assiste ao Autor é legítimo, motivo pelo qual a acção terá que proceder.
Cumpre apreciar e decidir.
Os recursos, como é sabido, tirando os casos em que sejam arguidas nulidades[12] ou sejam suscitadas questões de conhecimento oficioso, destinam-se à reapreciação de questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido. Por isso, objecto de censura pelo recorrente é a decisão recorrida, devendo o labor do recorrente incidir sobre a crítica da decisão impugnada em ordem a demonstrar o desacerto da mesma.
Ora, no caso dos autos, a recorrente limita-se a de novo suscitar a excepção peremptória de abuso do direito nos exactos termos em que a havia suscitado na contestação, não dirigindo qualquer crítica concreta à forma como a decisão sob censura afrontou e resolveu essa questão.
Ora, porque a questão do abuso do direito foi tratada com proficiência na decisão recorrida, porque a factualidade que esteve subjacente a essa cognição se mantém intocada, resta-nos, nesta sede, fazer nossas as razões adiantadas pelo tribunal a quo para concluir pela inverificação da excepção peremptória de abuso do direito, apenas se acrescentando que face aos factos provados, se alguém teve uma conduta censurável, reveladora de pouco respeito pelo cliente, esse alguém foi a recorrente ao não curar de, espontaneamente, justificar a demora na devolução do recebido, como se evidenciou na análise da questão precedente.
Por tudo quanto precede, conclui-se pela total improcedência do recurso, sendo a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por “C…, S.A.” e, em consequência, em confirmar a sentença proferida a 03 de Novembro de 2014, com a rectificação decidida a 25 de Fevereiro de 2015.
Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
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O presente acórdão compõe-se de vinte e três páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 27 de Abril de 2015
Carlos Gil
Carlos Querido
Soares de Oliveira
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[1] Segue-se, no essencial, o relatório da decisão recorrida.
[2] A recorrente requereu também a atribuição de efeito suspensivo ao recurso, oferecendo-se para prestar caução. No entanto, nenhuma decisão incidiu sobre esta pretensão, nem houve qualquer reacção da recorrente contra tal omissão.
[3] As conclusões, além de não obedecerem à exigência legal de concisão (ver artigo 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), apresentam-se deficientemente estruturadas porquanto, em vez de incidirem primeiramente sobre as questões de facto e seguidamente sobre as questões de direito, são uma mistura caótica das diversas questões, sem uma ordem lógica e tecnicamente correcta. Em rigor, isso deveria motivar um despacho de aperfeiçoamento das conclusões. No entanto, a nossa experiência na matéria tem sido extremamente negativa, pois nos casos em que seguimos essa via, pouco ou nada se ganhou em termos processuais e perdeu-se de forma inelutável em termos de celeridade, o que nos levou a avançar, sem mais, no conhecimento do objecto do recurso.
[4] Expurgados de meras referências probatórias.
[5] Neste sentido, referindo-se à resolução por incumprimento, mas em termos que cremos transponíveis para a resolução imotivada objecto dos autos, vejam-se: João Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Iuridica, Braga 1991, A Resolução por Incumprimento e a Indemnização, páginas 210 e 211; Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora 2011, Nuno Manuel Pinto Oliveira, página 886. Carlos Alberto da Mota Pinto, in Cessão da Posição Contratual, Almedina 1982, páginas 412 a 419, afirma que a resolução do contrato não extingue a relação contratual como um todo, extinguindo apenas os deveres de prestação ainda não cumpridos, bem como os deveres secundários de indemnização dirigidos à reparação do interesse na prestação, esclarecendo que os deveres de restituição têm fonte legal e que a relação de liquidação é uma relação legal.
[6] Pode chegar-se a esta mesma conclusão por outra via: a obrigação de restituição constitui um dever legal, pelo que a sua violação é a violação de um dever com fonte legal, constituindo-se o inadimplente em responsabilidade obrigacional sujeita à regra do nº 1, do artigo 799º do Código Civil (veja-se sobre esta problemática Direito das Obrigações, 3ª edição, Coimbra Editora 1980, Inocêncio Galvão Telles, páginas 144 a 146, 275 a 281 e 293 a 314).
[7] Sobre esta questão veja-se, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra 1987, João Calvão da Silva, páginas 148 e 149.
[8] Jorge Morais Carvalho in Os Contratos de Consumo, Almedina 2012, página 404, sustenta que esta responsabilidade do fornecedor é obrigacional, presumindo-se por isso a sua culpa.
[9] Vinca-se uma vez mais que a ilisão da presunção de culpa apenas obstará à aplicação da sanção legal para o atraso na devolução, não contendendo nunca com a necessária devolução do preço recebido, em singelo.
[10] Trata-se da guia de entrega dos equipamentos adquiridos pelo autor.
[11] No sentido de que o prazo para efectivação do reembolso do valor pago se inicia logo que a declaração de resolução se torna eficaz veja-se Jorge Morais Carvalho in Os Contratos de Consumo, Almedina 2012, página 402.
[12] E relativamente à arguição de nulidades das decisões judiciais, o juiz a quo tem sempre a oportunidade de sobre as mesmas se pronunciar, ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 2, do artigo 617º do Código de Processo Civil.