Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
976/15.3T8OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CURA MARIANO
Descritores: LIVRANÇA
AVAL
RESPONSABILIDADE DE CO-AVALISTAS
DIREITO DE REGRESSO
AVALISTAS
COMPENSAÇÃO
MEIO PROCESSUAL
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RP20170130976/15.3T8OVR.P1
Data do Acordão: 01/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º 642, FLS. 171-182)
Área Temática: .
Sumário: I - Sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime geral previsto para as obrigações solidárias e não o regime das relações entre cofiadores, constante do artigo 650.º do Código Civil.
II - O Código de Processo Civil de 2013 tomou posição na polémica suscitada no domínio do anterior Código sobre o meio de defesa processual que deve ser utilizado pelo demandado para opor uma situação de compensação de créditos, tendo optado por exigir que esta fosse deduzida através de reconvenção independentemente do valor dos créditos em causa, quando o crédito compensatório não se encontre ainda judicialmente reconhecido.
III - Admite-se que sobre o juiz possa recair um dever de convidar o demandado a formular a invocação da compensação, através da dedução de um pedido reconvencional, de forma a dar cumprimento à exigência prevista no artigo 266.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 976/15.3T80VR.P1 – Comarca de Aveiro – Ovar – Instância Local – Secção Cível J1
Relator: João Cura Mariano
Adjuntos: Maria José Simões
Abílio Costa

Autor: B…

Réu: C…
*
B… intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma comum, contra C…, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de €14.162,10, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, sobre o capital em dívida, desde a data da instauração da ação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, o seguinte:
- conjuntamente com o Réu D… e E… são os únicos sócios da sociedade “F…, Lda”, a qual deixou de laborar há mais de dois anos.
- em 27.05.2013, a sociedade subscreveu a favor da “G…” uma livrança, com vencimento na mesma data, no valor de €50.104,24, livrança que ele, o Réu, bem como D… e H… avalizaram pessoalmente e que não foi paga aquando do seu vencimento pela sociedade subscritora.
- em 11.07.2013, a “G1…, SA”, através de um contrato de cessão de créditos, endossou a livrança a C…, pelo valor de €48.157,69, que instaurou contra o aqui Autor, D… e H…, na qualidade de avalistas, ação executiva visando obter o pagamento de €48.157,69, referente a capital exequendo, acrescido de juros de mora e demais encargos com a execução.
- A execução foi declarada extinta devido ao pagamento integral da quantia exequenda e custas processuais e determinado que o título executivo fosse entregue ao Autor.
- O D… e H…, na qualidade de avalistas, pagaram 50% do valor, no montante de €27.695,80, e o Autor, também na qualidade de avalista, pagou os restantes 50%.
- O Réu, na qualidade de avalista, também é responsável pelo pagamento de 25% do valor total, no montante de €13.847,90 e, tendo o Autor procedido ao pagamento desta parte da dívida, assiste-lhe o direito a ser reembolsado por aquele.

O Réu contestou a ação, em suma, alegando o seguinte:
- Respeitando a quantia paga pelo Autor a uma livrança subscrita pela sociedade “F…, Lda”, impunha-se a demanda desta sociedade, porquanto é aquela a única responsável pela totalidade do valor.
- Às relações entre os coavalistas de uma livrança são aplicáveis as normas de direito comum que regulam a fiança, em particular o artigo 650.º do Código Civil, sendo a responsabilidade do coavalista limitada à sua quota-parte no aval prestado e solidária com a do avalizado, pelo que os coavalistas só respondem na medida da sua quota-parte de responsabilidade e após haverem sido executados os bens da devedora principal.
- Só depois de acionado o subscritor da livrança é que o coavalista que pagou poderá exigir dos outros coavalistas, designadamente do Réu, o valor que caberia a este, sendo que, no caso, o Autor não acionou judicialmente a “F…, Lda”, nem alegou factos dos quais pudesse resultar a impossibilidade daquela liquidar a totalidade da quantia resultante da livrança.
- Acresce que o Autor e o avalista D… assumiram a gerência da sociedade em 28.02.2001, tendo assumido tal cargo em exclusividade em 14.03.2013, data em que o Réu renunciou à gerência, e durante tal período o Autor e o avalista D… desviaram bens da sociedade, fazendo-os seus, no valor de €13.800,00, e receberam montantes correspondentes a pagamentos de clientes, devidos à sociedade, beneficiando, em conjunto, de tais quantias, num total de €37.900,00 tendo, de forma ilícita, ficado com tais valores, recebendo o Autor indevidamente €25.850,00.
- Assim, nos termos do artigo 847.º, n.º 1, do Código Civil, quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, pelo que o crédito da sociedade “F…, Lda” deve ser reconhecido de forma a que se opere a compensação, que invoca, e, nessa medida, não sendo a sociedade devedora de qualquer quantia ao Autor, também o Réu não pode ser condenado nos termos peticionados.
- Além disso, à data dos factos o Réu era sócio da “F…, Lda”, tendo uma quota de €9.000,00, correspondente a 30% do capital, donde decorre que ao mesmo caberia, a título de dividendos, a quantia correspondente a 30%, pelo que, sendo o Réu credor do Autor, sempre tal crédito sobre o Autor deve ser reconhecido, de forma que se opere a compensação entre ambos com a consequente extinção do crédito do Autor.
- O Autor apenas pode exigir ao Réu ¼ do que pagou;
- O Réu não é responsável pelo pagamento de parte da quantia liquidada na execução, mas apenas de parte da quantia avalizada, que se cifra em €50.104,24, bem ainda que, não tendo havido interpelação apenas serão devidos juros de mora a partir da citação para a presente ação.
Termina defendendo que a presente ação deve ser julgada improcedente.

O Autor respondeu, pronunciando-se pela improcedência das exceções deduzidas pelo Réu.

Foi proferido despacho saneador, com valor de sentença, que julgou a ação parcialmente procedente, tendo condenado o Réu a pagar ao Autor a quantia de €13.847,90, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento.

O Réu recorreu desta decisão, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:
A - A decisão proferida no que, especificamente, respeita aos pontos B, C e D da sentença, para além de padecer de nulidade parcial, fez uma errada interpretação e aplicação do direito;
Da nulidade parcial da sentença, por falta de fundamentação:
B - Do ponto D) da douta sentença proferida, referente à comparticipação de cada um no valor da dívida, o Tribunal recorrido bastou-se a reproduzir um trecho de um Acórdão, não resultando qualquer análise à questão alegada pelo Recorrente, quer referente à aplicação da percentagem, quer quanto às despesas de execução, todas englobadas e peticionadas pelo Recorrido;
C - O Tribunal a quo não fez porém, uma única menção ao facto em apreço, bastando-se com a transcrição de jurisprudência, sem discutir porém, a aplicação da percentagem dos 25% ou tão-pouco, a contabilização de uma quantia que não resulta do aval prestado, mas sim, apenas veio a decorrer do recurso à ação executiva e despesas daí resultantes;
D - No que respeita ao ponto D) da decisão recorrida, facilmente constatamos que o dever imposto nos arts. 154.º e 607.º do C.P.C., não foi cumprido, resultando da mesma, uma total ausência de apreciação crítica, no que concerne à condenação do Recorrente na totalidade do montante peticionado;
E - A falta de fundamentação consubstancia uma nulidade da sentença, porquanto as decisões judiciais, são nulas, quando não especifiquem “os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” (cfr. alínea a) do n.º 1 do art. 615.º do C.P.C.), pelo que, a decisão enferma de nulidade, devendo ser sanada, em conformidade.
Da responsabilidade da devedora principal:
F - Decidiu o Tribunal a quo, que “não sendo aplicável ao caso concreto o regime da fiança (…) somos levados a concluir que a procedência da presente ação não está dependente de o autor previamente acionar a sociedade ou de alegar e provar factos donde resulte que a mesma está impossibilitada de cumprir com a obrigação”;
G - Tal não foi porém, não é o sentido da jurisprudência e da doutrina, que defendem não existir relações cambiárias entre os coavalistas, mas sim, relaçãoes de direito comum, pelo que, vigora pois, o regime jurídico da fiança – vejam-se a título meramente exemplificativo o Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 05/06/2012 e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/03/2010 e Tribunal da Relação de Coimbra, de 03/06/2014, todos disponíveis in www.dgsi.pt;
H - Tal entendimento, de resto, é ainda sufragado pelos Ilustres Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in Cód. Civ. Anotado, Vol. I, de acordo com o quais: "Se o avalista cumpriu voluntariamente a obrigação, o seu regresso contra os coavalistas só é admissível depois de excutidos os bens do emitente do título e, só depois de acionado o subscritor da livrança, é que poderá exigir dos outros coavalistas, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, as partes que proporcionalmente lhes cabem na dívida";
I - Consequentemente, sendo de aplicar ao regime do aval, no que à responsabilidade entre os coavalistas respeita, o artº 650º, nº3, do C.C., forçoso é concluir que “mesmo à falta da aludida convenção em contrário entre os coavalistas, só depois de excutidos os bens do emitente do título é que é admissível o direito de regresso contra os coavalistas para ressarcimento da parte da dívida que proporcionalmente lhes incumbe satisfazer”;
J - Tal não se verificou no presente caso, porquanto a devedora F… não foi tão pouco, acionada, pelo Recorrido, pelo que, só depois de excutidos os bens da devedora, a sociedade F…, é que será admissível exigir do Recorrente o ressarcimento de parte da dívida que proporcionalmente, lhe incumbe satisfazer;
K - O Tribunal a quo ao decidir em sentido contrário, violou o disposto no art. 650.º do C.C., devendo assim, ser tal decisão revogada e substituída por outra, em conformidade.
Da compensação de créditos:
L - Entendeu o Tribunal recorrido que a questão da compensação de créditos, alegada pelo Recorrente, apenas era passível de apreciação através da dedução de reconvenção, pelo que, não o tendo sido, concluiu pela “inadmissibilidade legal de conhecimento da compensação invocada”;
M - Acontece que, in casu, o Recorrente muito embora, tivesse alegado a existência de valores indevidamente recebidos pelo Recorrido, parte dos quais, cabiam àquele, na qualidade de sócio da devedora subscritora da livrança em apreço nestes autos, a sociedade F…, optou por invocar tais créditos apenas para efeitos de compensação e já não, por forma a pedir a condenação do Recorrido no pagamento de tais quantias ao mesmo;
N - Ora, é entendimento jurisprudencial e doutrinal, que “nos casos em que, sendo o contra crédito do réu de montante inferior ao crédito do autor, aquele apenas alega tal crédito, não pedindo a condenação do autor no seu pagamento, mas invocando matéria factual que, em caso de provada, reduzirá ou impedirá a produção dos efeitos jurídicos dos factos alegados pelo autor, estaremos perante a dedução de uma exceção perentória (compensação exceção)” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/08/2009, disponível in www.dgsi.pt);
O - Pese embora, a alteração legislativa operada recentemente no C.P.C., os argumentos então defendidos, mantêm toda a sua razão de ser, sendo ainda atual, o argumento de que “a exigência do expediente da reconvenção para obter a compensação pura e simples representaria um formalismo inútil e aberrativo do princípio geral estabelecido nos artigos 487º e 489º do Código de Processo Civil (atuais arts. 571.º e 573.º do C.P.C., que regulam a defesa por impugnação e por exceção);
P - Contrariamente ao que defende o Tribunal a quo, de que o “novo CPC parece ter tomado posição (…) no sentido de impor ao réu, sempre, a formulação de pedido reconvencional”, o que resulta da referida norma – art. 266.º, 1 e 2 do C.P.C., é a possibilidade do réu optar pela dedução de pedido reconvencional e não a necessidade de o réu o fazer em todas as hipóteses ali consagradas;
Q - Não decidindo em conformidade, violou o Tribunal recorrido o disposto nos arts. 266.º, 571.º, 573.º e 576.º do C.P.C., pelo que, sempre se impõe a revogação de tal decisão, substituindo-a por outra que aprecie a alegada compensação de créditos, cuja apreciação ficou prejudicada pela interpretação dada pelo Tribunal recorrido ao art. 266.º do C.P.C.
SEM PRESCINDIR,
R - O novo C.P.C., no seu art. 508.º, n.º 1, al. a) e 3, atribuiu ao julgador o poder-dever de convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados, aí se incluindo a contestação, em homenagem ao princípio da igualdade das partes;
S - É pois, dever do juiz providenciar pelo andamento regular do processo, no âmbito dos poderes de direção, assim como levar a cabo a realização do princípio do inquisitório, mas também e no que toca à cooperação do Tribunal com as partes (artº. 266º, nº. 2 do CPC), dar cumprimento cabal a um genérico poder-dever de suprir as irregularidades dos articulados dos litigantes, sobrepondo o fim da justa composição do litígio a aspetos meramente formais, com salvaguarda da necessária economia processual, e sem prejuízo do exercício do contraditório;
T - No presente caso, uma vez que foi alegada pelo Recorrente, matéria de facto bastante para a pretendida apreciação da questão da compensação de créditos, embora sem a formal distinção/identificação, em sede de articulado, do instituto da “reconvenção”, sempre se impunha ao Tribunal a quo, ordenar pelo aperfeiçoamento da contestação apresentada pelo Recorrente, ao abrigo do disposto no art. 590.º, n.º 2, al. a) e n.º 3 do C.P.C. e, só após tal correção, passar à apreciação da questão in casu;
U - Ao decidir porém, pela “inadmissibilidade legal de conhecimento da compensação invocada”, sem proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 6.º, 7.º e 590.º, n.º 2, al. a) e n.º 3 todos do C.P.C., pelo que, deve ser revogado em conformidade.
CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA,
Do valor em dívida:
V - Como alegou o Recorrente, em sede de contestação, o mesmo não é responsável perante o Recorrido, por 25% da quantia liquidada, mas por 25% da quantia, perante todos coavalistas, ou seja, cabe-lhe, no que respeita ao Recorrido, 1/4 dos 25% peticionados;
W - É unanimemente aceite, que “Sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias” - Acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 7/2012, de 5/6/2012, disponível em www.dgsi.pt;
X - Consequentemente, a repartição interna da responsabilidade entre os diversos avalistas, rege-se pela igualdade, de acordo com o qual, na ausência de convenção ou de outra relação especial entre eles, comparticipam na dívida em partes iguais (cfr. Art. 516.º do C.C.), conforme aliás, estipula o art. 524.º do C.C., que “o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete”;
Y - Tendo pago tudo o que era devido, o coavalista, embora possa exigir do avalizado tudo o que desembolsou, por sua vez, de cada um dos coavalistas, apenas pode reclamar a respetiva quota-parte, pelo que, in casu, sendo quatro os avalistas, presume-se que é de 1/4 (um quarto) a quota-parte de cada um deles, assistindo, assim, ao Recorrido o direito de exigir de cada um dos coavalistas, apenas uma quarta parte do que desembolsou, isto é, ao Recorrente não pode exigir mais do que ¼ do montante por si pago;
Z - Ou seja, considerando a quantia de €27.695,80 paga pelo Recorrido, ao Recorrente apenas cabe reembolsar, junto daquele, ¼ de tal quantia e não metade da mesma, como condenou o Tribunal recorrido;
AA – Aliás, estando o Recorrente à mercê de novas ações judiciais, a intentar contra si, pelos outros dois coavalistas, D… e H…, a reclamar igualmente, o pagamento do montante em excesso que efetuaram, à semelhança do que fez o Recorrido na presente ação, em caso de pagamento ao Recorrido, pelo Recorrente de 25% sobre a totalidade da dívida, como condenou o Tribunal a quo, sempre iria exceder a sua quota-parte de responsabilidade, assim que procedesse ao pagamento junto daqueles outros dois coavalistas;
AB - Finalmente, se diga que o Recorrido peticionou uma quantia superior àquela que lhe seria devida, o que, porém, não foi considerado pelo Tribunal a quo, que condenou o Recorrente conforme pedido pelo Recorrido;
AC - A decisão proferida pelo Tribunal a quo, assim, além de desconforme com os factos dados como provados, ilegal, por violação do disposto nos arts. 524.º e 533.º do C.C..

O Autor apresentou contra-alegações, sustentando a manutenção do decidido.
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1. Do objeto do recurso
Encontrando-se o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) A sentença é parcialmente nula por falta de fundamentação?
b) Só depois de excutidos os bens da sociedade avalizada é que é admissível o direito de regresso entre os avalistas?
c) A compensação pode ser deduzida através de defesa por exceção?
d) Caso a compensação deva ser deduzida através de pedido reconvencional deveria o Réu ser convidado a corrigir o seu articulado neste sentido?
e) O Réu apenas é responsável pelo pagamento de ¼ dos 25% peticionados?

2. Da nulidade parcial do saneador-sentença
O Recorrente invoca a nulidade parcial da sentença por esta não se encontrar suficientemente fundamentada no que respeita à questão relativa ao montante da obrigação de reembolso, correspondente ao direito de regresso invocado pelo Autor.
Sobre este tema lê-se na sentença recorrida:
“Entende o réu que só responde por 25% do valor do aval prestado, pretendendo excluir os montantes pagos pelo autor e referentes a juros de mora e despesas da execução.
Quanto a este ponto seguiremos de perto a fundamentação constante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2012 de 5/6/2012, na parte em que se refere que “operando o direito de regresso a posteriori, ou seja, apenas depois de algum dos avalistas ter cumprido a obrigação de forma espontânea ou coerciva, não se observa qualquer inconveniente resultante da posterior distribuição do sacrifício pelos demais avalistas. Pelo contrário, a comparticipação efetiva de todos eles no esforço financeiro que tenha sido exigido apenas de algum ou alguns, além de corresponder à perceção generalizada dos efeitos que derivam da prestação de aval, integra de forma mais coerente e justa a repartição das responsabilidades e secundariza efeitos que podem ser mera decorrência de fatores subjetivos ou imponderáveis (v.g. iniciativa do credor cambiário dirigida apenas a algum ou alguns dos avalistas, interesse de algum dos avalistas de assumir o pagamento, citação dos avalistas ou penhora de bens em momentos diferenciados, natureza dos bens de uns ou de outros dos avalistas, maior ou menor facilidade na penhora ou na liquidação de alguns bens, etc.)”.
Pelo que, no caso em análise, demonstrado que está que o autor pagou € 27.695,80, correspondente a 50% do valor em dívida, e presumindo-se que é igual a comparticipação de cada um no valor da dívida – cfr. art.º 516º do Código Civil – (nada tendo sido alegado em contrário), assiste ao autor o direito de receber do réu o montante global de €13.847,90”.
Pode este texto não convencer o Recorrente do mérito do decidido, pode não responder a todos os argumentos aduzidos pelo Recorrente na contestação apresentada, mas não se pode dizer que não fundamenta a decisão neste ponto. A decisão recorrida condenou o Réu a pagar €13.847,90, porque entende, como explicou, que, tendo o Autor pago 50% do valor em dívida, ou seja €27.695,80, deve o Réu pagar metade desse valor, equivalente à sua quota parte presumida (1/4) nessa dívida, citando em seu abono um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e o disposto no artigo 516.º do Código Civil.
Isto é suficiente para que se considere que a decisão tomada neste ponto se encontra suficientemente fundamentada, pelo que não se verifica o vício apontado pelo Recorrente, não sendo a sentença parcialmente nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, b), do Código de Processo Civil.

3. Os factos provados
Neste processo estão provados os seguintes factos
1) Autor e Réu, conjuntamente com D… e E… são os únicos sócios da sociedade “F…, Lda”;
2) Em 27.05.2013, a sociedade subscreveu a favor da “G…” a livrança cuja cópia se mostra junta a fls. 8 dos autos, com vencimento na mesma data, no valor de €50.104,24;
3) A livrança não foi paga aquando do seu vencimento pela sociedade subscritora;
4) Autor e Réu, bem como D… e H… avalizaram pessoalmente a mencionada livrança;
5) Em 11.07.2013, a “G…, SA”, através do “contrato de cessão de créditos” cuja cópia se mostra junta de fls. 9 a 11 dos autos, endossou a livrança referida em 2) a C… pelo valor de €48.157,69;
6) C… instaurou contra o aqui Autor, D… e H… ação executiva visando obter o pagamento de €48.157,69 referente a capital exequendo, acrescido de juros de mora e demais encargos com a execução;
7) A execução foi declarada extinta devido ao pagamento integral da quantia exequenda e custas processuais e determinado que o título executivo fosse entregue ao autor;
8) D… e H…, na qualidade de avalistas, pagaram 50% do valor, no montante de €27.695,80 e o Autor, também na qualidade de avalista, pagou os restantes 50%, no valor de €27.695,80, pagamento efetuado em 09.10.2014;
9) O valor pago no processo executivo corresponde a capital exequendo, juros de mora e demais encargos com a execução.

4. Da extemporaneidade do exercício do direito de regresso
Na presente ação, o Autor invocou o pagamento de 50% do valor de uma livrança da qual era coavalista, para reclamar de outro coavalista o reembolso de metade do valor por si pago, equivalente à quota parte da responsabilidade do avalista demandado.
O Recorrente defende que o direito de regresso entre os coavalistas segue as regras da fiança, pelo que só após ter sido excutido o património da subscritora da livrança avalizada é que o coavalista que pagou a dívida poderá acionar os restantes coavalistas.
O aval, designadamente quando prestado ao subscritor de uma livrança, constitui um negócio cambiário cujo regime jurídico emerge da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL).
Este diploma limita-se a regular a responsabilidade do avalista perante os credores cambiários e o exercício do seu direito de reembolso contra o respetivo avalizado ou contra os demais obrigados na cadeia de responsáveis cambiários, nada prevendo quanto a um eventual exercício do direito de regresso entre os diversos avalistas do mesmo avalizado.
No direito português surgiram várias propostas de preenchimento deste vazio legislativo:
- a admissão do direito de regresso apenas nos casos em que tenha existido convenção entre os coavalistas nesse sentido;
- a admissão de um direito de regresso em termos análogos ao previsto no artigo 650.º do Código Civil para a pluralidade de fiadores, aplicando-se o regime da fiança;
- a admissão de um direito de regresso, segundo o regime das obrigações solidárias.
O Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão de uniformização de jurisprudência[1] sobre esta problemática, tendo decidido que, sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias.
Foi, pois, seguida a última posição acima referida [2].
Na verdade, nesse acórdão, apesar de se considerar que se adotava solução semelhante à que está prevista no artigo 650.º do Código Civil para as situações de pluralidade de fiadores, não se sustentou a aplicação desse regime específico, mas sim o regime comum das obrigações solidárias. Como aí se escreveu não deve ser negada ao avalista que tenha suportado o pagamento da quantia avalizada (ou que tenha suportado uma parte mais elevada do que aquela que lhe competia) o direito de regresso relativamente aos demais avalistas, considerando mais ajustada uma solução em que se assuma, como regra, a distribuição interna da responsabilidade patrimonial nos termos que vigoram para as obrigações solidárias (artigos 524.º e 516.º do Código Civil), à semelhança do que especificamente está previsto no art. 650.º do Código Civil para a pluralidade de fiadores. Daí a declaração de voto aposta por Salazar Casanova que defendeu, isoladamente, que se justificava que as relações internas entre os coavalistas fossem tratadas como as relações entre fiadores.
Adota-se também aqui a opção tomada pelo referido acórdão uniformizador, transcrevendo-se o voto de vencido aposto por Sílvia Pires, em Acórdão inédito desta Relação, de 23 de fevereiro de 2010, proferido no processo Processo n.º 4076/06.9 TBVNG.P1, que melhor explica a bondade da solução escolhida face aos trabalhos preparatórios da LULL e que antecipou a decisão uniformizadora que veio a ser proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
“O artigo 32º, 3.º parágrafo, da L.U.L.L., dispõe que se o dador do aval paga a letra, fica subrogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra.
Este preceito é aplicável às livranças – artigo 77º, 3.º parágrafo, da L.U.L.L..
A falta de referência naquele dispositivo a outros avalistas, nos casos em que se verifique uma pluralidade de avales ao mesmo interveniente cambiário, cedo determinou entre nós a procura de um direito de regresso entre os avalistas, não nas regras internacionalmente convencionadas do direito cambiário, mas sim no direito comum interno, seguindo-se a orientação apontada durante os trabalhos da Conferência Internacional para a Unificação do Direito em Matéria de Letras de Câmbio, Livranças e Cheques que criou a L.U.L.L., para esta situação.
Assim, Gonsalves Dias [3] concluiu que, face ao texto da L.U.L.L. e ao conteúdo das atas da Conferência de Genebra, não existia entre os avalistas a possibilidade de utilização de uma ação cambiária, devendo as suas relações serem reguladas pelo que houvessem convencionado entre eles e, na ausência de qualquer convenção, devia operar a regra da divisão proporcional, estabelecida no artigo 845º, do Código de Seabra, para a fiança.
No mesmo sentido se pronunciou Marnoco e Sousa [4].
E foi seguindo este ensinamento que a jurisprudência foi acolhendo a existência de um direito de regresso entre os avalistas [5], perante o silêncio generalizado da doutrina.
Contudo, Pedro Pais de Vasconcelos, em estudo publicado na obra coletiva Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais – Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier [6], veio, contudo, negar a existência deste direito de regresso, nas hipóteses em que não exista qualquer convenção entre os diversos avalistas do mesmo interveniente cambiário, considerando não serem aplicáveis as regras estabelecidas para a fiança.
Esta tese foi seguida no recente Acórdão do S.T.J. de 27.10.2009 [7], sendo agora também perfilhada maioritariamente no presente acórdão.
Constata-se que ela se apoia na ausência de qualquer referência a este direito de regresso no artigo 32º, 3.º parágrafo, da L.U.L.L., e na impossibilidade das regras da fiança serem aplicáveis, quer diretamente, quer por analogia, quer por presunção da existência de uma relação fidejussória subjacente ao aval cambiário, atenta a diferente natureza do aval e da fiança.
Se é verdade que a L.U.L.L. não prevê qualquer direito de regresso, de natureza cambiária, entre os avalistas, assim como são pertinentes as críticas dirigidas à aplicação a este caso das regras especiais previstas para a pluralidade de fiadores, isso não é suficiente para concluirmos que as regras do nosso regime geral do direito das obrigações não admitem que um avalista que paga uma letra de câmbio ou uma livrança, tenha um direito de regresso sobre os restantes avalistas do mesmo interveniente cambiário.
Para tomar posição nesta questão importa recordar os momentos em que ela foi discutida na Conferência de Genebra, consultando as respetivas “Comptes rendus” [8].
Na 18ª Sessão realizada em 23 de maio de 1930 [9], quando se analisava o texto do artigo 46º, do Projeto de Regulamento Uniforme (que corresponde ao atual artigo 47º, da L.U.L.L.) o Presidente da Conferência, M.J. Limburg, deu conhecimento de uma proposta de alteração apresentada pela Itália que consistia na introdução de um novo parágrafo com a seguinte redação: Quando vários obrigados ocuparem uma posição do mesmo grau, não haverá lugar entre eles a uma ação cambiária, ainda que tenham assinado sucessivamente; as suas relações recíprocas, salvo convenção em contrário, ficarão subordinadas às disposições que regulam as obrigações solidárias.
O perito italiano Auguste Weiller, representante da Confederação Geral Bancária Fascista, depois de explicar que esta proposta tinha sido feita a pedido dos “homens de negócios”, uma vez que a aposição de vários avales credibilizavam as letras de câmbio, disse:
“…Trata-se de saber qual é a situação destes avalistas. Relativamente ao possuidor a situação é clara. Eles são devedores solidários; o possuidor tem o direito de reclamar o pagamento a qualquer um, à sua escolha.
Mas qual é a relação entre os avalistas? Não se pode atribuir àquele que pagou uma ação contra o outro ou os outros avalistas, porque ocorreria um fenómeno de báscula: o primeiro pagador demandaria o segundo e este demandaria aquele. Nunca mais teria fim. A questão deverá ser resolvida através do funcionamento da presunção da divisão da responsabilidade quando diversos obrigados têm uma posição do mesmo grau, mesmo se eles apuseram a sua assinatura sucessivamente. As relações entre eles são então reguladas pelos princípios ordinários da solidariedade no direito comum. Se eles são dois, cada um pagará metade, salvo no caso de existir convenção especial acordada entre eles…”
Depois dos delegados da Polónia e da Alemanha terem manifestado a sua oposição à proposta italiana, porque ela tinha o defeito de ultrapassar o fim que havia sido anunciada pelo perito italiano, o Presidente da Conferência referiu o seguinte:
“Não há qualquer dúvida que se, por exemplo, existem vários avalistas, são signatários do mesmo grau, sendo, pois, solidários, mas solidários do ponto de vista do direito civil, e a ação civil é regulada pelas disposições do direito civil sobre as obrigações solidárias”.
Mas, considerando pertinentes as observações feitas pelo delegado polaco, entendeu que a discussão havida era suficiente para satisfazer a delegação italiana “pois, estavam de acordo em reconhecer que os signatários do mesmo grau são, entre eles, devedores solidários, que têm um direito de regresso entre eles, segundo as disposições civis sobre os obrigados cambiários”, tendo, em conclusão, “entendido que talvez fosse suficiente mencionar esta troca de pontos de vista no relatório”.
O delegado italiano Amedeo Giannini declarou que “se a Conferência estava de acordo em inserir algumas palavras a este respeito no relatório, a delegação italiana não insistia na sua proposta”.
O Presidente perguntou então se a Conferência estava de acordo em constar no relatório que ela partilhava dos pontos de vista da delegação italiana, o que foi aprovado, tendo o delegado italiano retirado aquela proposta.
Em cumprimento do decidido no relatório do Comité de Redação, aprovado na sessão de 5 de junho de 1930, ficou a constar no ponto 75 o seguinte:
“Uma delegação tinha proposto que fosse expressamente previsto o caso em que uma pluralidade de avales são dados por uma mesma pessoa, e se determinasse a caráter jurídico das ações que pudesse haver lugar entre os avalistas. A Conferência decidiu que não existiam entre eles relações cambiárias, mas somente relações de direito comum que uma lei uniforme sobre a letra de câmbio não tinha que regular” [10].
E no ponto 112:
“A Conferência emitiu a opinião que quando haja uma pluralidade de obrigados do mesmo grau (caso do concurso duma pluralidade de avalistas que garantem o mesmo devedor) mesmo se estes obrigados apuseram a sua assinatura sucessivamente, eles não podem exercer uns contra os outros a ação cambiária que resulta da letra de câmbio. Salvo convenção em contrário, as suas relações recíprocas são reguladas neste caso pelas disposições de direito comum sobre as obrigações solidárias” [11].
Deste relato circunstanciado, que revela com clareza o pensamento do legislador, resulta, sem margem para equívocos, que não foi conferido ao avalista que pagou a letra o poder de acionar cambiariamente os demais avalistas. Com o pagamento ele fica apenas subrogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra (artigo 32º, parágrafo 3º, da L.U.L.L.), mas, tal como a pessoa avalizada não o podia fazer, também ele não pode exigir o pagamento da letra aos outros avalistas.
Todavia, conforme fez questão de afirmar a Conferência de Genebra, isso não impede que as relações entre os avalistas sejam reguladas, não existindo convenção em contrário entre eles, pelas disposições do direito interno de cada país relativas às obrigações solidárias.
Na verdade, nos termos do artigo 47º, parágrafo 1º, da L.U.L.L., os avalistas são solidariamente responsáveis para com o portador da letra.
Ora, sendo devedores solidários, dispõe o regime geral deste tipo de obrigações que nas relações entre si se presume que comparticipam em partes iguais na dívida – artigo 516º, do C. Civil – e que o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos codevedores, na parte que a estes compete – artigo 524º, do C. Civil.
O fim comum das obrigações autónomas assumidas pelos diversos avalistas – garantir a satisfação do débito cambiário do avalizado – justifica plenamente que não seja apenas aquele que primeiro pagou voluntariamente o crédito garantido ou aquele que o credor escolheu para lhe executar o património que satisfaça sozinho essa finalidade comum. Apesar de cada um dos avalistas responder perante o credor pela totalidade da dívida, impõe a ideia de justiça que entre eles a responsabilidade pela satisfação da finalidade comum a todos seja, a final, repartida precisamente por todos.
O direito de regresso entre os avalistas não corresponde, pois, ao exercício de qualquer ação cambiária, mas tem a sua causa no pagamento por um avalista da dívida cambiária, resultando do regime geral das obrigações solidárias, como são as dos avalistas do mesmo interveniente cambiário, pelo que prescinde da existência de qualquer relação extracartular entre eles. Para a sua constituição basta serem devedores solidários e que um deles tenha pago o débito cambiário.
Esta construção não confere natureza cambiária a este direito de regresso, nem se socorre das regras previstas para as situações de pluralidade de fiadores, limitando-se a aplicar o regime geral das obrigações solidárias, tal como foi decidido na Conferência de Genebra, correspondendo por isso à posição prevalecente entre os países que, tendo subscrito a Convenção que aprovou a L.U.L.L., costumam servir de referência entre nós, em matéria de direito civil comparado [12].”
O direito de regresso entre os coavalistas existe e o mesmo segue o regime comum do direito de regresso entre os obrigados solidários e não o regime das relações entre cofiadores, constante do artigo 650.º do Código Civil.
Além disso, refira-se que, nos termos desse preceito, a obrigatoriedade de excussão dos bens do devedor só ocorre nos casos de cumprimento voluntário da obrigação pelo cofiador (n.º 3) e não quando o cumprimento pelo cofiador sucede na sequência de demanda judicial (n.º 2).
Por estas razões não estava o Autor obrigado a previamente excutir os bens da sociedade subscritora da livrança antes de reclamar do Réu o reembolso de metade do que despendeu no pagamento dessa livrança, improcedendo este fundamento do recurso.

5. Da compensação
O Réu, na contestação, excecionou a compensação do crédito invocado pelo Autor com a existência de um crédito da subscritora da livrança sobre o Autor.
A decisão recorrida não conheceu desta defesa por ter entendido que, segundo as regras do atual Código de Processo Civil (alínea c), do n.º 2, do artigo 266.º), a compensação de créditos tem que ser deduzida em reconvenção.
Concordamos que o Código de Processo Civil de 2013 tomou posição na polémica suscitada no domínio do anterior Código sobre o meio de defesa processual que deve ser utilizado pelo demandado para opor uma situação de compensação de créditos, tendo optado por exigir que esta fosse deduzida através de reconvenção no citado artigo 266.º, n.º 2, c), independentemente do valor dos créditos em causa, quando o crédito compensatório não se encontre ainda judicialmente reconhecido [13].
Por isso, o Réu deveria ter deduzido a compensação de créditos atráves da dedução de pedido reconvencional, o que não fez.
A Recorrente alega que, seguindo-se este entendimento, então a Ré deveria ter sido convidada a formular o respetivo pedido, nos termos do artigo 590.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Apesar de se admitir, em tese geral, que sobre o juiz possa recair um dever de convidar o demandado a formular a invocação da compensação, através da dedução de um pedido reconvencional, de forma a dar cumprimento à exigência prevista no artigo 266.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, neste caso, não se justifica o cumprimento desse dever, dado que os factos alegados pelo Réu não são suscetíveis de fazer operar uma compensação de créditos.
Nesta matéria, o Réu alegou o seguinte da contestação apresentada:
19.º O A. B… e o avalista C…, assumiram a gerência da sociedade em 28/02/2001, tendo ambos assumido tal cargo, em exclusividade, em 14/03/2013, data em que o R. renunciou à gerência da sociedade F…, Lda.
20.º Durante tal período, o A. e o avalista D…, aproveitando o cargo de gerência, obtiveram benefícios económicos indevidos, à custa do património da sociedade e, bem assim, à custa dos dividendos que caberiam ao próprio R..
Assim,
21.º O A., juntamente com o coavalista D…, após o dia 1 de abril de 2013, desviaram bens propriedade da sociedade, fazendo-os seus, no valor de €13.800,00 – protesta-se juntar listagem dos bens.
22.º Receberam, ainda, os então gerentes, montantes correspondentes a pagamentos de clientes, devidos à sociedade, não entregando, porém, os mesmos, àquela, tendo beneficiado, em conjunto de tais quantias.
23.º Ou seja, receberam quantias de clientes da F…, que ascenderam a €37.900,00 e, de forma ilícita, ficaram com tais valores para si, conforme lista de clientes que se protesta, desde já, juntar.
24.º No total, o A. recebeu, indevidamente, a quantia de €25.850,00, pertencente à sociedade F…, devedora principal.
Ora,
25.º De harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 847.º do C.C., quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor.
26.º Como tal, sendo a devedora principal, a sociedade F…, credora do A., na quantia de €25.800,00, sempre deve tal crédito sobre o A., ser reconhecido, de forma que se opere a compensação que ora se invoca.
27.º Assim, mostrando-se tal crédito da subscritora da livrança, a sociedade F…, sobre o A. reconhecido e procedendo-se, consequentemente, à compensação desse saldo, no montante de €25.850,00, com o crédito emergente da livrança, no valor €50.104,24, extingue-se este último crédito sobre a devedora principal e subscritora.
28.º Não é a sociedade devedora do A., de qualquer quantia.
29.º Estando assim, desonerada.
30.º Donde decorre que, concomitantemente, não é o R. passível de ser responsabilizado pelo pagamento de qualquer quantia ao A..
Caso assim se não entenda,
31.º O R., como se disse, à data dos factos acima descritos, era sócio da sociedade F…, tendo uma quota no valor de €9.000,00, ou seja, correspondente a 30% do capital da mesma.
32.º Donde decorre que, ao mesmo caberia receber, a título de dividendos, a quantia correspondente a 30%.
Assim,
33.º De igual forma, sendo o R. credor do A., sempre deve tal crédito sobre o A., ser reconhecido, de forma que se opere a compensação entre ambos, com a consequente extinção do crédito invocado pelo A..
Do excerto transcrito, resulta que o crédito invocado pelo Réu, para compensar o crédito invocado pelo Autor, é titulado pela sociedade subscritora da livrança e não pelo Réu. Apesar deste, na parte final da sua alegação, referir que, sendo sócio dessa sociedade, tem direito a receber dividendos, pelo que também ele é credor do Autor, tal alegação não é idónea ao reconhecimento de um direito de indemnização por responsabilidade extracontratual de que o Réu seja titular, uma vez que, nos termos do artigo 79.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, os gerentes ou administradores das sociedades só respondem para com os sócios pelos danos que diretamente lhes causarem no exercício das suas funções. A repercussão que poderá resultar para o direito a dividendos do Réu, do comportamento imputado ao Autor, apenas é suscetível de configurar um dano reflexo, o qual não é indemnizável, nos termos do referido artigo 79.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, nem nos termos gerais da responsabilidade civil extracontratual constantes dos artigos 483.º e seguintes do Código Civil.
E, quanto ao alegado crédito da sociedade da qual o Réu e o Autor são sócios sobre este último, há que ter em consideração que, nos termos do artigo 851.º, n.º 2, do Código Civil, só podem ser utilizados na compensação créditos que pertençam ao devedor, e não a terceiro como é no presente caso a sociedade F…, pelo que os factos alegados pelo Réu não são suscetíveis de configurar uma situação de compensação de créditos dotada de eficácia.
Assim sendo, não se justifica determinar-se que o Réu seja convidado a deduzir um pedido, relativamente ao qual não foi alegada causa de pedir que possa conduzir à sua procedência.

6. Do montante da dívida do Réu
Em 27.05.2013, a sociedade “F…, Lda”; subscreveu a favor da “G…” uma livrança, com vencimento na mesma data, no valor de €50.104,24.
O Autor, o Réu, D… e H… avalizaram pessoalmente a mencionada livrança.
Esta não foi paga aquando do seu vencimento pela sociedade subscritora.
Tendo sido exigido em processo executivo pelo portador da livrança o pagamento de €48.157,69 de capital, €979,65 de juros de mora, e €51 de taxa de justiça da execução, titulados pela referida livrança, D… e H…, na qualidade de avalistas, pagaram 50% desses valores, no montante de €27.695,80, e o Autor, também na qualidade de avalista, pagou os restantes 50%, no valor de €27.695,80.
Como acima vimos, nas relações entre os coavalistas aplicam-se as regras das obrigações solidárias.
O artigo 516.º do Código Civil dispõe que nas relações entre si, presume-se que os devedores solidários comparticipam em partes iguais na dívida, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deva suportar o encargo da dívida.
Nada tendo resultado que infirme esta presunção, antes a confirmando o facto de todos os avalistas serem sócios da sociedade subscritora da livrança avalizada, deve considerar-se que o Autor, o Réu, D… e H…, nas relações entre si, são responsáveis em igual medida pelo pagamento da livrança, ou seja em ¼ cada um.
E o artigo 524.º do Código Civil dispõe que o devedor que satisfizer o direito do credor, além da parte que lhe competir, tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete.
Tendo D… e H…, na qualidade de avalistas, pago 50% dos valores titulados pela livrança, nos termos do artigo 48.º, da LULL, aplicável ex vi do artigo 77.º da mesma Lei, no montante de €27.695,80, e o Autor, também na qualidade de avalista, pago os restantes 50%, no valor de €27.695,80, apenas o Autor satisfez o crédito do portador da livrança para além do que lhe competia, pelo que só ele tem direito a exigir do Réu a parte pelo qual este era responsável, ou seja ¼ da dívida (€13.847,90).
Revela-se, pois, corretamente calculado na decisão recorrida o montante exigível ao Réu pelo Autor.

7. Conclusão
Improcedendo todas as razões invocadas pelo Recorrente, cumpre julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.
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Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo Réu e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
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Custas pelo Recorrente.
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Porto, 30 de janeiro de 2017
Cura Mariano
Maria José Simões
Abílio Costa
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[1] Acórdão de 5-6-2012, relatado por Abrantes Geraldes, acessível em www.dgsi.pt.
[2] Após a prolação do aresto uniformizador referido na nota anterior, seguiram igual posição os seguintes acórdãos:
do S.T.J., de 30.4.2015, relatado por Abrantes Geraldes;
da Relação do Porto de 9.5.2013, relatado por Deolinda Varão;
da Relação do Porto, de 7.11.2016, relatado por Miguel Baldaia;
da Relação de Lisboa, de 30.5.2013, relatado por Ondina Alves;
da Relação de Lisboa, de 18.3.2014, relatado por Isabel Fonseca;
da Relação de Coimbra, de 3.6.2014, relatado por Jorge Arcanjo;
da Relação de Évora, de 26.6.2013, relatado por Canelas Brás.
[3] Em Da letra e da livrança, segundo a Lei Uniforme e o Código Comercial, vol. VII, 2.ª parte, pág. 583-589, ed. s.d., do autor.
[4] Em Das letras, livranças e cheques, pág. 434, ed. 1905, França Amado.
[5] Cfr. os seguintes Acórdãos, todos acessíveis em www.dgsi.pt:
do S.T.J.:
de 22.4.1953, relatado por Lopes Cardoso no B.M.J. n.º 43, pág. 536.
de 16.3.1956, relatado por Lencastre da Veiga, no B.M.J. n.º 55, pág. 299.
de 27.11.1962, relatado por Bravo Serra, no B.M.J. n.º 121, pág. 355.
de 21.2.1967, relatado por Correia Guedes, no B.M.J. n.º 164, pág. 335.
de 7.7.1999, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano VII, tomo 3, pág. 14, relatado por Ribeiro Coelho.
de 24.10.2002, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano X, tomo 3, pág. 121, relatado por Silva Salazar.
de 29.4.2008, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano XVI, tomo 2, pág. 41, relatado por Moreira Camilo.
Da Relação do Porto:
de 12.12.2002, relatado por Oliveira Vasconcelos, acessível em www.dgsi.pt, proc. n.º 0232527.
de 27.5.2004, relatado por Fernando Batista, acessível em www.dgsi.pt, proc. n.º 0432601.
de 27.2.2007, relatado por Emídio Costa, acessível em www.dgsi, proc. n.º 0720506.
de 27.2.2007, relatado por Henrique Araújo, acessível em www.dgsi.pt, proc. n.º 0626567.
Da Relação de Lisboa:
de 16.4.09, relatado por Teresa Prazeres Pais, acessível em www.dgsi.pt, proc. n.º 10024/08-8.
Da Relação de Coimbra:
de 19.2.2004, relatado por Jorge Arcanjo, acessível em www.dgsi.pt, proc. n.º 4019/03.
[6] No vol. III, pág. 947-978, ed. 2007, Coimbra Editora.
[7] Acessível no site www.dgsi.pt, relatado por Azevedo Ramos.
[8] Publicadas na Série de Publicações da Sociedade das Nações Questions économiques et financières, 1930 II 27.
[9] Pág. 290 e seg. da ob. cit. na nota anterior, designadamente pág. 298-299.
[10] Pág. 136 da ob. referida na nota 8.
[11] Pág. 142-143 da ob. referida na nota 8.
[12] Em Itália, onde, aproveitando o sistema de receção do direito internacional convencional, se consagrou expressa­mente no artigo 62º, da Legge Cambiale, um parágrafo com a proposta de aditamento que tinha sido retirada na Conferência de Genebra, Formiggini, em L´azione ordinária contro il coavallante, na RDC, XXX (1932), II, pág. 291 e seg., Gianfranco Campobasso, em Coobbligazione cambiaria e solidarietà desiguale, pág. 36 e seg, ed. de 1974, Jovene, Pavone La Rosa, em La cambiale, pág. 640-643, ed. de 1982, Giuffrè, António Segreto e Aldo Carrato, em La cambiale, pág. 279-280 e 495-498, ed. 1996, Giuffrè; em Espanha, Angel Rojo, em “Derecho Cambiário – Estúdios sobre la ley cambiaria y del cheque”, pág. 599, ed. de 1986, Civitas; em França, René Roblot, em Les effets de commerce, pág. 219, ed. de 1975, Sirey; na Alemanha, Martin Stranz, em Wechelsgesetz, comentário ao art.º 30, pág. 197, e ao art.º 47º, pág. 721, ed. 1952, De Gruyter; e no Brasil, Wille Duarte Costa, em Títulos de crédito, pág. 290, da 4ª ed., Del Rey.
[13] Neste mesmo sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em Código de Processo Civil anotado, vol. I, 3.ª ed., Coimbra Editora, pág. 519-522, Paulo Pimenta, em Processo civil declarativo, pág. 183-187, ed. de 2014, Almedina, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, em Primeiras notas ao novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., pág. 259, e os seguintes Acórdãos:
- da Relação de Coimbra, de 7.6.2015, relatado por Fonte Ramos;
- da relação do Porto, de 2.7.2015, relatado por Pedro Martins;
- da Relação do Porto, de 8.7.2015, relatado por Carlos Querido;
- da Relação de Lisboa, de 12..11.2015, relatado por Jorge Leal, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
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Sumário:
(da reponsabilidade do relator, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.):
I - Sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime geral previsto para as obrigações solidárias e não o regime das relações entre cofiadores, constante do artigo 650.º do Código Civil.
II - O Código de Processo Civil de 2013 tomou posição na polémica suscitada no domínio do anterior Código sobre o meio de defesa processual que deve ser utilizado pelo demandado para opor uma situação de compensação de créditos, tendo optado por exigir que esta fosse deduzida através de reconvenção independentemente do valor dos créditos em causa, quando o crédito compensatório não se encontre ainda judicialmente reconhecido.
III - Admite-se que sobre o juiz possa recair um dever de convidar o demandado a formular a invocação da compensação, através da dedução de um pedido reconvencional, de forma a dar cumprimento à exigência prevista no artigo 266.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Cura Mariano