Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
873/16.5T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
RESPONSABILIDADE DOS GERENTES
CREDORES SOCIAIS
Nº do Documento: RP20171214873/16.5T8VFR.P1
Data do Acordão: 12/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 800, FLS 172-186)
Área Temática: .
Sumário: I - No art. 78º, nº 1 do Cód. das Sociedades Comerciais consagra-se a responsabilidade direta dos gerentes e administradores para com os credores sociais, dependendo a procedência da ação respetiva da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: i) que o facto do gerente constitua uma inobservância culposa de disposições legais destinadas à proteção dos interesses dos credores sociais; ii) que o património social se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos; iii) que o acto do gerente possa considerar-se causa adequada do dano.
II - A verdade patrimonial de uma sociedade não se demonstra com a mera declaração dos seus sócios, constante da respetiva escritura de dissolução, de que a sociedade não tem ativo nem passivo.
III - Provando-se que os réus procederam à dissolução da sociedade com o objetivo de impedir o pagamento do crédito do autor, tendo, porém, continuado a exercer a sua atividade – de compra e venda de veículos automóveis usados – no mesmo local em que o anteriormente o fazia a sociedade extinta, terá que se considerar que atuaram em prejuízo daquele credor social, violando o dever geral de diligência que sobre eles impendia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 873/16.5 T8VFR.P1
Comarca de Aveiro – Santa Maria da Feira – Instância Local – Secção Cível – J1
Apelação
Recorrentes: B... e C...
Recorrido: D...
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
O autor D... intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra os réus B... e mulher, C..., pedindo a condenação destes a pagar-lhe a quantia de 12.000,00€, acrescida de juros de mora vencidos, no total de 1.640,00€, e dos vincendos contados desde a data da entrada da petição inicial (15.10.2015), à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
Invocou para o efeito, e em síntese, que os réus eram sócios gerentes de direito e de facto da sociedade “E..., Lda.”, com sede na Rua ... freguesia ..., concelho de Ovar, com o capital social de 50.000,00€, distribuídos em duas quotas de 25.000,00€ por ambos.
Por sentença proferida no âmbito do processo n.º 2733/12.0TBVFR, e confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7.9.2015 a referida sociedade comercial foi condenada a pagar-lhe a quantia de 12.000,00€, correspondente ao valor comercial do veículo automóvel da marca Opel ..., com a matrícula ..-..-ZZ.
Sucede, porém, que, em 22.2.2012, os réus através de escritura celebrada em Cartório Notarial, dissolveram e liquidaram a referida sociedade comercial, declarando que não tinha ativo, nem passivo, não obstante fossem conhecedores da ação judicial acima mencionada que então já se encontrava pendente.
Deste modo, ao dissolveram a sociedade os réus visaram impedir o pagamento ao autor do montante de que a sociedade era devedora, cessando a atividade desta e passando a exercer a mesma atividade através da criação de uma outra pessoa coletiva que adotou a designação de “F..., Lda.”, constituída pelo réu marido, mantendo a mesma sede, as mesmas instalações e o escritório da sociedade comercial dissolvida pelos réus em 22.2.2012.
Conclui, assim, pela responsabilização dos réus pelo facto de com essa conduta o terem privado de obter da sociedade devedora o pagamento da quantia a que esta foi condenada, invocando, em seu abono, as normas previstas nos artigos 78º e 79º do Cód. das Sociedades Comerciais e 334º e 483º do Cód. Civil.
Regularmente citados, os réus deduziram contestação, na qual excecionam a sua ilegitimidade processual passiva, a existência de caso julgado e a prescrição do invocado direito de crédito.
Impugnam, ainda, a factualidade alegada na petição inicial, concluindo pela sua absolvição.
No exercício do direito ao contraditório, pronunciou-se o autor pela improcedência das exceções invocadas.
Foi proferido despacho saneador, nos termos do qual foram julgadas improcedentes as invocadas exceções de ilegitimidade processual passiva e do caso julgado, relegando-se para decisão final o conhecimento da alegada prescrição. Depois, enunciou-se o objeto do litígio e elaboraram-se os temas de prova.
Realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
Por fim, proferiu-se sentença que julgou a ação totalmente procedente e condenou os réus a pagar ao autor a quantia de 13.640,00€, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos calculados, à taxa legal de 4%, sobre o montante de 12.000,00€, contados desde a data da entrada da petição inicial (15.10.2015) até efetivo e integral pagamento.
Inconformados, os réus interpuseram recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª Por via deste recurso impugna-se quer a decisão relativa à matéria de facto e sua fundamentação, quer a decisão relativa à matéria de direito e sua fundamentação;
2.ª Da análise das declarações de parte do Réu/Recorrente marido, totalmente corroboradas pelas declarações de parte da Ré/Recorrente mulher, bem como, do alegado na própria motivação da decisão recorrida e dos documentos juntos a fls. destes autos - escritura de dissolução e liquidação da sociedade sob a firma “E..., Lda.”; certidão judicial do processo n.º 296396/10.7YIPRT; certidão judicial do processo n.º 2733/12.0TBVFR - isoladamente ou conjugados entre si, não é lícito dar-se como provado que “10. Os Réus, quando realizaram a escritura, sabiam que contra o Réu marido e a sociedade “E..., Lda.” corria a acção judicial com o n.º 29639/10.7YIPRT, no então 1.º Juízo Cível de Santa Maria da Feira, tendo sido proferido acórdão do Tribunal da Relação do Porto em 12 de Maio de 2012.”;
3.ª Da análise das declarações de parte dos Réus/Recorrentes, totalmente corroboradas pelo depoimento coerente e crível das testemunhas G... e H..., bem como, do que redunda da prova dos factos 8., 26., 27. e 28. e bem assim, dos documentos juntos a fls. destes autos - certidão permanente da sociedade sob a firma “F..., Lda.”; ofício n.º......, de 10-01- 2017, da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, Pelouro das Obras Municipais, Proteção Civil, Ambiente e Saúde; artigos de informação juntos aos autos pelos Réus/Recorrentes na audiência de julgamento do dia 04-11-2016 - isoladamente ou conjugados entre si, não é lícito dar-se como provado que “13. Os Réus executaram com a dissolução da sociedade “E..., Lda.” um plano para impedir o pagamento ao Autor, cessando a actividade da sociedade e passando a exercer a mesma actividade através da criação de uma pessoa colectiva.”;
4.ª Da análise das declarações de parte dos Réus/Recorrentes, totalmente corroboradas pelo depoimento coerente e crível da testemunha G..., bem como, dos documentos juntos a fls. destes autos - escritura de dissolução e liquidação da sociedade sob a firma “E..., Lda.” e documentos insertos a fls. dos requerimentos ref.ªs 23916067, 23916243, 23916335, 23916489, 23916688, 23916771, todos de 26-10-2016, sob os n.ºs 1 a 17 - isoladamente ou conjugados entre si, é lícito dar-se como não provado que “15. Os RR. ao dissolverem e liquidarem a sociedade “E..., Lda.” sabiam com isso que impediram que esta pagasse ao Autor a quantia em que foi condenada no processo 2733/12.0TBVFR.”;
5.ª Não resulta dos autos a alegação e consequente prova de qualquer facto que permita concluir que “15. Os RR. ao dissolverem e liquidarem a sociedade “E..., Lda.” sabiam com isso que impediram que esta pagasse ao Autor a quantia em que foi condenada no processo 2733/12.0TBVFR.”, por outro, não foi alegado pelo Autor/Recorrido, ónus de alegação que, salvo o devido respeito por opinião contrária, lhe cabia, qualquer facto que permita, ainda, concluir que caso os Réus/Recorrentes não tivessem cessado a respetiva atividade a sociedade sob a firma “E..., Lda.” teria condições e disponibilidade para pagar ao Autor/Recorrido o valor do pedido em que, por sentença datada de 16-07-2014 - confirmada pelo Acórdão da Relação do Porto de 07-09-2015, transitado em julgado 29-09- 2015, veio a ser condenada;
6.ª É, portanto, insuficiente a matéria de facto alegada e provada para se concluir que: “15. Os RR. ao dissolverem e liquidarem a sociedade “E..., Lda.” sabiam com isso que impediram que esta pagasse ao Autor a quantia em que foi condenada no processo 2733/ 12.0TBVFR.”;
7.ª Da análise das declarações de parte do Réu/Recorrente marido, totalmente corroboradas pelas declarações de parte da Ré/Recorrente mulher e pelo depoimento coerente e crível das testemunhas G... e H..., bem como, dos documentos juntos a fls. destes autos - documentos insertos a fls. do requerimento ref.ª 23507188, de 13-09-2016, sob os n.ºs 8 a 15 - isoladamente ou conjugados entre si, não é lícito dar-se como provado que “21. A estrutura empresarial que sempre existiu na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Ovar, onde o Réu marido sempre exerceu a sua actividade de comércio de compra e venda de veículos automóveis ligeiros, continua intacta e não sofreu qualquer tipo de alteração no ano de 2012, nem antes nem depois.”;
8.ª Não é lícito dar-se como provado que “21. A estrutura empresarial que sempre existiu na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Ovar, onde o Réu marido sempre exerceu a sua actividade de comércio de compra e venda de veículos automóveis ligeiros, continua intacta e não sofreu qualquer tipo de alteração no ano de 2012, nem antes nem depois.”, quando se não prova que “Os equipamentos são os mesmos.” (Vide alínea c) dos factos não provados);
9.ª Atendendo a que o facto 22. não tem qualquer correspondência com qualquer um dos temas de prova, não é lícito dar-se como provado que “22. Os Réus continuam a vender veículos automóveis ligeiros nestas instalações tal como o faziam quando a “E..., Lda.” nelas estava sediada.”;
10.ª Do conteúdo da escritura de dissolução e liquidação da sociedade sob a firma “E..., Lda.”, conteúdo não impugnado pelo Autor/Recorrido, da força probatória plena de que é dotada tal escritura, não ilidida, também, pelo mesmo, da análise das declarações de parte do Réu/Recorrente marido, totalmente corroboradas pelas declarações de parte da Ré/Recorrente mulher e pelo depoimento coerente e crível das testemunhas G... e H..., bem como, dos demais documentos juntos a fls. destes autos - documentos insertos a fls. do requerimento ref.ª 23507188, de 13-09-2016, sob os n.ºs 8 a 15 e documentos insertos a fls. dos requerimentos ref.ªs 23916067, 23916243, 23916335, 23916489, 23916688, 23916771, todos de 26-10-2016, sob os n.ºs 1 a 17 - isoladamente ou conjugados entre si, é lícito dar-se como provado que “a) - À data da respectiva dissolução, a sociedade sob a firma “E..., Lda.” não dispunha de qualquer activo, ou sequer de passivo.”;
11.ª Não foi alegado pelo Autor/Recorrido, ónus de alegação que, salvo o devido respeito por opinião contrária, lhe cabia, qualquer facto que permita concluir que a sociedade sob a firma “E..., Lda.” à data da dissolução ou em 31-12-2011, data de encerramento das respetivas contas, tivesse qualquer ativo e/ou passivo;
12.ª O Autor/Recorrido não alegou e provou qualquer facto que possa infirmar que “a) - À data da respectiva dissolução, a sociedade sob a firma “E..., Lda.” não dispunha de qualquer activo, ou sequer de passivo.”;
13.ª Não resultando dos autos a alegação e consequente prova de qualquer facto que permita infirmar que os Réus/Recorrentes não receberam bens e/ou valores da partilha da sociedade sob a firma “E..., Lda.”, conjugado o referido com a análise das declarações de parte dos Réu/Recorrente marido, totalmente corroboradas pelas declarações de parte da Ré/Recorrente mulher e pelo depoimento coerente e crível das testemunhas G... e H..., bem como, dos documentos juntos a fls. destes autos - documentos insertos a fls. do requerimento ref.ª 23507188, de 13-09-2016, sob os n.ºs 8 a 15; escritura de dissolução e liquidação da sociedade sob a firma “E..., Lda.” e documentos insertos a fls. dos requerimentos ref.ªs 23916067, 23916243, 23916335, 23916489, 23916688, 23916771, todos de 26-10-2016, sob os n.ºs 1 a 17 - isoladamente ou conjugados entre si, é lícito dar-se como provado que “b) - Os Réus não receberam quaisquer bens e/ou valores da partilha da mesma.”;
14.ª Da análise das declarações de parte dos Réus/Recorrentes, totalmente corroboradas pelo depoimento coerente e crível das testemunhas G... e H..., bem como, do que redunda da prova dos factos 8., 26., 27. e 28. e dos documentos juntos a fls. destes autos - certidão permanente da sociedade sob a firma “F..., Lda.”; ofício n.º ....., de 10-01-2017, da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, Pelouro das Obras Municipais, Proteção Civil, Ambiente e Saúde; artigos de informação juntos aos autos pelos Réus/Recorrentes na audiência de julgamento do dia 04-11-2016 - isoladamente ou conjugados entre si, é lícito dar-se como provado que “d) - No ano de 2011 a sociedade sob a firma “E..., Lda.” exercia apenas a sua actividade no estabelecimento que detinha sito na Rua ..., n.º ..., em ..., Ovar.”;
15.ª Ao dar-se como provado - facto 28. - que: “No exercício de 2007 a sociedade declarou um prejuízo de € 35.850,63, no exercício de 2008 um prejuízo de € 6.588,33, no exercício de 2009 um prejuízo de € 5.354,05, no exercício de 2010 um lucro de € 2.721,22, no exercício de 2011 um prejuízo de € 23.592,70 e no exercício de 2012 um prejuízo de € 15.486,36.”, é lícito dar-se como provado que “e) - Desde o ano de 2007 que a sociedade sob a firma “E..., Lda.” revelava insuficiente viabilidade económica.”;
16.ª Da análise das declarações de parte dos Réus/Recorrentes, totalmente corroboradas pelo depoimento coerente e crível da testemunha G..., isoladamente ou conjugados entre si, é lícito dar-se como provado que “f) - O Réu marido decidiu dar início à actividade profissional a que sempre esteve ligado após a recuperação do estado depressivo em que se encontrava e por falta de ofertas de trabalho.”;
17.ª Existe erro de julgamento na apreciação da prova produzida em audiência ao dar-se como provados os factos 10., 13., 15., 21. e 22., factos que haviam de ter sido dados como não provados;
18.ª Existe erro de julgamento na apreciação da prova produzida em audiência ao dar-se como não provados os factos a), b), d), e) e f), factos que haviam de ter sido dados como provados;
19.ª No contexto factual singelo apurado nos autos, não se vislumbra ao abrigo de que normas ou princípios jurídicos seja possível e legítimo responsabilizar os Réus/Recorrentes pelo pagamento da indemnização em causa ao Autor/Recorrido;
20.ª Do disposto no art. 78.º, n.º 1 do CSC decorre que os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos;
21.ª À luz do que é o entendimento da nossa doutrina e jurisprudência - Acórdão do STJ, de 28-01-2016, processo n.º 1916/03 por todos - “A responsabilidade dos administradores de uma sociedade perante os credores sociais é de natureza extracontratual e depende da verificação cumulativa da inobservância de disposições legais ou contratuais destinadas à proteção dos credores sociais, da insuficiência do património social, da culpa dos administradores e do nexo de causalidade entre a referida inobservância e a insuficiência do património societário.”;
22.ª No caso dos autos, tendo presente o argumento já apresentado nas conclusões 2.ª a 16.ª não se vislumbra, qual foi a disposição legal ou contratual destinada a proteger interesses alheios que os Réus/Recorrentes violaram ao dissolverem a sociedade sob a firma “G..., Lda.”, num momento em que, como se referiu supra, a mesma não tinha qualquer passivo e acumulava resultados negativos que, globalmente, ascendiam a €71.385,71;
23.ª A douta sentença recorrida enferma de vício de interpretação e de aplicação do disposto no art. 78.º, n.º 1 do CSC, uma vez que, não se encontram preenchidos os requisitos para que o Autor/Recorrido possa exercer o direito à indemnização peticionada com recurso ao referido dispositivo;
24.ª A douta sentença recorrida violou o disposto no art. 78.º, n.º 1 do CSC;
25.ª A douta sentença recorrida violou, ainda, o disposto no art. 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC.
Pretendem assim a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue a ação improcedente.
O autor apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – Apurar se deve ser alterada a matéria de facto dada como provada e não provada;
II – Apurar se os réus devem ser responsabilizados perante o autor ao abrigo do art. 78º, nº 1 do Cód. das Sociedades Comerciais.
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É a seguinte a factualidade, com relevância para a decisão da causa, dada como provada:
1. Em 15-09-2010 o Autor instaurou procedimento de injunção contra o Réu marido e a sociedade sob a firma "E..., Lda." – Acção Declarativa Especial, que correu termos sob o processo n.º 296396/10.7YIPRT pelo (extinto) 1.º Juízo Cível, do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira - peticionando pelo pagamento da quantia de € 12.571,00 (Doze mil, quinhentos e setenta e um euros) [correspondente a € 12.000,00 de capital + € 520,00 de juros de mora + € 51,00 de taxa de justiça paga].
2. Por despacho datado de 07-04-2011, transitado em julgado, proferido nesses autos, foi a sociedade sob a firma "E..., Lda." julgada parte ilegítima na acção e, em consequência, absolvida da instância.
3. Por sentença, já transitada em julgado, foi julgada a acção improcedente, absolvendo-se o Réu B... do pedido contra ele formulado pelo Autor D..., tendo o referido Réu sido condenado em multa fixada em 4 UC’s por ter litigado de má-fé.
4. Em 23 de Maio de 2012 o Autor instaurou a acção com processo sumário, com o n.º 2733/12.0TBVFR, que correu termos na Comarca de Aveiro-Instância Local de SMF – Secção Cível-J3, o ali Autor, D..., pediu a condenação solidária dos ali Réus, B... e “E..., Lda.”, no pagamento da quantia de € 12.000,00, correspondente ao veículo comercial do veículo de matrícula ..-..-ZZ, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescido de juros, à taxa legal, desde a data da citação.
5. Alegou, para tanto e em síntese, que era dono e legítimo proprietário do veículo de marca Opel ..., com a matrícula ..-..-ZZ, e entregou tal veículo ao Réu para que o mesmo procedesse à sua venda pelo preço de € 12.000,00, sendo que o veículo foi objecto de furto, não tendo os Réus entregue o veículo nem outro de semelhantes características e valor, nem entregaram ao Autor qualquer valor que compensasse a perda do veículo, pelo que sofreu danos patrimoniais, correspondente ao valor comercial do veículo.
6. Por sentença datada de 16 de Julho de 2014 - confirmada pelo Acórdão da Relação do Porto de 7 de Setembro de 2015, transitada em julgado 29 de Setembro de 2015, foi julgada a acção parcialmente procedente e, em consequência:
I - Condenada a Ré “E..., Lda.” a pagar ao Autor D... a quantia de € 12.000,00, correspondente ao valor comercial do referido veículo, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação.
II – Absolvido o Réu B... do pedido formulado pelo Autor D....
7. Os Réus eram sócios-gerentes de direito e de facto da sociedade comercial denominada “E..., Lda.”, com sede na Rua ..., freguesia ..., concelho de Ovar, com o capital social de 50.000 euros, distribuídos em duas quotas de 25.000 euros por ambos os Réus.
8. A Ré C... renunciou ao cargo da gerência a 24 de Janeiro de 2007, inscrevendo tal facto no registo comercial mediante a Ap. 2/20070227.
9. Em 22 de Fevereiro de 2012, os Réus, através de escritura celebrada em Cartório Notarial, dissolveram e liquidaram a sociedade comercial “E..., Lda.” – NIPC ......... -, tendo declarado que a sociedade não tinha activo, nem passivo.
10. Os Réus, quando realizaram a escritura, sabiam que contra o Réu marido e a sociedade “E..., Lda.” corria a acção judicial com o n.º 29639/10.7YIPRT, no então 1.º Juízo Cível de Santa Maria da Feira, tendo sido proferido acórdão do Tribunal da Relação do Porto em 12 de Maio de 2012.
11. No seguimento da decisão proferida nesses autos o Autor intentou contra o Réu marido e a sociedade comercial “E..., Lda” o processo 2733/12.0TBVFR, enunciado em 4.
12. O Autor, ainda, nada recebeu dos Réus, nem da sociedade comercial por estes dissolvida em 22-02-2012, ou seja a quantia de 12.000 euros e juros já vencidos, no montante de € 1.640,00, contabilizado à data da entrada da petição inicial (15-10-2015).
13. Os Réus executaram com a dissolução da sociedade “E..., Lda.” um plano para impedir o pagamento ao Autor, cessando a actividade da sociedade e passando a exercer a mesma actividade através da criação de uma pessoa colectiva.
14. Os RR. eram sabedores que a sua representada “E..., Lda.” tinha sido accionada neste Tribunal pelo Autor.
15. Os RR. ao dissolverem e liquidarem a sociedade “E..., Lda.” sabiam com isso que impediram que esta pagasse ao Autor a quantia em que foi condenada no processo 2733/12.0TBVFR.
16. O Réu marido, em 04-07-2013, constitui a sociedade comercial “F..., Lda.”, NIPC ........., com o CAE-........, com sede no mesmo local e nas mesmas instalações da sociedade comercial dissolvida “E..., Lda.”, ou seja, na Rua ..., n.º ...., freguesia ..., concelho de Ovar.
17. A “E..., Lda.” tinha a sua sede desde sempre na Rua ..., freguesia ..., concelho de Ovar, numas instalações contíguas à casa de habitação dos Réus.
18. A nova sociedade comercial “F..., Lda.”, constituída pelo Réu marido, tem como sócio gerente este, e tem a mesma sede, as mesmas instalações e o escritório da sociedade dissolvida pelos Réus em 22 de Fevereiro de 2012.
19. O Réu marido continua a exercer a sua actividade de sempre no comércio de compra e venda de veículos automóveis, através da nova sociedade comercial “F..., Lda.”, no local onde a “E..., Lda.” estava anteriormente sediada, isto é, na Rua ..., freguesia ..., concelho de Ovar.
20. A sociedade “F..., Lda.” tem como objecto social o comércio de veículos automóveis ligeiros, bem como a manutenção e reparação de veículos automóveis.
21. A estrutura empresarial que sempre existiu na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Ovar, onde o Réu marido sempre exerceu a sua actividade de comércio de compra e venda de veículos automóveis ligeiros, continua intacta e não sofreu qualquer tipo de alteração no ano de 2012, nem antes nem depois.
22. Os Réus continuam a vender veículos automóveis ligeiros nestas instalações tal como o faziam quando a “E..., Lda.” nelas estava sediada.
23. A presente acção foi instaurada em 15 de Outubro de 2015.
24. Os Réus foram citados para a presente acção em 16 de Novembro de 2015, através de contacto pessoal de Agente de Execução face à frustração da citação postal.
25. O Autor teve conhecimento da dissolução da sociedade “E..., Lda.”, pelo menos, em 27 de Outubro de 2012.
26. Por despacho camarário de 24/97/2008 foi indeferido o pedido de licenciamento, junto da Câmara Municipal de Ovar da infraestrutura que compunha o estabelecimento de vendas da sociedade "E..., Lda." sito na Rua ..., n.º ..., em ..., Ovar e ordenada a sua demolição.
27. No início do ano de 2011 foi, ainda, diagnosticado ao Réu marido síndrome depressivo grave, tendo-lhe sido atestada incapacidade para o trabalho.
28. No exercício de 2007 a sociedade declarou um prejuízo de € 35.850,63, no exercício de 2008 um prejuízo de € 6.588,33, no exercício de 2009 um prejuízo de € 5.354,05, no exercício de 2010 um lucro de € 2.721,22, no exercício de 2011 um prejuízo de € 23.592,70 e no exercício de 2012 um prejuízo de € 15.486,36.
29. O Réu marido sempre esteve ligado ao comércio de veículos automóveis, ora como empresário em nome individual, ora como gerente das mencionadas sociedades.
30. O prédio sito na Rua ..., onde actualmente a sociedade “F...” exerce a actividade é, e sempre foi, um bem próprio dos Réus.
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Não se provaram os seguintes factos:
a) - À data da respectiva dissolução, a sociedade sob a firma "E..., Lda." não dispunha de qualquer activo, ou sequer de passivo.
b) - Os Réus não receberam quaisquer bens e/ou valores da partilha da mesma.
c) - Os equipamentos são os mesmos.
d) - No ano de 2011 a sociedade sob a firma "E..., Lda." exercia apenas a sua actividade no estabelecimento que detinha sito na Rua ..., n.º ..., em ..., Ovar.
e) - Desde o ano de 2007 que a sociedade sob a firma "E..., Lda." revelava insuficiente viabilidade económica.
f) - O Réu marido decidiu dar início à actividade profissional a que sempre esteve ligado após a recuperação do estado depressivo em que se encontrava e por falta de ofertas de trabalho.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I – Os réus/recorrentes, no seu recurso, insurgiram-se contra os factos provados sob os nºs 10, 13, 15, 21 e 22 e contra os factos não provados referidos nas alíneas a), b), d), e) e f), considerando-os incorretamente julgados.
É a seguinte a redação dos factos nºs 10, 13, 15, 21 e 22:
“10. Os Réus, quando realizaram a escritura, sabiam que contra o Réu marido e a sociedade “E..., Lda.” corria a acção judicial com o n.º 29639/10.7YIPRT, no então 1.º Juízo Cível de Santa Maria da Feira, tendo sido proferido acórdão do Tribunal da Relação do Porto em 12 de Maio de 2012.
13. Os Réus executaram com a dissolução da sociedade “E..., Lda.” um plano para impedir o pagamento ao Autor, cessando a actividade da sociedade e passando a exercer a mesma actividade através da criação de uma pessoa colectiva.
15. Os RR. ao dissolverem e liquidarem a sociedade “E..., Lda.” sabiam com isso que impediram que esta pagasse ao Autor a quantia em que foi condenada no processo 2733/12.0TBVFR.
21. A estrutura empresarial que sempre existiu na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Ovar, onde o Réu marido sempre exerceu a sua actividade de comércio de compra e venda de veículos automóveis ligeiros, continua intacta e não sofreu qualquer tipo de alteração no ano de 2012, nem antes nem depois.
22. Os Réus continuam a vender veículos automóveis ligeiros nestas instalações tal como o faziam quando a “E..., Lda.” nelas estava sediada.”
Por seu turno, as alíneas a), b), d), e) e f) têm a seguinte redação:
“a) - À data da respectiva dissolução, a sociedade sob a firma "E..., Lda." não dispunha de qualquer activo, ou sequer de passivo.
b) - Os Réus não receberam quaisquer bens e/ou valores da partilha da mesma.
d) - No ano de 2011 a sociedade sob a firma "E..., Lda." exercia apenas a sua actividade no estabelecimento que detinha sito na Rua ..., n.º ..., em ..., Ovar.
e) - Desde o ano de 2007 que a sociedade sob a firma "E..., Lda." revelava insuficiente viabilidade económica.
f) - O Réu marido decidiu dar início à actividade profissional a que sempre esteve ligado após a recuperação do estado depressivo em que se encontrava e por falta de ofertas de trabalho.”
No sentido das alterações pretendidas os réus/recorrentes indicaram excertos das declarações que eles próprios – B... e C... – prestaram, dos depoimentos produzidos pelas testemunhas G... e H... e ainda diversos documentos constantes dos autos.
Procedemos assim à integral audição da prova gravada que foi indicada pelos recorrentes.
O réu B... disse que é vendedor de automóveis, tendo formado em 1999 uma empresa – a D...” – com a sua esposa, que encerrou em Fevereiro de 2012. Correu tudo muito bem até às obras da rua onde mora, em que a estrada ficou muito tempo cortada, tendo perdido quase todos os clientes que ali passavam. Por isso, em 2006, abriu um novo stand na Rua ... e em 2007 a sua mulher fez renúncia à empresa para diminuir despesas, tendo, também, despedido dois funcionários em Junho desse ano. Ficou sozinho e em 2008 passou o stand em definitivo para a Rua ..., fechando o do .... Tentou recuperar a empresa a todo o custo. Em 2012, quando encerrou a empresa, não existiam dívidas. A empresa é que lhe estava a absorver o dinheiro que tinha junto. Não tinha passivo, nem ativo. Mas existiam perdas que assumiu para não estar a entrar em insolvência. Então, não tinha nada a dizer que havia alguma “acusação” contra a D... que o impedisse de encerrá-la. Aquando do encerramento da empresa, em 2012, esteve desempregado, mais ou menos 18 meses sem trabalho. Em 2011 teve uma depressão, tendo estado mais ou menos meio ano em tratamento, fechado, isolado, embora nesse período fosse ao stand. A médica deu-lhe autorização para abrir o stand, mesmo na junta médica lhe disseram para ir, mas quanto aos negócios, se houve alguém que o contactasse, era a esposa que atendia. Abriu, “em ponto pequenino”, uma outra empresa – a “F...” - em Julho de 2013, com uma parte do dinheiro que ainda tinha junto e com a ajuda de um tio. Atualmente não tem dinheiro para comprar carros, pede a amigos para os meterem lá. Antes era muito maior, chegou a ter 20 a 30 carros, numa exposição muito grande. Relativamente à nova sociedade disse ainda que começou do zero, com veículos à consignação. Tem sempre 1, 2 “carritos”; o resto tem à consignação. Os carros não são como antigamente, “não tem coisa que se compare”. Antes de abrir a nova empresa, colocou também a possibilidade de abrir uma florista por baixo da casa com a sua esposa ou uma drogaria. Salientou que quando fechou a empresa não tinha nada que lhe dissesse que não o podia fazer. Não tinha dívidas. Não tinha nenhum documento na sua mão que lhe dissesse que devia ao autor. Disse que a E... e a F... funcionam no mesmo prédio, “mas com posições diferentes”. Durante os últimos anos de atividade da E... foi injetando sempre dinheiro seu na empresa, mas para além de si e da sua esposa esta não devia dinheiro a mais ninguém.
Deste depoimento foi lavrada a seguinte assentada, nos termos do art. 463º do Cód. do Proc. Civil (fls. 231):
“Pela parte foi dito que o autor nunca recebeu dos réus, nem da sociedade por estes dissolvida, em 22.2.2012, ou seja a quantia de 12.000,00€ e juros já vencidos, no montante atual de 1.640.00€.
O réu marido, em 4.7.2013. constituiu a sociedade F..., Lda., com sede no mesmo prédio onde tem implantada a sua casa de habitação e onde esteve sediada, até 2008, a firma E..., Lda., esclarecendo, contudo, que os números de polícia não são coincidentes por o prédio estar dividido em dois artigos, correspondendo um deles ao número de polícia ..., casa de habitação e onde atualmente é a sede da F..., Lda., e o número ...., foi onde esteve a firma E..., Lda.
O réu marido continua a exercer a sua atividade no comércio de compra e venda de veículos automóveis, através da sociedade comercial F..., Lda. no mesmo prédio onde a E..., Lda. esteve anteriormente sediada, isto é, Rua ..., freguesia ..., concelho de Ovar.
O réu, na qualidade de sócio gerente da sociedade F..., Lda., continua a vender veículos automóveis ligeiros no mesmo prédio, tal como fazia com a E..., Lda. até 2008, com a particularidade de que agora o valor dos veículos é mais baixo dos que anteriormente tinha disponíveis para venda.”
A ré C... disse que fecharam a empresa – a E... – com prejuízo. A empresa andava a arrastar-se há uns poucos de anos, dava prejuízo e iam retirando do seu dinheiro, que tinham amealhado durante vários anos e ficaram sem ele. Injetaram lá capital para pagar despesas que não conseguiam cobrir. Queriam sair sem qualquer dívida, sem dever nada a ninguém. Depois de fecharem a empresa, o marido esteve sem trabalhar à volta de 18 meses, porque entretanto tinha entrado em depressão. Mas andou à procura de emprego na área da mecânica junto de um tio e outras pessoas, sem conseguir nada. Tiveram então a ideia de montar uma loja de flores e depois uma drogaria, mas não tinham dinheiro. Porém, como o “bichinho” dos carros estava lá começaram novamente com uma coisa pequenina, com “poucochinhos” carros, à consignação. Abriram assim com os carros que foram postos à consignação, “do nada”. Agora estão no stand que esteve aberto até 2008, no ..., o outro – na ... - foi fechado por causa da Câmara. As dificuldades da E... começaram quando a estrada foi cortada e os clientes se desviaram para outros sítios. Desde 2008 e até abrirem a nova empresa o stand do ... esteve sempre fechado. O escritório da “F...” fica na parte de baixo da casa, onde também já tinha tido escritório a E.... Sublinhou, porém, que em 2008 os equipamentos de escritório foram para o outro stand, na ... e ainda que atualmente o espaço de escritório em ... está muito diferente do que era no tempo da E... (“pintámos e fizemos alterações, uma divisória, mudámos aquilo”). Quando encerraram a E... não tinham ideia de que estavam a dever ao autor e nunca lhe pagaram nada.
Deste depoimento foi depois lavrada a seguinte assentada, nos termos do art. 463º do Cód. do Proc. Civil (fls. 232):
“Pela parte foi referido que o autor não recebeu desta, nem da sociedade comercial por ela dissolvida e pelo respetivo marido em 22.2.2012.
Esclareceu ainda que o réu marido constituiu a sociedade comercial F..., Lda., tendo o respetivo stand no mesmo local, situado no prédio de que são proprietários, na Rua ..., onde, até 2008, funcionou o stand do então giro da firma E..., Lda.
Pormenorizou que a atual firma F..., Lda. ocupa o rés-do-chão da casa que constitui a sua habitação e os carros ficam expostos no pátio adjacente à mesma, referindo que, até 2008, era também assim que funcionava o stand da sociedade E..., Lda.”
A testemunha G... é cunhada dos réus. Disse que quando conheceu os réus eles tinham um stand na própria habitação e que passados alguns anos abriram um novo stand numa outra localidade – .... Os dois stands estiveram abertos, em simultâneo, durante pouco tempo. O da habitação deixou de funcionar porque houve obras em frente da casa deles, o trânsito foi cortado e os clientes deixaram de passar por lá. Nos últimos anos trabalhavam só no .... Os problemas da E... relacionavam-se com o facto da empresa não lhes estar a dar os lucros que eles desejavam; estava era a dar prejuízo. A cunhada disse-lhe, inclusive, que estavam a tirar dinheiro particular deles para injetar na empresa. O seu cunhado atravessou então uma fase muito complicada a nível de saúde, esteve com uma depressão. Mais referiu que depois de encerrar a empresa o cunhado esteve algum tempo (cerca de um ano e meio) parado, desempregado, e pensou em virar-se para outro ramo – drogaria; flores -, sendo que nesse período não teve veículos à venda. O escritório da E... era por baixo da habitação e o da F... também, mas eles fizeram alterações. Fizeram uma divisória e passaram o escritório para a parte da frente. A área é a mesma, mas foi dividida. Disse ainda que o réu quando abriu a nova empresa comprou equipamentos novos a nível informático.
A testemunha H... é vendedor de automóveis há 18 anos, conhecendo, em virtude da sua atividade, quer o autor, quer os réus. Disse que o réu no princípio exerceu a sua atividade em casa, na Rua ..., depois abriu um stand novo numa variante em Ovar e chegou a ter os dois em conjunto. Ele teve dificuldades porque o comércio automóvel caiu para 50% e teve também azar com a estrada que por duas ou três vezes foi intervencionada, obrigando a desvio dos carros. Os anos maus para o comércio automóvel foram de 2007 a 2011, 2012 – “a gente passou de meia dúzia de carros para um, dois carros por mês”. A E... foi um concorrente forte, mas depois em 2008, 2009 ficou mais fraco e foi decaindo até fechar. Quando a E... fechou só tinha o ponto de venda da variante nova. Em 2011 a E... só tinha expostos uns “carritos velhos”, “talvez até nem fossem dele, dá-me a sensação que nem seria tudo dele, seria muita coisa à consignação”. O réu quando fechou apanhou uma depressão, esteve um ano e meio ou dois anos sem atividade. Agora, no stand novo tem lá 4 ou 5 carros fracos. A nova empresa – “F...” – é no mesmo sítio, na casa dele, e tem os carros cá fora na mesma. Mais disse que o réu insistiu no ramo dos automóveis porque tem 30 ou 40 anos deste ramo.
Procedemos também à audição dos depoimentos prestados pelas testemunhas I..., J... e K..., referenciados pelo autor nas suas contra-alegações.
I... é irmão do réu – com quem não fala - e empregado do autor, como bate-chapas. Disse que o réu, seu irmão, tem o stand do ... há cerca de 20 anos, tendo este estado sempre aberto ao público. Nunca o viu fechado. Durante algum tempo o réu teve dois stands abertos: em ... e no .... O escritório e o stand ficavam na parte de baixo da casa e atualmente pensa que continuam no mesmo sítio. Embora o placard publicitário tenha sido tapado durante algum tempo, continuaram a haver lá sempre veículos para venda. Sublinhou também que a sua cunhada estava igualmente envolvida no negócio. Não sabe a razão pela qual o autor encerrou a E....
J... é empregado do autor desde 2003. O stand do réu é no ... e sempre teve viaturas à venda, nunca tendo estado encerrado, sendo que a testemunha passa lá todas as semanas. O réu chegou a ter dois stands abertos em simultâneo – no ... e no .... À frente do stand estavam o Sr. B... e a esposa. Acrescentou que o placard publicitário a dizer E... foi tapado com um plástico preto e agora está lá, há três ou quatro anos, um placard com outras letras – LF. Referiu também que a estrada nunca esteve cortada, mal ou bem sempre se circulou.
K... é amigo do autor há trinta anos. Disse que conhece o stand da Rua ... há cerca de 15 anos. Passa lá quase todos os dias e sempre viu o stand aberto com carros expostos para venda.
Procedemos ainda à audição do depoimento prestado pela testemunha L... e às declarações produzidas pelo autor D....
L... foi TOC da empresa dos réus, tendo-se pronunciado tão-só sobre as declarações modelo 22 apresentadas pela “E..., Lda.”.
O autor D... disse que o réu esteve mais de 20 anos à frente da “E...”, que se dedicava à compra e venda de automóveis usados e que funcionava na casa dos réus. Só em 2014 soube que a empresa fechou. Salientou que o stand existente em ... sempre funcionou, sempre teve carros à venda, embora agora tenha outro nome.
Dos elementos documentais existentes no processo consta o seguinte:
- os réus B... e mulher C..., únicos sócios da sociedade comercial “E..., Lda.”, através de escritura pública celebrada em 22.2.2012, procederam à dissolução da sociedade a partir dessa data, tendo declarado que as contas da sociedade foram encerradas e aprovadas com data de 31.12.2011, verificando-se não existir ativo nem passivo (fls. 11/12);
- o réu B..., em 4.7.2013, constituiu a sociedade comercial “F..., Lda.”, com sede na Rua ..., ...., freguesia ..., concelho de Ovar, com o objeto de comércio de veículos automóveis ligeiros e manutenção e reparação de veículos automóveis (fls. 13),
- o autor, em 15.9.2010, instaurou procedimento de injunção contra o réu B... e a sociedade "E..., Lda.", sob o nº 296396/10.7YIPRT, que depois correria termos pelo (extinto) 1.º Juízo Cível, do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, peticionando o pagamento da quantia de 12.571,00€ (fls. 146);
- nesse processo, por despacho datado de 7.4.2011, transitado em julgado, foi a sociedade "E..., Lda." julgada parte ilegítima na ação e, em consequência, absolvida da instância, tendo a ação prosseguido contra o réu B... (fls. 149v/150);
- depois, por sentença proferida em 23.12.2011, a ação foi julgada improcedente e o réu B... absolvido do pedido contra ele formulado pelo autor D..., tendo, porém, o réu sido condenado em multa fixada em 4 UC’s por ter litigado de má-fé (fls. 150v/154);
- esta sentença foi confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 17.5.2012 (fls. 154v/156v);
- em 23.5.2012, o autor instaurou ação com processo sumário, com o n.º 2733/12.0TBVFR, que correu termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, tendo pedido a condenação solidária dos réus B... e “E..., Lda.”, no pagamento da quantia de 12.000,00€, correspondente ao valor comercial do veículo de matrícula ..-..-ZZ, acrescido de juros, à taxa legal, desde a data da citação (fls. 171/172);
- alegou, para tanto e em síntese, que era dono e legítimo proprietário do veículo de marca Opel ..., com a matrícula ..-..-ZZ, e entregou tal veículo ao réu para que o mesmo procedesse à sua venda pelo preço de 12.000,00€, sendo que o veículo foi objeto de furto, não tendo os réus entregue o veículo nem outro de semelhantes características e valor, nem entregaram ao autor qualquer valor que compensasse a perda do veículo, pelo que sofreu danos patrimoniais, correspondente ao valor comercial do veículo (fls. 171/172);
- por sentença datada de 16.7.2014, foi a ação julgada parcialmente procedente e, em consequência: i) condenada a ré “E..., Lda.” a pagar ao autor D... a quantia de 12.000,00€, correspondente ao valor comercial do referido veículo, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação; ii) absolvido o réu B... do pedido formulado pelo autor (fls. 180v/182v);
- esta sentença foi confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 7.9.2015 (fls. 183/186).
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O art. 662º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil estabelece que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Desde logo, no que toca ao nº 10 da matéria de facto provada, o que se constata é que aquando da escritura de dissolução da sociedade “E..., Lda.”, em 22.2.2012, a ação judicial com o nº 296396/10.7 YIPRT pendia apenas contra o réu B..., uma vez que por despacho datado de 7.4.2011 a sociedade “E...” havia sido julgada parte ilegítima e absolvida da instância.
Aliás, a ação até já tinha sido julgada improcedente também contra o réu B..., por sentença de 23.12.2011, sendo que esta ainda se mostrava pendente por entretanto ter sido interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual só seria decidido em 17.5.2012.
Deste modo, a fim de se compatibilizar com estes elementos processuais, a redação do nº 10 da factualidade assente tem que ser alterada nos seguintes termos:
“Os réus, quando realizaram a escritura, sabiam que contra o réu marido corria a ação judicial com o n.º 296396/10.7YIPRT, no então 1.º Juízo Cível de Santa Maria da Feira, tendo sido proferido acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto em 17.5.2012.
Prosseguindo.
Quanto à demais factualidade provada e não provada que se mostra impugnada pelos réus/recorrentes e através da qual, no essencial, se deu como assente que os réus dissolveram a sociedade “E...” para impedir que se concretizasse o pagamento ao autor da quantia em que esta sociedade foi condenada no âmbito do proc. 2733/12.0 TBVFR e que passaram a exercer a mesma atividade, no mesmo local em que sempre ela foi exercida, através de uma outra pessoa coletiva, há que ter em atenção toda a prova produzida nos autos – testemunhal e documental - na sua globalidade, não se podendo dissociar a dissolução da sociedade dos dois processos que precederam a instauração da presente ação.
Ora, da conjugação dos depoimentos prestados em audiência, que acima se deixaram sintetizados, com os elementos documentais existentes no processo e também com as regras da experiência, terá naturalmente que se concluir que os réus procuraram prosseguir a mesma atividade através da criação de uma outra pessoa coletiva, que lhe permitia libertarem-se das dívidas resultantes da atividade da “E...” e, em particular, da ameaça de condenação que sobre ela pendia conexionada com a viatura de matrícula ..-..-ZZ.
Na sua detalhada e bem estruturada motivação da decisão de facto escreveu o seguinte o Mmº Juiz “a quo” (fls. 327v/328):
“Com efeito, verifica-se que a dissolução da sociedade foi formalmente efectuada a 22 de Fevereiro de 2012, numa altura em que já havia sido julgada improcedente a primeira acção judicial intentada pelo Autor, cujos fundamentos tudo levavam a crer que o Autor intentasse nova acção judicial com diversa causa de pedir, dando, assim, o adequado enquadramento jurídico à solução que lhe permitiria ser-lhe judicialmente reconhecido o direito ao [ressarcimento] dos danos que sofreu pela conduta da sociedade “E..., Lda.”, como, aliás, efectivamente veio a suceder.
Ora, essa acção judicial surge a 23 de Maio de 2012, quando a sociedade Ré já havia sido dissolvida, mas sem que nenhum dos Réus, entre os quais o também ali Réu B..., comunicasse esse facto aos autos então em curso, sendo a matéria alegada nos articulados omissa a esse propósito, como aliás se reconhece no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (cfr. fls. 196v do p.p.).
Todavia, a inclusão da certidão do registo comercial surge no âmbito desse processo, a convite do Tribunal a quo, em 27 de Outubro de 2012, data em que foi notificado ao ilustre mandatário do aqui Autor. Logo, pelo menos nessa data, o Autor, ainda que na pessoa do seu mandatário, teve necessariamente conhecimento da dissolução da sociedade “E..., Lda.”, razão pela qual se deu como provado o item 25, pois não se apurou nenhum elemento que nos permite considerar que esse conhecimento fosse anterior a essa data.”
Os réus/recorrentes procuraram atribuir a causa da dissolução da sociedade “E...” a um quadro de doença – síndrome depressivo – que atingiu o réu B... no início do ano de 2011 e às dificuldades económicas com que então a sociedade se defrontaria.
Mas também aqui concordamos com o diagnóstico feito pelo Mmº Juiz “a quo” que considera estas razões com um mero pretexto para encobrir a verdadeira razão da dissolução da sociedade e que foi a de privar o autor do respetivo direito de crédito, através da extinção da sociedade devedora, acompanhada da afirmação de que esta não possuía ativo nem passivo.
Decisivo neste sentido é o facto de se ter apurado que os réus, sem qualquer interrupção, continuam a explorar um stand de automóveis na Rua ..., no mesmo local onde mantêm a sua casa de morada de família, funcionando o stand no rés-do-chão desse prédio e servindo o respetivo logradouro como local para exposição dos veículos automóveis disponíveis para venda ao público.
Os depoimentos das testemunhas J..., I... e K..., que passam no local com grande frequência, foram, aliás, claros no sentido de que o stand permaneceu sempre aberto ao público.
Neste contexto, é de realçar, em sintonia com a sentença recorrida, que o hiato temporal que mediou entre a liquidação da sociedade “E..., Lda.”, ocorrida em 22.2.2012, e a constituição da “F..., Lda.”, em 4.7.2013, não é de molde a abalar esta conclusão, atendendo a que com a nova sociedade apenas se operou uma mera renovação de equipamento informático e uma remodelação do espaço interior, com a colocação de uma divisória, como, aliás, o admite a ré C..., sem que tal se projetasse no ramo de atividade aí explorado.
“Ou seja, as alterações foram meramente pontuais e acessórias da actividade comercial desenvolvida do ramo de venda de veículos automóveis.”
O que se verifica, inequivocamente, é que ambas as sociedades criadas pelo réu B... prosseguem igual atividade comercial, a de comércio de veículos automóveis usados, utilizando o mesmo espaço, onde continua a funcionar o respetivo stand de automóveis.
E continuando, escreve o Mmº Juiz “a quo” (fls. 328v):
“(…) não podemos deixar de considerar que a empresa “E..., Lda.”, assim como a sociedade que a sucedeu, sempre foi gerida pelo Réu marido – que nunca conheceu outra actividade para além dessa – e pela respectiva esposa, a aqui Ré C..., que, como a própria afirmou em sede de declarações de parte, abandonou a sua carreira profissional para colaborar com o marido na actividade comercial da venda de veículos automóveis usados, daí resultando tratar-se de uma empresa familiar em que ambos exerciam as funções de gerentes de facto, representando a própria sociedade e com ela se confundindo.
Do confronto de todos estes elementos fica-nos claramente a ideia de que a sociedade “F...” foi a solução encontrada pelos Réus para impedir o Autor de executar o património da sociedade “E..., Lda.”, dada a provável existência do crédito que estava prestes a ser reclamado em Tribunal, cuja intenção o próprio já havia manifestado, ainda que, como vimos, nos termos da primeira acção, de uma forma juridicamente inadequada.”
Concordamos, pois, por inteiro com a solução factual encontrada na sentença recorrida que, ancorando-se ma prova testemunhal e documental produzida nos autos, é a que se mostra mais consentânea com as regras da experiência.
De resto, terá naturalmente que se sublinhar a contradição que é encerrar a atividade de uma empresa com o fundamental argumento da sua inviabilidade económica para depois constituir uma nova sociedade, como o mesmo objeto, a funcionar no mesmo local, com as mesmas pessoas e também com os mesmos potenciais clientes.
Se o comércio de automóveis usados era para os réus um insucesso, uma página que tinha de ser virada pelos prejuízos que lhes estava a causar com o progressivo desaparecimento das suas economias, porquê insistir nesta mesma atividade, tão deficitária? Porque não enveredar por outra atividade económica, porventura mais rentável? Porquê reincidir no erro?
Logicamente que todas estas interrogações, que não colhem resposta satisfatória, deitam por terra toda a esforçada argumentação produzida pelos réus nas suas alegações de recurso que, esbarrando com as regras da experiência comum, nos levam a extrair a mesma conclusão que foi retirada pela 1ª Instância – que a criação da sociedade “F..., Lda.” foi um expediente encontrado pelos réus para impedirem o autor de executar o património da “E..., Lda.”, face à provável existência do seu crédito que estava a ser tenazmente reclamado em tribunal.
Como tal, em inteira sintonia com a sentença recorrida, cuja linha argumentativa se seguiu e na qual não se vislumbra qualquer violação do disposto no art. 607º, nºs 4 e 5 do Cód. do Proc. Civil, mantém-se nos seus precisos termos a matéria fáctica dada como provada e não provada, com exceção da alteração introduzida na redação do seu nº 10, acima assinalada.
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II – Dispõe o art. 78º, nº 1 do Cód. das Sociedades Comerciais que «os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos
Consagra-se aqui a responsabilidade direta dos gerentes e administradores para com os credores sociais.
Trata-se de responsabilidade de natureza delitual ou extracontratual, que não obrigacional ou contratual, pois não existe, anteriormente ao ato ilícito, qualquer direito de crédito do credor social perante o administrador ou o gerente. Existe apenas um interesse juridicamente protegido a que corresponde um dever de carácter geral.
O administrador ou o gerente constitui-se no dever de indemnizar os credores sociais sempre que pratique um ato danoso, ilícito e culposo, com os elementos específicos indicados no nº 1 do art. 78º.
A responsabilidade só surge se o dano atingir o património social e o devedor o tornar insuficiente para a satisfação dos créditos dos credores da sociedade. Há-de ser um dano patrimonial para a sociedade, dependendo a procedência da ação respetiva da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- que o facto do gerente constitua uma inobservância culposa de disposições legais destinadas à proteção dos interesses dos credores sociais;
- que o património social se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos;
- que o acto do gerente possa considerar-se causa adequada do dano.[1]
A responsabilidade baseada no art. 78º, nº 1 limita-se à atuação do gerente no exercício das suas funções, sendo que a regra legal não sustenta outra responsabilidade que não resulte desse exercício, durante e por causa do exercício das funções de administração ou gerência da sociedade.
Ora, como já se viu, o artigo 78º do Cód. das Sociedades Comerciais consagra um tipo de responsabilidade por violação de normas de proteção prevista no artigo 483º nº 1 do Código Civil.
Com efeito, não existem relações jurídicas entre os gerentes e os credores da sociedade que decorram da relação de gerência, pelo que nenhum vínculo obrigacional os une.
Não existindo vínculo contratual entre os gerentes e os credores sociais, não são estes titulares de direito algum a exigir daqueles a prática de determinada conduta; não existe, pois, um vínculo contratual em virtude do qual fiquem os gerentes adstritos a concreta conduta, ativa ou omissiva, perante os credores da sociedade.
Assim, para que ocorra responsabilidade dos gerentes, prefigurada como delitual, terão de verificar-se todos os pressupostos a que alude o art. 483º do Cód. Civil, com relevo para a culpa e o nexo causal, que aqui se não presumem, tendo os interessados de fazer, com êxito, a competente prova, conforme decorre dos arts. 342º e 487º do mesmo diploma.
Aquele que viola disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da lesão. A responsabilidade dos gerentes decorre da inobservância culposa, das disposições legais ou contratuais (estatutárias) destinadas à proteção dos credores. Não emerge de vínculo obrigacional, mas da omissão de um dever legal, os deveres genéricos impostos aos administradores e aos gerentes perante os credores.
Conforme escreve Menezes Cordeiro (in “Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades”, pág. 494)[2], trata-se de uma “imputação delitual, moldada no figurino das normas de protecção, previstas no artigo 483º/1, 2ª parte, do CC. (…) A lei exige, para este tipo de responsabilidade, a violação das normas de protecção aos credores, violação essa que seja causa de insuficiência patrimonial. Além disso, haverá que verificar os demais requisitos da imputação aquiliana, com relevo para a ilicitude, a culpa e o nexo causal. Nenhum destes factos se presume: haverá – por parte dos interessados – que deduzir, com êxito, a competente prova”.
Por conseguinte, carecem estes requisitos de ser demonstrados pelo credor lesado – cfr. arts. 342º, nº 1 e 487º, nº 1 do Código Civil.[3]
Regressando ao caso dos autos, mostra-se inequívoco que o autor goza de um direito de crédito sobre a sociedade “E..., Lda.”, cuja gestão estava a cargo dos réus, confundindo-se, inclusive, com os próprios, e como tal crédito, que resulta da condenação da “E..., Lda.” ocorrida no âmbito do proc. nº 2733/12.0 TBVFR, não se encontra pago tem legitimidade para a propositura da presente ação.
Contudo, muito embora o autor beneficie de uma sentença judicial condenatória e do consequente título executivo, não tem este possibilidade de lograr satisfazer esse seu crédito, sucedendo que tal impossibilidade radica na conduta assumida pelos réus, que decidiram dissolver e liquidar a sociedade “E...” para dessa forma obstarem ao pagamento da dívida aqui em causa.
Acontece que os gerentes da sociedade, no exercício da sua atividade, devem empregar a diligência de um gestor criterioso e ordenado, recaindo sobre eles um dever geral de diligência – cfr. art. 64º, nº 1, al. a) do Cód. das Sociedades Comerciais.
Devem assim gerir a sociedade com prudência, de modo a garantirem que essa gestão não põe em causa os interesses dos credores, legal e contratualmente protegidos, sob pena de responderem pessoalmente pelos atos danosos que praticarem.
Importa proteger os terceiros contra o mau uso da sociedade comercial, quando, a coberto da sua personalidade jurídica, esta é usada para cometer fraudes ou abuso de direito. Neste caso, há uma ilicitude sob a capa da autonomia patrimonial da sociedade.
Tal como escreve o Mmº Juiz “a quo” na sentença recorrida (fls. 331v) “… os Réus decidiram extinguir a sociedade, da qual ambos eram os gerentes de facto, para criarem, num curto espaço de tempo, outra sociedade do mesmo ramo sob a veste da qual passaram a exercer idêntica actividade comercial e no mesmo espaço, em que as únicas mudanças significativas foram a alteração da denominação social e a circunstância do Autor ver impedida a satisfação do seu crédito.
Ou seja, na prática, dada a natureza da actividade comercial em questão, os Réus, usando a personalidade jurídica dos entes colectivos, transferiram os proveitos gerados pela actividade comercial que desenvolvem para uma nova sociedade, abandonando a actividade comercial desenvolvida em nome da antiga empresa com o claro objectivo de prejudicar o Autor que se viu sem condições práticas de ser indemnizado.”
Ora, esta mudança de sociedade não pode deixar de se traduzir num ato de má gestão relativamente à sociedade inicial, uma vez que esta é impedida pelos próprios gerentes de prosseguir o seu objetivo último, mormente o de potenciar lucros e rendimentos.
No caso concreto, atendendo ao reduzido equipamento e ao objeto do negócio em questão, de venda de veículos usados – habitualmente sujeitos a venda à consignação, como, aliás, sucedeu com o negócio que gerou o direito indemnizatório do autor – pode-se afirmar, em consonância com a sentença recorrida, que é a própria sociedade e a sua capacidade de gerar lucros que foi interrompida pela conduta dos réus, o que tudo se traduziu numa fuga de sociedades, em que o “aviamento” da primitiva sociedade é completamente transferido para uma outra, esvaziando-a completamente do seu conteúdo.
Na prática os réus com a conduta adotada extinguem a sociedade para que esta não pague a dívida e assim conseguiram que o autor não lograsse cobrar o respetivo crédito, tornando, pois, insuficiente – ou melhor, inexistente – o património social para a satisfação do crédito em causa.
Tal comportamento evidencia uma ostensiva violação das regras da boa gestão, da manutenção da integralidade do património social, da frustração do primordial objetivo comum a toda e qualquer sociedade – qual seja a de obtenção de lucro – e, muito em particular, de uma clara atuação em detrimento dos credores da sociedade.
E a propósito da situação dos autos, mostra-se oportuno aludir ao Acórdão da Relação de Coimbra de 19.12.2000 (in CJ, ano XXV, tomo V, págs. 41/42), citado na decisão recorrida, onde se considerou que a verdade patrimonial de uma sociedade não se demonstra com uma simples declaração unilateral dos seus sócios, dizendo que não há ativo, principalmente quando tal declaração é proferida já depois de se sentirem acossados com o pedido de declaração de falência, ou como sucede no presente caso, quando se mostrava claro que o autor pretendia agir judicialmente para ser indemnizado por atos praticados pela sociedade “E..., Lda.”, que os réus se apressaram a, formalmente, fazer cessar para, volvidos alguns meses, criarem uma nova sociedade cujo único sinal distintivo, em relação à anterior, é a sua denominação.
Assim, urge concluir como se fez na sentença recorrida (fls. 332/332v):
“Deste modo, a conduta dos Réus não pode deixar de ser censurável - na medida em que propositadamente deixaram a sociedade devedora sem qualquer actividade com o único intuito de prejudicarem o credor social e criaram uma nova sociedade no mesmo local e com o mesmo ramo de actividade quando não podiam ignorar a dívida que havia sido gerada por acto de que a sociedade era responsável - e de ter os seus reflexos em sede de responsabilidade civil, sob pena de estar encontrada, de modo sub-reptício, a forma de garantir que o devedor relapso não correria quaisquer riscos, limitando-se a mudar a sua veste de pessoa colectiva sempre que lhe fosse conveniente furtar-se ao pagamento das dívidas junto dos respectivos credores que a sociedade primitiva fosse gerando.
Temos, assim, por preenchidos os requisitos cumulativos para que o Autor possa exercer o direito à indemnização peticionada com recurso ao dispositivo legal previsto no art. 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, pelo que é forçoso concluir pela integral procedência da acção.”
Por conseguinte, impõe-se a improcedência do recurso interposto pelos réus.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos réus B... e C... e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos réus/recorrentes.

Porto, 14.12.2017
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
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[1] Cfr. Acórdão do STJ de 17.11.2005, p. 05B3016, disponível in www.dgsi.pt.
[2] Citado no Acórdão da Relação de Guimarães de 11.10.2011, proc. 4206/07.3 TBVCT.G2, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Ac. Rel. Guimarães de 11.10.2011, proc. 4206/07.3 TBVCT.G2, disponível in www.dgsi.pt., que temos vindo a seguir de perto.