Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
61/18.6SFPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: ESTUPEFACIENTE
CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
Nº do Documento: RP2020071461/18.6SFPRT.P1
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O comportamento daquele que detém 13,482 gramas de Canabis (Resina), quantidade essa que resultou provado ser suficiente para 43 doses diárias, sendo destinada uma parte dela ao seu próprio consumo e outra à cedência a um terceiro que estava consigo, não constitui uma situação de consumo compartilhado atípico, integrando, antes, o tipo de ilícito de tráfico de estupefacientes, embora de menor gravidade, atento o facto de a quantidade de estupefaciente detida ser pouca, tratar-se de canabis, estupefaciente de menor danosidade, a cedência não ser onerosa, e que, no fundo, do que se trata é dum tráfico de muito baixa intensidade, ficando até já próximo do referido consumo atípico.
(Sumário do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 61/18.6SFPRT.P1
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Acordam em conferência na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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1 - RELATÓRIO
No processo comum nº 61/18.6SFPRT, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 5, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo sido proferida sentença que o condenou pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a) do D.L. nº 15/93, de 22/1, por referência à Tabela I-C, anexa àquele diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, sendo suspensa a execução da pena, ao abrigo dos artigos 50º, n.º 1 e 5 e 53º, ambos do Código Penal, pelo período de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, sujeita a regime de prova assente num plano individual de reinserção social.
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Não se conformando com a decisão, o arguido interpôs recurso, concluindo na sua motivação o seguinte (…):
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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se no sentido de ser confirmada a decisão recorrida.
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Nesta sede o Exmo. Procurador-geral Adjunto, no seu parecer, pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP.
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Colhidos os vistos e indo os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 - QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Impugnação da matéria de facto.
- Saber se os factos integram o cometimento do crime de tráfico de estupefacientes (de menor gravidade) ou, na negativa a esta questão, se se trata apenas de consumo (partilhado) de estupefacientes, não punível por a quantidade detida não exceder o necessário para consumo médio individual durante o período de dez dias.
- Da medida da pena.
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2.2- A DECISÃO RECORRIDA:
Tendo em conta as questões objecto do recurso, da decisão recorrida importa evidenciar a fundamentação da matéria de facto, que é a seguinte (transcrição):
«II - FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1º) No dia 23 de Agosto de 2018, pelas 10h00m, na Alameda …, sita no Bairro C…, nesta cidade, ao proceder-se a uma operação de fiscalização policial, foi o arguido B…, encontrado na posse de:
-13,482 gramas (peso líquido) de Canabis (Resina), vulgarmente designada por "haxixe", com uma (THC) de 16,3 % que depois de devidamente doseada converter-se-ia em 43 doses diárias, produto estupefaciente esse que o arguido destinava ao seu consumo pessoal e, ainda, à cedência para consumo à testemunha, D…, o qual, na altura, estava com o arguido;
2º) Submetido a uma revista, foi-lhe encontrado:
- €35,00 (trinta e cinco euros) em notas e moedas do BCE;
3º) O arguido tinha consciência de que não podia adquirir, deter, ceder, proporcionar a outrem ou vender a mencionada substância, cuja natureza e características conhecia, e mesmo assim muniu -se da mesma e transportava-a consigo;
4º) O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
5º) O arguido é solteiro, vive com os pais e não tem filhos;
6º) Encontra-se desempregado, desde 2014, auferindo, contudo, um subsídio de França, no montante de €500,00, por mês, e
7º) O arguido já sofreu uma condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e uma condenação pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, por factos praticados em data anterior aos dos presentes autos, estando as respetivas penas já extintas, conforme decorre do certificado de registo criminal (CRC), junto a fls. 98 a 102, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
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Nenhuns outros factos se provaram em audiência de julgamento, designadamente não se tendo provado:
- que o arguido se dedicava à venda do referido produto estupefaciente;
- que a referida quantia monetária era o produto de vendas de estupefaciente, anteriormente realizado, e
- que o arguido muniu-se da mencionada substância, com o propósito de entregar, mediante contrapartida, a outras pessoas para consumo, pretendendo assim obter vantagens económicas.
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A convicção do Tribunal no que toca aos factos dados como provados, fundou-se na análise conjugada e critica do conjunto da prova produzida no julgamento, com a prova documental e pericial junta aos autos, apreciada nos termos do artº 127º do CPP.
Assim:
- no que toca aos factos 1º) a 4º), atendeu-se, desde logo, à análise critica das declarações prestadas, em audiência de julgamento, pelo arguido, o qual confessou parcialmente os factos.
Na verdade, o arguido confirmou que, no referido dia 23 de Agosto de 2018, pelas 10h00m, na Alameda …, sita no Bairro C…, nesta cidade, foi intercetado pela polícia, tendo na sua posse haxixe, o qual estava dentro de um maço de tabaco.
Mais confirmou que, tal haxixe, foi adquirido só por si, tendo pago €20,00, e destinava-se a ser consumido por si e pelo individuo que, na altura, estava consigo.
O arguido confirmou, também, que, no dia dos factos, tinha, ainda, consigo €35,00, quantia monetária que fazia parte do montante de um subsídio que recebe de França, pois ficou desempregado, nesse país, desde 2014.
Além disso, atendeu-se aos depoimentos prestados, em tal audiência, pelas seguintes testemunhas:
- E…, agente da PSP, o qual confirmou que, no circunstancialismo de tempo e lugar, indicados no auto de notícia por detenção, junto aos autos, no âmbito de uma operação de fiscalização policial e devido a uma denúncia recebida, abordaram o arguido, o qual tinha na sua posse haxixe, mais concretamente no interior de um maço de tabaco, substância que, na altura, estava doseada e que foi apreendida.
Tal depoente confirmou, também, que, na altura em que o arguido foi abordado, estava acompanhado de um outro indivíduo, sendo que o arguido tinha consigo dinheiro, o qual foi, igualmente, apreendido.
Finalmente, a referida testemunha confirmou, na íntegra, o teor do auto de notícia por detenção, por si elaborado, e esclareceu que o arguido, na altura, não deu qualquer explicação para ter consigo tal haxixe e não viu qualquer venda de tal produto, designadamente ao referido indivíduo.
- D…, o qual confirmou que conhece o arguido, sendo que, no dia dos factos e aquando da abordagem da polícia, estava com o arguido.
Tal testemunha confirmou, ainda, que fumava haxixe com o arguido, sendo que uma vez comprava o arguido e outra vez comprava o depoente e depois partilhavam.
As mencionadas testemunhas prestaram um depoimento esclarecedor, coerente e consistente, razão pela qual mereceram a credibilidade deste Tribunal.
Por outro lado, ainda, atendeu-se ao teor dos documentos de fls. 1 a 4 (auto de notícia por detenção), 5/6 (auto de apreensão) e 7 (teste rápido).
Finalmente, atendeu-se ao teor de fls. 70 (relatório pericial).
Ora, conjugando a referida prova produzida no julgamento, com a mencionada prova documental e pericial, junta aos autos, e apreciando a mesma à luz das regras da experiência comum, o Tribunal, na sua livre e fundada convicção, não teve quaisquer dúvidas em considerar que o arguido praticou os referidos factos dados como assentes.
- No que toca aos factos 5º) a 7º), atinentes à situação pessoal e profissional do arguido e aos seus antecedentes criminais, atendeu-se, desde logo, às declarações prestadas, em audiência de julgamento, pelo arguido, o qual confirmou tal factualidade e, ainda, ao teor do documento de fls. 98 a 102 (CRC).
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No que toca aos factos não provados, atendeu-se à inexistência de prova segura e convincente dos mesmos de forma a merecer a credibilidade deste Tribunal.
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2.3.- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
2.3.1.-Impugnação da matéria de facto. (…)
2.3.2.-Preenchimento dos elementos típicos do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
Encontrando-se fixada a matéria de facto, vejamos o direito.
O recorrente foi condenado pelo cometimento de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a) do D.L. nº 15/93, de 22/1, por referência à Tabela I-C, anexa àquele diploma legal.
Entende o recorrente que a atuação – a que resulta dos factos provados e não provados da douta Sentença – não consubstancia a prática de qualquer crime, pois quando foi intercetado pelos agentes da PSP dirigia-se, juntamente com um amigo, para um café, onde o consumo de estupefacientes é habitual, a fim de consumir os estupefacientes que, entretanto, lhe foram apreendidos.
Conclui o recorrente que, sendo consumidor de estupefacientes, reunindo-se com outros e partilhando, não consubstancia tal partilha uma cedência para consumo e cita a favor da sua argumentação alguma jurisprudência dos Tribunais da Relação.
Antes de avançarmos, cabe desde já adiantar, face à improcedência do recurso quanto à matéria de facto, que os factos provados da sentença são os que importa considerar e não aqueles que o recorrente invoca e que não encontraram assento naquela.
Consideremos então os factos provados dos autos e vejamos se o comportamento do arguido integra ou não o crime pelo qual foi condenado.
Como é sabido, o tipo de ilícito fundamental do tráfico de estupefacientes encontra-se descrito no artigo 21º, n.º 1 do Dec. Lei 15/93, de 22/01, o qual dispõe: «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.»
O bem jurídico protegido pela incriminação é a saúde pública, entendida como saúde da coletividade, saúde física e psíquica dos cidadãos, cumprindo-se a finalidade da norma através da proibição de comportamentos que facilitem ou promovam a difusão de estupefacientes na comunidade, dado o risco que o seu consumo comporta para a saúde pública.
Este tipo de ilícito assume a natureza de crime de perigo abstrato e o seu elemento objetivo é amplíssimo, abrangendo quase todo e qualquer contacto com produto estupefaciente de modo a compreender todos os momentos relevantes do ciclo da droga.
E delimita-se por contraposição à aquisição, cultivo, detenção e guarda para consumo próprio, pois para o cometimento do crime de tráfico de estupefacientes, não basta, designadamente, a mera detenção de estupefaciente, torna-se ainda necessário que, desde logo, se chegue à conclusão de que o agente do crime não cometeu apenas um crime ou uma contraordenação de consumo de estupefacientes.
Desta delimitação do tipo de ilícito do tráfico, por exclusão dos comportamentos destinados ao consumo próprio dos estupefacientes adquiridos ou detidos, pode-se retirar a ideia de que a incidência da norma incriminadora do tráfico se destina fundamentalmente aos comportamentos que têm lugar do lado da oferta no mercado ilícito da droga, por contraposição aos comportamentos que se situam do lado da procura de droga pelo consumidor final.
Assim, o cultivo, produção, transporte, aquisição, detenção, recebimento ou guarda de produto estupefaciente para o consumo próprio não constitui nunca um crime de tráfico de estupefacientes. Poderá tal atividade constituir um crime ou uma contraordenação de consumo de estupefacientes, mas do crime de tráfico está excluída.
Seja como for, dada a forma de redação da incriminação do artigo 21º, com os seus dezoito verbos transitivos, o âmbito dos comportamentos proibidos amplia-se desmesuradamente. Com ela confirma-se a tendência a uma intervenção omnicompreensiva do que se decidiu chamar ‘ciclo da droga’, o que é dizer, à penalização de todo o comportamento que suponha uma contribuição, por mínima que seja, ao seu consumo[1].
Com efeito, o teor literal do artigo 21º, lido sem mais, abarca uma multitude de comportamentos que face ao senso comum e à consciência comunitária serão ou deveriam ser penalmente irrelevantes, dada a sua escassa ou nula lesividade social.
Senão, pensemos no seguinte caso: um grupo de três ou quatro amigos encontra-se reunido num qualquer lugar privado; um deles acende um cigarro de canabis, dá uma fumaça e passa a outro, esse dá uma fumaça e passa ao seguinte, até que o último passa de novo ao primeiro. Face ao teor literal do preceito, o comportamento de todos eles, ao dar/entregar/passar/ceder/proporcionar/oferecer o ‘charro’ ao seguinte depois de ter inspirado o fumo para o seu próprio consumo, integra o crime de tráfico. No entanto, cremos não errar ao afirmar que está enraizado na consciência coletiva que tal comportamento não constitui um crime de tráfico de estupefacientes, mas apenas uma situação de consumo conjunto de estupefacientes.
Passando adiante desta consciência, senso comum ou ‘pré-compreensão’ do problema, anotemos que o facto de o crime de tráfico de estupefacientes estar constituído como um crime de perigo abstrato, tal não significa que não se deva exigir que o comportamento em causa seja em abstrato apto ou idóneo a causar um perigo para o bem jurídico protegido: a saúde pública, que é mais do que a saúde individual de cada um dos consumidores.
É o princípio da lesividade social[2] que o impõe: o comportamento para ser punível como tráfico de estupefacientes deve ser apto a causar perigo para a saúde pública, ainda que não o tenha causado. Exige-se que o comportamento seja em abstrato suscetível de criar um perigo de consumo geral e indiscriminado, ou a promoção e difusão do consumo ilegal de estupefacientes, que tenha uma componente coletiva socialmente relevante, o que não se verifica no exemplo apontado, pois nele não se deteta risco, ou um risco minimamente relevante, para o bem jurídico protegido ‘saúde pública’, carecendo de transcendência para além daquele grupo de amigos que se juntou para fumar um ‘charro’, em suma, para um autoconsumo em grupo ou coautoria no consumo.
Torna-se, assim, necessário, face ao teor literal extenso e algo vago da norma, proceder a uma interpretação teleológica, considerando a finalidade da proibição do tráfico de estupefacientes, analisando a dimensão do bem jurídico protegido e os comportamentos suscetíveis de o afetar, de causarem o perigo de o lesar relevantemente, distinguindo-os daqueles que se configuram como mero consumo de estupefacientes que o legislador expressamente afastou da incriminação.
Por isso, tem-se assistido a um labor jurisprudencial e doutrinal intenso no sentido de se reduzir a desmesura da letra da lei, tendo sido elaborada, entre outras, a figura do consumo partilhado, ou seja de um comportamento ou grupo de comportamentos que embora integrando numa interpretação puramente literal a descrição do artigo 21º, acabam, mercê de uma interpretação teleológica com fundamento na ausência de risco relevante para o bem jurídico protegido - a saúde pública -, por ser excluídos do tipo de ilícito de tráfico de estupefacientes[3].
E assim foram-se criando vários grupos de casos que, dada a ausência de perigo relevante para o bem jurídico protegido, uma vez que o estupefaciente não é destinado à sua difusão mas apenas ao seu consumo conjunto por parte dos que o detêm, se consideram atípicos face à norma incriminadora do tráfico de estupefacientes.
Entre esses grupos de casos de atipicidade destacam-se: o consumo em grupo; a compra em conjunto para consumo dos comparticipantes; os convites no momento do consumo; a aquisição para consumo entre casais ou em casos de convivência estreita; as chamadas doações altruístas ou por compaixão, em que se dá droga a alguém para atenuar o síndrome de abstinência[4].
Com efeito, a exclusão da tipicidade desses comportamentos de detenção de estupefaciente para consumo partilhado ou de doações por compaixão justifica-se por não haver promoção ou incitamento relevante ao consumo de estupefacientes, não havendo diferença em termos da perspetiva da saúde pública entre esse tipo de comportamentos e o comportamento não punível do autoconsumo, que a lei excluiu expressamente da incriminação do tráfico de estupefacientes.
Claro está que há critérios adequados a apurar se comportamentos como os referidos se afastam do consumo de estupefacientes e passam a integrar a incriminação pelo tráfico. Desde logo se se verificar a onerosidade da cedência, ou se as quantidades cedidas forem superiores às legalmente previstas para o consumo diário criminalmente atípico, e, ainda, se os destinatários se afastarem da noção de pessoas próximas ou conviventes, ou do pequeno grupo de amigos que se juntou para consumir em conjunto. Nestas situações, já não se poderá dizer que não há perigo em abstrato de disseminação da droga ou de promoção relevante do consumo de estupefacientes e, com isso, de inexistência de adequação ou aptidão para causar perigo para a saúde pública. E nestas situações o comportamento será relevante para o preenchimento do tipo de ilícito do tráfico de estupefacientes.
Na jurisprudência portuguesa, sobre o consumo compartilhado ou conjunto, como comportamento atípico relativamente ao crime de tráfico, destaca-se pela sua clara e incisiva argumentação o já referido, em nota de rodapé, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-07-2011 (Rel. Desemb. Joaquim Gomes), cujo sumário, dada a sua relevância, transcrevemos:
«I - O regime jurídico português, ao contrário de outros, não comporta um crime específico de uso compartilhado de drogas.
II - Esta ausência de previsão legal não elide a irrelevância criminal da conduta consubstanciada ora na compra de estupefacientes para consumo compartido ora na ocorrência de um consumo em conjunto.
III - Nestes casos em que não existe propriamente a realização de actos de tráfico ou mesmo de favorecimento ao consumo de estupefacientes, por se tratar de um consumo de todos e para todos, há quem caminhe no sentido da existência de um “consumo atípico”.
IV - Verificados os pressupostos de um “autoconsumo em grupo” – dizer, (i) gratuito e restrito a um grupo delimitado de consumidores, (ii) em que as quantidades em causa correspondam às legalmente previstas para o consumo diário criminalmente atípico e (iii) se destinem a um consumo esporádico e imediato – não se pode falar na prática de um crime de tráfico de estupefacientes, em qualquer dos seus tipos ou modalidades.»
Descendo ao caso dos autos, verificamos que resultou provado que o arguido detinha 13,482 gramas de Canabis (Resina), que depois de devidamente doseada converter-se-ia em 43 doses diárias, produto estupefaciente esse que o arguido destinava ao seu consumo pessoal e, ainda, à cedência para consumo à testemunha, D…, o qual, na altura, estava com o arguido.
Não cremos que nestas circunstâncias, atenta desde logo a quantidade de estupefaciente detida pelo arguido, suficiente para 43 doses diárias, sendo destinada uma parte dela à cedência a um terceiro que estava consigo, se possa falar num caso de consumo compartilhado atípico, a que falta em abstrato aptidão para produzir o risco de disseminação de estupefacientes e de consequente perigo para o bem jurídico protegido - a saúde pública.
Assim, o comportamento daquele que detém 13,482 gramas de Canabis (Resina), quantidade essa que resultou provado ser suficiente para 43 doses diárias, sendo destinada uma parte dela ao seu próprio consumo e outra à cedência a um terceiro que estava consigo, não constitui uma situação de consumo compartilhado atípico, integrando, por isso, o tipo de ilícito de tráfico de estupefacientes, embora de menor gravidade, atento o facto de a quantidade de estupefaciente detida ser pouca, tratar-se de cannabis, estupefaciente de menor danosidade, a cedência não ser onerosa, e que, no fundo, do que se trata é dum tráfico de muito baixa intensidade, ficando até já próximo do referido consumo atípico.
Concluindo, o arguido cometeu um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, a variante privilegiada do artigo 25º, al. a) do D.L. nº 15/93, como se decidiu na sentença recorrida, a qual não merece censura na qualificação jurídica efetuada.
2.3.3.- Da escolha e determinação da medida da pena. (…)
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3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
- Reduzem a pena de prisão aplicada ao arguido para um ano, a qual, ao abrigo dos artigos 50º e 53º do Código Penal, será suspensa pelo período de um ano, sujeita a regime de prova, assente num plano individual de readaptação com incidência na procura/manutenção de inserção laboral a tempo inteiro.
- Mantêm, em tudo o mais, a sentença recorrida.
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A primeira instância providenciará pela homologação e execução do regime de prova, dando cumprimento ao disposto no artigo 494º do Código de Processo Penal.
Sem tributação.
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Notifique.
(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º n.º 2, do CPP)
Porto, 14 de Julho de 2020
William Themudo Gilman
Liliana Páris Dias
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[1] Cfr. sobre esta ampliação desmesurada e intervenção omnicompreensiva, Francisco Muñoz Conde, Derecho Penal – Parte Especial, Undécima Edición, Tirant Lo Blanch, Valencia, 1996, a págs. 569.
[2] Cfr. sobre o princípio da lesividade (social): Jacobo Dopico Gómêz-Aller, Transmissiones atípicas de drogas, Tirant Lo Blanch, Valencia, 2013, p. 18-20; María Alcale Sanchez, Salud Pública Y drogas Tóxicss Tirant Lo Blanch, Valencia, 2013, p. 26-30.
[3] Cfr., na jurisprudência nacional os acórdãos: TRP de 06-07-2011 (Joaquim Gomes), TRE de 03-07-2012 (João Amaro), TRL de 04-10-2017 (Adelina Barradas Oliveira), todos in dgsi.pt.
[4] Cfr. sobre estes grupos de casos de atipicidade, com vasta jurisprudência de Espanha: Jacobo Dopico Gómêz-Aller, Transmissiones atípicas de drogas, Tirant Lo Blanch, Valencia, 2013, p. 13; e também Ujala Joshi Jubert, Los Delitos de Tráfico de Drogas I, JM Bosch, 1999, Barcelona; e sobre o consumo partilhado Francisco Muñoz Conde, Derecho Penal – Parte Especial, Undécima Edición, Tirant Lo Blanch, Valencia, 1996, a págs. 569.