Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
876/20.5T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: FALTA DE CARTA DE CONDUÇÃO
ACIDENTE
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RP20210607876/20.5T8VLG.P1
Data do Acordão: 06/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O conceito de condução sem habilitação legal, para efeitos do exercício do direito de regresso da seguradora, que o legislador utilizou na al. d), do nº1, do art. 27º, do DL nº 291/07, de 21-8 (Regime de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), abrange, para além das situações de inexistência originária de título de condução e de cancelamento do mesmo (art.º 130.º, n.ºs 3 e 5, do Código da Estrada), os casos em que aquele haja caducado (n.º 1, do referido artigo), faltando habilitação legal para conduzir a todo o condutor que não seja detentor de carta de condução válida.
II - E não exigindo a referida al. d), para o exercício do direito de regresso da Seguradora contra o segurado, condutor que deu causa ao acidente, em caso de falta de habilitação legal para conduzir, como requisito, a verificação de nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal e o acidente - tão só a imputação subjetiva do acidente ao condutor que levou a que seguradora tivesse de ressarcir o lesado e a falta de habilitação legal daquele para conduzir -, não impende sobre a Autora ónus de alegação de tal nexo, pois que, não sendo requisito imposto, de facto constitutivo daquele direito se não trata.
III - Tendo a carta de condução da Ré caducado no dia em que a mesma completou 65 anos de idade, e dispondo ela no dia seguinte ao acidente, ocorrido oito dias depois de tal caducidade, do “atestado médico comprovativo da aptidão física e mental para conduzir veículos ligeiros, necessário para a renovação da sua carta de condução”, deste facto conhecido, por presunção, se extrai que no dia do acidente nenhum acréscimo de risco se verificava a justificar direito de retenção, a impedir a sua constituição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 876/20.5T8VLG.P1
Processo do Juízo Local Cível de Valongo - Juiz 1

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B… – Companhia de Seguros, SA
Recorrida: C…

B… – Companhia de Seguros, SA intentou ação declarativa de condenação, com forma de processo comum, contra C… pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 6.520,90 (seis mil, quinhentos e vinte euros e noventa cêntimos), acrescida de juros de mora, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Alega, para tanto e em síntese, que, no exercício da sua atividade, celebrou com a Ré um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ……………, pelo qual assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de marca Mercedes, modelo …, com a matrícula ..-..-VA, que, no dia 31 de outubro de 2017, pelas 17h15m, interveio num acidente de viação na autoestrada n.º .., quando era conduzido por aquela a velocidade desadequada às condições de intensidade de trânsito que se faziam sentir, perdendo o controlo do mesmo e indo embater com a parte frontal na traseira do veículo de matrícula ..-LB-.., que se encontrava parado, devido à fila de trânsito existente, e, em consequência do referido embate, o veículo da ré entrou em despiste, rodopiou e acabou por embater na parte traseira e lateral esquerda do veículo de matrícula ..-NS-.. que se encontrava, igualmente, parado devido à fila de trânsito e, compelido pelo embate, o sobredito veículo foi projetado contra os rails de segurança da berma direita, acabando por embater com a parte frontal na traseira do veículo ..-..-HJ que se encontrava imobilizado à sua frente, sendo que, recaindo a responsabilidade pelo sinistro exclusivamente sobre a Ré, se viu obrigada a suportar os custos emergentes do mesmo, no montante global de € 6.520,90, tendo, contudo, direito de regresso sobre esta relativamente aos montantes indemnizatórios que custeou, ao abrigo do disposto no art.º 27.º, n.º 1, al. d) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, pois que, à data do sinistro, a mesma não possuía habilitação legal de condução, dado a sua carta de condução se encontrar caducada desde 23 de outubro de 2017.
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A Ré, embora admitindo culpa na produção do acidente - dado ter desviado o olhar da faixa de rodagem, por uns segundos, para recolher a sua carteira que caíra no chão -, defende-se negando factos alegados pela Autora e refutando o direito de regresso desta contra si, dado há muito dispor de título de condução a habilitá-la a conduzir, que, no momento do acidente, de mero vício padecia, por não ter procedido à revalidação, encontrando-se a sua carta de condução meramente caducada, não cancelada, caducidade essa que se verificava há, apenas, 8 dias e tendo procedido à revalidação da mesma logo nos dias imediatamente seguintes ao acidente, obtendo, para o efeito, logo no dia seguinte ao acidente, o necessário atestado médico comprovativo da sua aptidão física e mental para a condução de veículos ligeiros de passageiros do Grupo B-1.
Invoca, ainda, falta de alegação, pela Autora, do nexo de causalidade entre o acidente e a falta de aptidão ou condição psicológica e física da ré, exigível - por meramente estar em causa a inabilitação por caducidade do título e não a inabilitação originária para conduzir -, pugnando pela improcedência da pretensão de reembolso dos valores custeados pela Seguradora Autora.
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Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, definido o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
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Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.
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Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente, por não provada, a presente ação e, consequentemente, absolve-se a ré C… do petitório formulado pela autora B… – Companhia de Seguros, SA.
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Custas pela autora – art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, do Código de Processo Civil”.
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Apresentou a Autora recurso de apelação, pugnando por que seja revogada a sentença, decidindo-se pela condenação da apelada no pedido, formulando, para tanto, conclusões, que após redução requerida no sentido de se considerarem não escritos os pontos 33º a 36º, 1ª parte, o que se defere atento o invocado, se resumem às seguintes
CONCLUSÕES:
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A apelada procedeu à ampliação do objeto do recurso, pretendendo que sejam aditados factos à matéria de facto provada, e requereu a retificação do lapso de escrita que aponta na decisão da matéria de facto e, quanto à decisão de mérito, pugna por que se julgue improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida, formulando as seguintes Conclusões:
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A Apelante respondeu, pugnando por que seja negado provimento à ampliação do objeto do recurso, devendo manter-se a decisão recorrida quanto à matéria de facto, pois:
a)- a factualidade alegada no artigo 22.º da Contestação não pode ser considerada provada, por induzir que a titularidade da carta de condução foi contínua até ao presente e sem interrupções, o que não corresponde à realidade, atendendo ao facto considerado provado no ponto 19.
b)- a factualidade alegada no artigo 37.º da Contestação não resulta direta de qualquer meio de prova apresentado aos autos, de nenhum documento resultando que a carta de condução da Requerida foi renovada com a data de 07/11/2017 e validade até 22/10/22 e não é possível afirmar que a apresentação do atestado referido em 20 tenha motivado a renovação da carta de condução da Recorrida em 07/11/2017, pelo que deverá improceder a ampliação do recurso nessa parte, por não existem meios de prova de que demonstrem tal afirmação.
Requer que se tenham por não escritos os pontos 33 a 36, 1ª parte das conclusões do recurso que não correspondem à realidade, acima já deferido e atendido.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1. – Se a decisão da matéria de facto deve ser alterada, por forma a:
1.1 - Serem aditados aos factos provados os seguintes, alegados na contestação:
- “22. A Recorrida é titular da carta de condução P ……, desde 10-12-1976, que a habilita a conduzir veículos da categoria B, conforme doc. fls. 12 verso a 14 frente”.
- “23. Com a apresentação do atestado referido em 20, a carta de condução da Recorrida foi renovada, com data de 07-11-2017 e validade até 22-10-22, conforme doc. fls. 16 verso a 28 verso ( pág. 25/39), que aqui se dá por integralmente reproduzido”.
1.2 – Ser corrigido lapso de escrita no facto provado nº20, passando a constar dia 1” onde está “dia 3, conforme o alegado, no art.º 35º, da contestação, e como consta do documento.
2. - Do erro da decisão de mérito:
2.1 - Da constituição de direito de regresso da Seguradora/Autora sobre a Segurada/Ré/condutora, relativamente às quantias indemnizatórias que suportou por esta, responsável pelo acidente de viação, conduzir sem título de condução válido (caducado). Pressupostos, ónus de alegação e ónus da prova dos factos constitutivos de tal direito e da verificação de circunstância impeditiva do seu nascimento.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
Foram os seguintes os factos considerados provados em 1ª instância com relevância para a decisão (transcrição):
1. No exercício da sua atividade profissional, a autora celebrou com a ré C… um acordo de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º ……………, nos termos do qual assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de marca Mercedes, modelo …, com a matrícula ..-..-VA.
2. No dia 31 de outubro de 2017, pelas 17h15m, a ré conduzia o veículo referido em 1. na auto-estrada n.º .. (…), no sentido poente/nascente, na freguesia …, concelho de Valongo, distrito do Porto, circulando na mesma via e sentido de trânsito o veículo de marca Citröen, modelo …, com a matricula ..-LB-.., o veículo de marca Nissan, modelo …, com a matrícula ..-NS-.. e o veículo de marca Renault, modelo …, com a matrícula ..-..-HJ.
3. O veículo de matrícula ..-LB-.., pertencente à sociedade D…, Lda., era conduzido por E…, encontrando-se seguro pela F… – Sucursal em Portugal.
4. O veículo de matrícula ..-NS-.., pertencente à sociedade G…, S.A., era conduzido por H…, encontrando-se seguro na Companhia de Seguros I…, S.A.
5. O veículo de matrícula ..-..-HJ, pertencente a J…, era conduzido por K…, encontrando-se seguro na Companhia de Seguros L…, S.A. 6. A faixa de rodagem onde circulavam as viaturas referidas em 2. era composta por três vias, no mesmo sentido de trânsito, cada uma delas com 3,50m, num total de 10,50m de largura.
7. A faixa de rodagem encontrava-se ladeada à direita por uma berma de segurança com 2,80m e à esquerda por um separador central.
8. O tempo estava bom, o piso encontrava-se seco e em bom estado de conservação, e a estrada tinha boa visibilidade.
9. Na data, hora e local mencionados em 2., junto ao km 14,200, o condutor do veículo ..-..-HJ encontrava-se parado em fila de trânsito na via mais à direita, atento o sentido de circulação poente/nascente.
10. Na retaguarda do veículo ..-..-HJ encontravam-se também parados, respetivamente, os veículos ..-NS-.. e ..-LB-...
11. Quando circulava na mencionada via, igualmente no sentido poente-nascente, a ré debruçou-se para agarrar a sua carteira que havia caído no lugar do passageiro, embatendo com a parte frontal do veículo que conduzia na parte traseira do veículo ..-LB-.., que se encontrava parado devido à referida fila de trânsito.
12. Após o embate, o veículo conduzido pela ré entrou em despiste, rodopiando e vindo a embater na parte traseira e lateral esquerda do veículo ..-NS-.., que se encontrava igualmente parado devido à fila de trânsito.
13. Em virtude do embate, o veículo ..-NS-.. foi projetado contra os rails de segurança da berma direita, vindo a embater ainda com a parte frontal na parte traseira do veículo ..-..-HJ, que se encontrava parado à sua frente.
14. Em consequência do embate, a ré foi transportada pelos Bombeiros Voluntários … para o Hospital …, tendo sofrido escoriações na face e fratura no dedo indicador da mão esquerda, assim como a condutora do veículo ..-NS-.., que sofreu escoriações e traumatismo lombar.
15. Em consequência da colisão:
a. o veículo de matrícula ..-..-VA sofreu estragos na parte frontal, designadamente no para-choques, capô e roda dianteira direita, cuja reparação não foi tecnicamente aconselhável por motivos de segurança da viatura.
b. o veículo de matrícula ..-LB-.. sofreu estragos na parte traseira, orçamentados em € 537,35 (quinhentos e trinte e sete euros e trinta e cinco cêntimos).
c. o veículo de matrícula ..-NS-.. sofreu estragos na parte traseira e lateral esquerda, designadamente no para-choques, porta lateral esquerda traseira e roda lateral esquerda traseira, em valor não concretamente apurado, cuja reparação não foi realizada por motivo igualmente não concretamente apurado.
d. o veículo de matrícula ..-..-HJ sofreu estragos na parte traseira, orçamentados inicialmente em € 617,39 (seiscentos e dezassete euros e trinta e nove cêntimos), a que acresceu o montante de € 97,51 (noventa e sete euros e cinquenta e um cêntimos), devido a diferença no valor das peças orçamentadas e utilizadas na reparação do veículo.
16. A apólice de seguro referida em 1. encontrava-se em vigor à data da sobredita colisão.
17. A autora pagou as seguintes indemnizações:
a. € 537,35 (quinhentos e trinta e sete euros e trinta e cinco cêntimos) à M…, Lda., pela reparação do veículo ..-LB-...
b. € 4.368,71 (quatro mil trezentos e sessenta e oito euros e setenta e um cêntimos) à Companhia de Seguros I…, S.A., para pagamento dos estragos provocados no veículo ..-NS-.. e sofridos pela condutora do mesmo, quantia que havia sido paga por aquela por via do acionamento da apólice de seguro de cobertura dos danos próprios do veículo.
c. € 714,90 (setecentos e catorze euros e noventa cêntimos) à N…, Lda., pela reparação do veículo ..-..-HJ.
d. € 276,03 (duzentos e setenta e seis euros e três cêntimos) ao Centro Hospitalar …, E.P.E, pelas despesas hospitalares emergentes dos serviços prestados à condutora do veículo ..-NS-...
e. € 225,46 (duzentos e vinte e cinco euros e quarenta e seis cêntimos) à O…, S.A., pelo aluguer de viatura de substituição para o condutor do veículo ..-..-HJ.
18. A autora despendeu ainda as seguintes quantias:
a. € 67,65 pela peritagem realizada ao veículo ..-..-HJ.
b. € 209,10, pelo relatório de averiguação elaborado pela P….
c. € 67,65 pela peritagem realizada ao veículo ..-LB-.. .
d. € 43,05, pelas diligências encetadas para a obtenção do auto de ocorrência, e € 11,00 pelo referido auto.
19. À data do embate, a carta de condução da ré encontrava-se caducada desde o dia 23 de outubro de 2017, data em que completou 65 anos de idade, tendo sido levantado o competente auto de contraordenação pela Guarda Nacional Republicana, com o n.º ……….
20. No dia 3 de novembro de 2017 a ré obteve o atestado médico comprovativo da aptidão física e mental para conduzir veículos ligeiros, necessário para a renovação da sua carta de condução, conforme doc. de fls. 81, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
21. Por missiva datada de 12 de maio de 2018, com o assunto “Pedido reembolso – direito de regresso”, a autora solicitou à ré o pagamento da quantia global de € 6.130,93, conforme doc. de fls. 59 verso e 60 frente, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão da causa, não se provou que:
a. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2., a ré circulava a velocidade desadequada para a intensidade do trânsito que se fazia sentir e que tentou travar ao avistar os veículos parados na fila de trânsito.
b. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9. e 10., os condutores dos veículos aí referidos não tenham acionado os respetivos sinais luminosos.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1º - Da decisão da matéria de facto
1.1 - Da ampliação da matéria de facto provada
Cabendo conhecer do erro da decisão de mérito e analisar da modificabilidade da fundamentação jurídica, cumpre, antes de mais, apreciar a requerida ampliação e retificação da decisão da matéria de facto provada, por forma a que se mostre cumprida a, necessariamente, prévia atividade de recolha de todos os factos relevantes para, ante o leque de todos os factos da causa, necessários à apreciação das várias soluções plausíveis, melhor se poder decidir do objeto do recurso.
Pretende a Ré seja aditada à matéria de facto provada a matéria alegada nos artigos 22º e 37º, da contestação, que entende provada se encontrar face ao afirmado nos articulados e à prova documental apresentada pela própria Recorrente com a sua petição inicial, sugerindo sejam incluídos os dois seguintes pontos, com a formulação:
“22. A Recorrida é titular da carta de condução P ……, desde 10-12-1976, que a habilita a conduzir veículos da categoria B, conforme doc. fls. 12 verso a 14 frente.
23. Com a apresentação do atestado referido em 20, a carta de condução da Recorrida foi renovada, com data de 07-11-2017 e validade até 22-10-22, conforme doc. fls. 16 verso a 28 verso ( pág. 25/39), que aqui se dá por integralmente reproduzido”.
Conclui a Ré que tal resulta da participação de acidente elaborada pela GNR, onde se refere que a Recorrida é titular da carta de condução P ……, desde 10-12-1976, que a habilita a conduzir veículos da categoria B, cujo teor foi confirmado pelo seu autor em audiência de julgamento, a testemunha Q…, e que resultou também provado que a carta de condução de que a Recorrida é titular, foi revalidada após o acidente objeto dos autos, com data de 07-11-2017, conforme reprodução deste documento que integra o Relatório de Averiguação elaborado a pedido da Recorrente - doc.3 da PI, fls. 16 a 28, pág.25/39 - que também foi junto com a PI, confirmado pela testemunha S…, perito averiguador que elaborou aquele relatório. Sustenta que face à referida prova documental junta pela própria Recorrente com a sua PI, sem qualquer reserva quanto ao seu conteúdo, e face ao valor probatório dos referidos documentos, os factos que deles constam devem ser dados como provados, em harmonia com o preceituado nos art.ºs 372º, n.º2 (relativamente à certidão da participação de acidente) e 376º, n.º1 e 2 (relativamente ao documento particular junto como doc.3) ambos do C. Civil.
A Autora respondeu sustentando que bem decidiu o Tribunal a quo, no que concerne à matéria de facto assente, devendo manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos, quanto à matéria de facto, negando-se provimento à ampliação do objeto do recurso interposto pelo Recorrida, dado que:
- a factualidade alegada no artigo 22.º da Contestação - «A Recorrida é titular da carta de condução P ……, desde 10-12-1976, que a habilita a conduzir veículos da categoria B» - não pode ser considerada provada, uma vez que, tal afirmação induz que essa titularidade foi contínua até ao presente, e sem interrupções, o que não corresponde à realidade, atendendo ao facto considerado provado no ponto 19, pelo que deverá improceder a ampliação do recurso nessa parte.
- a factualidade alegada no artigo 37.º da Contestação - «Com a apresentação do atestado referido em 20, a carta de condução da Recorrida foi renovada com a data de 07-11-2017 e validade até 22-10-22» - não é possível ser considerada provada, uma vez que tal afirmação não resulta direta de qualquer meio de prova apresentado, não sendo possível afirmar que a apresentação do atestado referido em 20 tenha motivado a renovação da carta de condução da Recorrida em 07/11/2017, pelo que deverá improceder a ampliação do recurso, nessa parte, dada a inexistência de meios de prova que demonstrem tal afirmação.
Cumpre decidir se cabe aditar a referida matéria de facto aos factos provados, por a mesma ser relevante para a decisão e se encontrar provada.
E, na verdade, cumprindo proceder à recolha de tais factos, pois que alegados foram nos artigos 22º e 37º da contestação e são relevantes para apreciar da questão da justificação ou não, por a impedirem, do direito de regresso da Autora, cabe determinar se se encontram provados.
Com efeito, tratando-se de matéria a densificar defesa por exceção perentória inominada, impeditiva do direito da Autora, tem de ser considerada nos termos do nº 1, do art. 5º, do CPC.
Alega a Ré, no artigo 22º, da contestaçãoA Ré é titular da carta de condução P ……, desde 10-12-1976, categoria B, que a habilita a conduzir o veículo ligeiro de passageiros que conduzia aquando do sinistro”.
Ora, quanto a tal facto que a Autora pretende seja aditado aos factos provados, encontra-se, na verdade, provado, face ao documento junto pela própria Autora, logo com a petição inicial, ser a Ré titular da referida carta de condução.
Tal resulta, na verdade, do documento junto a fls 27, verso, do qual decorre ser a Ré titular da carta de condução P 392935, e ter a mesma validade de 10-12-1976 a 22-10-22, a habilitá-la a conduzir veículos da categoria B.
Assim, cumpre aditar aos factos provados tal facto, o que se fará antes do f.p.19, referido pela Ré, considerando a ordem cronológica, para que os contornos fácticos do caso se mostrem bem percetíveis, passando esse a ser o 19. e avançando os subsequentes, com a seguinte redação, conforme alegação e que consta do documento (fotocópia, junta pela própria Autora, do que é revestido de força probatória plena - a “CARTA DE CONDUÇÃO/REPÚBLICA PORTUGUESA”):
“19. A Ré, titular da carta de condução P ……, com data de validade de 10-12-1976 a 22-10-22, esteve habilitada a conduzir veículos da categoria B conforme consta do documento de fls 27, verso - “CARTA DE CONDUÇÃO/REPÚBLICA PORTUGUESA”.
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Alega a Ré, no artigo 37º, da contestaçãoPegando neste entendimento, se a Ré logo no dia seguinte ao acidente estava apta para a condução de veículos Categoria B, então também se presumia que o estivesse no dia anterior, quando ocorreu o acidente dos autos, como decorre do doc. 2 e assim, como único requisito essencial para tal, permitiu que se operasse a revalidação da carta de condução da Ré, com data de 07-11-2017 – cfr fotocópia junta com o Relatório de Averiguação.”.
Ora, quanto ao aditamento aos factos provados da matéria “Com a apresentação do atestado referido em 20, a carta de condução da Recorrida foi renovada, com data de 07-11-2017 e validade até 22-10-22, conforme doc. fls. 16 verso a 28 verso ( pág. 25/39), que aqui se dá por integralmente reproduzido”, tal não pode, efetivamente, ser deferido, pois, como bem sustenta a Autora, tal se não mostra provado, não se encontrado nos autos qualquer documento comprovativo da revalidação operada com base na “apresentação do atestado referido em 20”, sequer da renovação da carta de condução, com validade de 7/11/2017 a 22-10-22.
Assim, improcede, nesta parte, a pretensão da Ré, não se procedendo, quanto a este ponto, à requerida ampliação da matéria de facto provada, por tal não resultar provado, antes não provado se mostrando, dada a falta de prova.
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1.2 - Da retificação do lapso de escrita
Relativamente à requerida correção do lapso de escrita, cumpre referir que do f.p. nº20 consta "No dia 3 de novembro de 2017 a ré obteve o atestado médico comprovativo da aptidão física e mental para conduzir veículos ligeiros, necessário para a renovação da sua carta de condução, conforme doc. de fls. 81, que aqui se dá por integralmente reproduzido", quando a data que exarada no referido documento (cfr. fls 143, verso) é, na verdade, 1-11-2017, tal como alegado no art.º 35º da contestação da Recorrida.
Fundamentou o Tribunal a quo que “o facto provado em 20. louvou-se no teor do atestado médico de fl. 81” e de tal documento, junto a fls 81, resulta ser a data em causa 1/11/2017, pacificamente aceite pelas partes, tratando-se, efetivamente de lapso de escrita, manifesto, a corrigir.
Assim, ao abrigo do nº1 e 2, do art. 614º, do CPC, corrige-se o manifesto lapso de escrita, passando no f.p. nº 20 a constar, em vez de 3/11/2017, 1/11/2017, pois que tal resulta do alegado, do documento junto a fls 81 (v. fls 143, verso) e, mesmo, da posição das partes assumida nos autos.
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Operando o, deferido, aditamento e a correção de lapso, passam a ser os seguintes os factos provados, com relevância para a decisão da causa:
1. No exercício da sua atividade profissional, a autora celebrou com a ré C… um acordo de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º ……………, nos termos do qual assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de marca Mercedes, modelo …, com a matrícula ..-..-VA.
2. No dia 31 de outubro de 2017, pelas 17h15m, a ré conduzia o veículo referido em 1. na auto-estrada n.º .. (…), no sentido poente/nascente, na freguesia …, concelho de Valongo, distrito do Porto, circulando na mesma via e sentido de trânsito o veículo de marca Citröen, modelo …, com a matricula ..-LB-.., o veículo de marca Nissan, modelo …, com a matrícula ..-NS-.. e o veículo de marca Renault, modelo …, com a matrícula ..-..-HJ.
3. O veículo de matrícula ..-LB-.., pertencente à sociedade D…, Lda., era conduzido por E…, encontrando-se seguro pela F… – Sucursal em Portugal.
4. O veículo de matrícula ..-NS-.., pertencente à sociedade G…, S.A., era conduzido por H…, encontrando-se seguro na Companhia de Seguros I…, S.A.
5. O veículo de matrícula ..-..-HJ, pertencente a J…, era conduzido por K…, encontrando-se seguro na Companhia de Seguros L…, S.A. 6. A faixa de rodagem onde circulavam as viaturas referidas em 2. era composta por três vias, no mesmo sentido de trânsito, cada uma delas com 3,50m, num total de 10,50m de largura.
7. A faixa de rodagem encontrava-se ladeada à direita por uma berma de segurança com 2,80m e à esquerda por um separador central.
8. O tempo estava bom, o piso encontrava-se seco e em bom estado de conservação, e a estrada tinha boa visibilidade.
9. Na data, hora e local mencionados em 2., junto ao km 14,200, o condutor do veículo ..-..-HJ encontrava-se parado em fila de trânsito na via mais à direita, atento o sentido de circulação poente/nascente.
10. Na retaguarda do veículo ..-..-HJ encontravam-se também parados, respetivamente, os veículos ..-NS-.. e ..-LB-...
11. Quando circulava na mencionada via, igualmente no sentido poente-nascente, a ré debruçou-se para agarrar a sua carteira que havia caído no lugar do passageiro, embatendo com a parte frontal do veículo que conduzia na parte traseira do veículo ..-LB-.., que se encontrava parado devido à referida fila de trânsito.
12. Após o embate, o veículo conduzido pela ré entrou em despiste, rodopiando e vindo a embater na parte traseira e lateral esquerda do veículo ..-NS-.., que se encontrava igualmente parado devido à fila de trânsito.
13. Em virtude do embate, o veículo ..-NS-.. foi projetado contra os rails de segurança da berma direita, vindo a embater ainda com a parte frontal na parte traseira do veículo ..-..-HJ, que se encontrava parado à sua frente.
14. Em consequência do embate, a ré foi transportada pelos Bombeiros Voluntários … para o Hospital …, tendo sofrido escoriações na face e fratura no dedo indicador da mão esquerda, assim como a condutora do veículo ..-NS-.., que sofreu escoriações e traumatismo lombar.
15. Em consequência da colisão:
a. o veículo de matrícula ..-..-VA sofreu estragos na parte frontal, designadamente no para-choques, capô e roda dianteira direita, cuja reparação não foi tecnicamente aconselhável por motivos de segurança da viatura.
b. o veículo de matrícula ..-LB-.. sofreu estragos na parte traseira, orçamentados em € 537,35 (quinhentos e trinte e sete euros e trinta e cinco cêntimos).
c. o veículo de matrícula ..-NS-.. sofreu estragos na parte traseira e lateral esquerda, designadamente no para-choques, porta lateral esquerda traseira e roda lateral esquerda traseira, em valor não concretamente apurado, cuja reparação não foi realizada por motivo igualmente não concretamente apurado.
d. o veículo de matrícula ..-..-HJ sofreu estragos na parte traseira, orçamentados inicialmente em € 617,39 (seiscentos e dezassete euros e trinta e nove cêntimos), a que acresceu o montante de € 97,51 (noventa e sete euros e cinquenta e um cêntimos), devido a diferença no valor das peças orçamentadas e utilizadas na reparação do veículo.
16. A apólice de seguro referida em 1. encontrava-se em vigor à data da sobredita colisão.
17. A autora pagou as seguintes indemnizações:
a. € 537,35 (quinhentos e trinta e sete euros e trinta e cinco cêntimos) à M…, Lda., pela reparação do veículo ..-LB-...
b. € 4.368,71 (quatro mil trezentos e sessenta e oito euros e setenta e um cêntimos) à Companhia de Seguros I…, S.A., para pagamento dos estragos provocados no veículo ..-NS-.. e sofridos pela condutora do mesmo, quantia que havia sido paga por aquela por via do acionamento da apólice de seguro de cobertura dos danos próprios do veículo.
c. € 714,90 (setecentos e catorze euros e noventa cêntimos) à N…, Lda., pela reparação do veículo ..-..-HJ.
d. € 276,03 (duzentos e setenta e seis euros e três cêntimos) ao Centro Hospitalar …, E.P.E, pelas despesas hospitalares emergentes dos serviços prestados à condutora do veículo ..-NS-...
e. € 225,46 (duzentos e vinte e cinco euros e quarenta e seis cêntimos) à O…, S.A., pelo aluguer de viatura de substituição para o condutor do veículo ..-..-HJ.
18. A autora despendeu ainda as seguintes quantias:
a. € 67,65 pela peritagem realizada ao veículo ..-..-HJ.
b. € 209,10, pelo relatório de averiguação elaborado pela P….
c. € 67,65 pela peritagem realizada ao veículo ..-LB-...
d. € 43,05, pelas diligências encetadas para a obtenção do auto de ocorrência, e € 11,00 pelo referido auto.
19. A Ré, titular da carta de condução P ……, com data de validade de 10-12-1976 a 22-10-22, esteve habilitada a conduzir veículos da categoria B conforme consta do documento de fls 27, verso - “CARTA DE CONDUÇÃO/REPÚBLICA PORTUGUESA”.
20. À data do embate, a carta de condução da ré encontrava-se caducada desde o dia 23 de outubro de 2017, data em que completou 65 anos de idade (v. assento de nascimento junto a fls 80), tendo sido levantado o competente auto de contraordenação pela Guarda Nacional Republicana, com o n.º ……….
21. No dia 1 de novembro de 2017 a ré obteve o atestado médico comprovativo da aptidão física e mental para conduzir veículos ligeiros, necessário para a renovação da sua carta de condução, conforme doc. de fls. 81 (v. fls 143, verso), que aqui se dá por integralmente reproduzido.
22. Por missiva datada de 12 de maio de 2018, com o assunto “Pedido reembolso – direito de regresso”, a autora solicitou à ré o pagamento da quantia global de € 6.130,93, conforme doc. de fls. 59 verso e 60 frente, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
*
2. Do erro da decisão de mérito:
2.1 - Do direito de regresso da seguradora sobre a condutora responsável pelo acidente, que conduzia com carta de condução sem validade (caducada há oito dias)

Baseia a Autora o direito de regresso, que pretende lhe seja reconhecido, no estatuído na al. d), do nº1, do art.º 27.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08 (que aprovou o Regime de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, abreviadamente RSORCA), por, sendo a ré a única responsável pela produção do acidente que densifica a causa de pedir, circular, no momento da prática dos factos, com a sua carta de condução caducada, já desde 23 de outubro de 2017, e ter pago os montantes indemnizatórios que refere em virtude do contrato de seguro automóvel celebrado entre ambas.
Julgada a ação improcedente, por, para além da falta de prova, pela Autora, de factos a integrar nexo de causalidade entre a falta de título válido que habilitasse a Ré a conduzir e o acidente, ter a Ré logrado provar que o acidente se não ficou a dever a falta de habilitação para conduzir, insurge-se a Autora contra tal decisão por entender que, estando verificada a falta de título que habilitasse a Ré a conduzir, sempre tem direito aos montantes indemnizatórios que teve de suportar em virtude do contrato de seguro automóvel celebrado.
Bem analisa Nuno Almeida de Araújo Sobreira que o fundamento genérico do direito de regresso assume justificações várias, sendo que:
- “Por um lado, há em todas as causas de direito de regresso uma conduta que, em condições normais de mercado e no âmbito de seguro facultativo de responsabilidade civil, extravasaria o risco assumido pela Seguradora[1], considerando-se que, por essa razão, o seguro não deveria cobrir o valor desses danos. No entanto, no âmbito do SORCA, a Seguradora suporta esse risco por razões de socialização do risco e proteção das vítimas atribuindo a lei, posteriormente, à Seguradora um mecanismo que permite o respetivo ressarcimento pelo valor que corresponde ao montante da indemnização paga pelos danos causados em virtude desse risco acrescido. A 2.ª Diretiva Automóvel referia expressamente no seu preâmbulo “(…) é do interesse das vítimas que os efeitos de certas cláusulas de exclusão sejam limitadas às relações entre a Seguradora e o responsável pelo acidente”;
- “Por outro lado, há quem afirme que caso não existisse direito de regresso da Seguradora, estas situações resultariam num enriquecimento injustificado do segurado à custa da Seguradora[2]. Há ainda algumas posições que tendem a ver no direito de regresso uma função punitiva, considerando que o facto de lesante ter de suportar, em última análise, a indemnização devida na sequência dos danos por ele provocados consiste numa forma de prevenção rodoviária[3].
Para que haja lugar ao direito de regresso da Seguradora têm de estar preenchidos dois grupos de requisitos:
i) a responsabilidade civil do segurado[4];
ii) os requisitos específicos do facto justificativo do direito de regresso da Seguradora.
O facto de, logicamente, só existir direito de regresso quando o segurado é civilmente responsável e, precisamente, na medida dessa responsabilidade, permite-nos afirmar desde logo que nenhuma causa de direito de regresso pode fundamentar-se na culpa em sentido amplo ou na ilicitude, uma vez que estes são requisitos da responsabilidade civil extracontratual subjetiva, a qual está necessariamente dentro do âmbito de cobertura do contrato de SORCA[5]” [6].
Fundou o Tribunal a quo a improcedência da pretensão da Autora no específico fundamento da falta de habilitação legal da Ré para conduzir o veículo, bem sustentando:
O direito de regresso consiste, nas palavras de Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, Almedina, 2014, p. 346, “no direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta”.
No âmbito do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08 (tal como sucedia, aliás, no anterior Decreto-Lei n.º 522/85, de 31.12), o direito de regresso da seguradora emerge do cumprimento da obrigação por aquela para com o lesado, ficando a mesma na posição de credora relativamente ao segurado, a quem incumbirá satisfazer as quantias que tenha liquidado, uma vez verificado o fundamento de tal direito de regresso.
Nesse sentido, dispõe art.º 27º, n.º 1, al. d), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, de entre o mais, que “Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros (…) tem direito de regresso: (…) Contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado (…)”.
Destarte, antes de mais, cumpre aquilatar do âmbito de aplicação do sobredito fundamento de direito de regresso, apurando designadamente se abrange somente a falta de habilitação legal originária e por cancelamento do título de condução, ou também por caducidade do mesmo.
Neste conspecto, prescreve o art.º 123.º, n.º 1, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3.05, na versão introduzida pela Lei n.º 47/2017, de 7.07 (vigente à data dos factos) que “a carta de condução habilita o seu titular a conduzir uma ou mais das categorias de veículos fixadas no RHLC, sem prejuízo do estabelecido nas disposições relativas à homologação de veículos”.
Por seu turno, estipula o art.º 130.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, que “o título de condução caduca se: a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período”.
Mais acrescentam os seus n.ºs 3 e 5 que “O título de condução é cancelado quando: (…) d) Tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido”, sendo que “os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido”.
Sobre a caducidade do título de condução, importa ainda atentar no disposto no art.º 16.º do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2012, de 05.07, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 40/2016, de 29.07, em vigor à data dos factos, nos termos do qual:
“1 - Os títulos de condução têm o prazo de validade neles registados.
2 - O termo de validade das cartas de condução das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE e das licenças de condução ocorre de 15 em 15 anos após a data de habilitação na categoria, até perfazer os 60 anos.
3 - Quando o condutor perfizer 60 anos, o prazo de validade é de cinco anos, e, a partir dos 70, de dois em dois anos”.
E bem assim, no plasmado no art.º 17.º do referido diploma legal, segundo o qual “A revalidação dos títulos de condução fica condicionada ao preenchimento e comprovação pelos seus titulares dos seguintes requisitos: a) Condições mínimas de aptidão física e mental, comprovadas por atestado médico (…)”.
Da interpretação concatenada dos preceitos legais acabados de enunciar, à luz dos seus elementos teleológico, sistemático, histórico e relacional (art.º 9.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil), haverá que concluir que o conceito de “condução sem habilitação legal” para efeitos de direito de regresso da seguradora abrange, não apenas os casos de inexistência originária de título de condução e de cancelamento do título (art.º 130.º, n.ºs 3 e 5 do Código da Estrada), mas também aqueles em que o mesmo haja caducado, nos termos do n.º 1 do referido preceito legal.
Ora, como é consabido, o direito de regresso da seguradora com base no fundamento em apreciação no pleito visa acautelar, por um lado, a inexperiência e falta de destreza para a condução (derivada da ausência total de título de condução) e, por outro lado, a menor capacidade para o exercício da condução decorrente da idade do condutor (determinante da caducidade e cancelamento do título de condução nos termos sobreditos).
Destarte, excluir do âmbito de aplicação do art.º 27.º, n.º 1, al. d), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, os casos em que o título de condução do segurado haja caducado, abrangendo somente as situações de cancelamento do mesmo – que apenas ocorrerá, como se viu, decorridos cinco anos sobre o prazo de caducidade – significaria reverter por completo a ratio legis do instituto.
De facto, se o legislador impôs a necessidade de renovação do título de condução a partir de determinada idade (a qual estará dependente de comprovação médica das capacidades mentais e físicas para a continuação da atividade de conduzir), por se entender que a partir desse momento tais capacidades poderão estar em risco, não se pode aceitar a responsabilização da seguradora durante os cinco anos posteriores a tal limite temporal.
Ante todo o exposto, sufragamos o entendimento de que a seguradora poderá exercer o direito de regresso quando o condutor/segurado não estiver legalmente habilitado para o efeito, independentemente de ter incorrido na prática um crime de condução sem habilitação legal (p. e p. pelo art.º 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3.01) ou de uma contraordenação de condução com título caducado, p. e p. pelo art.º 130.º, n.º 7, do Código da Estrada”.
Porém, e contrariamente ao que entendeu o Tribunal a quo, na verdade, da al. d), do nº1, do art. 27º, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto[7], não se pode entender resultar a exigência de nexo de causalidade entre a falta de habilitação e o acidente, sendo que, para que este requisito possa ser considerado como exigido, estatuído tinha de se mostrar e nada o impõe.
Tal revela-se, expressamente, da letra do referido preceito, e outro não pode ter sido o espírito do legislador, e da interpretação que dele vem sendo efetuada, quer pela Doutrina quer pela Jurisprudência, bem analisando Abrantes Geraldes em Ac. do STJ de 3/10/2019[8], no seguimento de posição já assumida pelo coletivo em causa e da jurisprudência mais avisada, quer do STJ e quer das Relações[9] [10],“no Ac. do STJ de 28-4-16, 1885/13 (www.dgsi.pt), de cujo sumário consta, além do mais, o seguinte:
“A Seguradora que, ao abrigo de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, satisfaz a indemnização decorrente de acidente de viação pode exercer o direito de regresso contra o condutor do veículo abarcado pelo contrato de seguro que não esteja legalmente habilitado.
O exercício do direito de regresso não depende da prova do nexo de causalidade entre a falta de habilitação para a condução e o acidente em que interveio o condutor”.
Também neste caso são aplicáveis as considerações que então foram feitas acerca do regime do direito de regresso em face da falta de habilitação legal:
“Assim, relativamente aos casos de condução sem habilitação legal – a única situação que verdadeiramente importa apreciar no caso concreto – tanto a lei anterior, como a atual fazem depender o direito de regresso apenas da demonstração de dois elementos objetivos: imputação subjetiva do acidente ao condutor que tenha levado a seguradora a responder perante o lesado e demonstração de que o mesmo não detinha habilitação legal para conduzir. Não se exige, pois, a demonstração do nexo de causalidade entre o ilícito e o acidente ou seja, não é necessário à Seguradora demonstrar que foi a falta de habilitação legal para conduzir que foi determinante para a ocorrência do acidente.
É este o sentido dominante na jurisprudência deste Supremo, como o revela o Ac. do STJ, de 25-10-12 (www.dgsi.pt) que, além de recusar para a condução sem habilitação legal a interpretação anteriormente fixada pelo AcUJ nº 6/02 para a condução com alcoolemia, concluiu que “a Seguradora, para fazer valer o direito de regresso em caso de falta de habilitação legal do condutor, não tem de provar o nexo de causalidade adequada entre a falta de carta e o acidente”. Tese igualmente assumida nos Acs. do STJ, de 21-01-14, 21/09, de 24-10-06 e de 3-7-03, 03B1419 (todos em www.dgsi.pt).
Para além do apoio objetivo no texto legal, esta interpretação encontra justificação racional no facto de a falta de habilitação influir na capacidade do condutor para cumprir as regras estradais, potenciando os riscos associados à condução de veículos. Subjaz ainda ao mesmo regime a necessidade de assegurar e manter um controlo periódico sobre a aptidão de cada condutor para conduzir um veículo a motor cuja circulação representa riscos para terceiros (cf. M. Manuela Chichorro, em O Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel, p. 213).
Enfim, o direito de regresso reconhecido às Seguradoras representa “um mecanismo de salvaguarda do sentido da responsabilização do lesante, evitando a absoluta socialização do risco” e constitui um instrumento que preserva o equilíbrio contratual que é quebrado com a condução do veículo segurado por alguém sem a necessária habilitação (cf. Mafalda Barbosa, “Direito de regresso no caso de seguro automóvel obrigatório”, nos Cadernos de Direito Privado, nº 50º, pág. 45).
Esclarecida a solução legal e o que a justifica, e como bem se esclarece no mencionado Acórdão tal “não significa necessariamente que o preceito em análise apenas consinta uma interpretação mecanicista que leve a desconsiderar quaisquer outras circunstâncias que tenham rodeado o acidente. Ao invés, em determinado contexto, pode justificar-se um esforço suplementar que conduza a um resultado diverso do anteriormente referido.
Aos Tribunais, quotidianamente confrontados com uma multiplicidade de situações, não têm escapado outras vias para a resolução de concretos litígios”, que se impõem e justificam sempre que exigências de equilíbrioadequação e proporcionalidade em face de “infrações muito pouco relevantes no plano ético-jurídico, cometidas em circunstâncias que justificariam um reduzido ou francamente atenuado juízo de censura”.
Com tal reserva procura-se evitar os excessos potenciados por uma postura lógico-formal de pendor positivista, permitindo que em determinadas circunstâncias se estabeleça a ponderação entre a gravidade da falta cometida pelo condutor responsável pelo acidente e a amplitude das consequências patrimoniais decorrentes do exercício do direito de regresso.
Semelhante cautela foi veiculada através de uma interpretação restritiva do preceito pelo Ac. do STJ, de 30-10-14, 496/03, em www.dgsi.pt, que culminou com a exclusão do direito de regresso, malgrado a falta de habilitação legal para a condução, num caso em que o condutor havia deixado caducar a licença que detinha há mais de 50 anos e que foi renovada 5 dias após o acidente, depois e ter sido medicamente atestada a sua aptidão mental e física para a condução.
Relativamente a esta e outras situações M. Manuela Chichorro acaba por defender até que o preceito que reconhece à Seguradora o direito de regresso apenas é de aplicar a casos de falta de habilitação para a condução e já não àqueles em que a habilitação legal “já não está ou não é válida” (ob. cit., pág. 213)”. Assim, foi já mesmo defendido, quanto à falta de habilitação legal de condução, o “entendimento segundo o qual a disposição normativa se refere, apenas, aos casos em que o condutor não possui habilitação para conduzir e já não para os casos em que esta existe mas já não está ou não é válida[11]”[12], numa interpretação restritiva.
Esclarece, ainda, Abrantes Geraldes, no referido acórdão, numa solução de equilíbrio, quando o caso reclama recurso a válvula de segurança do sistema que “Como se defendeu em tal aresto, não estará afastada, em absoluto, a possibilidade de, em determinadas situações, se adotar um critério interpretativo que, fugindo a uma lógica meramente formal, pondere todas as circunstâncias que envolvem a condução do veículo designadamente confrontando a solução emergente do direito positivo com o princípio da proporcionalidade.
Assim foi considerado no Ac. deste STJ de 30-4-14, proferido num caso em que o condutor deixara caducar a licença que efetivamente detivera, concluindo-se em tal aresto que:
“… III - Importa, contudo, distinguir, em consonância com o disposto no art. 130º, nº 5, do Cód. da Est., entre os casos de ausência originária de habilitação para conduzir – em que se presume ad unum a inexperiência e a falta de destreza do condutor – e os casos de caducidade do título habilitador por decurso do prazo de validade – em que se presume ad acutelam que o decorrer da idade pode produzir uma menor capacidade para o exercício da condução.
IV - Nos casos de caducidade do título habilitador da condução por decurso do respetivo prazo, impende sobre a seguradora o ónus de alegar e demonstrar o nexo de causalidade adequada entre esse facto e o acidente, sob pena de se alcançarem resultados intoleráveis”[13].
Este, manifestamente o caso dos Autos, desenhando-se, aqui, como intolerável o resultado a que se chegaria se se não atendesse a todas as circunstâncias do caso.
Com efeito, do facto de a Ré no dia seguinte ao do acidente (que ocorreu 8 dias depois de a carta de condução ter caducado) ter obtido a declaração médica a atestar a capacidade para conduzir (v. f.p. nº20), a permitir, desde logo, a renovação da carta de condução), é possível extrair presunção, a beneficiar a Ré, suscetível de atenuar a rigidez formal que decorre da al. d), do nº1, do art. 27º, e de permitir alcançar a justiça do caso: Se um dia depois do acidente estava capaz para a condução, no próprio dia, por igualdade, ou mesmo, até, por maioria de razão, não poderia deixar de estar.
Revertendo para o caso, entendeu o Tribunal a quo que, apesar de a autora ter logrado fazer a prova, cujo ónus sobre si impendia - art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil - de que cumpriu a obrigação de indemnização a seu cargo (vide factualidade provada em 17.), que a ré conduzia sem estar legalmente habilitada para o efeito (já que o seu título de condução se encontrava caducado desde o dia 23 de outubro de 2017) e que o acidente foi culposa e exclusivamente originado por esta (visto que foi despoletado por uma distração da ré, que se debruçou para agarrar a carteira que havia caído no lugar do passageiro, vindo a embater com a frente do veículo que conduzia na traseira no veículo ..-LB-.., desencadeando as demais colisões (cfr. factos 11. a 13.)), certo sendo que por contrato de seguro celebrado entre a autora e ré, a primeira assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula ..-..-VA, propriedade daquela (art.º 11.º, n.º 1, al. a), 15.º e 64.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08), tendo ressarcido os danos causados pelo veículo segurado, em cumprimento da obrigação assumida, e que o acidente em discussão no pleito foi causado pela conduta ilícita e culposa da ré, nos termos do disposto no art.º 483.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por violação dos art.ºs 11.º, n.º 2 e 18.º, n.º 1, do Código da Estrada, não assiste à autora o direito de ressarcimento dos montantes que liquidou aos lesados intervenientes no sinistro, atenta a ausência de prova do nexo de causalidade entre a falta de título de condução válido e o acidente ocorrido considerando: “Não obstante da letra do art.º 27.º, n.º 1, al. d) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, não se extrair, em princípio, a necessidade de prova do nexo causal entre o facto e o acidente (como já sucedida, aliás, na vigência do diploma vigente anteriormente, no que concernia à falta de título de condução), a verdade é que, lançando mão, uma vez mais, da ratio legis da referida norma, necessariamente teremos de distinguir “os casos de ausência originária de habilitação para conduzir, em que se presume ad unum a inexperiência e a falta de destreza do condutor”, dos “casos de caducidade do título habilitador por decurso do prazo de validade – em que se presume ad cautelum que o decorrer da idade pode produzir uma menor capacidade para o exercício da condução” – nesse sentido, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.10.2014, proc. n.º 498/06.3TBGDM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt”. Entende o Tribunal a quo que não se extraindo da factualidade dada como assente, o aludido nexo de causalidade adequada entre o sinistro ocorrido e a caducidade da carta de condução da ré, soçobra a responsabilidade daquela, mas mesmo que assim não se entendesse sempre se concluiria pela improcedência da sua pretensão, uma vez que a ré logrou demonstrar que a falta de habilitação legal não foi causa adequada do sinistro, pois conforme decorre da factualidade vertida em 11. a 13., o sinistro deveu-se exclusivamente a distração da ré – que se debruçou para agarrar a carteira que havia caída no lugar do passageiro, determinando o embate nos demais veículos intervenientes do sinistro – e não a qualquer falta de capacidade (mental ou física) da sua parte para conduzir, tanto mais que, logo após o acidente obteve o competente atestado médico comprovativo da sua aptidão física e mental para conduzir, necessário para a revalidação do seu título de condução (cfr. facto 20).
E, com efeito, a ultrapassagem da data de validade da carta de condução, com o completar dos 65 anos de idade, (que caducou) não se revela, nos contornos do caso, suscetível de influir na capacidade da condutora para cumprir as regras estradais e dominar o veículo, nenhum acrescido risco potenciando na condução.
Apesar de entendermos, pelo acima exposto, desnecessária a demonstração de um efetivo nexo de causalidade entre o acidente e a falta (ou insuficiência) de habilitação legal para conduzir, não existindo, por isso, também, o ónus de alegação, que com o da prova se encontra correlacionado, constata-se pelo circunstancialismo do caso, o do desenvolver do acidente e o relacionado com os elementos referentes à habilitação e capacidade da condutora para o exercício efetivo da condução, que nenhum nexo de causalidade, entre o acidente e falta de habilitação legal para conduzir, existe.
E sempre estando, abstratamente, a parte passiva em melhores condições de efetuar prova da sua capacidade para conduzir do que a seguradora de efetuar prova do nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal do condutor e o acidente, no caso concreto, provado, efetivamente, foi estar a Ré capaz para a condução do veículo um dia depois do acidente e, assim sendo, presume-se que o estivesse, também, anteriormente. Afastada se mostra, pois, no caso concreto, a presunção derivada da idade.
Dado que, no caso, a condutora detinha carta de condução há mais de 40 anos e que 1 dia após o acidente veio a ser medicamente atestada, pela Direção Geral de Saúde, a sua aptidão mental e física para conduzir veículos da “categoria do Grupo 1-B” (v. fls 143, verso), não é presumível que, na data daquele não estivesse capaz para desempenhar tal atividade, antes do facto conhecido se tendo de extrair a presunção contrária, capaz de evitar que excessivos formalismos impeçam a realização da justiça, dada a real aptidão embora sem que tivessem sido desenvolvidos os procedimentos tendentes à, oportuna, revalidação.
E consagrando o artigo 342º, do Código Civil, que regula a questão do ónus da prova,
“1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”,
cabendo à Autora provar, nos termos do nº1, os factos constitutivos do seu direito, sobre a Ré impendia a prova dos factos invocou, impeditivos do direito invocado pela Autora, em obediência ao estatuído no nº2, do referido artigo, sofrendo cada uma das partes as consequências do seu incumprimento.
Com efeito, sendo as regras sobre o ónus da prova regras de decisão, sendo que “no nosso direito processual, ter o ónus da prova significa sobretudo determinar qual a parte que suporta a falta de prova de determinado facto”[14], tendo a Ré logrado provar os referidos factos que integram matéria de exceção, tem a vantagem de, na procedência da exceção perentória inominada, ver a Autora suportar a improcedência da ação.
O critério de distribuição do ónus da prova tem por base a relação jurídica material, sendo o ónus da prova distribuído em função da natureza dos factos alegados, e, tendencialmente, o direito invocado na ação é-o pelo Autor, sendo a este, por conseguinte, que compete a prova dos factos constitutivos. Os factos constitutivos do direito são aqueles que constituem pressuposto do respetivo aparecimento; impeditivos aqueles que, sendo contemporâneos da formação do direito, obstam ao seu aparecimento, modificativos os que alteram o direito posteriormente à sua constituição e extintivos os que fazem cessar a respetiva produção de efeitos[15]. A Doutrina desenvolveu critérios auxiliares na aplicação, para superar dúvidas de qualificação. Entre outros (como o critério cronológico, da alegação, da normalidade, do tipo de defesa do Réu, etc.) destacou-se a teoria da norma da autoria de Rosenberg (ROSENBERG, 2002:123 e ss). A referida teoria assenta na estrutura da norma. Consequentemente, aquele que se queira fazer valer da estatuição da norma terá o ónus da prova relativamente aos factos integrantes da previsão. Estes serão os factos constitutivos do respectivo direito. Já as normas que constituam fundamento de excepção ao direito invocado contêm na sua previsão os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, pelo que aí se identificarão os factos cujo ónus da prova cabe àquele contra quem o direito seja invocado. Isto significa que, na base da aplicação da teoria de Rosenberg, é fundamental qualificar, dentro do âmbito jurídico aplicável ao caso concreto, diferentes classes de normas (Rosenberg, 2002:124) que se relacionam entre si como regra e exceção, norma e contra-norma, cada uma delas aproveitando às diferentes partes do litígio, sendo o ónus da prova distribuído em conformidade[16].
Ora, invocando a Ré, apelada, em sua defesa, facto a impedir a justificação do direito de regresso, competindo-lhe efetuar a prova de tal facto que, excecionando, alega, verifica-se que a logrou fazer.
E logrando a Ré fazer prova, como lhe competia - em conformidade com o nº2, do art. 342º, do Código Civil - da matéria de exceção perentória inominada que invocou, a importar a absolvição total pedido, nos termos do nº1 e 3, do art. 576º, do Código de Processo Civil, bem foi a ação julgada totalmente improcedente.
A Ré, não legalmente habilitada a conduzir à data do acidente, logrou fazer a prova de ter tido carta de condução mais de 40 anos (e válida até 9 dias antes do acidente – 22/10/2017) e que o sinistro nada teve a ver com a falta de habilitação, estando capaz de o fazer, a impedir o nascer do direito de regresso da seguradora Autora.
Assim, nenhuma razão se verifica que justifique seja, no caso, evitada a socialização do risco atinente ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, demandando razões de primazia da substância sobre a forma, de equilíbrio, de adequação e de proporcionalidade, o normal desenvolvimento do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, com o definitivo suportar do risco pela seguradora, sem direito de regresso contra a segurada, bem tendo, na procedência da exceção perentória inominada invocada, a ação soçobrado.
Destarte, improcedem as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 7 de junho de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Com isto queremos significar que aumenta o risco de uma forma que torna muito mais provável a ocorrência do sinistro do que a Seguradora o presumira no momento da celebração do contrato, com a agravante de esse aumento ser imputável ao responsável civil ou a terceiro.
[2] Vide Ac. STJ de 07/12/1994, em GARÇÃO SOARES e RANGEL DE MESQUITA, “Regime do…”, op. cit., pág. 136
[3] Vide Ac. STJ de 14/01/1997, em GARÇÃO SOARES e RANGEL DE MESQUITA, “Regime do…”, op. cit., pág. 137. Veja-se também a posição de ALBUQUERQUE MATOS, “O Contrato…”, op. cit., 2002, pág. 353. O autor refere como fundamento do direito de regresso a reação “contra condutas manifestamente censuráveis ou reprováveis do causador do acidente” e ainda “razões ponderosas de ordem moral”. Não concordamos com nenhuma destas posições. De facto, consideramos que o único fundamento é o aumento do risco uma vez que censurável e reprovável é qualquer conduta ilícita e já vimos que a ilicitude não basta para instituir o direito de regresso. Por outro lado, a moralidade pode, em certos casos, imbricar-se no campo da licitude mas não será, verdadeiramente, fator determinante desta opção legal na qual está em causa uma responsabilidade civil por danos, sendo as condutas que os provocam o alvo da regulamentação.
[4] Note-se que mesmo os condutores ilegítimos do veículo são segurados de acordo com o artigo 15.º, n.º 2 do DL n.º 291/2007.
[5] Deveremos ainda acrescentar um terceiro requisito geral. Tem de existir um contrato de seguro válido e eficaz. Caso contrário, a situação cairá no âmbito da intervenção do FGA, de acordo com o artigo 47.º, n.º 1 do DL n.º 291/2007.
[6] Nuno Almeida de Araújo Sobreira, Seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel direito de regresso da seguradora e sub-rogação do fga. 2014, em
https://eg.uc.pt/bitstream/10316/28442/1/Seguro%20obrigatorio%20de%20responsabilidade%20civil.pdf, pág. 84 e seg
[7] Consagra o referido artigo 27.º, com a epígrafe “Direito de regresso da empresa de seguros
1 - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
a) (…);
b)(…);
c) (…);
d) Contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado (…).”
[8] Ac. do STJ de 3/10/2019, proc. 2968/16.6T8PNF.P1.S1, in dgsi.pt
[9] Cf. Ac. RP de 13/1/2005, proc. 0436750, in dgsi.pt, onde se decidiu “I. Para fazer valer o direito de regresso no caso de condução sem a legal habilitação, (…), não tem a seguradora que provar o nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal para a condução e a eclosão do acidente.
II- Na referida acção de regresso estamos perante uma causa de pedir complexa, incidindo sobre a seguradora (autora) o ónus de alegar e provar: a ocorrência do acidente; que o réu conduzia sem estar habilitado com documento bastante para o efeito; os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual--, maxime a culpa do réu (exclusiva ou concorrencialmente) pela eclosão do acidente.
III- Ao réu (condutor), não legalmente habilitado para a condução, para se eximir ao pagamento da indemnização, assiste, porém, o direito de fazer a prova de que o acidente nada teve a ver com a falta de habilitação legal”,
e Ac. da RL de 7/2/2012, proc. 570/05.7TBPNI.L1-7, in dgsi.pt, onde se decidiu “O direito de regresso da seguradora, previsto na alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei nº522/85, de 31 de Dezembro, contra o condutor não legalmente habilitado para o exercício da condução, só existe se o demandado não provar que tal falta de habilitação não teve qualquer contribuição causal na ocorrência do sinistro”.
[10] Cfr., ainda, Ac. RP de 23/4/2018, proc. 2968/16.6T8PNF.P1 in dgsi.pt, onde se refere: “I. No âmbito do Decreto-Lei nº 291/2007, tal como no anterior Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de dezembro, o direito de regresso surge com a extinção da obrigação para com o lesado, ficando a seguradora na posição de credora relativamente ao segurado que, por sua vez, se torna obrigado a pagar à mesma seguradora o que esta despendeu, uma vez verificado o fundamento do regresso.
II - Tendo, ao abrigo do seguro obrigatório de responsabilidade civil, satisfeito a indemnização proveniente do acidente de viação ocasionado por culpa exclusiva do condutor do veículo seguro que não esteja legalmente habilitado, a seguradora pode exercer o respetivo direito de regresso.
III - E o exercício de tal direito de regresso não depende da prova do nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal para a condução e o acidente em que interveio o condutor”.
[11 Cfr. SOUSA CHICHORRO, “O Contrato…”, op. cit., pág. 213
[12] Nuno Almeida de Araújo Sobreira, Idem, pág 93
[13] V. Ac. do STJ de 3/10/2019, proc. 2968/16.6T8PNF.P1.S1, in dgsi.pt
[14] Rita Lynce de Faria, Anotação ao artigo 342º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 812
[15] Ibidem, pág 812
[16] Ibidem, pág.813