Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3160/16.5T8VNG-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO
PRESUNÇÕES
DECISÕES EMPRESARIAIS
CULPABILIDADE
BUSINESSE JUDGMENT RULE
Nº do Documento: RP202002063160/16.5T8VNG-D.P1
Data do Acordão: 02/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para que a questão suscitada nas conclusões possa ser apreciada é preciso que prejudique o apelante.
II - Tal não acontece quando se entendeu que essa factualidade não era suficiente para integrar uma causa de insolvência culposa.
III - O art. 168º, do CIRE prevê um conjunto de presunções uiris et de iure que não admitem prova em contrário (art. 350º, nº2, do CC).
IV - Essas presunções derivam da necessidade de garantir uma maior eficiência da ordem jurídica na responsabilização das administrações.
V - Para aferir a culpabilidade da actuação o tribunal terá de respeitar a business judgment rule, entendida como a avaliação, de acordo com critérios de razoabilidade, das decisões empresariais tomadas pelos administradores de empresas.
VI - Mas essa regra só abarca os «honest mistakes» e a violação do dever de diligência, nunca o dever de lealdade.
VII - O administrador que, ao logo de vários anos se apropria, de 67.400,00 euros da insolvente, que já possuía um capital social negativo não apenas dá causa à declaração de insolvência, como actua com culpa grave violando o normal dever de lealdade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 3160/16.5T8VNG-D.P1

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário:
……………………………
……………………………
……………………………

1. Relatório
Por apenso à acção de insolvência da sociedade B…, Lda.”, foi instaurado incidente de qualificação da insolvência, no qual:
C… apresentou alegações, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa. Alegou, para o efeito, que em 2011, se deparou com desvio de dinheiro da empresa a favor do sócio e gerente D… e mulher e outras irregularidades, circunstâncias que motivaram a apresentação de uma queixa-crime em 2012. Concluiu, que o sócio e gerente D… transferiu valores elevados da conta bancária da insolvente para a sua conta bancária pessoal, situação susceptível de prejudicar o seu património, já que prestou aval a favor da insolvente, os fornecedores, os colaboradores e o Estado.
O Sr. Administrador da Insolvência apresentou parecer, propondo a qualificação da insolvência como culposa, com base no circunstancialismo previsto no art. 186º, n.º 2, alíneas d) e e), e no n.º 3, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, indicando como afectado o sócio e gerente D…. Fundamentou o parecer nas acções e execuções pendentes contra a sociedade comercial “B…, Lda.”, no diminuto valor do activo face ao passivo, na existência de movimentos financeiros da conta daquela para a conta pessoal do gerente, sem justificação e com prejuízo para a mesma e para os seus credores (ao longo de três anos descapitalizou a empresa em mais de 75.400,00 euros), sendo certo que já se encontrava em situação de insolvência desde 2011, pelo menos. Por outro lado, tendo solicitado ao sócio e gerente a adopção de alguns procedimentos, tal não foi cumprido na íntegra.
O Ministério Público, apresentou parecer propondo a qualificação da insolvência como culposa, com base no circunstancialismo previsto no art. 186º, n.º 2, alíneas a) e d), e no n.º 3, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e na factualidade alegada pelo requerente e pelo Sr. Administrador da Insolvência, indicando também como afectado o sócio e gerente D….
Após citação do sócio e gerente D…, este deduziu oposição dizendo que o Sr. Administrador da Insolvência não efectuou o confronto entre, por um lado, os montantes que foram transferidos da conta bancária da insolvente para as duas contas bancárias do gerente e, por outro lado, os montantes que, por conta e no interesse da insolvente, foram pagos pelo gerente com recurso a fundos pessoais, pois o gerente efectuou, quer do seu próprio bolso (em numerário), quer através da sua conta pessoal, diversos pagamentos por conta e no interesse da sociedade comercial “B…, Lda.”, devido à falta de disponibilidade financeira desta para o fazer. As despesas pagas pelo gerente diziam respeito a contribuições, impostos,
A insolvente, através de requerimento de 23 de Janeiro de 2017, suscitou a nulidade decorrente do facto de a notificação prevista no art. 188º, n.º 6, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não ter sido acompanhada dos pareceres do Sr. Administrador da Insolvência e do Ministério Público e dos respectivos documentos, a qual foi julgada
Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova. Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância de todos os formalismos legais e após foi proferida decisão que, além do mais, qualificou a insolvência da devedora “B…, Lda.” como culposa.
*
Inconformado com essa decisão foi interposto recurso por D… o qual foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo
*
Foram formuladas as seguintes conclusões:
A) Os actos que tiverem sido praticados pelo afectado em data subsequente à da declaração de insolvência só relevam para efeitos da sua qualificação como culposa no que respeita à hipótese elencada na al. i) do nº 2 do art. 186º do CIRE e sendo que que, à previsão desta al. i), é aplicável o regime do art. 83º do CIRE, no qual, na sua al. a), se encontra estatuído que o devedor fica obrigado a "Fornecer todas as informações relevantes (nota: sublinhado nosso) para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência";
B) In casu, foi dado como provado na douta sentença recorrida (alínea q) dos factos provados) que o Administrador Judicial remeteu à Insolvente, com conhecimento do Recorrente, uma comunicação datada de 26.04.2016 e onde dava indicações para "Proceder ao pagamento imediato da Segurança Social que se venceu no dia 20/04/2016", "Proceder ao pagamento imediato da guia de retenções de IRS que se venceu a 20/04/2016", "Enviar ao signatário os Apuros Diários do Caixa, todos os dias" e "Enviar ao signatário o extracto de todas as contas bancárias da empresa, desde o início de Abril de 2016 até à data";
C) E mais foi dado como provado (alínea r) dos factos provados) que os apuros de caixa foram enviados ao Administrador Judicial semanalmente e que não lhe foram remetidos os extractos da conta bancária, bem como foi dado como provado (alíneas u) e v) dos factos provados) que, em Abril de 2016, o Recorrente transferiu da conta da Insolvente o montante de € 7.420 e que o Administrador Judicial lhe solicitou a reposição daquele valor, não tendo obtido resposta;
D) Em face do que se impunha que a douta sentença recorrida se tivesse pronunciado sobre se as informações que o Recorrente não prestou ao Administrador Judicial assumiram ou não assumiram carácter de relevância para o cumprimento da função do Administrador Judicial ou então se tiveram como consequência o agravamento da situação de insolvência;
E) Para além de que, atento o expendido no ponto 8.3 do parecer do Administrador Judicial ("De tudo o que foi solicitado, na altura, pelo signatário apenas foram cumpridas integralmente as alíneas a) e b)"), mais se impunha que a douta sentença recorrida tivesse acrescentado uma outra alínea aos factos provados na qual constasse que o Recorrente pagou – e remeteu ao Administrador Judicial os respectivos comprovativos – a "Segurança Social que se venceu no dia 20/04/2016" e as "retenções de IRS que se venceu a 20/04/2016";
F) E ainda mais uma alínea aos factos provados na qual constasse que foi o Recorrente quem despendeu o somatório aritmético daqueles dois montantes;
G) Para além de que, sob os nºs 239 a 260 em anexo ao seu articulado de oposição, o Recorrente juntou aos autos os documentos de despesa facturas e vendas a dinheiro) e os correspectivos comprovativos de pagamento que por si próprio foram custeados e o que fez por conta e no interesse da Insolvente;
H) Documentos contabilísticos e comprovativos de pagamento que não foram impugnados nem postos em causa por nenhum dos intervenientes processuais;
I) Sendo que, sem prejuízo do facto de o somatório das despesas custeadas pelo Recorrente ser superior aos € 7.420 que, em Abril de 2016, levantou da conta bancária da Insolvente, poderiam, em tese, tais levantamentos terem mesmo causado as "dificuldades adicionais de gestão corrente, levando a uma limitação dos pagamentos e ao não cumprimento integral de todas as responsabilidades assumidas pela empresa, sendo certo que se essa verba tivesse sido reposta, o signatário teria conseguido pagar tudo na íntegra" de que o Administrador se queixou a fls. 14 do seu parecer;
J) Tendo porém ficado demonstrado exactamente o contrário – quer através da prestação de contas do Administrador Judicial junta ao processo principal quer através dos esclarecimentos prestados, na parte com início aos 8m58s e termo aos 15m08s do respectivo registo aúdio, pelo perito em contabilidade e que, a solicitação de uma sua colega contabilista conhecida do Recorrente, analisou a contabilidade da Insolvente dos exercícios de 2013, 2014, 2015 e parte de 2016 bem como os respectivos documentos de suporte para, sobre a contabilidade, poder formular um juízo;
L) E mais tendo ficado demonstrado – sem que a douta sentença recorrida depois o tivesse reflectido – que, da gestão do Administrador Judicial entre a data da sentença declaratória da insolvência e a data de encerramento da actividade da empresa, resultou um saldo positivo de € 2.221,53 bem como que o Administrador Judicial pagou todas as responsabilidades que se lhe depararam e que nunca foi confrontado com nenhuma situação de tesouraria negativa;
M) Do que igualmente resulta demonstrado que o levantamento dos € 7.420 não assumiu qualquer relevância para o cumprimento da função do Administrador Judicial no período entre a sentença declaratória da insolvência e a data de encerramento da actividade da empresa, para além ainda de que também não agravou a situação de insolvência;
N) E quanto à factualidade constante da segunda parte da al. r) dos factos provados ("e não lhe foram remetidos os extractos da conta bancária"), importa notar que que, conforme resulta da al. q) dos factos provados, a comunicação do Administrador Judicial ao Recorrente com o pedido dos extractos bancários se encontra datada de 26.04.2016 e, conforme resulta do processo principal, a sentença declaratória da insolvência foi publicitada no portal Citius em 21.04.2016;
O) Pelo que a não entrega dos extractos bancários nunca poderia constituir uma falta de colaboração mas sim de uma dir-se-á que óbvia impossibilidade por parte do Recorrente de, posteriormente à data da sentença declaratória da insolvência e com o bloqueio da conta bancária, obter o que quer que fosse junto da entidade bancária da Insolvente, conforme aliás se encontra estatuído na al. c) do nº 6 do art. 38º do CIRE;
P) Acrescendo que nada impediria o Administrador Judicial de ele próprio solicitar directamente à entidade bancária os extractos que melhor entendesse, e o que, aliás, fez, conforme expressamente o referiu no ponto 8.6 do seu parecer;
Q) Sendo pois que a situação em apreço não é subsumível na previsão do facto-índice constante da al. i) do nº 2 do art. 186º do CIRE uma vez que, ao invés do que se encontra dado como provado na douta sentença aqui sob censura, o Recorrente efectuou os pagamentos à AT e à Segurança Social que lhe foram ordenados pelo Administrador Judicial (para além de muitos outros) e apenas não tendo a este enviado diariamente os "apuros diários" da caixa registadora (o que, não obstante, cuidou de enviar semanalmente), mas sendo que de forma alguma tal poderá ser considerado como uma relevante falta de colaboração com o Administrador Judicial;
R) Posto isto, mais se afigura imperscrutável que a Mma Juíz a quo tenha considerado como não provados os factos alegados pelo Recorrente nos arts. 10º a 17º da sua oposição bem como que, na motivação da mesma douta sentença, tenha expendido que "Ora, não resulta da prova produzida que as transferências bancárias realizadas em 2014, 2015 e 2016 se tenham destinado a ressarcir o requerido pelo facto de este ter, anteriormente e através do seu próprio património, assumido o pagamento de dívidas da insolvente";
S) Uma vez que tal factualidade – maxime os pagamentos que, nos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016, o Recorrente efectuou em numerário ou por débito nas suas contas bancárias pessoais (contas bancárias que se encontram identificadas nos docs nº 262 a 264 juntos com o articulado de oposição) e por conta e no interesse da Insolvente – se encontra alicerçada quer nos documentos de despesa (facturas e vendas a dinheiro) quer nos correspectivos comprovativos de pagamento e sendo que todos se encontram lançados na contabilidade da Insolvente;
T) Pois que neles é visível a aposição do respectivo lançamento e classificação contabilística, ou seja, foram, pela contabilidade da Insolvente, contabilisticamente classificados como tendo sido pagos a partir da conta …… (conta de outros credores);
U) Saldo dessa conta (a crédito do Recorrente) que depois era compensado com as transferências que o Recorrente efectuava da conta da sociedade para a sua conta pessoal;
V) Pelo que não é intuível e nem tem qualquer respaldo na prova produzida o expendido a fls. 14 da douta sentença recorrida que "É certo que alguns dos documentos juntos demonstram pagamentos realizados através de outras contas não tituladas pela insolvente" e que "No entanto, daí não resulta que tais pagamentos tenham sido feitos à custa do património do requerido, considerando, nomeadamente, os movimentos bancários realizados, sendo certo que as contas bancárias de destino não eram apenas por ele tituladas";
X) Designadamente porque os documentos nº 262 a 264 juntos com o articulado de oposição identificam as contas bancárias pessoais do recorrente, não de destino mas sim de origem, ou seja, de onde saíram os pagamentos das despesas custeadas pelo Recorrente por conta e no interesse da Insolvente;
Z) E mais sendo totalmente irrelevante que tais contas pessoais apresentassem um único ou então mais titulares uma vez que o que in casu releva é o facto de se encontrar documentalmente demonstrado que aqueles pagamentos por conta e no interesse da Insolvente foram efectuados por débito nas contas pessoais do Recorrente (e constituindo a titularidade do saldo dessas contas bancárias um assunto exclusivamente do fôro interno dos respectivos titulares);
AA) Para além ainda de que – porventura em contradição com a conclusão que depois vem a extrair – a própria sentença recorrida reconhece que a testemunha E… confirmou lhe terem sido pagas as retribuições a que dizem respeito os documentos de fls. 240, 285v, 304, 321, 340, 405, 436v e 437 dos autos, que a testemunha F… confirmou lhe terem sido pagas as retribuições a que dizem respeito os documentos de fls. 422, 509, 527, 563 e 585 dos autos e que a testemunha G… confirmou lhe terem sido pagas as retribuições a que dizem respeito os documentos de fls 559, 581 e 620 dos autos;
AB) Ora, se as trabalhadoras da Insolvente confirmaram haver recebido as quantias a que respeitam aqueles documentos da contabilidade da Insolvente e se, dos ditos documentos, resulta que os pagamentos foram efectuados a partir das contas pessoais do Recorrente, então também aqui mal se percebe que a douta sentença recorrida venha depois a extrair a conclusão de que não se provou que tais pagamentos tivessem sido efectuados pelo Recorrente ou então "à custa do património" do Recorrente;
AC) E acrescendo ainda que, através dos esclarecimentos prestados por I… na parte do depoimento com início aos 1h00m40s e termo aos 01h10m05s do respectivo registo aúdio, foram devidamente enquadrados e explicitados os pagamentos que o Recorrente efectuou por conta e no interesse da Insolvente;
AD) Para além ainda que o próprio Administrador Judicial, na parte do seu depoimento com início aos 28m38s e termo aos 30m30s do respectivo registo aúdio, confessa que afinal nunca apreendeu a contabilidade da Insolvente e, logo, não passam de suposições e de extrapolações tudo o que possa haver expendido no seu relatório relativamente à contabilidade da Insolvente e aos respectivos documentos de suporte;
AE) Em face do que a consideração da factualidade alegada nos arts. 10º a 17º do articulado de oposição como não provada padece de erro de apreciação da prova;
AF) Pois que, da concatenação da prova documental com os esclarecimentos prestados pelas testemunhas, se impunha que antes tivesse sido dado como provado que o Recorrente custeou, por débito nas suas contas bancárias pessoais, o somatório das despesas a que correspondem os documentos juntos com o articulado de oposição e o que fez por conta e no interesse da Insolvente;
AG) Bem como se impunha que tivesse sido acrescentado aos factos provados uma outra alínea na qual se encontrasse espelhado o somatório aritmético dos montantes daqueles documentos que, tanto nos três anos anteriores à data da declaração de insolvência como a partir dessa data e até ao encerramento da actividade da Insolvente, o Recorrente despendeu por débito nas suas contas bancárias pessoais e o que fez por conta e no interesse da Insolvente;
AH) E quanto aos pagamentos em numerário efectuados pelo Recorrente por conta e no interesse da Insolvente, igualmente não é lógico e nem tem qualquer respaldo na prova produzida o expendido na mesma fls. 14 da douta sentença recorrida: "Por outro lado, os pagamentos em numerário que alguns documentos evidenciam podem ter sido feitos por qualquer pessoa e as despesas subjacentes podem até ser alheias à actividade da insolvente";
AI) Uma vez que os documentos das despesas pagam em numerário – que igualmente se encontram lançados e classificados pela contabilidade da Insolvente – respeitam a despesas com artigos de papelaria, de limpeza (lexívias, reagentes ou branqueadores) e de retrosaria, o que, de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade, constitui custos da normal actividade de uma lavandaria e que também se dedica a arranjos de costura;
AJ) Sendo ainda que as três trabalhadoras da Insolvente que depuseram em audiência de julgamento (designadamente E… na parte do seu depoimento com início aos 8m30 e termo aos 10m34s do respectivo registo aúdio) foram unânimes em referir tanto a necessidade de realização dessas pequenas despesas em numerário como a impossibilidade de retirada de qualquer quantia da caixa registadora, para esse ou para outro fim e ainda que foi a então mulher do Recorrente quem custeou essas despesas;
AL) Assim, encontrando-se nos autos os comprovativos do conjunto das despesas pagas pelo Recorrente em numerário e tendo sido pelas trabalhadoras da Insolvente esclarecida a necessidade de realização daquelas despesas bem como da impossibilidade de ser retirada qualquer quantia da caixa registadora e ainda que tais despesas foram integralmente custeadas pela então mulher do Recorrente, afigura-se manifesto que, também nesta parte, a douta sentença aqui sob censura enferma de erro de apreciação da prova;
AM) E antes se impunha que tivesse sido acrescentado aos factos provados mais uma outra alínea na qual se encontrasse espelhado o somatório aritmético dos montantes daqueles documentos que, tanto nos três anos anteriores à declaração de insolvência como a partir dessa data e até ao encerramento da Insolvente, o Recorrente ou a então mulher do Recorrente despenderam em numerário e a seu próprio encargo e o que fizeram por conta e no interesse da Insolvente;
AN) Aliás, não é demais notar a ausência de rigor desta parte da douta sentença recorrida (maxime, do que foi e do que não foi dado como provado relativamente ao que foi transferido da conta da Insolvente para as contas pessoais do Recorrente) quando a Mma. Juíz a quo nem sequer cuidou de concretamente apurar qual teria sido afinal o montante transferido da conta da Insolvente para as contas pessoais do Recorrente: "t) O requerido D…, nos anos de 2014 e 2015, transferiu da conta bancária da insolvente para as suas contas pessoais os valores, pelo menos, de cerca de 30.000,00 euros, em cada um desses anos" (nota: sublinhado nosso);
AP) E mais outro tanto se dizendo relativamente ao facto de a Mma Juíz a quo haver considerado como não provados os factos alegados pelo Recorrente nos arts. 32º e 33º do seu articulado de oposição;
AR) Isto quando se encontram juntos aos autos os documentos contabilísticos e bancários comprovativos de que, entre Abril de 2013 e Dezembro de 2013, as transferências bancárias da conta da Insolvente para as contas de que o Recorrente e H… eram titulares corresponderam às remunerações do trabalho que por esta última foi prestado à Insolvente naquele período de tempo;
AS) Transferências que igualmente foram esclarecidas por I…, na parte do seu depoimento com início aos 28m16s e termo aos 29m09s do respectivo registo aúdio;
AT) Acrescendo que essa desconsideração da comprovação de que tais transferências corresponderam ao pagamento de remunerações de trabalho é tanto mais equívoca quando, na motivação da douta sentença recorrida, a própria Mma Juíz a quo designadamente expendeu que E… disse "mas antes a mulher do primeiro, H…, que também era trabalhadora da insolvente", "que, por vezes, pequenas despesas diárias eram pagas pela H…, sendo esta quem definia a serviço" e que "não teve conhecimento da cessação do contrato de trabalho da H…, a qual, de resto, sempre exerceu as mesmas funções", ou então que G… disse que "a H…, mulher do requerido, era ela que estava na loja, dava ordens e organizava o trabalho" e que "revelou não ter conhecimento da cessação do contrato da H…";
AU) Pelo que a consideração da factualidade alegada nos arts. 32º e 33º da oposição como não provada padece de erro de apreciação da prova;
AV) Pois que, da concatenação da prova documental com as explicitações prestadas pelas testemunhas, se impunha que antes tivesse sido dado como provado que as transferências realizadas a partir da conta bancária da Insolvente, e a que correspondem os docs nº 19 a 28 juntos aos autos em 10.02.2017, dizem respeito ao pagamento de remunerações de trabalho a H… (isto é, a co-titular das contas bancárias particulares do Recorrente) entre Abril e Dezembro de 2013, e, logo, correspondendo a pagamentos (transferências) que se encontram perfeitamente justificados;
AX) Somatório desses pagamentos de remunerações de trabalho que, consequentemente, deveriam ter sido excluídos dos montantes que o recorrente retirou da conta bancária da Insolvente;
AZ) Em face do que importa notar que, do confronto aritmético entre o somatório das despesas que o Recorrente custeou por conta e no interesse da Insolvente e o somatório das quantias que o Recorrente efectivamente retirou da conta bancária da Insolvente (quantias que, se, a douta sentença recorrida nem sequer cuidou de concretizar), resulta afinal um saldo positivo a favor do Recorrente;
BA) E, logo, não sendo a situação em apreço subsumível na previsão do facto-índice constante da al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE uma vez que, afinal e ao invés do que se encontra dado como provado na douta sentença aqui sob censura, o Recorrente não dispôs de bens da Insolvente nem em seu proveito nem em proveito de terceiros.
BB) A douta sentença recorrida deu como provado que "A insolvente tem dívidas à Segurança Social vencidas desde Janeiro de 2011, sendo que, entre tal data e Março de 2015, apenas pagou os meses de Novembro de 2011, Agosto de 2013, Abril e Outubro de 2014", que "O crédito do Instituto da Segurança Social, I.P. ascende ao montante global de 76.054,34 euros, sendo o montante de 10.562,74 euros de natureza privilegiada, por dizer respeito aos doze meses anteriores ao início do processo de insolvência" e que "O crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira, relativo a IRC, IVA, coimas e custas, ascende ao montante global de 26.922,44 euros, sendo o montante de 17.010,22 euros de natureza privilegiada, por dizer respeito aos doze meses anteriores ao início do processo de insolvência";
BC) E ainda que "Foram reconhecidos créditos no valor global de 175.772,14 euros", do que não se consegue descortinar onde é que a Mma Juíz a quo porventura terá encontrado a fundamentação para tal conclusão uma vez que nenhuma reclamação de créditos se encontra junta aos autos;
BD) E pela mesma exacta razão outro tanto sendo de observar relativamente aos montantes que foram dados como provados como sendo esses os créditos da Autoridade Tributária e da Segurança Social sobre a Insolvente;
BE) Tanto mais que o mapa de dívida nº ……………… que se encontra junto aos autos e que foi emitido em 10.05.2016 pelo Instituto da Segurança Social refere que a dívida de contribuições da Insolvente é de € 54.966,91 e os juros vencidos de € 10.202,07;
BF) Mas sendo que a questão principal que se impunha que tivesse sido apurada – e relativamente à qual a douta sentença recorrida se deveria ter pronunciado – é se, na data em que o Recorrente apresentou a sociedade à insolvência, as dívidas da sociedade (fossem elas de que montante fossem) estavam ou não estavam vencidas bem como se existia ou não existia incumprimento generalizado de dívidas;
BG) Pois que é exactamente isso o que releva para se aferir do incumprimento ou não do dever por parte do Recorrente de, antecedentemente, haver apresentado a sociedade à insolvência;
BH) Do que, porém, a douta sentença aqui sob censura é totalmente omissa uma vez que dá como provados montantes globais (e, mesmo estes, sem que se encontrem respaldados nos imprescindíveis documentos de suporte) em dívida a cada uma das entidades mas depois nada explicita nem nada descreve sobre o incumprimento generalizado do pagamento das obrigações vencidas, incumprimento que igualmente considera como provado;
BI) Ou seja, não identifica e nem sequer aflora quais os concretos períodos de tempo ou quais os meses em que se teria verificado incumprimento generalizado de dívidas tributárias, de contribuições, de dívidas a trabalhadores e/ ou de rendas de qualquer tipo;
BJ) Sendo que, ao invés desta conduta omissiva por parte da Mma Juíz a quo, o Recorrente cuidou de fazer prova positiva da inexistência de incumprimento generalizado de dívidas;
BL) Assim, e relativamente à dívida de maior relevo, a Insolvente havia celebrado com a Segurança Social um conjunto de acordos para o pagamento prestacional das contribuições em atraso e ía-os tempestivamente cumprindo, conforme designadamente resulta demonstrado dos docs nº 204 e 227 juntos com o articulado de oposição (acordo de pagamento prestacional com o nº …………….), do doc nº207 também junto (acordo de pagamento prestacional com o nº …………….), dos docs nº 186 e 178 também juntos (acordo de pagamento prestacional com o nº …………….) ou do doc nº 176 igualmente junto (acordo de pagamento prestacional com o nº …………….);
BM) E quanto ao contrato de leasing dos equipamentos da lavandaria da Insolvente, o doc nº 220 junto com o articulado de oposição é demonstrativo de que, em 20.02.2016, se encontravam a ser tempestivamente pagas as respectivas rendas;
BJ) E quanto a dívidas emergentes de contrato de trabalho, tanto a testemunha F… (na parte do seu depoimento com início aos 4m58s e termo aos 5m10s do respectivo registo aúdio) como a testemunha G… (na parte do seu depoimento com início aos 7m01s e termo aos 7m9s do respectivo registo áudio) negaram a existência de tais dívidas;
BL) Para além ainda que a testemunha I…, na parte do seu depoimento com início aos 48m01s e termo aos 59m06s do respectivo registo aúdio, esclareceu e explicitou que inexistia qualquer incumprimento generalizado de dívidas por parte da Insolvente e que, ao invés, ía regularmente cumprindo com as suas obrigações;
BM) Pelo que aquilo que se impunha é que a douta sentença recorrida tivesse acrescentado uma alínea aos factos provados na qual constasse que, na data em que o Recorrente apresentou a sociedade à insolvência, inexistia incumprimento generalizado de dívidas por parte da Insolvente;
BN) Ficando pois claro que a situação em apreço não é subsumível na previsão do facto-índice constante da al. a) do nº 3 do art. 186º do CIRE uma vez que não existiu incumprimento por parte do Recorrente do dever de apresentação mais cedo da sociedade à insolvência;
BO) E muito menos que existiu "culpa grave" por parte do Recorrente num qualquer putativo incumprimento desse mesmo dever;
BP) Assim, ao haver qualificado a insolvência como culposa, a Mma. Juíz a quo efectuou uma errónea interpretação e aplicação do direito positivo, designadamente das normas previstas nas als. d) e i) do nº 2 e na al. a) do nº 3 do art. 186º do CIRE.

Notificado para o efeito foram apresentadas contra-alegações pelo MP nos seguintes termos:
1º - De harmonia com o disposto no nº 1 do art.º 186º do C.I.R.E. “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
3º - A sentença recorrida valora adequadamente a prova documental e testemunhal produzida, acolhendo – e dando como provados – factos corroborados no parecer do administrador da insolvência e na pronúncia do Ministério Público, aos quais não aderiu cegamente, mas antes sobre eles exerceu um juízo crítico, daí resultando a eliminação de alguns factos e qualificações jurídicas, pelo que, neste contexto, não merece qualquer reparo a seleção dos factos dados como provados ou não provados na sentença, e respectiva motivação e a subsunção jurídica que da mesma resultou, norteada pelos princípios gerais aplicáveis como o da livre apreciação da prova.
4ª – Da conjugação dos meios de prova resultam verificados os factos ínsitos na alíneas d) do nº 2 e na alínea a) do nº 3 do art.º 186º do C.I.R.E., porquanto se apurou que o recorrente transferiu da conta da insolvente para as suas contas pessoais, nos anos que antecederam a apresentação à insolvência, quantias naquela depositadas, obstando ao pagamento, pela via executiva, das dívidas vencidas, enquanto foi contraindo novas dívidas tributárias, à segurança social e a fornecedores, e incumpriu o seu dever de apresentação da sociedade à insolvência.
5º - Verificada qualquer uma das situações tipificadas nas alíneas do nº 2 do art.º 186º do C.I.R.E., deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa.
7º - Como tal, bem andou o tribunal recorrido em qualificar a insolvência como culposa e declarar como afetado o aqui recorrente, com as legais consequências.

II. QUESTÕES A RESOLVER
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), é:
a) Determinar se é possível ou necessário apreciar as questões de facto ou direito relativas ao art. 186º, nº2, al. i) do CIRE
b) Apreciar depois se a decisão de facto (factos provados e não provados) deve ser alterada;
c) Por fim, apurar se estão preenchidos os elementos necessários à caracterização como culposa da insolvência.

III. Questão prévia
Com base nos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, n.º 1, 635.º, n.º 4, e 639.º, do Código de Processo Civil, constitui jurisprudência pacífica que o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo daquelas, cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao tribunal conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso.
Mas também é pacífico que essas conclusões estão directamente dependentes do interesse processual e legitimidade ad causa de a parte as formular.
Nestes termos, caso o objecto das mesmas não tenha sido desfavorável ao recorrente é evidente que este nenhuma sucumbência possuiu e por isso, as mesmas, não fazem parte do objecto útil do recurso.
Ora, nas conclusões a) a q) o recorrente pretende impugnar a decisão factual e jurídica quanto à aplicação da previsão da alínea i) do nº 2 do art.º 186º do CIRE.
Como bem salienta o MP A sentença recorrida não subsume os factos dados como assentes à previsão da alínea i) do art.º 186º do CIRE. Pelo contrário, considera o tribunal a quo “Antes de avançarmos, cumpre referir que, pese embora o Sr. Administrador da Insolvência faça alusão ao incumprimento, pelo menos parcial, do dever de colaboração previstos no art.º 83º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, cremos que o mesmo não fundamenta expressamente a qualificação da insolvência na circunstância prevista no art. 186º, n.º 2, alínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sendo certo, por outro lado, que os factos alegados ou que resultam dos autos não permitiriam, cremos também, considerar preenchida tal previsão.” Podemos assim concluir, que a sentença recorrida não qualifica a insolvência como culposa com base na falta de colaboração do afetado, gerente da insolvente. Por isso, essas questões (conclusões referidas) dizem respeito a matéria já transitada (favoravelmente ao apelante) e que assim não fazem parte, de forma útil, do objecto do presente recurso.
Pelo exposto não será apreciada, a matéria constante das conclusões a) a q).
*
IV. Valoração da decisão de facto
Parece existir um mito forense segundo o qual, nos recursos de apreciação da matéria de facto, se pode filtrar a prova produzida globalmente, por forma a encontrar, expor e demonstrar no manancial de depoimentos e documentos existentes, apenas aqueles que mais favorecem o recorrente, porque ninguém irá sindicar, mais tarde essa selecção.
Mas, o juízo de apreciação da matéria de facto terá sempre de aferir e valorar a globalidade dos meios de prova, apreciados de forma unitária, objectiva e de forma não arbitrária, por forma a obter uma convicção suficiente, certa, ponderosa, mas não absoluta. No presente caso, como veremos, o longo depoimento do apelante (1h30) é revelador, e, por si só, destrói a maior parte das conclusões do seu recurso.
Depois, como referem A. Varela, Bezerra e Nora in manual Processo Civil. pág. 392. "A prova no domínio do direito (processual), ao invés do que ocorre com a demonstração, no campo da matemática, ou com a experimentação no campo das ciências naturais, não visa a certeza lógica ou absoluta, mas apenas a convicção (o grau de probabilidade) essencial às relações práticas da vida social (a certeza histórico-empírica). E a este grau de convicção, próprio da prova, podem ascender, não apenas as ocorrências do mundo exterior (os factos externos), mas também as realidades do foro psíquico (os factos internos hoc sensu)".
Teremos de notar que a prova testemunhal, como decorre do artigo 396.º do Código Civil, é livremente apreciada pelo tribunal. Mas a mesma é, em especial no âmbito do direito civil, a mais frágil de todos os meios de prova. Isto, porque existe um triplo perigo. Em primeiro lugar, pelos erros involuntários devidos aos mecanismos de memória, depois, pelo perigo de infidelidade da percepção e da memória da testemunha voluntária, e por fim, porque existe sempre o risco de parcialidade da testemunha que pode ter um interesse directo ou indirecto na causa[1]. Por causa disso, o Ac da RP de 21.3.2019 nº 342/10.7T6AVR-E.P1 (Judite Pires) afirma “deve o julgador colocar especial cuidado na avaliação e ponderação dos testemunhos prestados em audiência, valorando-os com um prudente senso crítico, pesando não apenas o seu sentido objectivo, mas ainda a forma como se manifesta”.
Por isso, na valoração da prova este Tribunal, como todos:
a) Dá primazia aos meios objectivos em relação aos subjectivos;
b) Analisa criticamente o teor dos depoimentos, avaliando fundamentalmente a razão de ciência e a imparcialidade;
c) Aprecia a versão da realidade em termos de probabilidade e seriedade social.
Ora, os documentos de fls. fls. 149 a 173, 179 a 202, relatório de fls. 273 e segs, 343 a 350, 240, 285, 304, 321, 340, 405, 436, 437, 422, 509, 527, 563, 585, 559, 581, 620, são meios de prova objectivos (deles resulta que nos anos de 2014 e 2015, o apelante transferiu da conta bancária da insolvente para as suas contas pessoais valores de cerca de € 30.000,00 em cada um desses anos, conduta que prosseguiu mesmo após a declaração de insolvência, a 5, 18, 19, 20 e 21 de Abril de 2016).
Depois, as ações e execuções pendentes na data da insolvência identificadas a fls. 14 vº e 15 do processo principal, demonstram que a situação patrimonial da insolvente tinha:
a) Dividas à segurança social vencidas desde Janeiro de 2011,
b) Que entre Janeiro de 2011 e Março de 2015 apenas pagou os meses de Novembro de 2011, agosto de 2013 e Abril e Outubro de 2014,
c) No processo de insolvência foram reconhecidos créditos sobre a massa insolvente no valor de € 175.772,14, que das dívidas à segurança social e à autoridade tributária e aduaneira, respetivamente de € 76.054,34 e € 29.922,44, dos quais € 10.562,74 e € 17.010,22 têm natureza privilegiada, por se terem vencido nos 12 meses anterior ao início do processo, em Abril de 2016.
Por fim, o próprio depoimento de parte admite:
a) Que os pagamentos efectuados teriam sido de pequenas despesas (cruzetas, etc;);
b) Que a conta para onde foram transferidos pertence a si e à sua esposa, que geriu a insolvente até 2013;
c) Que a insolvente sempre esteve em dificuldades financeiras desde a sua abertura;
d) E que “movimentou quantias para evitar penhoras de contas da empresa”, sem que tenha depois, devolvido esse dinheiro.
Logo a realidade factual que a parte pretende impugnar nas conclusões r) e seguintes está comprovada e indiciada por meios de prova objectivos e pelo seu depoimento.
A demonstração de que essas transferências visaram “ressarcir quantias que teria adiantado e/ou para pagar despesas” e que a situação da empresa foi subitamente alterada é outra realidade cujo ónus impende sobre o apelante.
Mas, em termos de máximas da experiência, se uma empresa possui contabilidade organizada parece ser difícil aceitar que os pagamentos da mesma aos seus credores sejam feitos pelo apelante através das suas contas privadas. Basta dizer que isso impede a empresa de deduzir essas despesas ao lucro tributável. Depois, parece que o reembolso de provimentos e a existência dos mesmos é comprovada habitualmente por actas ou documentos nas quais o ente colectivo aceita os suprimentos e delibera o seu pagamento. Ora, essa prova não existe.
Portanto, a versão da realidade afirmada pelo apelante não é credível.
Depois, o depoimento[2] do Sr. J…. (administrador) é demolidor (com os levantamentos que atingiam vários milhares de euros; a empresa não geria meios para cumprir compromissos) e que se eram para fazer pagamentos então porque saíram da sua esfera. Note-se que este tem um efectivo conhecimento da situação contabilística da insolvente e nenhum interesse terá em prejudicar o apelante.
A Sra. E…[3] (ex-trabalhadora da insolvente de 2006 a Fevereiro de 2015) diz que os pagamentos eram efectuados pelo K…; [4] que os pagamentos atrasados eram feitos por sua pressão e que essa falta de pagamento era devida à Dona H… não ao apelante;
A Sra. F…; (empregada da insolvente) diz apenas que a Sra. H… a contratou mesmo em 2015 e que fazia o seu trabalho com as outras;
A Sra. G… (empregada insolvente) confirma que não se podia retirar dinheiro e que “penso que o dinheiro vinha de casa”.
Ou seja, essas testemunhas desconhecem os pormenores bancários da sociedade; a real situação económica da mesma e por isso são inócuas para demonstrar a realidade alegada pelo recorrente.
O Sr. C…, ex-sócio do apelante, reafirma que este retirou dinheiro da sociedade por forma a prejudicar a sociedade e a si; confirma que nenhum motivo de gestão existiu para esses actos e que a situação económico não era boa desde aí. Note-se que esta testemunha relata factos (desde 2012) dos quais tem conhecimento directo, sem que o seu interesse em prejudicar o apelante seja palpável. Interrogado na contra instância o objecto da inquirição foram as supostas contradições com um depoimento de Março 2015, que aliás a testemunha esclareceu e dissipou confirmando que até Dezembro de 2013 validou o pagamento de um salário para a Sra. H… (700 euros mensais), e pequenas quantias que já não se recorda.
O Sr. I…, contabilista que prestou serviços ao apelante, afirma ter conhecimento dos factos através dos documentos (relatório, balancetes). Ou seja, esta testemunha não é uma verdadeira testemunha, mas no fundo uma tentativa de prova pericial sem respeito pelo formalismo legal (e note-se que mesmo assim depôs 1,30h). Este “perito[5] afirma por exemplo que a empresa parecia ter meios para cumprir os seus compromissos, realidade contrariada pelo próprio depoimento de parte que assim põe em causa o “seu perito”[6]. Acresce que face à natureza da contratação desta “testemunha-perito”, o mesmo possui menos credibilidade do que, por exemplo, o depoimento do Sr. Administrador. Desde logo, porque o mesmo foi remunerado para construir a sua versão da realidade, apenas e só com os elementos que lhe foram entregues pelo apelante, sem que possa por isso afectar a credibilidade, por exemplo, do depoimento do Sr. Administrador. Por fim, as execuções pendentes revelam que afinal a situação contabilística que esta testemunha apresenta não é verídica.
E, por fim, o Sr. D… apelante nas suas declarações, demonstra até que afinal a referida Sra. H… dirigiu a empresa quando estava ausente no …, mas diz contraditoriamente que os movimentos eram pagamentos do que tinha sido adiantado em “dinheiro da minha conta ou que seja” e diz quantias “ir a retrosaria, comprar produtos” e “risco de a conta ser bloqueada”, mais esclarece que afinal a Sra H… é sua esposa e saiu porque teve de dar assistência à mãe.
Ou seja, este depoimento em si mesmo só fortalece o juízo probatório do tribunal a quo porque demonstra sem margem para dúvidas que:
a) a explicação para as despesas (situações de compra de cruzetas, pequenos detergentes, etc) nunca pode atingir os milhares de euros transferidos (70.000)[7];
b) se uma empresa tem contas penhoradas é porque tem obrigações incumpridas o que indicia ter dificuldade.
c) Se quantias foram transferidas para evitar penhoras e não foram devolvidas terão de ter sido apropriadas.
Pelo exposto, teremos de concluir com os meios de prova constantes das conclusões e com os restantes oficiosamente ouvidos e lidos, que a decisão em crise (quanto à matéria provada e não provada) não é nem arbitrária, nem infundada, sendo que a realidade processual demonstra de forma suficiente e segura a decisão factual da 1ª instância.
*
V. Pelo exposto fixa-se a seguinte matéria de facto
a) A sociedade comercial “B…, Lda.” está matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o NIPC ………, com sede na Rua …, n.º …, hab. …, …, Vila Nova de Gaia, tendo por objecto serviços de lavandaria, engomadoria, arranjos de costura e comércio de artigos de retrosaria, com o capital de 5.000,00 euros, sendo gerente D…;
b) Foi constituída a 7 de Março de 2006, com o referido capital dividido em duas quotas, no valor nominal de 2.500,00 euros cada, uma titulada por C… e outra titulada por D…, tendo ambos sido designados gerentes;
c) Através da inscrição com a ap. 170, de 17 de Dezembro de 2013, está registada a cessação de funções de gerente de C…, por renúncia;
d) Na mesma data foi registada a transmissão da quota titulada por C… a favor do sócio D…;
e) A cessão de quotas referida na alínea anterior foi objecto da escritura pública de 17 de Dezembro de 2013, cuja cópia se encontra junta a fls. 13 verso a 15 e cujo teor se dá aqui por reproduzido;
f) A 4 de Maio de 2015 mostra-se registada a transmissão de uma quota no valor nominal de 500,00 euros, resultante da divisão da quota no valor nominal de 2.500,00 euros titulada por D…, a favor de M…;
g) A sociedade comercial “B…, Lda.”, a 13 de Abril de 2016, apresentou-se à insolvência, com os fundamentos que aqui damos por reproduzidos, pedindo que a administração da massa insolvente lhe fosse confiada, nos termos do disposto no art. 224º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, comprometendo-se a apresentar um plano de insolvência, no prazo de 30 dias a contar da declaração de insolvência, que previsse a continuidade da exploração da empresa pela própria;
h) Nessa altura, a sociedade comercial “B…, Lda.” ainda estava a laborar;
i) A 19 de Abril de 2016 foi proferida sentença que declarou a situação de insolvência;
j) O pedido de confiança da administração da massa insolvente à devedora foi indeferido por despacho de 5 de Maio de 2016;
k) A insolvente apresentou o plano de insolvência junto a fls. 211 e seguintes do processo principal;
l) Na assembleia de apreciação do relatório, realizada a 8 de Junho de 2016, foi deliberado o encerramento do estabelecimento comercial da insolvente e o prosseguimento do processo para a fase da liquidação;
m) Aquando da apresentação à insolvência estavam pendentes contra a insolvente, pelo menos, as acções e execuções identificadas a fls. 14 verso e 15 do processo principal;
n) A actividade comercial da insolvente sempre foi desenvolvida em regime de “Franchising – N…” e o seu estabelecimento comercial situava-se no “K…, S.A.”, piso – ., em Vila Nova de Gaia, através de um acordo denominado “Contrato de Colaboração Comercial”, celebrado a 18 de Maio de 2006;
o) O “K…, S.A.”, por carta datada de 28 de Janeiro de 2016, comunicou à insolvente a denúncia do referido “Contrato de Colaboração Comercial” com efeitos a 18 de Maio de 2016;
p) O Sr. Administrador da Insolvência remeteu ao requerido D… e à insolvente as cartas cujas cópias se encontram juntas a fls. 167 e 168 do processo principal e cujo teor se dá aqui por reproduzido, datadas de 22 de Abril de 2016;
q) O Sr. Administrador da Insolvência remeteu à insolvente, com conhecimento do gerente D…, a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 166 do processo principal e cujo teor se dá aqui por reproduzido, datada de 26 de Abril de 2016, pedindo-lhe para: “a. Proceder ao pagamento imediato da Segurança Social que se venceu no dia 20/04/2016, durante o dia de amanhã ou o mais tardar até ao dia seguinte à recepção da presente notificação e enviar para o signatário o comprovativo de pagamento da mesma; b. Proceder ao pagamento imediato da guia de retenções de IRS que se venceu a 20/04/2016, durante o dia de amanhã ou o mais tardar até ao dia seguinte à recepção da presente notificação e enviar para o signatário o comprovativo de pagamento da mesma. c. Enviar ao signatário os Apuros Diários do Caixa, todos os dias, com o carimbo e assinatura da empresa, a começar no dia 19/04/2016. d. Enviar ao signatário o extracto de todas as contas bancárias da empresa, desde o início de Abril de 2016 até à data.”;
r) Os apuros de caixa solicitados foram enviados ao Sr. Administrador da Insolvência semanalmente e não lhe foram remetidos os extractos da conta bancária;
s) O Sr. Administrador da Insolvência solicitou ao “K…”, a 26 de Abril de 2016, informação sobre os dias do mês em que procedia ao apuramento das contas e à transferência da verbas para a conta da insolvente, sobre o apuro e o valor da facturação até àquela data, relativo ao mês de Abril, e sobre o dia da próxima transferência e o respectivo valor;
t) O requerido D…, nos anos de 2014 e 2015, transferiu da conta bancária da insolvente para as suas contas pessoais os valores, pelo menos, de cerca de 30.000,00 euros, em cada um desses anos;
u) No mês de Abril de 2016 transferiu, nas mesmas circunstâncias, o montante global de 7.420,00 euros, nos dias 5, 18, 19, 20 e 21;
v) O Sr. Administrador da Insolvência solicitou ao requerido a reposição do valor referido na alínea anterior, sem sucesso, não tendo obtido resposta;
w) No mês de Abril de 2016 as receitas ascenderam ao montante de 6.156,23 euros e as despesas ao montante de 9.769,94 euros;
x) A 18 de Abril de 2016 o “K…” transferiu para a conta bancária da insolvente o montante de 6.270,18 euros;
y) O “K…” transferiu para a conta da massa insolvente o montante de 7.566,54 euros, a 17 de Maio de 2016, o montante de 7.665,56, a 16 de Junho de 2016, o montante de 1.023,15 euros, a 6 de Julho de 2016, o montante de 1.459,42 euros, a 18 de Julho de 2016, o montante de 872,89 euros, a 18 de Julho de 2016, e o montante de 122,49 euros, a 6 de Setembro de 2016;
z) A insolvente tem dívidas à Segurança Social vencidas desde Janeiro de 2011, sendo que, entre tal data e Março de 2015, apenas pagou os meses de Novembro de 2011, Agosto de 2013, Abril e Outubro de 2014;
aa) Foram reconhecidos créditos no valor global de 175.772,14 euros;
bb) O crédito do Instituto da Segurança Social, I.P. ascende ao montante global de 76.054,34 euros, sendo o montante de 10.562,74 euros de natureza privilegiada, por dizer respeito aos doze meses anteriores ao início do processo de insolvência;
cc) O crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira, relativo a IRC, IVA, coimas e custas, ascende ao montante global de 26.922,44 euros, sendo o montante de 17.010,22 euros de natureza privilegiada, por dizer respeito aos doze meses anteriores ao início do processo de insolvência;
dd) Foram apreendidos os bens móveis identificados a fls. 24 a 16 do apenso A, os quais foram avaliados no montante global de 9.825,00 euros e vendidos pelo preço de 16.260,17 euros;
ee) Nos anos de 2013, 2014 e 2015 o passivo ascendeu aos montante de, respectivamente, 243.691,55 euros, 246.965,53 euros e 227.407,54 euros;
ff) Nos mesmos anos o activo ascendia aos montantes de, respectivamente, 41.836,88 euros, 60.856,09 euros e 47.489,03 euros, apresentando a insolvente capitais próprios negativos nos montantes de, respectivamente, 201.854,67 euros, 186.109,44 euros e 179.918,51 euros;
gg) Nos referidos anos de 2013, 2014 e 2015 os valores relativos a “Vendas e prestação de serviços” ascenderam aos montantes de, respectivamente, 124.168,60 euros, 136.179,25 euros e 124.638,69 euros;
hh) O resultado líquido do período, nos anos de 2013, 2014 e 2015 foi de, respectivamente, -4.981,19 euros, 15.745,23 euros e 6.190,93 euros;
ii) No âmbito do processo n.º 6975/12.0TDPRT, do Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto, 5ª Secção, a 23 de Junho de 2013, o Ministério Público deduziu acusação contra H… e D…, com os fundamentos constantes de fls. 19 e 20, os quais damos aqui por reproduzidos, imputando-lhes a prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205º, n.º 1, do Código Penal;
jj) A 10 de Setembro de 2015 foi proferida sentença, cuja cópia se encontra junta a fls. 21 a 24 e cujo teor se dá aqui por reproduzido, a qual, para além do mais, julgou a referida acusação pública improcedente, por não provada, e absolveu os arguidos H… e D…;
kk) O Tribunal da Relação do Porto, a 8 de Março de 2017, proferiu Acórdão que negou provimento ao recurso interposto pelo ali assistente C… e manteve a sentença referida na alínea anterior;
ll) Na sentença foram dados como provados, entre outros, os seguintes factos: “A) Em 7/3/2006 o arguido D… e o assistente C… constituíram entre si uma sociedade denominada B…, Lda (…), da qual eram os únicos sócios; B) Não obstante o ofendido e o arguido D… figurarem como gerentes da referida sociedade, na prática esta era apenas gerida pela arguida H…, esposa do arguido D…; C) Em 6/6/011, a cliente O…, Lda. emitiu o cheque n.º ………., no valor de €1.010,73, relativo à factura n.º …, para pagamento de serviços prestados pela sociedade B…, sendo que o valor não foi depositado na conta desta sociedade, mas antes em conta sediada no Banco P…, com o n.º ………; D) Em 4/08/011, a mesma cliente O…, Lda. emitiu o cheque n.º ………., no valor de €1.096,13, referente à factura n.º …, para pagamento de serviços prestados pela sociedade B…, o qual não foi depositado na conta desta sociedade, mas antes em conta sediada no Q…, com o n.º ………..; E) Em 17/9/011, a mesma cliente O…, Lda. emitiu o cheque n.º ………., no valor de €837,57, referente à factura n.º …, para pagamento de serviços prestados pela sociedade B…, o qual não foi depositado na conta desta sociedade, mas antes em conta sediada no Q…, com o n.º ……………….; F) No referido período de tempo, a sociedade B… tinha pendentes dívidas para com as Finanças e para com a Segurança Social; G) Durante o ano de 2011 o ofendido auferia uma remuneração ao serviço da B… no montante de €350/mês, sem que nunca tenha declarado fiscalmente a sua percepção (…)”;
mm) Foi dado como não provado, entre outros factos, que “o arguido D… exercesse de facto as funções de gerente da sociedade B…”;
nn) O requerido D… prestou comissão de serviço na …, entre 3 de Outubro de 2011 e 13 de Maio de 2013.
*
VI. Motivação de direito
Decorre do art.3º nº1 do CIRE, que a insolvência é a situação em que o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas
Sendo que deve ser considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas. A situação de insolvência da ora apelante é evidenciada pela dimensão do passivo reconhecido, sem que tenham ficado demonstrados pagamentos significativos.[8] In casu recorde-se que está provado que “foram reconhecidos créditos no valor global de 175.772,14 euros”.
O que está em causa neste recurso é apenas determinar se a insolvência deve ou não ser considerada culposa.
A insolvência será sempre culposa, quando pelos seus administradores, de direito ou de facto, tenha ocorrido, pelo menos, uma das situações elencadas no art.186º nº2 do CIRE.
Esta norma dispõe que “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. 2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação (…)
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
Este artigo apresenta-nos no nº2 um elenco de presunções uiris et de iure que não admitem prova em contrário (art. 350º, nº2, do CC). [9]
Com efeito na recente actualização do seu manual, Maria Rosário Epifânio[10] esclarece que essas presunções derivam da necessidade de garantir uma maior eficiência da ordem jurídica na responsabilização das administrações.
E, o recente Ac da RE 14.3.19 processo nº 494/14.7TBLLE-E.E1, considerou que: “O nº 2 do artigo 186º do CIRE elenca, de forma taxativa, situações fácticas que implicam a caracterização da insolvência como culposa e ali estão presentes presunções iure et de iure, inilidíveis, que fundamentam a existência de um quadro de culpa grave, da existência do nexo de causalidade entre a conduta tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
É certo, que tem sido discutida a questão de saber se as mesmas abarcam ou não o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência. Mas isso, como veremos, nem sequer é necessária nestes autos.[11]
O Ac da RG de 10.7.18 PROCESSO N.º: 2122/15.4T8VCT-E.G1: considerou que: “Nas diversas hipóteses previstas no nº 2, em função de cuja verificação se considera sempre culposa a insolvência (ou seja, sempre preenchido o conceito do nº 1), além de inilidível (jure et jure), por força da parte final daquela norma civilística, tal presunção, diferentemente, abarca todos os demais elementos. Não tem, portanto, sentido, quanto a estas, discutir-se se o nexo de causalidade deve ser provado como requisito autónomo, uma vez que na presunção ele está compreendido”.[12] E, do mesmo modo MANUEL A. CARNEIRO FRADA [13] esclarece “Na determinação da qualificação da insolvência, cuja relevância prática e dogmática para a compreensão do pressuposto objeto de insolvência culposa é vital, os deveres gerais dos administradores enumerados no n.º 2, compreendem o modo de funcionamento da técnica jurídica da diferente natureza das presunções dos n.º s 2 e 3 do art.186.º. Apreender o seu alcance e utilidade para a concretização do conceito de insolvência culposa plasmado no n.º 1 é de grande relevância. Pois, a opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior “eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências”.
Mas, mesmo que se admita a necessidade de demonstração da causalidade, no caso dos autos esta foi efectuada, pois, entre o acto de apropriação e a declaração de insolvência é evidente que, pelo montante apropriado e pela duração dessa conduta as dificuldades económicas da empresa seriam menores e também os seus credores estariam bem melhor salvaguardados, se esse montante elevado não tivesse sido apropriado pelo apelante. Ouçam-se as declarações deste: “fiquei assustado quando vi o valor e vejam-se os factos provados não impugnados quanto à situação patrimonial da empresa.
No que respeita à alínea do nº3 do art.186º, já é consensual, entre nós, que se trata de uma presunção relativa que admite prova em contrário.[14]
O apelante tentou ilidir a mesma.
É verdade que, temos de aplicar ao caso oficiosamente, e sem que tal tenha sido objecto de qualquer alegação, que existe uma insidicabilidade das decisões dos administradores/gerentes ao abrigo da sua liberdade de gestão (business rule). Note-se que a business judgment rule foi desenvolvida pela Jurisprudência norte americana no domínio da responsabilidade civil dos administradores para com a sociedade e é nesse âmbito que tem sido discutida e aplicada entre nós. Em síntese, ela determina que a avaliação e julgamento, de acordo com critérios de razoabilidade, da substância/mérito das decisões empresariais tomadas pelos administradores de empresas sejam subtraídos dos tribunais. Estes sindicarão apenas as decisões empresariais com base em critérios de racionalidade: o administrador apenas será civilmente responsável quando a decisão empresarial for considerada irracional.
Mas este “privilégio de gestão só abarca os «honest mistakes», o que não é o caso presente[15].
Com efeito, é impossível defender que a empresa tenha necessidade de pagar facturas com o seu capital através da conta pessoal do seu gerente e mulher. Não apenas a decisão é irracional como manifestamente desleal para empresa e seus credores.[16] Veja-se que efectuou essas transferências quando os capitais da empresa já eram negativos e as dívidas se iam avolumando e assim apropriou-se de, pelo menos, 67.400,00 euros, sendo 30 mil em cada um dos anos 2014 e 2015, e o restante após apresentação à insolvência.
Depois, essa business judgment não se aplica quando existe infracção do dever de lealdade, porquê só funciona no âmbito o dever de diligência. Ora, a actuação do apelante rompeu e diz respeito a esse dever concreto.
Podemos assim concluir que, o simples acto de apropriação, conjugado com a difícil situação económica da empresa (admitida no depoimento de parte), implica a existência de uma culpa grave, já que esta é entendida como um comportamento de negligência grosseira[17].
Note-se aliás, a título meramente exemplificativo o caso diferente decidido pelo Ac da TRC de 26/01/2010, (CARLOS MOREIRA) nº 110/08.6TBAND-D.C1: “O administrador pode ilidir a presunção, demonstrando que, “Apesar de alguns problemas financeiros, a empresa continuou a laborar, continuou a cumprir os seus compromissos, não se desfez do património da mesma e, não se apresentou à insolvência porque apesar das dificuldades económicas, sempre tentou que a mesma continuasse a sua actividade.”
Ora, o que o apelante fez foi exactamente o contrário, pensou por certo que a situação podia melhorar, mas a realidade é que se apropriou de elevadas quantias da empresa de forma reiterada e prolongada e por isso a sua actuação não pode deixar de ser qualificada como gravemente culposo.
Podemos assim concluir que estão preenchidos todos os pressupostos da insolvência culposa nos termos do nº. 1 do artº. 186º do CIRE:
a) A actuação (acção ou omissão), do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto,
b) Um comportamento com, neste caso, culpa grave entendida como aquela com que age o agente que omite os deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente descuidada e desleixada deixaria de respeitar
c) Nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu à insolvência,
d) E o nexo causal entre a actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
*
VII. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e por via disso confirmar integralmente a decisão recorrida.
*
Custas da apelação a cargo do apelante
*
Porto em 6.2.2020
Paulo Duarte Teixeira
Fernando Baptista
Amaral Ferreira
_____________
[1] Cfr com mais desenvolvimentos Luís Pires de Sousa, Prova Testemunhal, 2016, 43 e segs.
[2] De notar que o som da gravação se apresenta num escasso limiar de audibilidade.
[3] Num conflituoso depoimento.
[4] Depoimento congruente com a decisão de facto, pois, assim se explica razão pelo qual o recorrente teve de efectuar transferências de contas da sociedade para as suas contas particulares.
[5] A determinada altura até se afirma “se fosse fazer uma peritagem”.
[6] Note-se que este nas suas declarações destrói o depoimento deste Sr. perito, pois, diz que desde o inicio a empresa estava em situação difícil, havendo um prejuízo muito grande (cfr. minuto 23 e 24).
[7] Diz “assustei-me a ver esse número” e já agora note-se que a Sra. H…, como este afirma, é esposa do apelante, logo a conta em causa é titulada pelo casal.
[8] Cfr. Serra, Catarina, O Regime Português da Insolvência, 5º edição, Almedina, Coimbra, 2012. 8 Epifânio, Maria do Rosário, Manual de Direito da Insolvência, 7º edição, Almedina, Coimbra, 2019, p.13.
[9] Cfr. Ac RC de 7.2.2016 nº 2273/10.1TBLRA-B.C1
[10] Manual de Direito da Insolvência, Almedina, 7º edição, 2019, pág. 151 e segs.
[11] Catarina Serra in loc cit., defende que, “a ligação do nexo de causalidade entre a conduta e a consequência que dela advém só tem de ser demonstrada através do nexo de causalidade em relação as alíneas g) e h)”.
[12] O Ac da RP de 05/02/2009, Relator LUÍS ESPÍRITO SANTO considera também que: “a simples verificação das situações previstas nas als. a) e b), do n.º3, do art. 186.º do CIRE, constitui uma presunção ilidível não apenas de culpa grave do agente infrator, mas também de suspeita de insolvência culposa, pressupondo-se à partida o nexo de causalidade exigido pelo n.º 1”.
[13] In A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in ROA, A. 66, II, Setembro de 2006, pp. 653-702. – 56.
[14] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, pág. 14; Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, pág. 175, 2ª edição; e Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Vol. II, pág. 96; e Ac RG, 12-07-2011 (CONCEIÇãO BUCHO). 31. RP de 1-07-2009, (HENRIQUE ARAÚJO, in www.dgsi.pt: “O n.º 3 do mesmo artigo apresenta, por seu turno, um conjunto de situações de presunção de culpa grave. Trata-se, contudo, de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária. A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres”.
[15] Maria Elisabete de Gomes Ramos, A Insolvência da Sociedade e a Responsabilização dos Administradores no ordenamento jurídico Português, in Revista Digital Prim@ Facie, http://www.ccj.ufpb.br/primafacie, Ano 4, n.º 7, Jul./ Dez, 2005, pp. 26
[16] Veja-se aliás a “leveza” com que o apelante reconhece no seu depoimento que efectuou transferências para “evitar penhoras das contas da empresas”, esquecendo então que, além do mais, não devolveu essas quantias à mesma.
[17] CFr. Acórdão RG de 21/01/2016 (Miguel Baldaia Morais); MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, ob e loc cit e ainda em O incidente de qualificação da insolvência. Centro de Estudos Judiciários. Lisboa: 20 de Janeiro de 2012, disponível em https://educast.fccn.pt/vod/clips/1jgpm7kaig/flash.html.