Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
369/12.4TMMTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: DIREITO A ALIMENTOS
TITULARIDADE
INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO
BOA-FÉ PROCESSUAL
VIOLAÇÃO
Nº do Documento: RP20200123369/12.4TMMTS-A.P1
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O dever de alimentos assume essencialmente duas modalidades: i) prestação in pecunia ou monetária, quando de modo indireto as necessidades do alimentado são asseguradas através de dinheiro, sendo esta a regra (2005.º, n.º 1 Código Civil); ii) prestação in natura ou em espécie, quando respondem de modo direto e por qualquer meio a essas mesmas necessidades (2005.º, n.º 2 Código Civil).
II - No âmbito das relações jurídicas alimentares entre pais e filhos, enquanto o progenitor a quem o menor está confiado tem a devida legitimidade processual para demandar o outro progenitor, designadamente por incumprimento do dever de alimentos por parte deste, apenas o menor é titular desse direito a alimentos, o que lhe confere a legitimidade substantiva desse direito.
III - O abuso de direito processual corresponde essencialmente ao exercício impróprio, no plano funcional, do direito à ação, distorcendo o direito fundamental a um processo justo e equitativo, na dimensão de garantia de acesso aos tribunais, mediante uma tutela judicial efectiva, o qual deve ser aferido a partir da noção de boa-fé processual objetiva.
IV - Verifica-se a violação da boa-fé processual quando ocorre o exercício ilegítimo do direito de ação, em virtude do seu titular ao demandar outra pessoa e atenta a realidade que lhe está subjacente, acaba por exceder manifestamente os limites impostos por um standard de integridade e lealdade procedimental.
V - Muito embora a progenitora tenha legitimidade processual para demandar o outro progenitor, exerce de modo ilegítimo esse direito a ação por incumprimento, em virtude da menor ter passado a residir alternada e quinzenalmente com cada um dos progenitores, suportando cada um destes as despesas correspondentes, ficando sempre salvaguardadas as despesas extraordinárias, o que vem ocorrendo por um período de quase 2 (dois) anos, sem que aquela progenitora nada tenha exigido ou se oposto desde o início de tal convivência partilhada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 369/12.4TMMTS-A.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos; António Paulo Vasconcelos, Filipe Caroço

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1.1. No processo n.º 369/12.4TMMTS-A do Juízo de Família e Menores de Matosinhos, J1, da Comarca do Porto, em que são:

Recorrente/requerente: B…

Recorrido/requerido: C…

Ministério Público

foi proferida sentença em 30/set./2019 julgando totalmente improcedente o incidente de incumprimento suscitado pela requerente, absolvendo o requerido.
1.2. A requerente em 15/mai./2019 veio suscitar o incumprimento da prestação alimentícia a cargo do requerido, desde julho de 2017, num total de € 3.562,50 formulando o seguinte pedido:
“nos termos do art. 48.º n.º 1, alínea b) do RGPTC, ordene de imediato o desconto no vencimento do requerido das prestações vincendas, bem como as prestações em atraso, e a remeter à requerente, através do depósito na sua conta bancária, notificando-se a sua entidade patronal para o efeito”
1.3. O requerido contestou em 31/mai./2019, invocando que deixou de pagar as prestações em causa, em virtude da menor sua filha e da requente, ter manifestado vontade de viver consigo e de modo alternado com a sua mãe, por período de 15 dias, o que está fazendo conforme acordado e desde julho de 2017, pelo que a pretensão da requerente deve ser indeferida.
2. A requerente insurgiu-se contra aquela sentença, tendo em 16/out./2019 interposto recurso da mesma, pugnando pela sua revogação, apresentando as seguintes conclusões:
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3. O requerido respondeu em 31/out./2019, pugnando pela improcedência do recurso, formulando as seguintes conclusões:
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4. O Ministério Público respondeu 04/nov./2019 pugnando igualmente pela improcedência do recurso.
5. Admitido o recurso foi o mesmo remetido a esta Relação, onde foi autuado em 18/nov./2019, procedendo-se a exame preliminar e cumprindo-se os vistos legais.
6. Não existem questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do recurso.
7. O seu objeto incide no incumprimento do pagamento das prestações alimentícias por parte do recorrido.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Os factos provados da sentença recorrida
“- D… nasceu a 18 de dezembro de 2002 e foi registada como filha da requerente e do requerido – cf. doc. fls. 33 do processo principal
- O exercício das responsabilidades parentais referentes à jovem D… encontra-se judicialmente regulado, por decisão datada de 14 de maio de 2014, que homologou o acordo dos progenitores, pela qual se encontra determinado, além do mais, que a menor reside com a mãe e que a partir de dezembro de 2014 o progenitor pagaria 150€ de alimentos para a D…, sendo tal montante anualmente atualizado, em janeiro de cada ano e com inicio em janeiro de 2016, em 2,5€ - cf. fls. 135-136 do processo principal
- A partir de julho de 2017 a jovem D… passou, de facto, a residir alternada e quinzenalmente com cada um dos progenitores - declarações dos progenitores
- A requerente, embora não concordando em pleno com tal situação, conformou-se com a mesma e a jovem reside quinzenalmente com cada um dos progenitores de forma continuada e estável desde julho de 2017 até ao momento – declarações dos progenitores
- A partir de julho de 2017, o requerido deixou de pagar qualquer quantia mensal à requerente a título de prestação de alimentos devidos à filha menor comum – declarações dos progenitores
- Cada um dos progenitores suporta as despesas da menor no período em que com ela se encontra, sendo repartidos por ambos os progenitores despesas extraordinárias – declarações dos progenitores”
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2. Fundamentos do recurso
A Constituição, através do seu artigo 36.º, n.º 5 e no âmbito da família e filiação, confere aos pais um direito e dever constitucional de educação e manutenção dos filhos, sendo o primeiro dirigido ao Estado, e o segundo essencialmente em benefício dos filhos. A Convenção dos Direitos da Criança de 1989 (DR I, n.º 211, 12/09/1990), de acordo com o artigo 18.º, n.º 1, consagra igualmente que os pais têm a responsabilidade suprema e primacial de assegurar a educação e desenvolvimento dos seus filhos, afiançando os interesses destes. Tal só não sucederá se os pais não tiverem capacidade para o efeito. Por sua vez, o Código Civil, mediante o artigo 1874.º, n.º 1 estipula que “Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência”, acrescentando no n.º 2 que “O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar”. Este dever de assistência e de prestação de alimentos, não só existe quando pais e filhos mantêm uma vida em comum (artigos 1874.º, n.º 2; 1878.º, n.º 1 Código Civil), mas também nas situações de vida em separado (artigo 1905.º Código Civil). Assim e muito embora seja comum referenciar o dever e direito a alimentos como sendo estruturalmente obrigacional, o mesmo não deixa de representar uma dimensão essencial dos deveres e direitos constitucionais da filiação.
O Código Civil estabelece no seu artigo 1877.º que “Os filhos estão sujeitos às responsabilidade parentais até à maioridade ou emancipação”, estando o conteúdo dessa responsabilidade definido no subsequente artigo 1878.º, salientando-se no caso presente o seu n.º 1, onde se preceitua que “Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”. A desobrigação dos pais em relação ao sustento, segurança, saúde e educação dos filhos, assim como a suportar as despesas daí decorrentes ocorre “na medida em que os filhos estejam em condições de suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos” (1879.º Código Civil).
Mais adiante e no artigo 1901.º, n.º 1 do Código Civil, consagra-se que “Na constância do matrimónio, o exercício das responsabilidades parentais pertence a ambos os pais”, enquanto no subsequente 1905.º, n.º 1 do Código Civil, estipula-se que “Nos casos de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, ... os alimentos devidos aos filhos e as formas de os prestar serão regulados mediante acordo dos pais, sujeitos a homologação; a homologação será recusada se o acordo não corresponder ao interesse do menor” – redação da Lei n.º 61/2008, de 31/out.. Em caso de desacordo resta a ação judicial, designada como providência tutelar cível (3.º, alínea c) Lei 141/2015, de 08/set.; DR I, n.º 175 – RGPTC). Esta tem natureza jurisdicional voluntária (12.º RGPTC), tendo como princípios orientadores os decorrentes da regulação da lei de proteção de crianças (Lei 147/99, 01/set.) e os particularmente previstos no processo tutelar cível, ou seja, a simplificação instrutória e oralidade, consensualização, audição e participação da criança (4.º, n.º 1 RGPTC).
O Código Civil, mas agora através do seu artigo 2003.º, considera como alimentos “tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário” (n.º 1), compreendendo ainda nesta noção legal a instrução e educação do alimentado, no caso deste ser menor (n.º 2). No que concerne à medida dos alimentos, regula-se no subsequente artigo 2004.º, n.º 1, que “Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los”, enquanto no n.º 2 preceitua-se que “Na fixação dos alimentos atender-se-á, outrossim, à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência”. O modo de prestar os alimentos está disciplinado no artigo 2005.º, do Código Civil, estipulando-se no n.º 1 que “Os alimentos devem ser fixados em prestações pecuniárias mensais, salvo se houver acordo ou disposição legal em contrário, ou se ocorrerem motivos que justifiquem medidas de excepção”, aditando-se no n.º 2 que “Se, porém, aquele que for obrigado aos alimentos mostrar que os não pode prestar como pensão, mas tão-somente em sua casa e companhia, assim poderão ser decretados”. Como se pode constatar o Código Civil consagrou expressamente duas modalidades distintas de prestação de alimentos, as quais são de resto reconhecidas noutros ordenamentos jurídicos e até de um modo mais incisivo (v. g. artigos 149 Código Civil Espanhol[1]; 373-2-2, do Code Civil Francês[2]; 443 Codice Civile Italiano[3]). Daqui decorre que o dever de prestar alimentos não comporta apenas as vulgares prestações em dinheiro, podendo assumir duas modalidades: i) in pecunia ou monetária, quando de modo indireto as necessidades do alimentado são asseguradas através de dinheiro, sendo esta a regra (2005.º, n.º 1 Código Civil); ii) in natura ou em espécie, quando respondem de modo direto e por qualquer meio a essas mesmas necessidades (2005.º, n.º 2 Código Civil).
O dever de prestar alimentos, tem, no entanto, como contraponto o direito a alimentos, sendo este indisponível ou, como se diz no artigo 2008, n.º 1, “O direito a alimentos não pode ser renunciado ou cedido, bem que estes possam deixar de ser pedidos e possam renunciar-se as prestações vencidas.” – no adiante n.º 2 estipula-se que “O crédito de alimentos não é penhorável, e o obrigado não pode livrar-se por meio de compensação, ainda que se trate de prestações já vencidas.”. Como decorre daquele primeiro segmento normativo o direito a alimentos não pode ser renunciado prospectivamente, ou seja, para o futuro, mas pode ser renunciado retroativamente, i. é relativamente às prestações alimentares já vencidas. Trata-se de uma irrenunciabilidade relativa e não absoluta.
Por sua vez, a alteração dos alimentos fixados está prevista no artigo 2012.º do Código Civil, estabelecendo-se que “Se, ..., as circunstâncias determinantes da sua fixação se modificarem, podem os alimentos taxados ser reduzidos ou aumentados, conforme os casos, ou podem outras pessoas serem obrigadas a prestá-los”. Os casos de cessação estão descritos no artigo 2013.º Código Civil. O carácter indisponível do direito a alimentos conduz a que o mesmo seja intransferível, não podendo ser alienado ou cedido, assumindo uma natureza intuitu personae, enquanto a possibilidade de alteração e cessação configuram-no como um direito relativo e não absoluto. O titular desse direito a alimentos no âmbito das relações familiares entre os pais, por um lado, e os filhos menores, por outro lado, são estes últimos e não aqueles, como seja o progenitor a quem o menor está confiado.
No entanto, este último progenitor tem legitimidade para demandar o progenitor obrigado à prestação de alimentos. E essa legitimidade adjetiva ocorre igualmente no caso de incumprimento, tal como resulta do artigo 41.º, n.º 1 do RGPTC, ao estipular que “Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos” – sendo nosso o negrito.
Nesta conformidade, haverá que distinguir a referenciada legitimidade substantiva, da legitimidade processual, encontrando-se esta última noção legal consagrada no artigo 30.º do NCPC (Lei n.º 41/2013, de 26/jun., DR I, n.º 121), segundo o qual “O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer” (n.º1), sendo que “O interesse em demandar exprime -se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha” (n.º 2). Porém, “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.” (n.º 3). Nesta conformidade atende-se primariamente à indicação da lei e só depois à configuração dada pelo demandante. A jurisprudência tem vindo a efectuar esta destrinça respeitante às legitimidades, como sucedeu com o Ac. STJ de 16/out./2018 (Cons. Bernardo Domingos, www.dgsi.pt) sustentando que “A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa”, enquanto a “A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou”. Deste modo e no âmbito das relações jurídicas alimentares entre pais e filhos, enquanto o progenitor a quem o menor está confiado tem a devida legitimidade processual para demandar o outro progenitor, designadamente por incumprimento do dever de alimentos por parte deste, apenas o menor é titular desse direito a alimentos, o que lhe confere a legitimidade substantiva desse direito.
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No que concerne ao abuso de direito o Código Civil estabelece no seu artigo 334.º que “É ilegítimo o exercício do direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Daqui decorre que o legislador nacional optou por uma formulação objetiva do abuso de direito (comportamento manifestamente indevido), afastando-se de uma formulação subjetiva (intencionalidade), com base nos limites internos (exercício) dos direitos, assente na boa fé (a), nos bons costumes (b) ou então nas finalidades do direito em causa (c), os quais têm uma função limitadora ou moderadora no exercício de direitos. A ilegitimidade ou inadmissibilidade do exercício de direitos assentam essencialmente em razões de justiça, mais precisamente da prevalência da justiça substantiva, decorrente, no nosso ordenamento jurídico, da ideia republicana de uma sociedade justa (1.º Constituição), do direito à igualdade, na sua dimensão substantiva, enquanto princípio e direito fundamental subjetivo (13.º Constituição), bem como da atribuição aos tribunais da função jurisdicional de administrar a justiça – e não a injustiça – em nome do povo, enquanto diretiva constitucional (202.º n.º 1 Constituição). Tudo isto aponta para que os tribunais se esforcem no sentido de dar prevalência à justiça material e em concreto, em detrimento de uma aparência de justiça, que seria em abstrato e meramente formal. Assim e à partida, o que se pretende transmitir com o abuso de direito é que, por razões de justiça, nenhum direito tem um carácter absoluto, sendo antes relativo.
A propósito estará sempre em causa um direito subjetivo, pelo que não existindo este, não pode ocorrer nenhum exercício abusivo do mesmo (Ac. STJ de 14/02/1995, Cons. César Marques; 07/07/1977, 14/11/1991, Cons. Roger Lopes; Cons. Rodrigues Bastos; 11/01/2011, Cons. Sebastião Póvoas, acessíveis em www.dgsi.pt como todos os demais sem indicação de origem). Mas o que se entende por direito subjetivo? Na falta de uma definição legal e assumindo uma leitura analítica, dir-se-á, com base na nomenclatura do Código Civil, que estão em causa os direitos aí reconhecidos a uma pessoa, tanto legais, como contratuais (405.º C. C.), impondo um dever a terceiros, seja de prestação, abstenção ou qualquer outro, tendo uma natureza privada. Assim, direito subjetivo privado será todo aquele que, com fundamento na lei ou num contrato e no âmbito das relações intersubjetivas, confere uma posição pessoal de vantagem jurídica em relação a terceiros, com uma diversidade de funcionalidades relevantes para o seu titular. Porém, quando os direitos identificados no Código Civil sejam estritamente de natureza pessoal e correspondam a imediações substantivas dos direitos fundamentais nucleares (direitos, liberdades e garantias pessoais), o seu conteúdo essencial não está sujeito a qualquer ilegitimidade de exercício, atenta a sua força jurídica (18.º, n.º 3 Constituição) – tanto mais, que não temos uma disciplina semelhante ao artigo 25.º, 3 da Constituição Grega, segundo o qual “O exercício abusivo de direitos não é permitido”.
Por sua vez, a exigência legal de que se “exceda manifestamente os limites impostos” a um direito subjetivo privado, significa que esse abuso seja evidente ou inequívoco (Ac. STJ 09/06/1994, Cons. Faria de Sousa), pelo que o mecanismo legal do abuso de direito é um instituto de carácter extraordinário, funcionando como uma “válvula de segurança”, que não visa extinguir direitos, antes impondo o seu exercício moderado (Ac. STJ 02/02/1989, Cons. Baltazar Coelho), sendo variáveis as suas consequências jurídicas (Ac. STJ 25/11/1999, Cons. Duarte Soares, CJ (S) III/124; 04/04/2006, Cons. Afonso Correia, CJ (S) II/33). Trata-se, por isso, de um instrumento de correção com uma vocação subsidiária e fragmentária, que só deve ser utilizado como uma última ratio e para situações de flagrante abuso (Acs. STJ de 22/02/1983, Cons. Santos Silveira; 28/10/1997, Cons. Cardona Ferreira; 20/10/1998, Cons. Ferreira Ramos; 08/06/2017, Cons. Abrantes Geraldes, CJ (S) II/118 (p. 123) – a sua utilização frugal e corrente, redundaria num indesejável “abuso do abuso do direito”. E atento o acolhimento que o legislador nacional fez da formulação objetiva do abuso de direito, não é necessário que o titular do direito exercido tenha a consciência desse excesso e do seu abuso (Ac. STJ 23/09/1998, Cons. Ferreira Ramos; 28/06/2007, Cons. Gil Roque), muito embora se possa aferir a intencionalidade da sua actuação (Ac. STJ de 02/07/1996, Cons. Fernando Fabião, BMJ 459/519).
Como se pode constatar toda a construção legal e jurisprudencial do abuso de direito está dirigida para um direito subjetivo substantivo, pelo que será de questionar se o mesmo tem igualmente relevância quando estamos perante um direito subjetivo adjetivo, como está aqui em causa, porquanto a demandante não é titular de nenhum direito a alimentos relativamente ao progenitor da sua filha, muito embora tenha legitimidade para demandar o mesmo. Tanto mais que o Novo Código Processo Civil (Lei 41/2013, de 26/jun., DR I, n.º 121 – NCPC) não tem uma norma que de modo expresso acautele o abuso de direito no âmbito do processo civil. Mas será que não existe um fundamento normativo, tanto constitucional, como legal, para o abuso de direito processual? Cremos que existe pelas razões que passaremos brevemente a enunciar.
A Constituição, como já referimos, está impregnada por uma ideia de justiça, mais precisamente da prevalência da justiça substantiva, o que não afasta uma ideia de justiça processual (artigo 2.º, 13.º Constituição), como decorre expressamente do seu artigo 20.º, n.º 4, ao consagrar o direito fundamental a um processo justo. Este compreende duas vertentes essenciais, que são o direito a um processo equitativo e a obtenção de uma decisão em prazo razoável, mas que se desdobra em outras dimensões, sendo uma delas o direito de acesso à justiça. A propósito o NCPC, estabelece no seu artigo 2.º a garantia de acesso aos tribunais, considerando como tal que “A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar” (n.º 1), bem como que “A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.” (n.º 2). Isto significa que a todo o direito substantivo, corresponde um direito de ação.
Mas essa garantia de acesso aos tribunais está desde logo conformada pelo princípio da boa-fé processual, uma vez que o NCPC, através do artigo 8.º, consagra que “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”. Como emanação deste dever de boa-fé processual temos desde logo a responsabilidade por má-fé, consagrada no artigo 542.º NCPC, sendo que as posturas de parte de má fé, tanto por dolo, como mediante negligência grave (n.º 1), reconduzem-se a situações de má fé material ou má fé instrumental (n.º 2). As primeiras compreendem a dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia de ignorar (a), a alteração consciente da verdade dos factos ou a omissão de factos essenciais (b). As segundas incluem a omissão grave do dever de cooperação (c), o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais para se conseguir um fim ilegal (i), impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça (ii) ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (iii) (d). E também como violação desse dever de boa-fé processual encontramos o instituto do uso anormal do processo, preceituado no artigo 612.º NCPC, o qual ocorre “Quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelas partes”.
Mas cremos que a boa-fé processual não se fica por estas duas vias (litigância de má-fé; uso anormal do processo), porquanto seria extremamente redutora, já que aquelas centram-se na correspondente intencionalidade do demandante, quando a boa-fé tanto pode ter uma dimensão subjetiva, como uma dimensão objetiva. E convém recordar que o abuso de direito previsto no artigo 334.º do Código Civil veio consagrar a formulação objetiva da boa-fé – Ac. TRP de 27/jun./2018, www.dgsi.pt. Nesta conformidade, a boa-fé processual, na sua dimensão objetiva, corresponde a um padrão de comportamento procedimental, o qual desdobra-se, entre outros, através da lealdade, fidelidade, confiança, cooperação e informação. A boa-fé processual abrange todos os processos e em qualquer das suas fases (cautelar, declarativo, executivo), assim como todas as instâncias (1.ª instância, recurso).
A jurisprudência tem vindo, de resto, a aceitar o abuso de direito processual, como ficou registado no Ac. do STJ de 04/nov./2008 (Cons. Fonseca Ramos, www.dgsi.pt) ao considerar que “O princípio da boa-fé não é exclusivo do direito substantivo, também pode ser violado numa perspectiva de actuação processual, mormente pelo recurso a juízo através de acções ou procedimentos cautelares abusivos”. Mais recentemente o Ac. TRP de 22/out./2018 (Des. Fernanda Almeida, www.dgsi.pt) posicionou-se no sentido de que “O abuso de direito no campo processual, numa perspetiva macroscópica, pode aferir-se tendo em conta, designadamente, os seguintes índices: - o exercício gratuito do direito com o único e manifesto propósito de negar interesses dos outros, revelando-se, em contrapartida uma falta de interesse objetivo para o exercente (ex. a vingança e a pura finalidade de prejudicar terceiros);- a afirmação de interesses próprios mas em que se patenteia uma lesão ponderosa (mas de todo escusada) de interesse alheio (ainda que não dolosa); - o exercício do direito desviado do interesse que lhe é imanente e que justificou a sua atribuição, sendo abusiva qualquer situação subjetiva processual que se desvie manifestamente desse interesse;- a ação por má vontade ou para pressionar o lesado (ex., a ação sem fundamento relativa a um imóvel e registo da mesma, com isso podendo impedir a comercialização do imóvel, causando danos em cadeia); - o pedido manifestamente vexatório ou desprovido de qualquer propósito real.”
Nesta conformidade, o abuso de direito processual corresponde essencialmente ao exercício impróprio, no plano funcional, do direito à ação, distorcendo o direito fundamental a um processo justo e equitativo, na dimensão de garantia de acesso aos tribunais, mediante uma tutela judicial efectiva, o qual deve ser aferido a partir da noção de boa-fé processual objetiva. Verifica-se a violação da boa-fé processual quando ocorre o exercício ilegítimo do direito de ação, em virtude do seu titular ao demandar outra pessoa e atenta a realidade que lhe está subjacente, acaba por exceder manifestamente os limites impostos por um standard de integridade e lealdade procedimental. Tal ocorre, entre outras situações, quando aquele que tem legitimidade processual faz um uso da ação para um fim diverso daquele para o qual estava legalmente reconhecido, acabando por promover uma lide ilegítima em virtude da mesma ser contrária ao direito substantivo que lhe está subjacente.
No caso em apreço a recorrente, muito embora tenha legitimidade processual para, enquanto progenitora da menor titular do direito a alimentos, demandar o outro progenitor, exerce de modo ilegítimo esse direito a ação por incumprimento em virtude da menor ter passado a residir alternadamente e quinzenalmente com cada um dos progenitores, suportando individualmente estes as despesas correspondentes, ficando sempre salvaguardadas as despesas extraordinárias. Mais será de referir que tal ocorre desde julho de 2017, tendo esta ação apenas sido proposta em 15/mai./2019, praticamente quase 2 (dois) anos depois. E não se pode falar em renúncia ao direito a alimentos, porquanto a menor muito embora não tenha obtido deste então uma prestação in pecunia ou monetária, não deixou de ter uma prestação in natura ou em espécie, por parte do progenitor seu pai. Deste modo, o efeito consumativo da prestação alimentícia nunca se deixou de realizar, pelo que o respeito pelas decisões jurisdicionais dos tribunais não deixou de ser observado (205.º, n.º 2 Constituição), bastando para o efeito ter uma leitura substantiva e não meramente formal desta injunção constitucional, tanto mais que estamos perante um processo de jurisdição voluntária.
Nesta conformidade, a sentença recorrida não merece nenhuma censura, antes pelo contrário, sendo de confirmar.
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Na improcedência do recurso, as correspondentes custas ficam a cargo da recorrente – 527.º, n.º 1 e 2 do NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se negar provimento ao recurso interposto pela demandante B…, e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique

Porto, 23 de janeiro de 2020
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço
____________
[1] “El obligado a prestar alimentos podrá, a su elección, satisfacerlos, o pagando la pensión que se fije, o recibiendo y manteniendo en su propia casa al que tiene derecho a ellos.
Esta elección no será posible en cuanto contradiga la situación de convivencia determinada para el alimentista por las normas aplicables o por resolución judicial. También podrá ser rechazada cuando concurra justa causa o perjudique el interés del alimentista menor de edad.”
[2] “En cas de séparation entre les parents, ou entre ceux-ci et l'enfant, la contribution à son entretien et à son éducation prend la forme d'une pension alimentaire versée, selon le cas, par l'un des parents à l'autre, ou à la personne à laquelle l'enfant a été confié.
Les modalités et les garanties de cette pension alimentaire sont fixées par la convention homologuée visée à l'article 373-2-7 ou, à défaut, par le juge. Cette convention ou, à défaut, le juge peut prévoir le versement de la pension alimentaire par virement bancaire ou par tout autre moyen de paiement.
Cette pension peut en tout ou partie prendre la forme d'une prise en charge directe de frais exposés au profit de l'enfant.
Elle peut être en tout ou partie servie sous forme d'un droit d'usage et d'habitation.”
................................................
[3] “Chi deve somministrare gli alimenti ha la scelta di adempiere questa obbligazione o mediante um assegno alimentare corrisposto in periodi anticipati, o accogliendo e mantenendo nella propria casa colui che vi ha diritto.
L'autorita' giudiziaria puo' pero', secondo le circostanze, determinare il modo di somministrazione.
In caso di urgente necessita' l'autorita' giudiziaria puo' altresi' porre temporaneamente l'obbligazione degli alimenti a carico di uno solo tra quelli che vi sono obbligati, salvo il regresso verso gli altri.”