Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
189/22.8T8VLC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP20240208189/22.8T8VLC.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A identificação de uma situação de impossibilidade de cumprimento não culposa convoca a compreensão do equilíbrio último ou simetria dos contratos bilaterais.
II - Aceita-se hoje a interferência de deveres acessórios do credor e, nesta medida, há também um esforço do credor tendo em vista o cumprimento do programa obrigacional.
III - Impõe-se considerar a projeção da diligência exigível ao devedor em várias fases do cumprimento do programa obrigacional; donde, ao lado de uma diligência de execução em sentido estrito, intercede uma diligência preparatória e preventiva e ainda uma diligência reativa, destinada a superar ou atenuar um impedimento ao dever de prestar.
IV - A medida do esforço do devedor é um problema que coloca qualquer perturbação ou entrave à prestação, imputável ou inimputável ao devedor (o que não quer, naturalmente, dizer que o esforço seja o mesmo em qualquer caso). Se sobrevier um facto não imputável às partes, o devedor obrigar-se-á, dentro dos limites da concreta prestação, a superá-lo.
V - No que toca ao cumprimento das obrigações, a boa fé é chamada a precisar e complementar a fonte negocial respectiva, actuando, depois, no conteúdo, seja para precisar a prestação, seja para lhe acrescentar os deveres acessórios.
VI - O limite vem a ser, sempre, o da obrigação concretamente assumida.
VII - Os factores de correcção da determinação da obrigação da Ré, na situação decidenda, a boa fé e a interpretação integradora, não podem ser convocados, desde logo por esbarrarem no necessário respeito pelos limites da vinculação contratual assumida.
VIII - Na verdade, não se lobriga que o assentimento pela Ré à execução das modificações exigidas pelas entidades administrativas se compreenda, em termos de exigência da boa fé, na simplicidade da assumida cedência de espaço no interior de um PT já em condições de fornecimento à A. de energia… Não apenas por via da interpretação da vinculação assumida, mas ainda do implicado desequilíbrio da equivalência das prestações emergentes. É que, ainda quando não se tenha provado a necessidade de modificação do sistema de redistribuição da energia à Ré, o que resultou já foi a necessidade de alteração sensível e presumidamente cara do PT na parte que importa ao seu próprio “transformador”.
IX - A prestação, no curso do desenvolvimento da relação obrigacional, encontrou um obstáculo invencível, o qual impede o devedor de cumpri-la. Não pode, simplesmente, o devedor cumpri-la, por circunstância não a ele imputável, não lhe sendo exigível que colabore na execução de uma prestação para além daquela a que se obrigou.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 189/22.8T8VLC.P1

Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro

Juízo de Competência Genérica de Vale de Cambra

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto:  António Carneiro da Silva

2º Adjunto: Ana Luísa Loureiro


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Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

A cooperativa “A..., UCRL”, NIPC ..., com sede em ..., Vale de Cambra, instaurou acção comum contra a sociedade “B..., S.A.”, NIPC ..., com sede em ..., ..., Vale de Cambra, pedindo, a título principal, que a sociedade Ré seja condenada a:

a)-Ceder à Autora dentro da cabine eléctrica que integra as suas instalações, o espaço físico necessário e adequado por forma a permitir que esta nele proceda à instalação de um transformador para seu abastecimento exclusivo;

b)- Delimitar o mesmo numa planta e remetê-la à Autora para que esta possa elaborar e apresentar às entidades licenciadoras o projecto de instalação do seu transformador;

c)- A, no prazo de 30 dias, apresentar junto das entidades licenciadoras o projecto de alterações do Posto de Transformação decorrente da cedência daquele espaço;

d)-A delimitar e enviar à Autora planta onde conste o traçado do percurso que esta deve utilizar para aceder livremente e sem restrições à referida cabine.

e)-Pagar à Autora a quantia de 26.411,50 € correspondente à diferença de tarifas que paga à C... em regime de baixa tensão especial e a que a Autora pagaria se a energia lhe fosse fornecida em média tensão;

f)-A quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente ao prejuízo que a Autora suportará desde 01.04.2022 até à data em que tiver o seu posto de transformação;

Subsidiariamente,

g)-Seja a Ré condenada a suportar o custo da edificação de um Posto de Transformação no prédio da Autora incluído o projecto, baixada subterrânea, posto de seccionamento, posto de transformação, ligações ao quadro geral e outras eventuais adaptações da instalação no imóvel, licenciamento, cuja liquidação pede para ser relegada para liquidação em execução de sentença.

Reconduziu-se, na fundamentação da pretensão, à outorga de um contrato mediante o qual acordaram que a Autora cedia à Ré um transformador de 800 KW desde que a Ré cedesse à Autora o espaço no edifício onde se situa o posto de transformação, sito num prédio da Ré, necessário para ali ser instalado um transformador de 250 KW para abastecimento exclusivo da Autora, bem como  facultar-lhe o acesso ao posto de transformação; sendo que sempre a partir daquele e antes da constituição da Ré que determinou a passagem da titularidade do imóvel no qual se situa o mesmo posto, vinha sendo realizado o fornecimento de energia às instalações da A.  Mais aduz o incumprimento pela Ré da obrigação assim assumida e líquida os prejuízos causados.

A Ré contestou, reconduzindo-se à impossibilidade não culposa de cumprimento da obrigação confessadamente assumida, em termos distintos, todavia, da caracterizada pela Autora e à consequente extinção da obrigação em cuja condenação consiste o objecto da acção.

Quanto aos alegados prejuízos invocados pela Autora, defende que não praticou qualquer facto ilícito, pelo que não pode ser condenada em qualquer pagamento.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, a qual julgou a acção totalmente improcedente porque não provada e, em consequência absolveu a sociedade Ré “B..., S.A.” dos pedidos formulados pela Autora “A..., UCRL”.

Entendeu o Tribunal que o contrato celebrado entre as partes é válido com efeitos meramente obrigacionais, sendo que a prestação da sociedade Ré de ceder o espaço na cabine extinguiu-se por impossibilidade objectiva. E uma vez que a responsabilidade contratual em sentido restrito emerge da falta de cumprimento culposo da obrigação por parte do devedor e tal não se provou, não pode a sociedade Ré ser condenada no pedido subsidiário.

É desta sentença que foi pela Autora interposto recurso de apelação, que é de facto e de direito e no qual a recorrente formula as seguintes conclusões:

1. Para além da factualidade julgada a Recorrente considera ser necessária para a apreciação do presente recurso e consequente boa decisão da causa, a ampliação da matéria de facto relativamente à prova produzida por referência aos pedidos por si formulados, consignar que o acordo transcrito em 13 (dos factos provados) foi objeto de termo de autenticação no 1.º Cartório Notarial de Aveiro (art.377.º do CC), onde as partes outorgantes dos mesmo declaram “haver lido o presente documento e que o conteúdo do mesmo expressa a vontade das respetivas representadas”, autenticidade cujo escopo é o de “permitir fixar, com fidedignidade, o efetivo conteúdo do negócio” (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral, Negócio Jurídico, 4.ª ed, 2020, p.174), pretensão formulada ao abrigo do disposto no art.662.º/1, do CPC.

2. Para além da matéria de facto constante dos pontos 1, 2, 3 a 5, 7 a 9, 13 a 37 dos factos provados, o Tribunal julgou provada a seguinte factualidade: “16. Para o efeito, foi inicialmente apresentado às entidades competentes – C... e DREN – pelo técnico da Autora um único projecto de alterações para partilha da cabine do PT pré-existente.”17. “Porém, a Direção Regional de Energia do Norte (DREN) não aceitou a partilha ampla da cabine e exigiu a apresentação de dois projectos que implicassem a separação/autonomização física dos espaços onde ficaria cada posto de transformação: um relativo a um transformador de 800 KVA a partir do qual era abastecida a Ré, e outro de 250 KVA a partir do qual seria abastecida a Autora, o que o técnico da Autora fez.”

3. Pretende a Recorrente impugnar esta parte da decisão proferida sobre a matéria de facto, por erro na apreciação das provas (art.640.º do CPC): o Tribunal, no que respeita aos factos provados sob o n.os 15, 16 e 17, considerou-os provados com base no depoimento da testemunha AA, depoimento que “nos mereceu credibilidade por ter sido prestado de forma precisa e com conhecimento direto (…) em conjugação com o documento junto ao autos a fls. 38 e as cartas enviadas pela Direção Geral de Energia juntas a fls. 36 verso e 37 verso e, ainda, os projetos anexos aos autos” (Sentença, fundamentação das repostas aos factos provados sob os pontos 15, 16 e 17). Incide a reapreciação da prova:

4. No teor das declarações prestadas pela testemunha AA, Diretora Administrativa e Financeira da Recorrente-Autora entre 1985 e 2013, na audiência de 25/01/2023, minuto 14:22:37 a 14:54:19 (declarações encontram-se gravadas através da aplicação informática "H@bilus Media Studio" inquirida na sessão de 25/01/2023, entre os minutos 10:15:23 e 11:58:43), concretamente, minuto 00:14:47 a 00:17:08; hora, minuto 01:15:37 a 01:16.04; hora, minuto 01:18:28 a 01:18:29 e 01:18:53 a 01:19.04;

5. Na Carta da Direção Regional Norte do Ministério da Economia (DREN) remetida à Autora, com data de 10/05/2004, transcrita no ponto 21 da fundamentação de facto; na carta da Direção Regional Norte do Ministério da Economia (DREN) remetida à Ré, com data de 10/05/2004, transcrita no ponto 22 da fundamentação de facto.

6. Nestas missivas enviadas à Autora e Ré pela DREN, respetivamente, consta terem sido aprovados os projetos de partilha / divisão física dos Posto de Transformação nos seguintes termos: a) P.T. 1 tipo CABINE de 250 KVA; Inst. De Utiliz. Em B.T. em ..., concelho de Vale de Cambra, referente à Recorrente-Autora (fls.36, verso); b) P.T. 1 tipo CABINE de 800 KVA; Inst. De Utiliz. Em B.T. em ..., concelho de Vale de Cambra, referente à Recorrida-Ré (fls.37 verso), nesta conta ainda a indicação [canto inferior esquerdo] “Anexo: 1 ex. projeto”. (fl.37 verso)

7. Dos projetos anexos aos autos, em tudo iguais, com exceção da identificação dos Requerentes (A... e B..., SA), figura, na capa, sob o título “Ficha de identificação do projeto de instalação elétrica”, de cada um dos projetos submetidos, o seguinte texto: “2.5.- Descrição sumária: SEPARAÇÃO FÍSICA / PARTILHA DE POSTO DE TRANSFORMAÇÃO E SECCIONAMENTO” [cfr. projetos juntos e admitida a sua junção na 2.ª sessão da audiência de 27/02/2023]

8. Do documento de fls. 38, não impugnado, “Relatório da reunião dos técnicos, de 19/05/2004”, para além dos mais, é referido: “No dia 19 de maio de 2004 reuni-me em ..., Coimbra, com o Eng.º BB técnico da B... SA para analisar a execução da obra de divisão do posto de transformação de acordo com os projetos por mim elaborados e aprovados pelos Serviços da Direção Regional Norte do Ministério da Economia.

Expliquei que inicialmente apresentei um único projeto de divisão do PT e que a DREN do ME me exigiu a apresentação de 2 projetos separados, sendo um relativo à A...-UCRL e outro relativo à B....

9. Da carta remetida pela Ré à DREN, de 28/06/2004, é referido (ponto 24 da fundamentação de facto): “Recebemos da Direcção Regional do Norte do Ministério da Economia que V. Exa superiormente dirige, um dossier contendo um projecto, supostamente de alteração do Posto de Transformação, das nossas instalações.”

10. Da carta enviada pela DREN à Ré posterior a 18/06/2004, que esta recebeu (ponto 26 da fundamentação de facto), é dito: “De acordo com a reunião havida em 25-02-2003, em que ficou acordada, com a anuência do V/representante, a separação física do P.T. com vista à autonomização das duas entidades consumidoras, parece-nos, a recepção dos projectos acima referidos, ser o corolário lógico para a resolução do assunto.”

11. No local que realmente importa, do depoimento da testemunha AA, e dos documentos constantes no processo, nenhum sinal se extai de ter sido submetido “um único projeto de alterações para partilha ampla da cabine”.

12. A conclusão é, com o devido respeito, a inversa: a materialização da partilha do espaço na cabine pré-existente implicava a coexistência naquela de dois transformadores independentes, sendo um de 800 KVA para alimentar a Ré [já existente e cedido pela Autora à Ré no acordo] e outro de 250 KVA [a colocar] para alimentar a Autora, pelo que a sociedade Autora, mandou elaborar o projecto de alterações consequente da cedência de espaço na cabine para instalação de um transformador para uso exclusivo da Autora e para retirada dos dois transformadores de 1.000 KVA, que se mantiveram propriedade da Autora. (15 dos fundamentos de facto)

13. Para o efeito, foi inicialmente apresentado à entidade competente – DREN – pelo técnico da Autora, um único projecto de alterações para partilha / separação física da cabine do PT pré-existente.

14. Como decorre do depoimento da testemunha AA (minuto 15:34 a 16:15) “seria ele a apresentar o projeto para separação do posto, para separar os dois postos de transformação e assim foi, o Eng. CC no ano de 2004, não posso precisar a data, 2004, 2003, eu agora não posso precisar a data, 2003, elaborou o projeto, eu posso estar aqui a fazer, elaborou o projeto, um projeto único de separação”;

15. (minuto 16:16 a 16:42) “isso eu sei, que ele depois informou e a Direção Regional disse que os projetos tinham que ser divididos em dois, um para cada entidade e ele assim fez, portanto, separou aquele [não estes] projeto [inicial], [projeto inicial] que obedecia a regras técnicas para separação, portanto, teria de criar os espaços e fazer as necessárias adaptações na cabine para que cada uma aí tivesse o seu transformador instalado” (bold nosso) (hora, minuto 01:18:28 a 01:18:29) “Era um projeto de separação, era um projeto que visava a separação.” (hora, minuto 01:19:01 a 01:19.04) “Esse projeto diz o mesmo que estes dizem, os dois”, e dos documentos acima assinalados;

16. Simplesmente e apenas a DREN exigiu que o projeto único fosse apresentado em nome de cada uma das pessoas coletivas nele envolvidas (Autora e Ré), um projeto em nome da Recorrente, e outro em nome da Recorrida, sem qualquer outra exigência ou alteração adicional, o que em passo algum do processo é dito (ou escrito) de outra forma: não foi inicialmente apresentado projeto de partilha ampla da cabine. A Sentença recorrida incorreu, assim, em erro de julgamento na apreciação das provas, designadamente a gravada (art.607.º/4 do CPC).

17. Face ao exposto, os pontos 16 e 17 dos fundamentos de facto provados, devem ser alterados, e passar a ter a seguinte redação:

18. 16. “Para o efeito, foi inicialmente apresentado à entidades competente – DREN – pelo técnico da Autora um único projecto de alterações para partilha / separação física da cabine do PT pré-existente, com a identificação dos espaços onde ficaria cada posto de transformação: um relativo a um transformador de 800 KVA a partir do qual era abastecida a Ré, e outro a instalar de 250 KVA a partir do qual seria abastecida a Autora”.

19. 17. “Porém, a Direção Regional de Energia do Norte (DREN) exigiu a separação do projecto único inicialmente apresentado pelo técnico da Autora, por dois projectos em separado, para cada uma das entidades - A... UCRL e B... SA – o que o técnico da Autora fez.”

20. Consta do ponto 23 dos factos provados o seguinte: 23. Na sequência da aprovação dos referidos projectos, os técnicos da Autora e da Ré reuniram em 19/05/2004 para analisarem a execução das alterações a efectuar na cabine onde estão instalados os 3 transformadores, sendo que o técnico da Ré acabou por referir ao técnico da Autora que a melhor solução seria que a A... UCRL instalasse um novo PT fora da cabine, nas suas próprias instalações.

21. Importa ainda, para a boa decisão da causa, ser acrescida à matéria de facto provada, ao abrigo do art.662.º/1 e 640.º do CPC, do CPC, a seguinte factualidade ínsita no documento fls. 38 do processo.

22. O teor no documento não de acha impugnada pela Recorrida (arts.373.º/1 e374.º/1, do  CC) [arts.29.º da contestação, onde a Ré remete para o documento 9 junto com a PI (fl.38), e art.93.º, ao confessar o alegado no art.25.º da PI, com exceção “demonstrando que não era intenção da R. dar cumprimento à deliberação tomada e ao acordo celebrado”] e foi considerado pela Sentença na motivação, no qual o Tribunal formou a sua convicção: “relatório da reunião de 19.05.2004 entre Autora e Ré [fls.38]”.

23. Como previsto e imposto pelo art.607.º/4, do CPC, até por coerência lógico- jurídica da solução adotada pela Sentença, através de um critério amplo, ao ter procedido à transcrição do teor das comunicações (cartas) – veja-se, factos provados 13, 21, 24, 26, 27, 28, 29, 30. 35 -, impõe-se a enunciação – art.5.º CPC – do documento fls.38 na factualidade provada, o que se requer ao abrigo do art.662.º/1 e 640.º, do CPC.

24. Com efeito, este documento é um documento particular, no qual são manifestadas as afirmações nele contidas pelo seu autor (Eng.º CC), que a Recorrida não impugnou, e uma vez estabelecida a veracidade da subscrição do documento, pela pessoa a quem é atribuída, o mesmo faz prova plena das declarações e factos compreendidos na mesma - arts.366.º, 373./1 e 374.º/1 e 2, do CC (Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, II, p.155).

25. Desta factualidade, por relevante para decisão da causa resulta claro que o técnico indicado pela Recorrida, em 19/05/2004, não assinalou qualquer questão técnica relacionada com a implementação e execução do projeto.

26. Pelo exposto, o ponto 23 dos factos julgados provados deve ser ampliado e passar a ter a seguinte redação: 23. “Na sequência da aprovação dos referidos projetos, os técnicos da Autora e da Ré reuniram em 19/05/2004 para analisar a execução da obra de divisão do posto de transformação onde estão instalados os 3 transformadores de acordo com os projetos por elaborados pelo técnico do da Autora e aprovados pelos Serviços da Direção Regional Norte do Ministério da Economia. A primeira questão levantada foi o facto de ter sido apresentado e aprovado na DRN do ME um projeto relativo ao PT da B... SA sem que tal me tenha sido encomendado. Expliquei que inicialmente apresentei um único projeto de divisão do PT e que a DREN do ME me exigiu a apresentação de 2 projetos separados, sendo um relativo à A...-UCRL e outro relativo à B..., sendo certo que os projetos aprovados são o corolário dos acordos firmados entre as empresas e das soluções técnicas encontradas. A segunda questão prende-se com o facto de o PT se situar em terreno privativo da B... SA, e assim ter de permitir o acesso de pessoal da A...-UCRL às suas instalações. Este é um dado real, mas dada a localização do PT junto da entrada poderá ser facultado o acesso sem que haja qualquer perturbação no normal funcionamento da empresa. Finalmente em complemento do ponto ficariam instalados cabos privativo da A... -UCRL, dentro do terreno privado da B... SA. É também um facto real, mas os cabos seriam devidamente separados, protegidos e entubados nas zonas das caleiras comuns do PT, não sendo normal e previsível que estes cabos venham a sofrer qualquer avaria que implique a sua substituição. De qualquer modo caso isso viesse a acontecer no futuro, seria nessa altura devidamente estudado um novo encaminhamento para esses cabos. Estas questões não fazem sentido porquanto foram acordadas entre as duas empresas nos termos dos documentos que me foram facultados - acordo celebrado em 2002 – acesso ao posto de transformação e a passagem designadamente de cabos elétricos.

Não me foi colocada qualquer questão técnica relativa ao projeto aprovado. (…) por isso a solução alternativa seria a A... – UCRL instalar um novo PT para sua alimentação e em terreno seus.”

27. Subsidiariamente, deve ser anulada a Sentença na parte referente aos factos provados em 16 e 17, e ser ordenada a renovação e produção de nova prova (art.662.º/2, b), c), d) e 3, a), do CPC).

28. Da factualidade julgada provada, e para boa decisão da causa, importa realçar o seguinte: Na assembleia geral dos acionistas, realizada em 26/07/2002, a Recorrida-Ré, por unanimidade, tomou a seguinte deliberação “aceitar a proposta da Autora de lhe ceder gratuitamente o transformador de 800 KW desde que aquela cedesse à Autora o espaço no edifício onde se situa o PT necessário para a Autora aí instalar um transformador para o seu abastecimento exclusivo, bem como lhe facultar o acesso ao transformador.” (12 dos factos provados)

29. Em 30/08/2002 foi celebrado o “Acordo estabelecido entre a A... UCRL e a B... S.A. consequente da venda da totalidade da participação social da primeira na segunda”, autenticado notarialmente, onde foi convencionado: Cabine Elétrica e respetivos transformadores: Terceira: A A... UCRL declara que cede gratuitamente à B... SA um dos seus transformadores que atualmente ainda se encontram instalados no prédio da B... SA o que esta aceita.

30. Quarta: A B... SA declara que cede à A... UCRL o espaço necessário à instalação dentro da área da cabine elétrica de um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento facultando-lhe ainda o acesso livre e sem restrições à referida cabine.

31. Sexta: Ambas as outorgantes declaram que reciprocamente aceitam manter todas as passagens existentes entre os seus referidos prédios sitos em ... designadamente para passagem de cabos elétricos, telefónicos, condutas de águas de consumo, pluviais e residuais e ainda o acesso de veículos às instalações de ambas sempre que tal se justifique e sempre em respeito pelas boas regras de cortesia e vizinhança. (sublinhado nosso) [13 dos factos provados]

32. Na sequência deste acordo, em 25/02/2003 os representantes e os técnicos de Autora e Ré reuniram-se na sede da Direção Regional de Energia do Norte (DREN) no Porto para discutirem os aspetos técnicos a cumprir para a acordada partilha do espaço da cabine onde se encontravam os transformadores. (15 dos factos provados)

33. A DREN enviou carta à Autora do seguinte teor: ASSUNTO: APROVAÇÃO DE PROJECTOP.T. 1 tipo CABINE de 250 KVA; Inst. De Utiliz. Em B.T. em ..., concelho de Vale de Cambra. Para os devidos efeitos, informo V. Exa. de que, com base no disposto no Decreto-Lei nº 517/80 de 31 de Outubro e por despacho 06-05-2004, foi o projeto da instalação elétrica mencionada em epígrafe considerado APROVADO. (21 dos factos provados)

34. A DREN enviou carta à sociedade Ré do seguinte teor: ASSUNTO: APROVAÇÃO DE PROJECTO P.T. 1 tipo CABINE de 800 KVA; Inst. De Utiliz. Em B.T. em ..., concelho de Vale de Cambra. Para os devidos efeitos, informo V. Exa. De que, com base no disposto no Decreto-Lei nº 517/80 de 31 de Outubro e por despacho 06-05-2004, foi o projeto da instalação elétrica mencionada em epígrafe considerado APROVADO. (22 dos factos provados)

35. A Recorrente concorda com a configuração jurídica que lhe é dada pela Sentença de estar em causa um contrato de natureza obrigacional segundo o qual a sociedade Ré tem de ceder à Autora um espaço na cabine para esta ali instalar um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento facultando-lhe ainda o acesso livre e sem restrições à referida cabine, e reciprocamente aceitam manter todas as passagens existentes de cabos elétricos (art.1306.º/1 in fine, do CC). Contrato que não se acha sujeito por lei a forma especial (art.219.º, do CC).

36. O acordo supra transcrito é de fácil apreensão, a que o art.236.º do Código Civil dá resposta: a Recorrida- Ré cedeu um espaço dentro da cabine elétrica (PT) necessário à instalação dentro da mesma de um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento facultando-lhe ainda o acesso livre e sem restrições à referida cabine.

37. O acordo em proceder à partilha/separação do posto de transformação, tinha como propósito que as partes pudessem vir a ser abastecidas de energia elétrica através de faturas a emitir de forma autónoma pelos consumos realizados por cada uma, aproveitando as infraestruturas existentes e em pleno funcionamento.

38. A Recorrida-Ré obrigou-se a, pelo acordo firmado, realizar a prestação ou prestações necessárias para a concretização dessa instalação.

39. Como é sinalizado pela doutrina: “[a] primeira regra de interpretação é tão obvia que não está sequer expressa na lei, e é a seguinte: sempre que haja consenso das partes, ou de declarante e declaratário, sobre o sentido da declaração, deve ser de acordo com ele que esta deve ser interpretada. O primeiro critério é o da vontade real comum, do sentido subjetivo comum.” (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª ed, pp.472- 473).

40. A segunda regra está contida no n.º 2 do artigo 236.º (falsa demonstrativo non nocet): em caso de divergência entre o sentido subjetivo da declaração e o seu sentido objetivo, prevalece o sentido subjetivo desde que declaratário o conheça. No caso de divergência entre o sentido subjetivo e objetivo, em que o declaratário desconheça a vontade real do declarante, pode então o sentido objetivo prevalecer, salvo se o declarante não puder contar com ele, isto é, desde que ele não colida com a expectativa razoável do autor da declaração. “Do disposto no n.º 2 [do art.236.º] resulta que, conhecendo as partes o sentido que pretenderam exprimir através do negócio jurídico, é de acordo com a vontade comum das partes que o negócio vale” (Pires de Lima /Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed, p.224).

41. Para que o sentido objetivo prevaleça sobre o sentido subjetivo da declaração, é necessário, em primeiro lugar, que sejam divergentes; em segundo lugar, que o declaratário desconheça a vontade real do declarante; e em terceiro lugar, que o sentido objetivo não contrarie a expectativa razoável do autor da declaração. O que não é caso.

42. O artigo 236.º/2, do CC remete para “a vontade real das partes: a declaração vale de harmonia com a vontade real do declarante, sempre que esta seja conhecida do declaratário. Mesmo que a declaração negocial seja equívoca e aponte, até, de preferência, para um outro sentido, quando objetivamente considerada, é de acordo com a vontade real do declarante que ela valerá, sempre que o declaratário a conheça, ou devesse conhecê-la agindo com a diligência requerida” (Antunes Varela, RLJ, 116 (1983), n.º 3711, p. 189).

43. Só em casos marginais e muito contados, o sentido subjetivo da declaração negocial pode ser desconsiderado em favor do seu sentido objetivo. Só naquelas circunstâncias que, sem dúvida, não constituem a normalidade dos casos, a orientação objetivista poderá ditar o sentido juridicamente relevante da declaração” (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p.473). O acordo em apreciação nos autos não se inscreve nesta é exceção.

44. Nada nos autos demonstra a ausência de conhecimento da necessidade da partilha ou separação física do PT para autonomização dos consumos de Autora e Ré, sendo essa a vontade manifestada pelas partes através do acordo subscrito, nem, acrescente-se, da subsequente reunião havida na DREN, e correspondência trocada em datas posteriores ao mesmo se infere outra conclusão.

45. De resto, a própria Recorrida reconhece a necessidade de serem executadas obras para divisão da cabine; obras, enfatiza-se, que necessariamente essa divisão envolve. (28 dos factos provados)

46. Em momento algum, então (anos de 2002, 2003, 2004 e 2005) e agora (2022), a Recorrida invocou ou alegou erro ou vício na celebração do negócio jurídico, nas diversas modalidades que este pode revestir, conforme previsto no Código Civil como facto impeditivo ou extintivo do direito reclamado pela Recorrente previsto no art.342.º/2 do CC ou resolveu o contrato com base na alteração das circunstâncias (art.437.º do CC), para além de alegar (a inexistente) impossibilidade legal da prestação (art.790.º/1, CC).

47. A entidade pública terceira e equidistante (DREN) envolvida na execução do acordo – por o mesmo carecer da sua aprovação -, nenhuma dificuldade teve em compreender o objeto do negócio, nem sinalizou alguma “deficiente” interpretação do mesmo por parte da Recorrida. “De acordo com a reunião havida em 25-02-2003, em que ficou acordada, com a anuência do V/representante, a separação física do P.T. com vista à autonomização das duas entidades consumidoras, parece-nos, a receção dos projetos acima referidos, ser o corolário lógico para a resolução do assunto.” (26 dos factos provados)

48. Desta reunião decorre que, em data subsequente à celebração do acordo, os representantes da Recorrida, reuniram no Ministério da Economia, a fim de implementarem o acordo. (26 dos factos provados) “De entre os diversos comportamentos concludentes que aqui podem ser relevantes, destaca-se, antes de mais, a execução do negócio” (Paulo Mota Pinto, Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, 1995, p.825).

49. A Autora necessita e sempre teve necessidade de ser abastecida de energia elétrica para desenvolver a sua atividade. (34 dos factos provados)

50. Assinala-se ainda uma contradição da Recorrida – reveladora de má fé (334.º e 762.º/2, do CC) - na posição perante a Recorrente e a DREN para não cumprir o acordo:

51. Em relação a esta (DREN), invocou uma suposta inexistência de representação orgânica: “Que tenhamos conhecimento, ninguém da Administração da nossa empresa contratou qualquer técnico, para a elaboração do referido projeto.” (24 dos factos provados);

52. Já em relação à Autora, omite qualquer menção à falta de poderes de representação do técnico (contratado pela Autora para o desenho do projeto) que o elaborou e submeteu os projetos aprovados, e apenas alega, em momento posterior à aprovação do mesmo que “[a]inda não foi levada a efeito qualquer obra ou diligência sobre o assunto da notificação, porque ainda não foi concretizada a reunião entre os técnicos das duas empresas, conforme acordado na reunião havida na D.R. Norte, em 25.2.2023 e vem referido na carta que esta entidade remeteu à UCRL, em 28.5.03, apesar de o técnico da B..., S.A. sempre estar disponível para tal reunião, aguardando apenas o contacto do seu colega. Assim, apenas continua a aguardar o resultado da reunião a haver entre os dois engenheiros, que têm de encontrar a solução técnica para o caso”, missiva remetida pela Ré à Autora em 28/12/2004. (28 dos factos provados)

53. Na reunião entre os técnicos da Autora e Ré, efetuada a 19/05/2004, para analisarem a execução das alterações a efetuar na cabine onde estão instalados os 3 transformadores, aquele deu nota “Não me foi colocada qualquer questão técnica relativa ao projeto aprovado”; mais ainda “o técnico da Ré acabou por referir ao técnico da Autora que a melhor solução seria que a A... UCRL instalasse um novo PT fora da cabine, nas suas próprias instalações”. (23 dos factos provados)

54. Até à materialização dessa partilha [separação física do PT], manter-se-ia em vigor o contrato de fornecimento de energia celebrado entre a C... e a Autora, que por isso continuaria a pagar a totalidade da energia consumida por ambas as entidades, reembolsando a Ré a Autora do valor dos seus próprios consumos, apurados pela diferença entre o total dos consumos constantes das facturas emitidas pela C... e os consumos da Autora registados a partir de contador próprio existente no átrio do seu edifício, a que os gestores da Ré tinham livre acesso, por nele residirem, como acontecera desde que a Ré iniciou o exercício da sua atividade em 05/03/2001. (11 dos factos provados)

55. Consumos da Ré que a Autora continuou a suportar até 2005: “Como V. Exas. bem sabem temos estado a suportar os custos de energia consumidos por V. Exas., desde outubro de 2002, o que atinge já muitas dezenas de milhar de euros. E, isto porque só após a separação física do PT se poderão autonomizar as 2 entidades consumidoras – A... UCRL e B... S A – e consequentemente passar a ser emitida a cada uma dessas entidades a correspondente factura.” (27 dos factos provados)

56. Momento em que a Autora tomou conhecimento ter a Ré averbado o PT em seu nome, quando o contrato de fornecimento de energia coma C... estava como sempre esteve desde 2001 em nome da Autora-Recorrente: “Acabamos agora de confirmar que, contrariando essas deliberações e acordos existentes, aquela sociedade anónima há muito que averbou “em seu nome exclusivo” junto dos Serviços de Energia da Direcção Regional do Norte o PT em causa. No desconhecimento desta situação e no pressuposto que, até à conclusão das referidas obras de divisão, o “PT” só podia continuar licenciado em nome desta União de Cooperativas “que dele nunca abdicou”, mantivemos o contrato de fornecimento de energia.” (35 dos factos provados)

57. Finalmente refira-se que o negócio jurídico sub judicio foi celebrado entre duas pessoas coletivas, que praticam atos de comércio e, portanto, com experiência na concretização (ou não) de contratos, e não entre pessoas inexperientes no comércio e tráfico negocial. Subsidiariamente,

58. Mesmo admitindo – o que não se aceita – que o acordo é omisso nalgum aspeto, vale o disposto no o art.239.º do CC. O critério fixado pelo Código Civil é o de atender à vontade presumível dos declarantes, preenchida de acordo com o superior critério da boa fé (Pires de Lima /Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, p.226; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral, Negócio Jurídico, 4.ª ed, p.774)

59. Releva, assim, a tutela da confiança das partes na concretização do negócio lícito e sua lógica imanente, entenda-se autonomização dos consumos, conforme ditarem as regras de interesse público necessariamente envolvidas e que as partes não ignoravam: aprovação da separação física ou partilha do PT pela Administração Pública (Ministério da Economia).

60. Quer dizer, “na reconstrução da vontade hipotética (objetiva) das partes, haverá que ponderar critérios de racionalidade económica, do maior aproveitamento de custos e da redução destes” (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral, Negócio Jurídico, 4.ª ed, cit., p.777).

61. E foi precisamente, a economia de custos que presidiu ao negócio em apreço, como decorre dos factos provados: “Autora e Ré acordaram em proceder à “partilha” do posto de transformação, a fim de poderem vir a ser abastecidas de energia eléctrica através de facturas a emitir de forma autónoma pelos consumos realizados por cada uma aproveitando as infraestruturas existentes e em pleno funcionamento.” (10 dos factos provados)

62. Naturalmente, as partes não ignoravam – nem podiam ignorar - que iriam incorrer em custos, mas o negócio realizado era o menos oneroso, por envolver o aproveitamento das infraestruturas existentes e em pleno funcionamento; sendo certo que teriam necessariamente de se proceder à divisão do PT, conforme as regras de direito público aplicáveis.

63. Os projetos apresentados, na sequência da reunião efetuada pelas partes no Ministério da Economia em 25/02/2003, os projetos submetidos mereceram a aprovação da entidade licenciadora DREN (órgão do Ministério da Economia).

64. Os atos administrativos de aprovação da separação físicas do PT, são, pela sua natureza, dois atos administrativos autónomos, cujos destinatários são a Recorrente e Recorrida.

65. Por ato administrativo entende-se “estatuição autoritária, relativa a um caso individual, manifestada por um agente da Administração no uso de poderes de Direito Administrativo, pelo qual se produzem efeitos jurídicos, positivos ou negativos” (Rogério Ehrhardt Soares, Direito Administrativo, 1978, p.76), e pode assumir a natureza de uma autorização constitutiva de direitos, também designada por “autorização-licença”, sujeita a um controlo preventivo que se constrói pela suspensão da produtividade do ato que lhe está sujeito, até ao momento em que sobrevem a aprovação (Rogério Soares, Direito Administrativo, cit., p.116; Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, 5.ª ed, 2017, p.178).

66. No caso de que se ocupa o presente processo, tais atos administrativos de aprovação dos dois projetos de divisão do PT pela DREN visam produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, consubstanciam atos constitutivos de direitos (art.120.º do CPA 91), e porque tais atos contêm todas a menções obrigatórias do mesmo, ínsitas no art.123.º do CPA, são ambos válidos e eficazes, por terem chegado ao conhecimento das destinatárias (arts.127.º e 132.º do CPA).

67. Não se manifesta qualquer incerteza quanto à validade e eficácia dos atos administrativos de aprovação dos projetos de divisão física do PT. Mais ainda, tais atos administrativos relevam ser o negócio pretendido pelas partes lícito e realizável, razão por que o contrato não é portador de qualquer impossibilidade jurídica contrária à lei. De outro modo, o negócio é válido, por conforme a ordem jurídica (art.280.º/1, do CC).

68. Coisa diferente não diz o art.401.º do CC: 1. A impossibilidade originária da prestação produz a nulidade do negócio jurídico. 2. O negócio é, porém, válido, se a obrigação for assumida para o caso de a prestação se tornar possível (…) Se assistissem dúvidas, o Código Civil esclarece-as: a aprovação do licenciamento, conduz, inequivocamente, à validade do negócio.

69. Acontece que a Recorrida nada fez no sentido de promover a implementação dos projetos com a manutenção de um posto de transformação e a implantação de um novo posto de transformação (PT) na cabine existente no prédio da Ré. (25 dos factos provados)

70. Ao contrário da fundamentação jurídica constante da Sentença, não existe impossibilidade superveniente da prestação (art.790.º/1, do CC). A prestação da Ré é possível, assim o demonstra de forma inequívoca, o ato administrativo de aprovação da separação física ou partilha do PT, notificado às partes por cartas de 10/05/2004.

71. Simplesmente, a Recorrida, nunca pretendeu nem pretende dividir o PT com vista à autonomização dos consumos de Recorrente e Recorrida, quer porque sempre foi abastecida em média tensão pela C... (até 2005, através do contrato celebrado entre Autora e C...), quer porque lhe convinha e convém o status quo mantido desde 2001, sem ter de permitir o acesso livre e sem restrições a Recorrente ao PT, e sem necessidade de incorrer em custos que a divisão do PT necessariamente acarreta; diga-se, aliás, para as duas partes.

72. Apesar das interpelações judicias efetuadas pela Recorrente à recorrida, para a materialização do acordado entre as partes em 2002. (23, 25, 27, 28, 29, 30, 31 e 33, dos factos provados)

73. A realidade factual e jurídica é outra: a prestação é legalmente possível, contudo, existe uma patente e manifesta mora do devedor-Recorrida (artigos 804.º e 805.º do CC).

74. Conforme os arts.762.º/1 e 406.º do CC, a obrigação só se extingue quando o devedor realiza a prestação a que se obrigou, por via da concretização da conduta a que o credor tem direito.

75. “Para que a obrigação se extinga [por impossibilidade como previsto no art.790.º/1, do CC], é necessário, segundo a letra e o espírito da lei, que a prestação se tenha tornado verdadeiramente impossível, seja por determinação da lei, seja por força da natureza (caso fortuito ou de força maior) ou por ação do homem. Não basta que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor…” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed, p.68; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª ed, p.1002)

76. Como salienta Menezes Leitão, para fazer funcionar o regime da impossibilidade da prestação, esta tem de ser superveniente, ocorrer após a constituição da dívida ou obrigação, como se demonstrou, não é o caso.

77. Ser objetiva dizer respeito à prestação em si independentemente da pessoa que a realiza. Pelo contrário, se a impossibilidade for subjetiva, ou seja, disser respeito ao devedor, por apenas este estar impossibilitado de a prestar, não ocorre a extinção da obrigação, já que, existindo uma legitimidade genérica para o cumprimento, o devedor tem de se fazer substituir por outrem nesse cumprimento.

78. A impossibilidade da prestação tem igualmente de ser absoluta, no sentido de que a prestação se torne efetivamente irrealizável, não bastando uma impossibilidade relativa, correspondente à maior dificuldade de realização da prestação.

79. Finalmente, para provocar a extinção da obrigação, a impossibilidade tem de ser definitiva. Efetivamente, se se verifica uma situação de impossibilidade temporária o devedor não responde pelo atraso no cumprimento - art.792.º/1 (Direito das Obrigações, II, 4.ª ed, Almedina, 2006, pp.117-119).

80. Realce-se, por fim, ao contrário do apelo efetuado pela Sentença, a lição de Brandão Proença não é cabida no caso em apreço para desencadear a extinção da obrigação “ao lado das hipóteses de um ato dos poderes públicos (factum prinicipis)” (Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 2011, p.164).

81. Os atos administrativos dos poderes públicos, leia-se do Ministério da Economia (DREN), existiram e vão claramente no sentido da possibilidade e integral realização do negócio jurídico. No mesmo sentido aponta a jurisprudência citada na Sentença, Ac. RC, de 2/04/2019, P. 3979/17.08LRA.C1.

82. As prestações consequentes da aprovação do projeto de autonomização dos consumos por parte da entidade licenciadora, bem como as cláusulas acordadas pelas partes com esse objetivo em 30 de agosto de 2002, são exequíveis, legais e possíveis.

83. Por fim, estabelece o art.762.º/2, do CC que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé. “Nas relações de crédito, por força do próprio texto do n.º 2 do artigo 762.º, o princípio tanto se aplica ao devedor (no cumprimento da obrigação), como ao credor (no exercício do direito correlativo) O devedor não pode cingir-se a uma observância puramente literal das cláusulas do contrato, se a obrigação tiver natureza contratual. Mais do que o respeito farisaico da fórmula na qual a obrigação ficou condensada, interessa a colaboração leal na satisfação na satisfação na necessidade a que a obrigação se encontra adstrita. Por isso ele deve ater-se, não só à letra, mas principalmente ao espírito da relação obrigacional. (…) Também ao credor incumbe não dificultar a atuação do devedor, realizando inclusivamente os atos ou removendo as dificuldades que lhe cabia tomar a seu cargo, de harmonia com as circunstâncias de cada caso.” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, cit., p.12; Rodrigues Bastos Notas ao Código Civil, III, 1993, p.215).

84. São particularmente cabidas, a este propósito, a reunião havida em 23/02/2003 (subsequente à celebração do contrato, de 30/08/2002), a apresentação do projeto de divisão do PT junto da DREN pelo técnico então responsável pelo PT e ulterior comportamento da Recorrida, que nada fez para implementar o acordo após a aprovação dos respetivos projetos pela DREN.

85. Da factualidade provada é evidente o incumprimento contratual e reiterado da Recorrida, em violação dos arts.406.º, 762.º do CC, inclusive do art.334.º do CC.

86. Do acervo factual provado, resulta, entre o mais, que: A Autora necessita e sempre teve necessidade de ser abastecida de energia elétrica para desenvolver a sua atividade. (34 dos factos provados); A partir de 15.01.2005 a Autora passou a consumir energia em baixa tensão especial fornecida através da baixada provisória identificada no ponto anterior, por não dispor de posto de transformação próprio. (36 dos factos provados); Se entre Janeiro de 2005 e 03 de Março de 2022 a Autora tivesse sido fornecida de energia elétrica em média tensão teria pago menos 26.411,50 €. (37 dos factos provados)

87. A potência máxima que a C... pode fornecer à Autora em regime de baixa tensão especial é de 41KW o que é insuficiente para o normal exercício da actividade da Autora impossibilitando que os dois elevadores do edifício funcionem em simultâneo. (38 dos factos provados)

88. Sublinhe-se que o PT aprovado para a Autora pela DREN em maio de 2004 previa precisamente um P.T. 1 tipo CABINE de 250 KVA; Inst. De Utiliz. Em B.T. em ..., concelho de Vale de Cambra. (21 dos factos provados)

89. A Autora enviou carta à sociedade Ré datada de 13/06/2022, que esta recebeu, em que a interpelou para, no prazo de oito dias, lhe pagar 26.411,50 €. (39 dos factos provados)

90. A mora, consubstanciada no atraso da realização da prestação, “traz consigo o dever de reparação dos prejuízos causados ao credor (n.º 1 do art.804.º)” Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, cit., p.323.

91. Os prejuízos – danos emergentes - sofridos pela Recorrente até à propositura da ação em juízo traduzem-se em 26.411,50€ (arts. 804.º, 562.º e ss do CC).

Nestes termos, e por violação dos arts.607.º/4, do CPC, arts.236.º e 239.º, 334.º, 366.º, 373.º/1, 374.º, 406.º, 762.º, 790.º/1, 804.º, 562.º e ss e 817.º do CC, 120.º,127.º, 131.º e 132.º do CPA 91, deve a douta Sentença ser revogada, e em consequência ser a Ré-Recorrida condenada a: a) Ceder à Autora-Recorrente dentro da cabine elétrica que integra as suas instalações, o espaço físico necessário e adequado por forma a permitir que esta nele proceda à instalação de um transformador para seu abastecimento exclusivo; b) Delimitar o mesmo numa planta e remetê-la à Autora-Recorrente para que esta possa elaborar e apresentar às entidades licenciadoras o projeto de instalação do seu transformador; c) A, no prazo de 30 dias, apresentar junto das entidades licenciadoras o projeto de alterações do Posto de Transformação decorrente daquela cedência daquele espaço; d) A delimitar e enviar à Autora planta onde conste o traçado do percurso que esta deve utilizar para aceder livremente e sem restrições à referida cabine. E ser ainda condenada: c) Pagar à Recorrente a quantia de 26.411,50€; d) A quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente ao prejuízo que a Autora-Recorrida suportou e suportará desde a citação da Recorrida até à data em que a Autora tiver o seu posto de transformação operacional.

Contra-alegou a Ré, pugnando pela improcedência total do recurso, nos termos que dos autos resultam.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são de facto e de direito as questões a tratar. Assim:
I. De facto
1. A título principal
A) Da ampliação de matéria de facto: quanto aos termos do termo de autenticação notarial do acordo em apreço nos autos; quanto ao teor do documento 9 com a petição inicial/fls. 38 dos autos, a implicar outrossim a ampliação da matéria sob 23 dos factos assentes;
B) Do erro de julgamento ou na apreciação da prova, no que concerne aos factos sob 16 e 17 dos havidos como provados;
2. Subsidiariamente, da anulação do julgamento quanto aos mesmos factos e reenvio para novo julgamento.

II.

Do errado enquadramento jurídico da situação, desde logo a partir da alteração convocada da matéria de facto, mas ainda da perspectiva da adquirida nos autos.

Logicamente caberá começar pela apreciação das objecções suscitadas quanto à matéria de facto.

I.

Quanto a estas, importam, visto o objecto do recurso, os factos havidos como provados na sentença, como seguem.

1. A Autora é uma União de Cooperativas que se dedica ao exercício de actividades associativas e prestação de serviços de alojamento.

2. A Ré é uma sociedade que se dedica ao abate de gado, preparação, transformação e armazenagem de carne.

3. Por escritura pública outorgada em 12/09/2000 no Cartório Notarial de Sever do Vouga, a Autora constituiu, em conjunto com outros agentes económicos, a sociedade “B..., S.A.” – a aqui Ré, tendo por objecto o abate, preparação, transformação e armazenagem de carne, transformação de produtos de origem animal, produção de alimentos para animais de companhia e comercialização destes produtos ou outros produtos alimentares.

4. O capital desta sociedade foi, em cerca de 97%, constituído por bens móveis e imóveis que então integravam o património da Autora.

5. Móveis e imóveis que naquele acto foram transmitidos para a sociedade “B..., S.A.”.

6. Posteriormente a Autora vendeu aos outros accionistas da Ré as acções que ainda detinha nesta sociedade.

7. O conjunto dos imóveis e edifícios que pertenciam à Autora e passaram para a titularidade da Ré era abastecido de energia eléctrica a partir de um Posto de Transformação, constituído por três (3) transformadores, sendo um de 800 KW e dois de 1000 KW com um total de 2.800 (KW), e respectivos quadros eléctricos.

8. O posto de transformação era alimentado pela energia eléctrica conduzida a partir de uma baixada situada em terreno que é propriedade da Autora, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra, freguesia ..., sob o n.º ....

9. O posto de transformação (PT) está instalado numa cabine que ocupa uma pequena parte de um imóvel que faz parte do complexo fabril que passou para a propriedade da Ré, descrito em seu nome na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra, freguesia ..., com o n.º ..., composto por complexo fabril destinado a abate e transformação de carnes e subprodutos com secções auxiliares.

10. Autora e Ré acordaram em proceder à “partilha” do posto de transformação, a fim de poderem vir a ser abastecidas de energia eléctrica através de facturas a emitir de forma autónoma pelos consumos realizados por cada uma aproveitando as infraestruturas existentes e em pleno funcionamento.

11. Até à materialização dessa partilha, manter-se-ia em vigor o contrato de fornecimento de energia celebrado entre a C... e a Autora, que por isso continuaria a pagar a totalidade da energia consumida por ambas as entidades, reembolsando a Ré a Autora do valor dos seus próprios consumos, apurados pela diferença entre o total dos consumos constantes das facturas emitidas pela C... e os consumos da Autora registados a partir de contador próprio existente no átrio do seu edifício, a que os gestores da Ré tinham livre acesso, por nele residirem, como acontecera desde que a Ré iniciou o exercício da sua actividade em 05/03/2001.

12. Em assembleia geral dos seus accionistas, realizada a 26/07/2002, a sociedade Ré deliberou por unanimidade aceitar a proposta da Autora de lhe ceder gratuitamente o transformador de 800 KW desde que aquela cedesse à Autora o espaço no edifício onde se situa o PT necessário para a Autora aí instalar um transformador para o seu abastecimento exclusivo, bem como lhe facultar o acesso ao transformador.

13. Na sequência desta deliberação Autora e Ré celebraram em 30/08/2002 o “Acordo estabelecido entre a A... UCRL e a B... S.A. consequente da venda da totalidade da participação social da primeira na segunda” tendo convencionado, além do mais que e no que aqui interessa: “(…) Cabine Eléctrica e respectivos transformadores

Terceira

A A... UCRL declara que cede gratuitamente à B... SA um dos seus transformadores que actualmente ainda se encontram instalados no prédio da B... SA o que esta aceita.

Quarta

A B... SA declara que cede à A... UCRL o espaço necessário à instalação dentro da área da cabine eléctrica de um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento facultando-lhe ainda o acesso livre e sem restrições à referida cabine.

Quinta

Mais declara a B... S A que os demais transformadores aí instalados poderão ser daí retirados pela A... UCRL sua proprietária no mesmo prazo e condições ajustados nas cláusulas sétima, oitava e nova.

Sexta

Ambas as outorgantes declaram que reciprocamente aceitam manter todas as passagens existentes entre os seus referidos prédios sitos em ... designadamente para passagem de cabos eléctricos, telefónicos, condutas de águas de consumo, pluviais e residuais e ainda o acesso de veículos às instalações de ambas sempre que tal se justifique e sempre em respeito pelas boas regras de cortesia e vizinhança.

Sétima

A B... S A declara que autoriza a manutenção nas suas instalações de todos os bens pertencentes à A... UCRL que ainda não foram levantados por esta, gratuitamente e por um prazo de seis meses contados a partir da presente data.

Oitava

A B... S A declara ainda que autoriza desde já a A... UCRL a entrar livremente e sem quaisquer restrições com os meios e os equipamentos necessários nas suas instalações para proceder ao levantamento e retirada dos referidos bens.

Nona

A B... S A declara ainda que aceita a prorrogação desse prazo, se por qualquer motivo designadamente condições climatéricas não tiver sido possível retirar todos os bens no indicado prazo de seis meses. (…)”.

14. Na sequência deste acordo, em 25/02/2003 os representantes e os técnicos de Autora e Ré reuniram-se na sede da Direção Regional de Energia do Norte (DREN) no Porto para discutirem os aspectos técnicos a cumprir para a acordada partilha do espaço da cabine onde se encontravam os transformadores.

15. A materialização da partilha do espaço na cabine pré-existente implicava a coexistência naquela de dois transformadores independentes, sendo um de 800 KVA para alimentar a Ré [já existente e cedido pela Autora à Ré no acordo] e outro de 250 KVA [a colocar] para alimentar a Autora, pelo que a sociedade Autora, mandou elaborar o projecto de alterações consequente da cedência de espaço na cabine para instalação de um transformador para uso exclusivo da Autora e para retirada dos dois transformadores de 1.000 KVA, que se mantiveram propriedade da Autora.

16. Para o efeito, foi inicialmente apresentado às entidades competentes – C... e DREN – pelo técnico da Autora um único projecto de alterações para partilha da cabine do PT pré-existente.

17. Porém, a Direção Regional de Energia do Norte (DREN) não aceitou a partilha ampla da cabine e exigiu a apresentação de dois projectos que implicassem a separação/autonomização física dos espaços onde ficaria cada posto de transformação: relativo a um transformador de 800 KVA a partir do qual era abastecida a Ré, e outro de 250 KVA a partir do qual seria abastecida a Autora, o que o técnico da Autora fez.

18. Assim, os dois projectos, em cumprimento das exigências da DREN, previam a divisão física da cabine localizada no prédio da Ré em 3 secções autónomas: uma para o posto de transformação de 800KVA pré existente com o respectivo quadro eléctrico; uma para o posto de transformação de 250 KVA a instalar com o respectivo quadro eléctrico; e uma para o posto de seccionamento de acesso à C....

19. O posto de seccionamento destinava-se à instalação dos seccionadores de corte e protecção e, ainda, à instalação de equipamento de contagem para cada transformador.

20. Os projectos mereceram parecer favorável da C....

21. A DREN enviou carta à Autora do seguinte teor:

ASSUNTO: APROVAÇÃO DE PROJECTO

P.T. 1 tipo CABINE de 250 KVA; Inst. De Utiliz. Em B.T. em ..., concelho de Vale de Cambra.

Para os devidos efeitos, informo V. Exa. de que, com base no disposto no Decreto-Lei nº 517/80 de 31 de Outubro e por despacho 06-05-2004, foi o projecto da instalação eléctrica mencionada em epígrafe considerado APROVADO. (…).”.

22. A DREN enviou carta à sociedade Ré do seguinte teor:

ASSUNTO: APROVAÇÃO DE PROJECTO

P.T. 1 tipo CABINE de 800 KVA; Inst. De Utiliz. Em B.T. em ..., concelho de Vale de Cambra.

Para os devidos efeitos, informo V. Exa. De que, com base no disposto no Decreto-Lei nº 517/80 de 31 de Outubro e por despacho 06-05-2004, foi o projecto da instalação eléctrica mencionada em epígrafe considerado APROVADO. (…).”.

23. Na sequência da aprovação dos referidos projectos, os técnicos da Autora e da Ré reuniram em 19/05/2004 para analisarem a execução das alterações a efectuar na cabine onde estão instalados os 3 transformadores, sendo que o técnico da Ré acabou por referir ao técnico da Autora que a melhor solução seria que a A... UCRL instalasse um novo PT fora da cabine, nas suas próprias instalações.

24. A Ré enviou carta à Direcção Regional do Norte, datada de 18 de Junho de 2004 do seguinte teor: “Assunto: Projecto das Instalações Eléctricas

Exmo Sr. Director,

Recebemos da Direcção Regional do Norte do Ministério da Economia que V. Exa superiormente dirige, um dossier contendo um projecto, supostamente de alteração do Posto de Transformação, das nossas instalações.

Esse projecto foi-nos remetido, devidamente visado por V. Exas., como tendo sido apresentado para aprovação em nome da B..., S.A..

Que tenhamos conhecimento, ninguém da Administração da nossa empresa contratou qualquer técnico, para a elaboração do referido projecto.

Assim sendo, e porque poderá estar a acontecer algum lapso a que somos alheios, muito agradecemos a V. Exa., que se possível nos informe a requerimento de quem foi apresentado nos V. Serviços o referido projecto, já que nós nunca solicitamos e muito menos assinamos ou mandatamos alguém para assinar, qualquer requerimento nesse sentido.”

25. A Ré nada fez no sentido de promover a implementação dos projectos com a manutenção de um posto de transformação e a implantação de um novo posto de transformação (PT) na cabine existente no prédio da Ré.

26. A DREN enviou carta à Ré posterior a 18.06.2004, que esta recebeu, do seguinte teor:

“ASSUNTO: P.T. 1, tipo cabine, de 800 KVA; Instalação de Utilização em B.T., em ..., concelho de Vale de Cambra.

Referindo-nos à carta de V. Exas. datada de 18 de Junho de 2004, cumpre-nos informar que o referido projecto foi-nos enviado, de acordo com a tramitação imposta pela legislação em vigor, pela C..., S.A., acompanhado por carta datada de 19-02-2004, com a indicação de ser o requerente a B... S.A..

De acordo com a reunião havida em 25-02-2023, em que ficou acordada, com a anuência do V/representante, a separação física do P.T. com vista à autonomização das duas entidades consumidoras, parece-nos, a recepção dos projectos acima referidos, ser o corolário lógico para a resolução do assunto.

Face ao teor da V/carta, que estranhamos, reverte toda a situação ao início, pelo que não nos restará outra solução que não seja a da aplicação da lei, nomeadamente no que diz respeito à cedência de energia a terceiros.

Ficamos a aguardar que nos seja comunicado o que sobre o assunto se vos oferecer. (…).”.

27. A Autora enviou carta à Ré datada de 02.08.2004, que esta recebeu em que dizia:

ASSUNTO: SEPARAÇÃO FÍSICA DO PT – AUTONOMIZAÇÃO DAS 2 ENTIDADES CONSUMIDORAS

Como V. Exas. bem sabem temos estado a suportar os custos de energia consumidos por V. Exas., desde Outubro de 2002, o que atinge já muitas dezenas de milhar de euros.

E, isto porque só após a separação física do PT se poderão autonomizar as 2 entidades consumidoras – A... UCRL e B... S A – e consequentemente passar a ser emitida a cada uma dessas entidades a correspondente factura.  (…)

Pelo exposto solicitamos a V. Exas. que nos esclareçam sobre qual o real sentido daquela V. carta, no que se refere à V. disponibilidade para se iniciarem no imediato as obras de separação física do PT. (…).”

28. A Ré enviou carta à Autora, datada de 28.12.2004, que esta recebeu, do seguinte teor:

Exmos. Senhores,

Ainda não foi levada a efeito qualquer obra ou diligência sobre o assunto da notificação, porque ainda não foi concretizada a reunião entre os técnicos das duas empresas, conforme acordado na reunião havida na D.R. Norte, em 25.2.2023 e vem referido na carta que esta entidade remeteu à UCRL, em 28.5.03, apesar de o técnico da B..., S.A. sempre estar disponível para tal reunião, aguardando apenas o contacto do seu colega. Assim, apenas continua a aguardar o resultado da reunião a haver entre os dois engenheiros, que têm de encontrar a solução técnica para o caso”.

29. Em resposta à carta constante do ponto anterior, a Autora enviou carta à Ré, datada de 25.01.2005, que esta recebeu, em que defendia que a “os técnicos de ambas partes há muito que se reuniram e a solução técnica encontrada para a divisão do posto de transformação, satisfaz e cumpre as deliberações tomadas por ambas as empesas e preenche os requisitos legais e técnicos impostos pelos Serviços de Energia da Direcção Regional do Norte do Ministério da Economia (SEDRN) e pela C..., pelo que, os competentes técnicos daquelas Entidades Licenciadoras a aprovaram.”

30. A Autora requereu a notificação judicial avulsa da sociedade Ré em que pedia que esta “a) No prazo de três dias informar se mantém ou não a disposição de dividir o Posto de Transformação, nos termos acordados e licenciados; b) Em caso de resposta afirmativa, anunciar à requerente, as condições de realização das obras, tudo de molde a que a efectiva separação se conclua nos quarenta dias seguintes à notificação (…)”, tendo a notificação sido concretizada em 21/12/2004.

31. A sociedade Ré, também, foi citada em 7/11/2005, para a acção que a Autora lhe moveu e a que foi atribuído o n.º 708/05.4TVLC do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Vale de Cambra, onde esta peticionou ser a Ré:

a) Condenada a reconhecer a propriedade da Autora sobre os transformadores, baixada e cabos que conduzem a energia elétrica desde a baixada do Posto de alta tensão até ao PT e desde este até à unidade fabril da Autora;

b) Condenada a efetuar em conjunto com a Autora, no prazo máximo de um mês, nos moldes constantes do projeto aprovado pelas entidades competentes (DREN e C...), suportando metade dos respetivos custos;

c) Subsidiariamente, e caso não se faça dentro daquele prazo, condenada a permitir que a Autora execute tal obra, com direito a ser reembolsada por ela de metade dos respetivos custos;”.

32. A acção identificada no ponto anterior veio a ser julgada extinta por deserção em 9/05/2011, após vários anos em que se manteve suspensa numa tentativa de Autora e Ré chegarem a acordo tendo a Ré apresentado propostas alternativas ao acordo inicial.

33. Em 20 de Fevereiro de 2020, a Autora requereu a notificação judicial avulsa da sociedade Ré a que foi atribuído o n.º 34/20.9T8VLC do Juízo de Competência Genérica de Vale de Cambra, em que pedia que a sociedade Ré “no prazo de 5 dias, lhe ceder o espaço necessário à instalação dentro da área da referida cabine, de um transformador que satisfaça as necessidades de funcionamento da Requente, e facultar-lhe ainda o acesso livre e sem restrições à referida cabine.”, tendo a citação sido concretizada em 28.02.2020.

34. A Autora necessita e sempre teve necessidade de ser abastecida de energia eléctrica para desenvolver a sua actividade.

35. A Autora enviou uma carta à C..., datada de 21.02.2005, do seguinte teor:

“Assunto: Suspensão do nosso contrato n.º ... e celebração de contrato c/ a B... S.A, até à conclusão das obras de divisão do nosso “PT” de 2800KVA, de acordo com projecto aprovado.

Exmos. Senhores

Em execução de deliberações e acordos firmados pelos órgãos competentes das duas sociedades, A... UCRL (união de cooperativas) e B... SA (sociedade anónima), foi aprovado (pelos Serviços de Energia da Direcção Regional do Norte do Ministério da Economia e pela C...), um projecto de divisão e separação física do “PT” licenciado em nome desta união de cooperativas, para se autonomizarem a partir dele, os consumos de energia referentes àquelas duas entidades.

Acabamos agora de confirmar que, contrariando essas deliberações e acordos existentes, aquela sociedade anónima há muito que averbou “em seu nome exclusivo” junto dos Serviços de Energia da Direcção Regional do Norte o PT em causa.

No desconhecimento desta situação e no pressuposto que, até à conclusão das referidas obras de divisão, o “PT” só podia continuar licenciado em nome desta União de Cooperativas “que dele nunca abdicou”, mantivemos o contrato de fornecimento de energia.

A partir de 15.01.2005, e para se poder dar início às obras, a A... UCRL passou a ser abastecida, não pelo referido “PT” mas em exclusivo, por uma baixada própria de obras.

Nestas condições, vimos informar V. Exas. que, até à conclusão das referidas obras, autorizamos que, simultaneamente com a suspensão do nosso contrato de fornecimento de energia, a C... celebre com a B..., S.A. um outro contrato, com utilização da baixada, quadros, cabos e transformadores que, entretanto, continuam a pertencer-nos.

36. A partir de 15.01.2005 a Autora passou a consumir energia em baixa tensão especial fornecida através da baixada provisória identificada no ponto anterior, por não dispor de posto de transformação próprio.

37. Se entre Janeiro de 2005 e 03 de Março de 2022 a Autora tivesse sido fornecida de energia eléctrica em média tensão teria pagado menos 26.411,50 €.

38. A potência máxima que a C... pode fornecer à Autora em regime de baixa tensão especial é de 41KW o que é insuficiente para o normal exercício da actividade da Autora impossibilitando que os dois elevadores do edifício funcionem em simultâneo.

39. A Autora enviou carta à sociedade Ré datada de 13/06/2022, que esta recebeu, em que a interpelou para, no prazo de oito dias, lhe pagar 26.411,50 €.

40. Em resposta à interpelação, a sociedade Ré enviou uma carta à Autora, datada de 17 de Junho de 2022, que esta recebeu, do seguinte teor:

“Assunto: Resposta à vossa carta de interpelação para pagamento do montante de € 26.411,50.

Exmos. Srs.

Acusamos a recepção da Vossa carta datada de 13/06/2022.

Em resposta, cumpre dizer que não reconhecemos que a B..., S.A. seja devedora de qualquer quantia à A..., UCRL, como consta da Vossa interpelação que, aliás reputamos de ininteligível, quanto à sua fundamentação.

Com os melhores cumprimentos,”.


*

O recurso pode ter como objeto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).

Reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento» (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido.

Donde, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recuso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228).

Consequentemente, dispõe o art. 640º, n 1 do C.P.C. que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Mais se estabelece que quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (art. 640º, nº 2, al. a) citado).

O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, assenta em três regras: a pronúncia cinge-se à matéria de facto impugnada pelo Recorrente; quanto a essa impõe-se um novo julgamento; no qual a convicção do tribunal de recurso é formada de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).

De todo o modo, também vem sendo entendido que o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.

«Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609).

Tem a jurisprudência decidido também que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.

Assim é que, se a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto intende modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados, tendo por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, essa tarefa é-o na medida em que o enquadramento jurídico dos factos tidos por provados conduza a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, como os anteriores acessível na base de dados da dgsi).

Donde, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12, no mesmo lugar). E, assim, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente. Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10, na mesma base de dados).

Nas conclusões das alegações de recurso apresentadas vem perfeitamente caraterizada a indicação dos concretos pontos de facto cuja decisão o tribunal ad quem deve reapreciar, como bem assim a indicação do sentido da decisão a proferir sobre eles e ademais invocados os meios de prova que determinam aquisição probatória distinta.  Por isso, nas conclusões das alegações de recurso o recorrente cumpriu cabalmente os requisitos obrigatórios que condicionam a possibilidade de apreciação da matéria de facto, da qual, assim, pois, se conhecerá.


A) Da ampliação da matéria de facto

Perfeitamente inócua a pretensão de que o termo de autenticação no 1.º Cartório Notarial de Aveiro do acordo em causa nos autos seja acrescentado à matéria de facto.

Com efeito, se há facto quanto ao qual não há e nunca houve dissidência entre as partes, é o dos termos ou clausulado daquele acordo e à vinculação recíproca naqueles termos. O dissídio não está, pois, nos termos objectivos do negócio, mas, numa confusão que de quando em vez aflora no recurso e, adiante-se, inquinou desde sempre o quadro da execução do mesmo acordo, na interpretação deste e, muito relevantemente, na pretensão da Autora de que o acordo integrava uma vontade real recíproca eventualmente para além ou para lá dos termos objectivos do contrato ou acordo…

Ora, o termo de autenticação nada acrescenta ao clausulado contratual, mormente para efeitos de interpretação das declarações nele contidas[1], certificando apenas um facto que, inquestionado nestes autos, está adquirido mediante a demonstração de que as partes acordaram o que consta do contrato mesmo.

Redundante, pois, donde desnecessário.


*

No que importa agora à pretendida reprodução do teor do documento de fls. 38 (doc. 9 com a petição) em sede de factos assentes, como é sabido, os documentos são meios de prova de factos, sendo de boa técnica evitar a confusão entre o facto e o meio da sua demonstração…

Inexiste qualquer paralelismo entre a reprodução na matéria assente do teor das comunicações entre as partes mesmas e de comunicações de autoridades administrativas e a intendida reprodução de uma declaração particular, que se constitui mesmo como um “depoimento escrito indirecto”.

Na verdade, as comunicações escritas entre as partes constituem-se como um elemento (posterior) auxiliar de interpretação do negócio jurídico em apreço e integram em si mesmas a existência de declarações recíprocas. Outrossim as comunicações de entidades oficiais (DRE e C...) documentam as decisões nelas referidas.

Quanto ao escrito particular de fls. 38, há pois que distinguir entre a força probatória formal e a força probatória material do documento, “(…) ou seja no dizer de M. Andrade, entre a autenticidade do documento e o conteúdo do documento, (às declarações nele exaradas) - (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 225,226; Ver, ainda. A. Varela, Manual de P. Civil 2ª edição pág. 520 e também o Ac. do STJ de 23/Nov/ de 2005 Jur./STJ/net que seguimos de perto). Com efeito, uma coisa é saber se o documento provém da pessoa ou entidade a quem é imputado (força probatória formal) e outra, de saber em que medida os actos nele referidos e os factos nele mencionados se consideram como correspondentes à realidade (força probatória material). (...) Os documentos particulares somente podem ser invocados com valor probatório pleno, pelo declaratório contra o declarante, isto é, apenas nas relações do declaratário - declarante e na medida em que sejam prejudiciais a este, face ao disposto no art. 376.º n.º 2 do C. Civil.

O citado art. 376.º regula a prova por documento particular nas relações entre declarante e declaratário. Os RR no caso em apreço, são terceiros e como tal, o documento vale, apenas, como elemento de prova a ser apreciado livremente pelo tribunal. (Ac. STJ de 26/06/1982 e de 25/10/1995 in BMJ 318°, 415 e 450,353, respectivamente.)

O documento cuja inclusão se pretende corresponde apenas a um documento particular, cuja força probatória legal se esgota na demonstração de que o seu autor/subscritor asseverou o que dele consta… e não já que o que aquele declara tenha efectivamente sucedido como tal… É um relato unilateral de uma reunião, a considerar, a par de outros meios de prova, mormente testemunhal, mas insusceptível de demonstrar a se stante os factos ali relatados como tendo ocorrido.

Inexiste qualquer razão, assim, para a pretendida reprodução, sendo certo que matéria efectivamente assente reflecte a credibilização daquele meio de prova pelo Tribunal, conforme facto sob 23, in fine.

Acresce que o ponto daquela declaração que a recorrente pretende, como decisivo, seja havido por adquirido: o de que o “representante técnico da Ré” não levantou objecções técnicas ao projecto autorizado, a mais de não ter logrado qualquer outra corroboração na demais prova produzida, por isso que sempre discutível, se queda também perfeitamente  irrelevante, como melhor resultará da apreciação em seguida da questão do erro de julgamento.


*
B) Do erro de julgamento

Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.

Como refere A. Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.

Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pela recorrente e, se necessário, outras provas, máxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.

Tudo isto, sem prejuízo, como acima já referido, de o Tribunal de recurso, adquirir diferente (e própria) convicção (sendo este o papel do Tribunal da Relação, ao reapreciar a matéria de facto e não apenas o de um mero controle formal da motivação efectuada em 1.ª instância – cf. Acórdão do STJ, de 22 de Fevereiro de 2011, in CJ, STJ, ano XIX, tomo I/2011, a pág. 76 e seg.s e de 30/05/2013, Processo 253/05.7.TBBRG.G1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.

Tendo por base tais asserções, dado que se procedeu à gravação da prova produzida, passemos, então, à reapreciação da matéria de facto em causa, a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar, em conformidade com o disposto no artigo 662.º, do CPC., pelo que, nos termos expostos, nos compete apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de 1.ª instância, face aos elementos de prova considerados (sem prejuízo, como acima referido de, com base neles, formarmos a nossa própria convicção).

A factualidade posta em causa nas alegações de recurso é-o por referência ao depoimento da testemunha AA, Diretora Administrativa e Financeira da Recorrente-Autora entre 1985 e 2013, na conjugação agora com a totalidade da documentação a que a fundamentação da primeira instância recorre e com o teor dos projectos juntos aos autos.

Tendo presentes estes elementos probatórios e demais motivação, ouvida que foi a gravação dos depoimentos prestados em audiência, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pela apelante.

Os factos postos em causa são-no sob os pontos 16 e 17 da matéria assente.

Adiante-se que se entende assistir parcial razão à recorrente, no que tange ao facto de não resultar dos meios de prova produzidos que o primeiro dos projectos de alteração apresentado à C... e DREN (que não foi junto aos autos) o tivesse sido de um aproveitamento ou partilha ampla da cabine…

Na verdade, nenhuma prova nos autos produzida atesta a existência e apresentação junto da DREN de um projecto que passasse por aquela partilha ampla.

A totalidade da prova produzida [assim o depoimento da testemunha referida, a declaração no documento junto sob 9 à petição, pelo autor dos projectos e as comunicações pela DREN constantes dos autos] induz que a necessidade de apresentação de dois projectos, os que vieram a ser aprovados, se relacionou, antes que com a definição técnica da separação, com a necessidade de que ambos os interessados nas alterações formulassem a pretensão correspondente…Donde a apresentação de dois projectos, cada um deles em nome de cada uma das interessadas e relativo à instalação respectiva…

Donde, quanto ao projecto inicialmente apresentado, não resulta efectivamente de qualquer meio de prova que o mesmo o tenha sido mediante uma simples ou mera partilha do espaço da cabine.

Não era, ao contrário do que sustenta a recorrida, o que a A. alegava no art. 18º da sua petição, porquanto aduzida a proposta de 2 PT para abastecimento autónomo, com lugar a 2 postos de transformação independentes, desconhecendo-se, na falta de junção daquele projecto e no desconhecimento ou alusão vaga pela testemunha a estes se estava ou não em causa a “partilha ampla” do espaço da cabine originária.

De todo o modo, o que resultou inequivocamente da totalidade da prova convocada pela M.ma Juiz quanto aos termos da apresentação dos projectos junto da DREN foi que, mediante a realização de contactos junto da Direção Regional de Energia do Norte (DREN), emergiu para as partes a impossibilidade de licenciamento/autorização de uma mera partilha da (do espaço físico desta) cabine e sistemas de distribuição ali pré existentemente instalados[2], com a introdução apenas de um transformador e “contador” independentes, tendo aquela entidade por imprescindível a separação/autonomização física dos espaços onde ficaria cada posto de transformação: relativo a um transformador de 800 KVA a partir do qual era abastecida a Ré, e outro de 250 KVA a partir do qual seria abastecida a Autora. De todo o modo, se ressalta daqueles meios de prova, como adquiridos/compreendidos e bem pela Sra Juiz, que as partes tomaram consciência da necessidade de separação física  das instalações atinentes a cada um daqueles transformadores, a servir uma e outra, aquando da reunião identificada nos factos assentes, prova absolutamente ausente  de que desde logo tenha resultado que uma tal separação ou divisão era a executar nos termos descritos já sob 18 dos factos assentes. Bem assim que a Ré tenha acordado ou anuído numa separação nesses termos.

Ora, a apresentação dos projectos com uma tal divisão física, a implicar a realização de obras e alterações, foi-o totalmente pela Autora, como resulta da prova, no pressuposto, indemonstrado, de uma anuência ou concordância pela Ré quanto aos termos da separação física a realizar… Com efeito, nessa parte, apenas e só as declarações da referida testemunha e do autor do projecto, ambos relacionados com a Autora e manifestando, a primeira em audiência e o segundo na declaração de fls. 38 (doc 9 com a petição) uma pré-compreensão quanto ao âmbito ou sentido da obrigação assumida pela Ré  (a de assegurar o fornecimento a partir das suas instalações, independentemente das obras necessárias à separação física exigida pelas autoridades administrativas para a autorização respectiva e dos seus custos), ela mesma carecida de outra demonstração ou corroboração, ausentes…

E é neste ponto que mais ressalta a irrelevância da falta de objecção técnica pelo engenheiro designado pela Ré quanto ao projecto aprovado ou deferido, constante do documento 9 com a petição, à qual tanto apego tem a A… O cerne da questão não vem a ser a possibilidade técnica da separação ou autonomização dos fornecimentos de energia a partir do local/posto existente, mas o do objecto da obrigação assumida pela Ré.

Sempre os factos alegados pela Autora na respectiva petição parecem não se reconduzir a uma vontade real reciprocamente conhecida na ocasião mesma do acordo escrito outorgado e cujo cumprimento, exactamente naqueles termos vem pedido, mas sim a um verdadeiro e próprio acordo subsequente de concretização (rectius, modificação) dos termos daquela cedência, em conformidade com as condições dos projectos apresentados e autorizados pela DREN. A testemunha da Autora já referida reconduziu-se em audiência, ao invés, a esta vontade reciprocamente vinculante para além ou para lá dos termos ou do teor do contrato cuja execução vem pedida, sem prejuízo de mais se ter reportado à anuência ou concordância da Ré com os projectos deferidos pela DREN…

Manifestamente insuficiente ou inconcludente este depoimento, como a declaração junta sob doc. 9, a ter por demonstrada esta vontade real, como a anuência subsequente.

Ausente absolutamente a prova de que antes da outorga do negócio as partes estivessem cientes da necessidade de divisão física e alteração sensível do espaço e sistemas de distribuição recíproca de energia, por não ser então crível, de acordo com juízos de normalidade e regras da experiência, (atenta até a convocada pela recorrente natureza empresarial das partes envolvidas) a contratação nos termos em que o foi. Corroborada apenas pelas comunicações da DREN juntas aos autos uma reunião, já após a outorga do contrato, com o que prova alguma da consciência recíproca pelas partes de “exigências” pela entidade administrativa antes daquela ocasião.

Ora, na sequência da modificação da matéria de facto, por via do reconhecimento da insuficiência indiciária de parte do circunstancialismo havido como demonstrado na sentença, nos termos e para os efeitos do artigo 662º, n.º 1 do CPC, mais se impõe-se a ampliação da pronúncia por esta Relação quanto a matéria de facto oportunamente alegada (assim os factos sob os artigos 16º, 22º e 23º da petição inicial), não exactamente assim considerada na sentença, mormente no enquadramento que vem de evidenciar-se, sendo que do processo constam, por via da gravação da prova todos os elementos de prova a atender.

Como refere Abrantes Geraldes[3], o preceito do art. 662º do CPC, sob a epígrafe, Modificabilidade da decisão de Facto, conjugado com o art. 640.º, «(…) permite apreender, em traços largos, as funções atribuídas à Relação em sede de intervenção na decisão a matéria de facto e que receberam um forte impulso dado pelo Dec. Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, transformando-o efectivamente em tribunal de instância que também julga a matéria de facto e não apenas uma antecâmara do tribunal de revista quanto à subsunção jurídica da realidade factual. A comparação que pode fazer-se entre a primitiva redacção do art. 712.º do CPC e o actual art. 662.º revela que a possibilidade de alteração da matéria de facto que, além, era indicada a título excepcional, é agora assumida como função normal da Relação, verificados que sejam os requisitos que a lei consagra».

No Ac. do STJ de 26.01.2017[4], refere-se, a este propósito, que «[h]ouve uma batalha decisiva no sentido de conseguir que o quadro normativo que vinha do CPC de 1939 e que se mantivera no CPC de 1961 assegurasse um efectivo segundo grau de jurisdição na matéria de facto. A inversão do modelo existente ocorreu com a Reforma do processo de 1995/96, que consagrou a atenuação do princípio da oralidade pura e admitiu a possibilidade de serem gravadas as audiências de julgamento, com vista a assegurar a posterior reapreciação pela Relação dos meios de prova sujeitos a livre apreciação. Nem sempre essa alteração de paradigma foi bem compreendida pelos agentes judiciários. De um lado, as falhas verificaram-se (e continuam ainda a verificar-se) ao nível da motivação da impugnação da decisão da matéria de facto, com alegações genéricas e sem concretização dos alegados erros de julgamento ou apreciação crítica dos meios de prova. Do outro lado, da parte das Relações, a reacção traduziu-se numa certa resistência à assunção dos novos poderes que resultavam da lei, sob o pretexto de que não estavam reunidas as condições para a reapreciação dos meios de prova gravados». Refere-se, ainda, que «[a] ampliação dos poderes da Relação no que concerne à reapreciação da decisão da matéria de facto que foi consagrada na Reforma de 1995/96, reforçada na Reforma de 2007 e confirmada com a Reforma de 2013, foi o corolário de um longo processo — impulsionado essencialmente pela advocacia — no sentido de implantar no terreno um efectivo segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto»[5].

É ponto assente que «(…) a reapreciação não se contenta com a sindicância da convicção formada na primeira instância com o objectivo de apenas debelar erros grosseiros na valoração da prova, assente numa hipervalorização do princípio da livre apreciação (…) e da imediação por parte do juiz a quo, devendo ultrapassar o mero controlo formal da motivação da decisão da 1.ª instância em matéria de facto. Pelo contrário, o pleno exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto da Relação exige a formação de uma convicção própria, obtida activa e criticamente em face dos elementos probatórios indicados pelas partes ou mesmo adquiridos oficiosamente»[6].

Importa, então, perceber em que termos e com que limites.

Abrantes Geraldes[7] afirma que «[a] Relação actua como tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de 1.ª instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo da confirmação ou alteração da decisão recorrida». Apreende-se neste excerto a defesa de uma interpretação ampla do n.º 1 do art. 662.º. De resto, ela é claramente assumida noutro passo da obra, onde se afirma que «[a] Relação poderá e deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente do que seja racionalmente sustentado»[8].

Ainda quando se sustente uma interpretação mais estreita dos poderes de ampliação da Relação, defendendo-se que possibilidade de alterar a matéria de facto fixada na primeira instância pela mera análise da prova produzida apenas pode ser efectuada quando essa prova produzida imponha decisão diversa, o que não sucede quando o tribunal ad quem, ouvida essa prova, propende antes para uma diferente convicção, contudo não imposta pela prova produzida; sendo que, havendo uma convicção diferente quanto à prova produzida, mas não uma convicção inevitável quanto à prova produzida, não poderá existir alteração do facto sem renovação de prova[9]; sempre na situação decidenda não está em causa se não uma confirmação do juízo probatório da 1ª instância, como resulta da consideração agora do facto não provado sob d) (que se reconduz ao aduzido sob 23º da petição inicial) e da respectiva fundamentação.

Ora, aduzia a A. que a solução de partilha ou divisão do PT encontrada, nos moldes dos pedidos apresentados junto da DREN, foi consensual, sendo que os projectos apresentados espelhavam a solução técnica acordada, com o qual o representante da R. e o seu engenheiro técnico concordaram na reunião realizada em 25/02/2003 com técnicos da DREN, na sede desta… É o que não foi havido como provado na sentença, antes se inferindo da totalidade do julgamento de facto, que se houve tal matéria por indemonstrada e correctamente…  

A sentença, como qualquer acto jurídico não negocial, ex vi do art. 295º do CC está sujeita a interpretação, de acordo com as regras gerais aplicáveis aos negócios jurídicos.

Ora, a articulação da matéria de facto demonstrada, na redação que mereceu, a análise da motivação e a ponderação ademais do facto não provado sob d), são demonstrativos da não aquisição probatória em 1ª instância de que a Ré tenha acordado ou anuído à separação física nos moldes que, instruídos e requeridos pela Autora apenas, vieram a ser deferidos pela DREN…

E não se convoque, como faz a recorrente, com o relevo indiciário da comunicação pela DREN assente sob 26 dos factos assentes… Com efeito, o segmento ali inscrito, “com a anuência do V/representante, a separação física do P.T. com vista à autonomização das duas entidades consumidoras” não tem o significado probatório de demonstrar que a anuência do representante da Ré o foi para os termos do projecto executado e apresentado apenas pela Autora… Na verdade, perfeitamente compatível aquele segmento e o ajuizado “corolário lógico” com a mera aceitação de uma separação física em moldes não imediatamente definidos/apresentados… De resto, evidencia a matéria provada também que a Ré pôs em causa os poderes de vinculação do técnico que encarregou de acompanhar junto da DREN o processo de execução do acordo inicial…

Tudo para concluir, como o fez o tribunal recorrido, pela falta de indiciação bastante ou suficiente de que os projectos deferidos ou aprovados tenham sido resultado de uma concretização reciprocamente assumida do acordo primeiro.

Impõe-se já uma reformulação/alteração da matéria de facto em correspondência com o erro e decorrente insuficiência detectados, muito embora sem o conteúdo (e decisivamente sem o sentido ou significado, desejavelmente a expurgar da matéria de facto) pretendido bem assim pela recorrente.

Altera-se, em consequência, a matéria de facto nos seguintes termos[10]:

14. No contexto deste acordo, em 25/02/2003 os representantes e os técnicos de Autora e Ré reuniram-se na sede da Direção Regional de Energia do Norte (DREN) no Porto para discutirem os aspectos técnicos a cumprir para a acordada partilha do espaço da cabine onde se encontravam os transformadores.

15. A materialização da partilha do espaço na cabine pré-existente implicava a coexistência naquela de dois transformadores com funcionamento independente, sendo um de 800 KVA para alimentar a Ré [já existente e cedido pela Autora à Ré no acordo] e outro de 250 KVA [a colocar] para alimentar a Autora, pelo que a sociedade Autora mandou elaborar projecto de alterações para instalação de um transformador para uso exclusivo da Autora.

15-A. Ao menos na ocasião referida em 14 a DREN deu nota de que a autorização para a materialização da partilha implicava a separação/autonomização física dos espaços onde ficaria cada posto de transformação: relativo a um transformador de 800 KVA a partir do qual era abastecida a Ré, e outro de 250 KVA a partir do qual seria abastecida a Autora.

16. Para o efeito, foi inicialmente apresentado às entidades competentes – C... e DREN – pelo técnico da Autora um único projecto de alterações para partilha da cabine do PT pré-existente.

17. A Direção Regional de Energia do Norte (DREN) exigiu a apresentação de dois projectos, um por cada uma das interessadas na alteração, o que o técnico da Autora fez, quer no que tange ao apresentado em nome da Autora, quer no que importa ao entregue em nome da Ré.

18. A autonomização/separação física dos espaços de cada posto de transformação, conforme projecto(s) elaborados, apresentados e analisados, previa a divisão física da cabine localizada no prédio da Ré em 3 secções autónomas: uma para o posto de transformação de 800KVA pré existente com o respectivo quadro eléctrico; uma para o posto de transformação de 250 KVA a instalar com o respectivo quadro eléctrico; e uma para o posto de seccionamento de acesso à C....


*

Mais se altera o facto não provado sob d) nos seguintes termos:

d) Os projectos apresentados conforme matéria assente em 16) a 18) espelhavam a solução técnica acordada, com o qual o representante da R. e o seu engenheiro técnico concordaram na reunião realizada em 25/02/2003 com técnicos da DREN, na sede desta.


*

Como dizia Óscar Wilde, a verdade nunca é pura e raramente é simples.

Ora, o fim da prova, como do processo, é a verdade judiciária, quer dizer, o que o juiz terá por verdadeiro e não é fácil este apuramento ("A vida é curta, a arte é longa, a oportunidade fugidia, a experiência traiçoeira e o juízo difícil", refere o quinteto de epigramas de Hipócrates, citado por João Lobo Antunes (in Numa Cidade Feliz, Gradiva, 1999, pag. 203).

Temos por certo que "não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes, equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano" (Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil - Conceito e Princípios Gerais (À Luz do Código Revisto), Coimbra Editora, 1996, pag. 160), bastando que assente num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança, que dê - em consciência - ao julgador, garantias de que os factos terão ocorrido de certa forma, fora de dúvida razoável, o que, no caso concreto, com a prova produzida, com a forma como as partes e as testemunhas depuseram, com aquilo que disseram (e como o fizeram), e com a prova documental apresentada, com a seriedade intelectual que se exige, não cremos ser possível levar a dar como assente outra factualidade e apurar outra verdade.


C) Da anulação do julgamento subsidiariamente pedida

Desde logo, não vem justificada em sede recursiva a razão para a anulação.

De todo o modo, sendo certo que na reapreciação da prova pelo Tribunal da Relação deve este, além do controlo formal da motivação da decisão da 1ª instância, ponderar e valorar, de acordo com o princípio da livre convicção do julgador, toda a prova produzida no processo de modo a formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação (e daqueles necessariamente implicados por estes, sob pena de contradição), apenas quando, procedendo àquela reapreciação nos deparássemos  com deficiências e contradições na decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, se verificasse do processo não constarem todos os elementos probatórios para proceder à alteração necessária; o que, como resulta do ponto anterior, não sucede.

II.

Conforme disposto no artigo 790.º, n.º 1, do Código Civil: “A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor”.

Acrescentando-se no seu artigo 795.º, n.º 1: “Quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa.

E no seu n.º 2 que: “Se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor, não fica este desobrigado da contraprestação; mas, se o devedor tiver algum benefício com a exoneração, será o valor do benefício descontado na contraprestação”.

Como referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1981, a pág. 38, com a previsão do artigo 790.º, n.º 1, do Código Civil, visa-se regular os casos em que a obrigação se tornou impossível, supervenientemente, por causa não imputável ao devedor, caso em que se extingue a obrigação.

Ali se notando que “não deve confundir-se a impossibilidade da prestação com a alteração das circunstâncias que a torne excessivamente onerosa”, bem como que, no nosso direito “só a impossibilidade absoluta libera o devedor da obrigação (prestação de uma coisa que entretanto pereceu; realização de um negócio que a lei posteriormente veio a proibir; etc). Não podem, por conseguinte, enquadrar-se na categoria da impossibilidade objectiva as situações dos empresários que, no decurso do período de perturbação social posterior à Revolução do 25 de Abril de 1974, não puderam solver certas obrigações pecuniárias, por terem sido violentamente afastados da administração das empresas pelos trabalhadores”.

Na mesma senda, A. Varela, in Das Obrigações em geral, Vol. II, 4.ª edição, Almedina, 1990, a pág. 63 e seg.s, defende que no artigo 790.º do CC, se prevêem as situações em que “a prestação se torna impossível, quando, por uma qualquer circunstância, legal, natural ou humana, segundo o conteúdo da obrigação se torna inviável”.

Reiterando que a obrigação apenas se extingue, nos casos em que a prestação se tenha tornado verdadeiramente impossível, seja por força da lei, da natureza (caso fortuito ou de força maior) ou por acção do homem, não bastando para tal “que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor”.

Só relevando a “impossibilidade (física ou legal) da prestação … impossibilidade absoluta”, em virtude de não se ter acolhido entre nós a doutrina do “limite do sacrifício”, adoptada no direito alemão.

Também José Carlos Brandão Proença, in Lições de Cumprimento e Não Cumprimento Das Obrigações, Coimbra Editora, 1.ª Edição, Setembro de 2011, pág. 163 e seg.s. refere que se justifica o não cumprimento, que acarreta o efeito extintivo da obrigação assumida, se o devedor estiver colocado numa situação de “impossibilidade de cumprir por circunstâncias total ou parcialmente estranhas à sua vontade e de natureza objectiva ou subjectiva”.

Em que cabem as situações de força maior ou caso fortuito, acto dos poderes públicos, conduta do devedor ou do credor ou de terceiro que não seja auxiliar do próprio devedor, tendo o nosso legislador adoptado “como padrão da impossibilidade com efeito exoneratório a impossibilidade objectiva, absoluta, definitiva e total. A impossibilidade diz-se objectiva sempre que o devedor esteja impedido de cumprir por razões que não dizem respeito à sua pessoa (…). Este impedimento é, em si mesmo, uma barreira (objectiva) inultrapassável pelo devedor ou por qualquer pessoa que o possa substituir (…). A impossibilidade objectiva é, assim, em regra, uma impossibilidade absoluta na medida em que o impedimento é um obstáculo inultrapassável (…) mesmo com esforços suplementares”.

Sendo que o seu carácter definitivo, se traduz na impossibilidade do seu cumprimento.

A obrigação, enquanto realidade baseada numa estrutura meios-fim, destina-se a um resultado, à satisfação do interesse do credor, e implica determinados meios, concretizados em esforços e dispêndios a cargo do devedor. é, por isso, comum a alusão a uma «tensão da vinculação debitória» entre dois polos: os meios e o fim.

Ambos os polos são problemáticos. Saber qual é o fim ou resultado da prestação implica, muitas vezes, um exercício delicado de interpretação (e integração) do contrato e de esclarecimento, em concreto, da relação entre o interesse do credor e o fim da prestação.[11] O problema dos meios revela também complexidade, a começar pela constatação de que o Direito Civil reconhece um fim (o interesse do credor) e não coloca ao serviço da satisfação desse interesse todos os meios: o devedor não tem de prestar a todo o custo, nem a qualquer preço.

Desde logo, a primeira tarefa a realizar vem a ser a da determinação da obrigação assumida pela Ré, a qual depende, naturalmente, da interpretação do negócio ou acordo convocado, mediante aplicação dos critérios interpretativos fixados na lei, nomeadamente nos artigos 236, n. 1 e 238, do Código Civil.

É que a interpretação de um negócio jurídico, enquanto actividade destinada a fixar o sentido e alcance decisivo desse negócio, segundo as respectivas declarações integradoras não pode ser abandonada ao senso empírico de cada intérprete, antes deve pautar-se por regras cuja formulação constitui o objecto de hermenêutica negocial (confere Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, página 418).

Neste domínio o Código Civil acolheu a chamada teoria da impressão do destinatário, dispondo no n. 1 do artigo 236 que a declaração negocial deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado em posição do tal declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não poder razoavelmente contar com ele. Em conformidade com a velha máxima "falsa demonstratio non nocet", o n. 2, daquele preceito estatui que, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida, ainda que essa vontade real não coincida com o sentido correspondente à impressão do destinatário; as razões de justiça e de conveniência que justificam a relevância do sentido objectivo não relevam nesta hipótese.

Deste modo, a interpretação da declaração negocial só tem de ser feita em harmonia com a vontade real do declarante quando o declaratário conheça essa vontade; não se verificando essa situação, a interpretação deve obedecer ao critério estabelecido no n. 1, do referido artigo 236, ou seja, deve ser feita segundo esse critério normativo. Neste caso, a interpretação da declaração negocial não se dirige a fixar um simples facto - o sentido que o declarante quis dar à sua declaração -, mas antes a determinar o sentido jurídico da declaração. Por outras palavras, em tal hipótese, não se trata de determinar a vontade das partes, mas de aplicar uma norma legal de interpretação, pelo que a questão não se traduz numa simples questão de facto, mas numa questão de direito.

Pode, assim, concluir-se que a interpretação da declaração negocial constitui uma questão de direito sempre que haja de realizar-se nos termos do n. 1, do citado artigo 236, dado que nessa situação não se trata de determinar a vontade real do declarante, mas apenas o sentido que juridicamente deve atribuir-se à declaração. Será, porém, questão de facto a de saber se o declaratário conhecia a vontade real do declarante e bem assim qual o conteúdo dessa vontade (confere Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103 páginas 286 e 287 e 107, página 184; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4 edição, página 224; Castanheira Neves, Questão de facto - Questão de direito, página 328 e seguintes; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Janeiro de 1985, 5 de Março de 1985 e de 30 de Março de 1989, Boletim do Ministério da Justiça ns. 343, página 292, 345, página 382 e 385, página 503).

No caso decidendo, pese embora a argumentação em sede recursiva vá referida a esta coincidência das vontades reais dos outorgantes no acordo cuja execução vem pedida (assim também a insistência em sede de produção da prova mesma junto da testemunha da Autora a que se reconduz no recurso), duvidoso mesmo que a acção, como resulta da petição inicial, tenha sido instaurada com um tal fundamento… Na verdade, como se referiu já, a Autora reenvia-se a um acordo ou convenção subsequente, nos termos dos artigos 16º, 22º e 23º da petição, reconheça-se, numa espécie de antecipação da evidência de não emergir da convenção o sentido que pretende.

Assim, quanto ao negócio caracterizado sob 13 da matéria assente, nos termos do qual a Ré cede à A... UCRL o espaço necessário à instalação dentro da área da cabine eléctrica de um transformador que satisfaça as suas necessidades de funcionamento, facultando-lhe ainda o acesso livre e sem restrições à referida cabine, ainda quando relevado o contexto daquele acordo, conforme matéria assente sob 12, cabe  apurar-lhe o sentido, correspondente à impressão do destinatário, nos termos da regra constante do n. 1, do mencionado artigo 236, tendo ainda presente que o contrato se constituiu como um negócio formal e que, portanto, o sentido objectivo correspondente à impressão do destinatário não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, ainda que imperfeita, no texto do respectivo documento.

 Desta forma, um declaratário normal, isto é, razoável, normalmente esclarecido, zeloso e sagaz, colocado na posição concreta da ré, não poderia atribuir ao contrato um sentido tão amplo como o preconizado pela recorrente.

A vontade das partes no negócio celebrado tal como expressa no texto apenas vai referida à cedência, dentro da cabine elétrica da Recorrida, do espaço necessário à instalação de um transformador “independente”.

A prestação a que a Recorrida se comprometeu foi a de permitir que a Recorrente utilizasse um espaço dentro do seu PT. Foi esta a vontade manifestada, bem como é esta a vertida no texto do acordo.

Não se evidencia qualquer divergência entre o sentido objetivo e o sentido subjectivo da declaração.

De resto, indemonstrado esse sentido por via do comportamento das partes em sede de execução do acordo, nos termos da matéria provada e de se ter quedado sem suporte probatório que a Ré tenha consentido ou participado na execução de uma separação material ou física dos sistemas (integrados à data do acordo) de fornecimento de energia às respectivas instalações.

Nessa medida, concorda-se (o que a A. não põe em causa) com o enquadramento na decisão recorrida de que “as partes não quiseram constituir um direito de propriedade a favor da Autora sobre parte da cabine mas sim conceder à Autora o direito de continuar a servir-se da coisa/infraestrutura pré-existente [como ocorreu até à constituição da sociedade Ré] de acordo com as suas necessidades, ou seja, manter naquele espaço um transformador que garantisse o fornecimento de energia eléctrica em baixa tensão como até à constituição da sociedade Ré.”

Bem assim que, estando-se “perante a constituição de um direito real atípico sendo certo que a consequência para a violação do princípio da tipicidade, no caso de constituição de restrições ao direito de propriedade, como vimos supra – cfr. artigo 1306.º do Código Civil – é a sua conversão legal em “natureza obrigacional.”.

Assim, estamos perante um contrato de natureza obrigacional [tal como defendido pela Autora] segundo o qual a sociedade Ré tem de ceder à Autora um espaço na cabine para esta ali manter um transformador.”

Ora, quando se atente na prestação a que a Ré se obrigou, a de ceder o espaço necessário à instalação dentro da cabine eléctrica de um transformador que satisfaça as necessidades de funcionamento da Autora, esta mostra-se efectivamente impossível, por insusceptibilidade de autorização pelas autoridades administrativas de uma tal “partilha”.

De acordo com a lei, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (art. 762.º, n.º 1). Aquilo a que o devedor está vinculado implica, logo no plano de cumprimento, um resultado e também um meio para o alcançar. Ao vincular-se, o devedor obriga-se a projetar certa medida de esforço e a antecipar o caminho crítico para atingir um resultado. Depois, terá ainda de despender efetivamente esse esforço. Em deveres de conteúdo incerto, a antecipação do esforço torna-se ainda mais exigente.

Na generalidade dos contratos, a própria decisão de contratar e a conduta assumida nas negociações baseia-se numa projeção de custos, dispêndios e riscos. Entre o momento dessa projeção e a exoneração do devedor, através do cumprimento, podem ocorrer variadas perturbações, a demandar o problema de até onde está o devedor obrigado a despender gastos e esforços, materiais e imateriais, tendo em vista o cumprimento, o resultado a que a prestação se dirige? Dito de outro modo, qual a fronteira do dever de prestar entendido enquanto esforço ou sacrifício?

Esta questão é essencial num sistema, como o nosso, em que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (cf. art. 762.º, n.º 1), em que não pode o devedor oferecer um tertium genus como cumprimento (cf. art. 837.º), nem substituir a prestação por uma indemnização pecuniária, e em o sistema do cumprimento (e do não cumprimento) se baseia no primado do cumprimento natural da prestação[12].

Além disso, a ideia de confiança contratual assenta em três pilares: na vinculação e estabilidade das promessas, no primado do cumprimento natural e na boa-fé. Estes três pilares nem sempre revelam, porém, uma perfeita harmonização, surgindo zonas de tensão entre o respeito pela palavra dada e as exigências objetivas do sistema, fundado em valores de justiça e de tutela da autodeterminação dos contraentes.

A identificação de uma situação de impossibilidade de cumprimento não culposa neste contexto não será possível sem a compreensão do equilíbrio último ou simetria dos contratos bilaterais. 

Aceita-se hoje a interferência de deveres acessórios do credor e, nesta medida, há também um esforço do credor tendo em vista o cumprimento do programa obrigacional. Apesar da diferenciação funcional entre as posições do credor e do devedor, esta temática não pode ser tratada sem ter presente a relevância da justiça comutativa, princípio que tem vindo a ser recordado pelas teorias que, sem reconhecer um direito ao cumprimento ao devedor, realçam a necessidade de algum espelho ou simetria entre o tratamento que é conferido ao devedor e ao credor.

Ninguém contesta que o devedor, ao celebrar um contrato, se obriga a uma determinada prestação e, ao fazê-lo, se vincula a um conjunto de esforços que têm por medida a diligência legalmente exigível. Quanto ao padrão dessa diligência, no direito português, em regra, o devedor obriga-se a cumprir de acordo com a diligência que lhe é exigível, densificada à luz do critério normativo da diligência do bonus pater familias, previsto no art. 487.º, n.º 2, aplicável também à culpa contratual (art. 799.º, n.º 2).

A remissão para «as circunstâncias de cada caso» implica ainda que os condicionalismos da execução do programa obrigacional sejam também considerados: o homem médio é colocado no cenário de (in)cumprimento concretamente verificado, face à perturbação e à elevação do esforço solicitada, no contexto do contrato por si celebrado[13]. Como notava Vaz Serra[14], «quanto a saber a que é que o devedor se obriga, pode isso variar consoante o tipo de contrato e até a propósito de cada contrato, sendo um dos elementos a atender a boa-fé».

Reconheça-se bem assim que o padrão legal tem sido desafiado perante as chamadas «responsabilidades profissionais».

Sempre a abstração do bom pai de família não se confunde, nem interfere, com a projeção da diligência em várias fases do cumprimento do programa obrigacional, nem com o reconhecimento de que, ao lado de uma diligência de execução em sentido estrito, intercede uma diligência preparatória e preventiva e ainda uma diligência reativa, destinada a superar ou atenuar um impedimento ao dever de prestar. A medida do esforço do solvens é, pois, um problema que se coloca perante qualquer perturbação ou entrave à prestação, imputável ou inimputável ao devedor (o que não quer, naturalmente, dizer que o esforço seja o mesmo em qualquer caso). Se sobrevier um facto não imputável às partes, o devedor obrigar-se-á, dentro dos limites da concreta prestação, a superá-lo.

Note-se, ainda, que, por vezes, na prática judicial, a prova da observância do dever de cuidado surge consumida pela prova de ocorrência de um facto de força maior, suscetível, por si só, de justificar causalmente o ilícito.

Contudo, nem a força maior é um critério modelador do conteúdo da diligência do devedor, nem a prova da ausência de culpa está limitada à força maior. Provando-se o facto de força maior, invencível, intransponível e imprevisível, ficará, em princípio, na falta de declarações adicionais, excluída (ou limitada) a responsabilidade do devedor[15].

A força maior é, portanto, uma forma de delimitar riscos, entre a esfera do lesante e a esfera do lesado. Perante um evento controlável, ainda que com esforços acrescidos, ou mitigável, também à custa de esforços suplementares, o impedimento implicará uma elevação do esforço: mas o evento não é, naturalmente, critério, nem medida da diligência exigível.

O mesmo quanto à previsibilidade, isto é, também neste caso será a diligência média do bonus pater familias que permite discernir se o devedor poderia, ou não, ter antecipado e/ou evitado o curso dos acontecimentos. Se o devedor podia ter evitado a impossibilitação da prestação, mas não o fez, por ter sido descuidado logo numa etapa preparatória do cumprimento, a impossibilidade pode ser-lhe imputável, devendo notar-se que a negligência compreende uma componente de reconhecimento do perigo e outra de superação do mesmo. Na esteira de Pessoa Jorge, deve, assim, reconhecer-se ser errónea a afirmação segundo a qual o caso fortuito ou de força maior começa onde a culpa acaba[16]. Pode não haver força maior e não existir culpa (a elisão da presunção pode apelar a outros motivos), do mesmo modo que pode existir força maior e subsistirem deveres cujo cumprimento se exige.

Não se sufragam já as teses segundo as quais o devedor, ao contrair uma obrigação, assume uma «garantia imanente» correspondente ao interesse do credor no cumprimento. Tais orientações, evidenciam imediatas dificuldades, patentes na situação decidenda, quanto ao sentido da vontade juridicamente vinculante e mais ferem o princípio da culpa em que assenta o sistema português de responsabilidade civil.

Reconheça-se, como já adiantado, que o Código Civil português, por influência de Antunes Varela, conservou uma distinção clara entre impossibilidade e inexigibilidade, acolhendo um conceito de impossibilidade absoluta, mesmo em relação à impossibilidade subjetiva (cf. art. 791.º). Segundo o Autor «a lei considera que o devedor, ao contrair a obrigação, não só se compromete a preparar em tempo oportuno os meios necessários ao cumprimento e a afastar os obstáculos a este cumprimento (diligência preparatória e diligência preventiva), como assume o risco de a prestação se lhe tornar impossível (subjectivamente) de cumprir, desde que não haja impossibilidade objectiva da prestação (…)»[17].

Certas concepções, como a teoria da adstrição do esforço não colhem na ordem jurídica portuguesa.

Aqui se convoca bem assim António Menezes Cordeiro, que notou a proximidade entre boa-fé e culpa, considerando que as mesmas poderão concorrer no caso concreto. Nas palavras do Autor: «No que toca ao cumprimento das obrigações, a boa fé é chamada a precisar e complementar a fonte negocial respectiva, actuando, depois, no conteúdo, seja para precisar a prestação, seja para lhe acrescentar os deveres acessórios. Dado este manancial, nenhuma dificuldade haveria em imputar-lhe ainda a determinação do esforço exigido aos intervenientes. Há todo o interesse, no entanto, num prisma de aperfeiçoamento da linguagem jurídica, em manter designações próprias para temas bem delimitados. Ora, visto que a diligência remete para um padrão jurídico simples e claro, torna-se produtivo conservá-la, com esse conteúdo, distinta da boa fé, que apela a outros dados do sistema. Fica claro, contudo, que diligência e boa fé são noções destinadas, muitas vezes, a agir lado a lado»[18].

 Também António Pinto Monteiro exprimiu a complexidade do problema, ao realçar o seguinte: «devemos confessar pairarem sobre nós dúvidas e dificuldades várias quanto à articulação entre o requisito da culpa e a impossibilidade. Terá o devedor que provar sempre a impossibilidade de cumprimento (caso de força maior, por exemplo), para não ser declarado responsável, não interessando a culpa senão para se avaliar se essa impossibilidade é ou não culposa?»[19]

De todo o modo, parece-nos correcta a leitura de Carneiro da Frada, para quem «grande parte da interpretação dos contratos, (…), é uma interpretação reconstitutiva (...) perante circunstâncias específicas que as partes não previram explicitamente»[20]. Aceita-se pois que o contexto negocial e as condutas supervenientes das partes modelam o conteúdo do contrato, através da sua interpretação[21].

Na situação decidenda, a exposição que antecede serve a demonstração da verificação, como adquirida na decisão recorrida, de uma situação de impossibilidade objectiva não imputável de cumprimento.

Ocorre, assim, como se decidiu, uma impossibilidade objectiva da prestação, por causa legal, prevista no artigo 790º, n.º 1, do CC, impossibilidade essa geradora de extinção da obrigação da sociedade Ré.

E não altera o que vem de dizer-se o deferimento pela DREN do projecto de execução de uma separação física dos sistemas… Na verdade, ponto era que se houvesse aquela concretização como assumida ou decorrente do conteúdo da cedência do espaço pela Ré, na ausência ademais da demonstração de uma vinculação ao projecto deferido mesmo.

A mera cedência de espaço para a instalação de um transformador autónomo na cabine eléctrica no prédio da Ré é legalmente impossível, por não autorizarem as autoridades administrativas competentes o fornecimento autónomo e separado de energia naqueles termos.

Mais se concorda com a sentença recorrida quando afirma que “a sociedade Ré não se obrigou a suportar as despesas de autonomização de um espaço na cabine para utilização autónoma por parte da Autora. De resto, as partes nem sequer terão previsto essa possibilidade, pois que, como decorre de forma cristalina da cláusula 4 do acordo [facto provado sob o ponto 13.], a obrigação assumida pela sociedade Ré era apenas permitir que a Autora continuasse a utilizar o espaço da cabine onde se encontra um dos seus transformadores. Ora, tal como resulta dos factos provados, a Direcção Geral de Energia, para licenciar os postos de transformação, exige a realização de obras que impliquem a existência na prática de duas cabines autonomizadas e de um posto de seccionamento. Como é bom de ver, não foi isto que ficou acordado entre as partes, sendo evidente que as partes não previram sequer a realização de quaisquer obras mas sim a cedência do espaço tal como está à Autora, o que não se mostra, de todo, possível.”

E a conclusão correspondente: A sociedade Ré não pode ser condenada a ceder à Autora dentro da cabine eléctrica que integra as suas instalações, o espaço físico necessário e adequado por forma a permitir que esta nele proceda à instalação de um transformador para seu abastecimento exclusivo, uma vez que tal instalação não pode ser autorizada, portanto, é irrealizável.

A Ré está impossibilitada de cumprir a obrigação como assumida (mera cedência do espaço), uma vez que a Direcção Geral de Energia não permite o uso em simultâneo por entidades diferentes da cabine exigindo, na prática, a realização das obras necessárias à transformação da cabine em três espaços autónomos e independentes.

Não se vislumbra que os apontados factores de correcção da determinação da obrigação da Ré, a boa fé e a interpretação integradora possam ser convocados, desde logo por esbarrarem no necessário respeito pelos limites da vinculação contratual assumida.

Na verdade, não se lobriga que o assentimento pela Ré à execução das modificações exigidas pelas entidades administrativas se compreenda, em termos de exigência da boa fé, na simplicidade da assumida cedência de espaço no interior de um PT já em condições de fornecimento à A. de energia… Não apenas por via da interpretação da vinculação assumida, mas ainda do implicado desequilíbrio da equivalência das prestações emergentes. É que ainda quando não se tenha provado a necessidade de modificação do sistema de redistribuição da energia à Ré, o que resultou já foi a necessidade de alteração sensível e presumidamente cara do PT na parte que importa ao seu próprio “transformador”.

A prestação, no curso do desenvolvimento da relação obrigacional, encontrou um obstáculo invencível, o qual impede o devedor de cumpri-la. Não pode, simplesmente, o devedor cumpri-la, por circunstância não a ele imputável, não lhe sendo exigível que colabore na execução de uma prestação para além daquela a que se obrigou.

Caracterizada, pois, uma impossibilidade objectiva da prestação, por causa legal, prevista no artigo 790º, n.º 1, do CC, impossibilidade essa geradora de extinção da obrigação da sociedade Ré.

O efeito primordial da impossibilidade superveniente das prestações é o da extinção do vínculo obrigacional com a liberação ou a exoneração do devedor, sem ter, este, de arcar com eventuais indenizações por perdas e danos. Há extinção ipso jure. Assim, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações. 12. Ed. Coimbra: Almedina, 2018, p. 1077; ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral. Vol. II. 7. Ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 66; MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações. Segundo volume. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1986, p. 170; MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil. Tomo IX: Direito das Obrigações. 3. Ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 330.

O credor perde o seu direito de exigir a prestação, bem como qualquer indenização em relação aos prejuízos que a impossibilidade lhe cause.

Sem prejuízo ainda de, como nota Menezes Cordeiro, loc cit., estando em causa um contrato bilateral, correr o risco, de maneira repartida, entre os dois contratantes; assim, o devedor torna-se liberado de ter de realizar a prestação, mas também se torna o credor desonerado de ter de realizar a contraprestação (se não houver sido, ele, a própria causa).

Ora, nenhuma das pretensões deduzidas pela Autora corresponde a esta única a que teria direito, com o que se concorda absolutamente com o julgamento de improcedência total da acção, no que tange aos pedidos principal, de cumprimento de obrigação extinta e indemnização e de subsidiário, de execução de prestação indemnizatória substitutiva da principal, por extinção desta.

III - Por tudo o exposto, decide-se:
a) Conceder parcial provimento ao recurso no que importa ao julgamento da matéria de facto, alterando-se em conformidade com o que antecede;
b) Negar provimento à apelação, no mais, mantendo a absolvição da Ré dos pedidos principal e subsidiário deduzidos.

Custas da acção pela Autora e do recurso na proporção de 4/5 pela Autora, sendo-o o restante pela Ré.

Notifique.


Porto, 08 de Fevereiro de 2024
Isabel Peixoto Pereira
António Carneiro da Silva
Ana Luísa Loureiro
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[1] É a essas situações que se reporta a posição de Menezes Cordeiro, convocada sem correspondência á materialidade subjacente, pela natureza hoc sensu vazia do termo de autenticação.
[2] Nessa parte corroborada a impossibilidade técnica pelo depoimento do engenheiro DD, em audiência, concordantemente com os termos dos projectos apresentados e aprovados, assim no que tange à necessidade de um posto de seccionamento de acesso à C...…
[3] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2017, 4.ª edição, p. 152
[4] Processo n.º 417/14.3TBVFR.P1.S1, na dgsi.
[5] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa loureiro salientam também essa evolução, vendo na reforma de 2013 mais do que uma confirmação, ao afirmarem que «[d]o confronto do n.º 1 com o que se dispunha no art. 712.º do CPC — 95/96, resulta que não estamos perante “mais um passo” de aperfeiçoamento do modelo vigente ou praticado nos últimos 80 anos. Esse sistema, esgotado, é agora definitivamente superado por um modelo onde a Relação surge como tribunal de instância — sendo da sua natureza conhecer de facto —, formando uma convicção própria sobre a factualidade que lhe compete conhecer, dispondo, para o efeito, de amplos poderes instrutórios. A Relação não confronta a decisão impugnada com a prova para a validar; o seu escopo não é topar o erro judiciário. Este tribunal deve, sim, apreciar a prova para poder formar a sua convicção sobre a realidade histórica» — in: Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2014, vol. II, pp. 90 e 91.
[6] Maria Adelaide Domingos, “Recursos, um olhar convergente sobre aspectos dissonantes:
questões práticas”, in https://www.oa.pt/upl/%7B5a01c252-3701-453a-8426-8116f7d1cff0%7D.pdf
[7] Recursos (…), cit., p. 298
[8] Recursos (…) cit., p. 285.
[9] Rita Mota Soares, PODERES/DEVERES DA RELAÇÃO NA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO, JULGAR, nº 33, 2017, p. 111 a 121.
[10] Para evitar contradições, optou-se pela correcção/reformulação da totalidade dos factos que se reportam aos segmentos procedentemente postos em causa pela Autora.
[11] Desenvolvidamente, CATARINA MONTEIRO PIRES, Impossibilidade da Prestação, Almedina, 2016.
[12] Sobre o princípio do cumprimento natural pode ver-se PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra, 2008, I, p. 377, NUNO PINTO OLIVEIRA, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra, 2011, pp. 495, ss e CATARINA MONTEIRO PIRES, loc. cit.
[13] INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, Coimbra, 1997, p. 354.
[14] A culpa do devedor ou do agente, BMJ 68, 1957, (pp. 13, ss), p. 19.
[15] Sobre a questão MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Contrato, pp. 191-192 e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, IX, 2016, pp. 379, ss.
[16] FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, p. 129.
[17] ANTUNES VARELA, Das obrigações em Geral, II, p. 71, nota 1.
[18] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no Direito Civil, Coimbra 2001 (reimp. da obra de 1983), p. 1230.
[19] ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Cláusulas limitativas e de exclusão da responsabilidade civil, Almedina, Coimbra, 2003 (reimp. da obra de 1985), p. 329, nota 545.
[20] MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Sobre a interpretação do contrato, em Forjar o Direito, p. 19.
[21] Vide, por todos, MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Sobre a interpretação do contrato, cit., p. 20.