Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0712512
Nº Convencional: JTRP00041016
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS
Nº do Documento: RP200801300712512
Data do Acordão: 01/30/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 511 - FLS 87.
Área Temática: .
Sumário: Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo do crime de maus-tratos previsto no art. 152º do C. Penal não se baste com uma acção isolada (nem tampouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), vem entendendo a generalidade da jurisprudência que existem casos em que uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1.Relatório
No .º juízo criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foram submetidos a julgamento os arguidos B………., C………., D………. e E………., devidamente identificados nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu: condenar o arguido B………., como autor material de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art.152°, n°2 do C. Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, com execução suspensa por quatro anos; condenar cada um dos arguidos C………. e D………., como co-autores materiais de um crime de sequestro, p. e p. pelo art. 158° n°1 do C. Penal, na pena de 260 dias de multa, à taxa diária de 5 €, num total de 1.300 €; absolver os arguidos C………., D………. e E………. da prática dos crimes de ofensa à integridade física simples de que vinham acusados; absolver os arguidos D………. e E………. da prática do outro crime de sequestro de que vinham acusados; e absolver o demandado B………. do pedido hospitalar contra ele formulado.
Inconformados com a sentença, dela interpuseram recurso os arguidos D………. e B………., pugnando pela sua revogação e substituição por outra que os absolva dos crimes por que foram condenados, para o que apresentaram as seguintes conclusões:

(o arguido D……….)

1- Vem o presente recurso interposto de matéria de direito e de matéria de facto.
2- No que respeita à matéria de facto, entende o recorrente que em face da prova produzida não poderia o Tribunal dar como provado que a hora não concretamente determinada, mas coincidente com a designada para a realização da audiência ocorrida no dia 14/03/01, no Tribunal Judicial de V. N. Famalicão, a arguida C………., juntamente e de comum acordo, pelo menos, com o arguido D………., meteram a ofendida dentro de uma baça, tapando de seguida a abertura com duas portas e colocando pedras por cima para que a ofendida dali não conseguisse sair, tendo esta última ali permanecido contra a sua vontade, por tempo indeterminado, mas, pelo menos, durante algumas horas.
3- Não podia o Tribunal, em consequência do depoimento da testemunha F………., ter dado como provado o facto constante do ponto 6 da sentença, pois que a testemunha desvalorizou, referindo expressamente, não ter acreditado na afirmação feita pela ofendida.
4- Os motivos da desvalorização apresentados pela testemunha F………. são válidos e suficientes.
5- A prova produzida em sede de audiência de julgamento, face ao desaparecimento da ofendida G………. e à ausência de testemunhas presenciais, resulta somente de depoimento indirecto.
5- O depoimento da testemunha F………. não se afigura idóneo e suficiente para afastar as dúvidas que assaltaram o Tribunal para os restantes factos que vieram a ser dados como não provados, tal como vem exposto na motivação para os factos dados como não provados.
6- Também quanto ao crime de sequestro do dia 14/03/01, o Tribunal deveria ter aplicado o princípio in dubio pro reo, princípio que foi válido para os restantes factos de que o recorrente vinha acusado e de que foi absolvido.
7- O Tribunal ficou num estado de dúvida quanto à matéria dada como provada, e mesmo assim, optou por condenar os arguidos, o que constitui violação do princípio in dubio pro reo.
8- O Tribunal a quo errou na apreciação da prova.
9- O Tribunal a quo não apresentou as razões de ter conferido credibilidade bastante ao depoimento da testemunha F………. e de ter valorado o depoimento dessa testemunha, não obstante ter a testemunha afirmado expressamente não ter acreditado no que a ofendida lhe contou.
10- Da motivação da decisão recorrida não resulta com clareza e precisão as razões do Tribunal para decidir a condenação dos arguidos por uns factos e absolvição por outros.
11- A fundamentação de facto da decisão recorrida é insuficiente para dar como provados os factos referidos na sentença, que não faz análise crítica, objectiva e suficientemente fundamentada dos meios de prova, havendo contradição entre a fundamentação dos factos provados e não provados, e entre a fundamentação e a decisão.

(o arguido B……….)

1)- Os factos imputados ao arguido no preâmbulo da acusação de fls. 114 a 118 dos autos e depois integralmente dados como provados e levados aos pontos 1,2 e 9 do elenco dos "Factos Provados", configuram meras afirmações abstractas, descontextualizadas genéricas e de todo conclusivas.
2)- Porque, no contexto da acusação, de meras imputações genéricas, introdutórias ou preliminares, se tratavam, o arguido não se pôde defender delas, pelo que outra posição não podia tomar, quanto a essas imputações que não fosse a sua negação categórica, como o fez, curando apenas de se defender das imputações individualizadas e devidamente circunstanciadas no tempo, lugar e modo da sua prática.
3)- Os factos materiais concretos e devidamente circunstanciados no tempo, lugar e modo da sua prática, imputados ao arguido B………., que podiam e, por isso, foram por ele impugnados, resultaram todos não provados.
4)- Só os factos concretos e determinados tem relevância jurídica e são susceptíveis de preencher o tipo legal de crime, o que não acontece seguramente com os factos genéricos considerados como provados e levados aos itens 1, 2 e 9 do elenco fáctico da sentença recorrida.
5)- Ao, assim, não ter entendido, a douta sentença recorrida violou o disposto no n° 1, al. b), do art° 283 e no nº 2, do art° 374, do C.P.Penal, e, maxime, o direito de garantia de defesa consagrada no art° 32, n° 1, da CRP, além de que fez errada interpretação do art° 152, n° 2, do C.Penal, que pressupõe actos concretos e reiterados no tempo.
SEM CONCEDER e apenas subsidiariamente e para a hipótese, que se não concede, de assim se não entender,
6)- A denunciante G………., não deduziu queixa, contra o arguido B………., por outros factos que não os denunciados na sua queixa de fls, 2 dos autos, onde lhe imputou, única e exclusivamente, o facto de, alegadamente dois meses antes de 27/03/2001, a ter arrastado da cama pelos cabelos até junto do tanque e, aí, o seu filho E………. (co-arguido absolvido) lhe ter metido a cabeça no tanque, enquanto ele (marido) a segurava e de que já antes a tinha empurrado contra uma mesinha de cabeceira, onde partiu quatro costelas, nenhuma referência nela tendo feito a eventuais imputações injuriosas.
7)- O Mº Pº não tinha, pois, legitimidade para exercer a acção penal e, assim, para deduzir acusação por outros factos que não os relatados na queixa, por falta desta em relação aos demais factos levados à acusação pública, designadamente quanto aos insultos, e, em qualquer caso, nem sequer poderia pronunciar-se sobre essa outra matéria adicional, dado que não abriu novo inquérito sobre esses novos factos.
8)- Ao ter exorbitado da matéria da denúncia, como o fez, a douta decisão recorrida violou o disposto nos artºs 48°,49°,nº1,52°,nºs 1 e 2,als. a) e b), 143°, n° 2, 262° e 275°, todos do C.P.P. e nos artºs 113°, n° 1, 115° nº 1 e 152° n° 2, do C.Penal.
9)- Antes da entrada em vigor da Lei nº 7/2000, de 27/05, o procedimento criminal relativo ao crime p. e p. pelo n° 2, do art° 152, do CP, dependia de queixa, e como tal, de natureza semi-pública, com as inerentes consequências quanto à extinção do direito de queixa, sua renúncia e perdão, como previsto nos art°s 115° e 116° do C.Penal.
10)- Como não figuram descritos, na acusação e na sentença, no circunstancialismo de tempo, lugar e modo em que terão ocorrido, fica-se sem saber se os mesmos foram praticados antes ou depois do inicio da vigência da referida Lei n° 7/2000.
11)- Na dúvida quanto à data da sua ocorrência não devem tais factos, por aplicação do principio "in dúbio pro reo" e do principio da não retroactividade da lei penal consagrado no art° 2 do CP, serem considerados devendo ser eliminados e tidos por não escritos.

Os recursos foram admitidos.
Na sua resposta, o MºPº defendeu a manutenção da sentença recorrida e consequente improcedência dos recursos, concluindo como segue:

1. O presente recurso ataca de forma frontal e directa um dos princípios basilares do nosso Código do Processo Penal: o princípio da livre apreciação da prova produzida.
2. É certo que ao julgador se impõe que, nos seus juízos, proceda com bom senso e sentido de responsabilidade, pois o livre convencimento não se confunde com o julgamento por convicção íntima, uma vez que o livre convencimento lógico e motivado é o único aceite pelo moderno processo penal.
3. Acontece, que entendemos que o juiz baseou e fundamentou a sua convicção nas provas que se produziram em audiência de julgamento, deforma lógica e de acordo com as regras da experiência.
4. Assim, o julgador da análise das declarações dos arguidos e depoimentos das testemunhas e da ofendida, da observação dos seus comportamentos, da sua postura, e da conjugação destes elementos com as regras da experiência e da lógica, e da análise dos elementos clínicos juntos aos autos, chegou à conclusão que uma versão merecia mais credibilidade que a outra e que por essa razão se aproximava mais da verdade dos factos.
5. Quanto à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada: a alínea a), do n.º2, do artigo 410° do Código do Processo Penal refere-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não a insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito da livre apreciação da prova.
6. Ora, no caso sob apreciação, o recorrente D………. alega existir insuficiência da prova para a matéria de facto provada e não a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito.
7. Tendo a Meritíssima Juiz dado como provado que a conduta do arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivo do crime de sequestro, e que o mesmo o praticou, nos precisos termos em que o arguido veio a ser condenado, não vemos como é que a sentença aqui recorrida pode enfermar do vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito;
8. Da leitura da sentença, verifica-se que no espírito do julgador não ficou qualquer dúvida razoável que permitisse absolver os arguidos recorrentes;
9. Tendo em conta a própria natureza do crime em causa - crime de maus tratos - em que existe uma actuação reiterada por parte do arguido B………., alias, dando-se como provado na sentença que as ofensas físicas e verbais e a humilhação da ofendida G………. era diária e em diversas ocasiões do dia, na residência de ambos- não se vê de que outra forma poderia a sentença especificar em termos de tempo e modo (já que quanto ao lugar, era sempre na residência do casal), sendo as agressões físicas e verbais diárias; e, quanto ao modo, concretiza a sentença que o arguido B………. desferiu na G………. - em tais circunstâncias de tempo e lugar -, pelo menos, murros e pontapés, atingindo-­a em diversas partes do corpo, desse modo lhe causando dores e pisaduras, e a cada passo, se via a ofendida deitada na cama a descansar, o arguido B………. agarrava-a pelos cabelos e puxando-os arrastava-a para a banheira e punha-lhe água fria a correr em cima da cabeça;
10. A sentença proferida pelo Tribunal a quo respeitou as exigências previstas no art. 374°, n.º2 e 3, não enfermando, por isso, de qualquer nulidade;
11. Por último, e atento tudo o que foi exposto, não violou a sentença recorrida o art. 283°, n,º1, b), o 374°, nº2, do CPP, o direito de garantia de defesa consagrado no art. 32°, n.º1, da CRP, nem fez errada interpretação do art. 152°, n.º2, do C.P.; nem violou o disposto no art. 48°, 49°, n.º1, 52°, n.ºs 1 e 2, al. a) e b), 143°, n.º2, 262° e 275°, todos do CPP, nem os art. 113°, 1, 115°, 1, e 152° , 2, do C.P., nem qualquer outra disposição legal.
Nesta Relação, o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos, subscrevendo inteiramente a resposta do MºPº na 1ª instância e manifestando-se no sentido da inexistência na decisão recorrida de qualquer dos vícios de facto ou de direito que lhe foram assacados pelos recorrentes, considerando, ademais, justas, adequadas e proporcionais as penas fixadas.
Cumprido que foi o disposto no nº 2 do art. 417º C.P.P., apenas foi apresentada resposta pelo recorrente B………., na qual reiterou, no essencial, o que já havia alegado no recurso por ele apresentado.
Colhidos os vistos, procedeu-se à audiência de julgamento, com observância do legal formalismo.
Cumpre decidir.

2.Fundamentação
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos:

1- Desde há mais de vinte anos e até 18 de Março de 2001, altura em que saiu de casa a G………., então sua mulher, que o arguido B………. diariamente, a diversas ocasiões do dia, na residência de ambos, sita no ………., em ………., na área desta comarca, sem qualquer motivo, dirigiu-se àquela chamando-lhe "filha da puta", "bêbada" e "vaca";
2- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e frequência, sem qualquer motivo, o arguido B………. desferiu na G………., pelo menos, murros e pontapés, atingindo-a em diversas partes do corpo, desse modo lhe causando dores e pisaduras, e a cada passo, se via a ofendida deitada na cama a descansar, o arguido B………. agarrava-a pelos cabelos e puxando-os arrastava-a para a banheira e punha-lhe água fria a correr em cima da cabeça;
3- Os arguidos C………., D………. e E………. são filhos do arguido B………. e da ofendida G……….;
4- No dia 14 de Março de 2001, de tarde, pelas 14.00h., nas instalações do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, sitas no ………., estava designada uma audiência de julgamento, no âmbito da Acção Ordinária n°…./00, do .° Juízo Cível deste Tribunal, encontrando-se presente no local, entre outras pessoas que aguardavam tal audiência, o arguido B……….;
5- A ofendida G………., tendo sido também notificada para ali comparecer como testemunha, não compareceu;
6- Nesse mesmo dia, de tarde, a hora não concretamente determinada, mas coincidente com a designada para a realização da audiência supra referida, a arguida C………., juntamente e de comum acordo, pelo menos, com o arguido D………., meteram a ofendida dentro de uma baça, tapando de seguida a abertura com duas portas e colocando pedras por cima para que a ofendida dali não conseguisse sair, tendo esta última ali permanecido contra a sua vontade, por tempo indeterminado, mas durante, pelo menos, algumas horas;
7- Em 21-3-2001 a ofendida G………. apresentava múltiplos hematomas espalhados pelo corpo, designadamente, no malar direito e esquerdo, na região dorsal do tórax, no braço direito, na face lateral da anca esquerda e direita e no joelho esquerdo, e escoriações no antebraço e cotovelo esquerdos e edema no joelho esquerdo, lesões essas que lhe determinaram directa e necessariamente 15 dias de doença, l0 dos quais com afectação da capacidade para o trabalho;
8- No dia 18 de Março de 2001, cerca das 20.00h. a ofendida foi transportada de ambulância ao serviço de urgência do Hospital de ………., em Vila Nova de Famalicão;
9- Com a conduta descrita, o arguido B………. actuou de forma deliberada e com perfeita consciência de que, reiteradamente, proferiu as expressões referidas, bem sabendo que ofendiam a honra da ofendida, que a estava o molestar fisicamente e com intenção de lhe provocar as lesões que lhe causou, apesar de saber que tal era proibido por lei;
10- Os arguidos C………. e D………. actuaram de forma deliberada e com perfeita consciência de que, em conjugação de esforços e de comum acordo, molestavam fisicamente a ofendida e com intenção de a privar da sua liberdade;
11- O arguido B………. e a ofendida tem 9 filhos em comum;
12- A ofendida era, à data dos factos, alcoólica;
13- Chegou a ser encontrada deitada, no meio de um campo de milho, em estado de prostração total e de sonolência pesada, parecendo estar morta;
14- A ofendida, para tratamento e desintoxicação da dependência do álcool, esteve internada na "H……….", de ……….-Braga, no período de 12-9-94 o 29-9-94;
15- Os arguidos C………. e D………. apresentaram queixa nos Serviços do Mº.Po. deste Tribunal contra os irmãos I………. e J………., por factos alegadamente ocorridos no dia 14-3-01, cerca dos 19.00h;
16- A ofendida, depois do seu divórcio do arguido B………. regressou a casa;
17- A ofendida desapareceu em Dezembro de 2001, desconhecendo-se o seu paradeiro ou o que lhe possa ter sucedido;
18- Os arguidos não têm antecedentes criminais;
19- O arguido B………. está divorciado, vive em casa própria e exerce a actividade de agricultor;
20- Tem como habilitações literárias a 3° classe;
21- A arguida C………. é casada e tem dois filhos menores a seu cargo, vivendo em casa arrendada, pagando de renda 150 euros mensais;
22- Exerce a actividade de empregada fabril, auferindo 388 euros mensais;
23- Tem como habilitações literárias o 5° ano de escolaridade;
24- O arguido D………. é casado e tem um filho menor o seu cargo, vivendo em casa arrendada, pagando de renda cerca de 225 euros mensais;
25- Exerce a actividade de agricultor, auferindo cerca de 443 euros mensais;
26- Tem como habilitações literárias a 4ª classe;
27- O arguido E………. é casado e tem dois filhos menores o seu cargo, vivendo em casa pertença dos sogros;
28- Exerce a actividade de agricultor, auferindo cerca de 443 euros mensais;
29- Tem como habilitações literárias a 3ª classe;
30- Os arguidos são tidos pelas pessoas das suas relações como boas pessoas, calmos, trabalhadores e bem comportados;
31- Na sequência dos factos referidos em 8. a ofendida recebeu tratamento no serviço de urgência do Hospital de ………., de Vila Nova de Famalicão, tendo os encargos resultantes do tratamento da mesma importado em 66,77 euros.

Quanto à matéria de facto não provada, consignaram-se como não provados os seguintes factos:

- Não provado que numa das vezes, em dia que não se logrou determinar de Agosto de 2000, à noite, no quarto de dormir, o arguido B………. tenha empurrado a ofendida contra uma mesa de cabeceira, desse modo lhe causando fractura não aguda das costelas 7°, 8°, 9° e 10° do hemitorax direito e 7°, 8°, 9° e 10° do hemitorax esquerdo;
- Não provado que apesar das dores que a ofendida sentia devido a essas lesões e de a mesma lhe pedir que a levasse ao hospital, o arguido se tenha recusado levá-la e para evitar que a mesma saísse de casa, rasgou-lhe e queimou­-lhe roupas que aquela então tinha, acabando a ofendida por não ter qualquer assistência médica a tais lesões;
- Não provado que numa das vezes, em data não concretamente determinada de Janeiro de 2001, o arguido B………. tenha arrastado a ofendida, puxando-lhe os cabelos, até ao tanque e aí enquanto a segurava, a pedido daquele, o arguido E………., lhe tenha posto a cabeça dentro de água;
- Não provado que aquando dos factos referidos em 4. e 5. o arguido B………., por vários vezes, perante outras pessoas, referindo-se à ofendida, tenha dito "ela está presa na baça, hoje não vem aqui" e "eu vou pô-lo como tola";
- Não provado que os factos referidos em 6. tenham ocorrido não depois das 18.30h.;
- Não provado que aquando dos factos referidos em 6., instigados pelo arguido B………. e de comum acordo com aquele, a arguida C………. tenha desferido vários murros em várias partes do corpo da ofendida e que juntamente com o arguido D………. lhe tenham dado várias bofetadas;
- Não provado que a ofendida tenha permanecido dentro da baça cerca de quatro horas;
- Não provado que as lesões referidas em 7. tenham sido causadas na ofendida pelos arguidos C………. e D……….;
- Não provado que no dia 18 de Março de 2001, cerca das 18.00h., quando a ofendida pretendia ir ao hospital com a filha K………., o arguido D………. a tenha agarrado e colocado no quarto de dormir do próprio, fechando e trancando a porta desse quarto, e de comum acordo e juntamente com os arguidos B………. e E………., a tenha mantido ali fechada, desse modo impedindo que a mesma, contra a sua vontade, dali saísse, sendo que era propósito daqueles, como o fora até então, evitar que a ofendida se deslocasse ao hospital;
- Não provado que perante isso, a K………. se tenha deslocado ao Posto da G.N.R. de ………. pedindo a intervenção daquela corporação, tendo um dos seus elementos telefonado para a residência da ofendida a ordenar que os arguidos facultassem a saída da ofendida de modo a ser transportada numa ambulância que se ia deslocar à residência, ordem que aqueles acataram, tendo a ofendida saído de casa cerca das 19.00h.;
- Não provado que o arguido B………. tenha actuado com intenção de privar a ofendida da sua liberdade;
- Não provado que o arguido E………. tenha actuado também pela forma referida supra em 10.;
- Não provado que os arguidos C………., D………. e E………. tenham actuado com intenção de provocar e tenham causado à ofendida lesões;
- Não provada, da alegada e com relevo, nenhuma outra matéria factual, designadamente, a demais alegada no pedido hospitalar de fls.142 e nas contestações de fls.280 e 282 e ss.. que aqui, por brevidade, se dá por reproduzida.

A convicção do tribunal foi explicada nos seguintes termos:

Para formar a sua convicção relativamente aos factos provados baseou-se o tribunal, para além do correlacionamento de toda a prova produzida: - no teor das declarações dos arguidos, na única parte em que mereceram credibilidade, esclarecendo o tribunal quanto a alguns aspectos das suas respectivas e actuais situações pessoais; - no teor das declarações da ofendida G………., constantes de fls.71 e s., as quais foram lidas em audiência de julgamento e face à verificada impossibilidade duradoira de comparência da mesma, por desaparecimento desde Dezembro de 2001, sendo que as mesmas foram valoradas em conjugação com os depoimentos das demais testemunhas inquiridas, que também ouviram os seus relatos, ao tempo, sobre aquilo que lhe era feito; - no teor dos depoimentos das restantes testemunhas inquiridas, com destaque para os filhos de arguido e ofendida, K………., J………., I………. - que descreveram, de forma que o tribunal considerou no essencial credível, o que ao longo dos anos foram assistindo, do pai a tratar mal a mãe, incluindo referências a ter a mãe sido metida no banheira, no guarda-vestidos, na "corte" do porco, descrevendo o ambiente que se vivia em casa dos pais e a forma como habitualmente o pai se comportava em relação à mãe, os insultos que lhe dirigia, a forma como a tratava e as marcas físicas que viam na mãe -, e F………. (sendo que este último, não obstante ter sido indicado pela defesa, acabou por referir que a mãe também a ele contou que o D………. e a C………. a tinham posto e fechado na baça, embora dissesse que em tal não acreditou); e, nas testemunhas de defesa inquiridas, que atestaram o habitual bom comportamento dos arguidos; e, no teor dos documentos e exame juntos aos autos, designadamente de fls.10, 14 a 23, 41, 109 a 111, 143, 207 a 209, 286 a 289, 290 e s., 344, 345, 395 a 397 e nos c.r.c..
Tais depoimentos, conjugados entre si e com o teor dos documentos juntos, analisados criticamente e em conformidade com as regras de experiência comum e do "normal" acontecer, levaram o tribunal a convencer-se quanto aos factos que apurou.
Relativamente aos factos não provados teve o tribunal em consideração a ausência de prova segura nesse sentido produzida em audiência, não que não fosse no essencial credível (pelo menos a parte relativa aos demais factos que aos arguidos vinham imputados), face a tudo o que foi sendo dito e circunstanciado, mas porque havendo contradições, imprecisões e algumas referências vagas, não suportadas por prova segura ou confirmadas por descrições coincidentes, na subsistência de dúvidas e na falta de segurança absoluta quanto à sua verificação, entendeu o tribunal dar aplicação ao princípio in dubio pro reo.

3. O Direito
Tendo sido documentada a prova produzida em audiência de julgamento, os poderes de cognição deste tribunal abrangem a matéria de facto e de direito (art.º 428.º do C.P.P.).
No entanto, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso dos autos, face às conclusões das motivações dos recursos, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
a) relativamente ao recurso interposto pelo arguido D……….:
- erro de julgamento quanto ao facto dado como provado no ponto 6;
- violação do princípio in dubio pro reo;
- falta de exame crítico das provas;
- contradição entre a fundamentação dos factos provados e não provados e entre a fundamentação e a decisão;
b) relativamente ao recurso interposto pelo arguido B……….:
- falta de preenchimento dos elementos típicos do crime e violação dos direitos de defesa do arguido;
- falta de legitimidade do MºPº para promover o promover o procedimento criminal por factos que não foram objecto de denúncia pela ofendida;
- violação dos princípios in dubio pro reo e da não retroactividade na aplicação da lei.

A) - Começaremos por apreciar as questões suscitadas pelo recorrente D………. e acima enunciadas.
3.1. Entende este recorrente que foi cometido erro de julgamento quanto ao facto dado como provado no ponto 6, na medida em que a prova produzida em audiência, e face ao desaparecimento da ofendida, assenta unicamente em depoimento indirecto, não sendo suficiente o depoimento da testemunha F………. para afastar as dúvidas que assaltaram o tribunal quanto aos demais factos que foram considerados como não provados, tendo em conta que esta testemunha indicou motivos válidos e suficientes para desvalorizar a afirmação que lhe foi feita pela ofendida.

Vamos, então, proceder à análise da prova produzida com o objectivo de determinarmos se ela consente a convicção formada pelo tribunal a quo, sendo certo que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si”.[3]
De facto, “o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas”. [4]
Assim, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1ª instância tem suporte na regra da livre apreciação da prova e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se.
De facto, na apreciação da prova e partindo das regras de experiência[5], o tribunal é livre de formar a sua convicção, de acordo com a regra consagrada no art. 127º do C.P.P.
Esta regra, para além de estar vinculada às regras da experiência comum, comporta, ainda, algumas excepções (cfr. arts. 84º, 169º, 163º e 344º do C.P.P.), integradas no princípio da prova legal ou tarifada, e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente ao princípio da legalidade da prova (cfr. arts. 32º nº 8 da C.R.P., 125º e 126º do C.P.P.) e ao princípio “in dubio pro reo”.
Dentro destes limites, o juiz que em primeira instância julga goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção[6] e apreciação da prova, o qual “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”[7].
É na audiência de julgamento que este princípio assume especial relevância, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355º do C.P.P., pois é aí o local de eleição onde existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova[8].
Quanto às provas admissíveis na nossa legislação processual penal, vale a regra estabelecida no art. 125º: são admissíveis todos os meios de prova que não forem proibidos por lei. O regime de proibições de prova, por seu turno, faz uma distinção entre proibições de produção e proibições de valoração de prova.
A interpretação e a aplicação dos preceitos atinentes terão de partir da compreensão das proibições de prova como instrumentos de garantia e tutela de valores ou bens jurídicos distintos – e contrapostos – dos representados pela procura da verdade e pela perseguição penal.
No que respeita às normas processuais penais que prescrevem a proibição do testemunho-de-ouvir-dizer estamos claramente no domínio das proibições de valoração de prova.
A credibilidade de um depoimento afere-se pela sua razão de ciência. A fonte de conhecimento dos factos é um elemento da maior relevância para a apreciação da força probatória do depoimento.
Em regra, a testemunha depõe sobre factos, pertinentes ao objecto da prova e dos quais possua conhecimento directo (cfr. art. 128º)[9]. O que bem se compreende dadas as exigências próprias dos princípios de imediação, de igualdade de armas e da regra da cross-examination.
Aliás, são estas mesmas exigências que justificam que, também em regra, o depoimento indirecto não possa ser eficaz como meio de prova[10], a menos que se verifiquem determinados condicionalismos. Desde logo, terá de resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, sendo que as vozes ou rumores públicos se encontram expressamente afastados pelo nº 1 do art. 130º do C. Penal. Em segundo lugar, é conditio sine qua non para que possa ser valorado, que o juiz chame a depor a pessoa a quem a testemunha ouviu relatar os factos que transmite ao tribunal. No entanto, e procurando algum equilíbrio entre os princípios acima aludidos, prevê a lei uma excepção a esta regra, decorrente da impossibilidade de ouvir as pessoas indicadas[11]. Impossibilidade essa que terá de se enquadrar numa das hipóteses taxativamente enumeradas: a morte, a anomalia psíquica ou a impossibilidade de encontrar aquelas pessoas[12]. É o que resulta da disciplina estabelecida no nº 1 do art. 129º do C. Penal que, assim, contém uma proibição não absoluta do depoimento testemunhal indirecto.

Isto dito, vejamos o que se retira da prova produzida em audiência quanto ao episódio do dia 14/3/01:
- do depoimento constante de fls. 71, prestado pela ofendida, perante o MºPº e durante o inquérito, e que foi lido durante a audiência de julgamento, ao abrigo do disposto no nº 4 do art. 356º do C.P.P., dada a impossibilidade da sua comparência em virtude de se encontrar desaparecida desde Dezembro de 2001: “No que se refere aos factos ocorridos no dia 14 de Março confirma que os seus filhos C………. e D………. a fecharam dentro de uma baça e que isso terá sido por volta do meio da tarde. Que a baça em causa serve para depositar uvas e milho, nela cabem oito a dez pessoas e que tem mais ou menos a altura da depoente. Que após aqueles seus filhos a terem ali colocado taparam a baça com duas portas e por cima das mesmas pedras para que a depoente não pudesse sair. Pensa que seria esse dia que teria, como testemunha, ir a Tribunal um litígio em que é interveniente L………., mas que não chegou a saber a data em concreto por seus filhos já referidos e seu marido não lhe terem dito ao certo qual seria o dia de audiência. Pensa que o seu marido terá também intervido nesses factos pois o mesmo nessa altura frequentemente instigava aqueles filhos atirassem a depoente para a baça, digo, para o tanque.”;
- das declarações do arguido B………. (que vinha acusado de ter instigado os seus filhos C………. e D………. e acordado com eles meterem a ofendida dentro da baça, factos que não foram dados como provados): que negou ter praticado tais factos ou ter visto fecharem a ofendida naquele local; que nesse dia esteve no tribunal, encontrando-se a ofendida em casa, “na cama”, quando saiu “a volta das dez”, mas quando ali regressou, por volta das cinco e tal, ela não estava em casa, não a tendo visto mais nesse dia, confirmando que ela também devia ter comparecido naquele dia no tribunal, mas “ela não se apresentou”;
- das declarações da arguida C……….: que negou ter ela, o seu pai ou algum dos seus irmãos, alguma vez fechado a ofendida em algum sítio, nomeadamente numa baça; que no dia 14 de Março apareceram lá os seus irmãos e nessa altura não sabia onde estava a sua mãe, “a minha mãe andava sempre desaparecida (…) muitas das vezes não dormia em casa (…) dormia nos campos”; que naquele dia a ofendida não apareceu no tribunal “porque a minha mãe não estava em condições (…) não sabia da minha mãe”;
- das declarações do arguido/recorrente D………., que negou ter alguma vez fechado a ofendida em algum lugar; que no dia 14 de Março, quando dois dos seus irmãos apareceram lá em casa e começaram a bater na sua irmã, a ofendida não estava em casa, “não sabia onde ela estava”, que nesse dia não a chegou a ver, “acho que até nem ficou em casa”;
- das declarações do arguido E……….: apenas que afirmou nunca ter visto o seu pai ou os seus irmãos fecharem a ofendida;
- do depoimento da testemunha K………. (filha da ofendida e do arguido B………. e irmã dos demais arguidos): que “a minha mãe tinha um julgamento aqui no tribunal por causa de um caminho de uma herança que ela recebeu. E então ela ia dizer a verdade, porque esse caminho ia haver aí falcatrua. E então a minha mãe dizia: «Eu vou ao tribunal, vou dizer a verdade que a herança era minha.» E o meu pai ia fazer falcatrua com o que vendeu… com o que comprou esse terreno.(…) a minha mãe estava para vir e era nesse dia que ela ia vir ao tribunal. O meu pai disse aos meus irmãos para fechá-la dentro de uma baça…”; soube disso “porque a minha tia[ L………. ] ia ao tribunal também nesse dia, e uma prima minha” [ a testemunha M………. ]; foi esta quem lhe contou “que havia um julgamento que a minha mãe tinha que estar presente nesse julgamento e nesse dia que estava dentro da baça”; que a M………. sabia disso “porque estava no tribunal”; que foi lá a casa “no domingo à noite e ela contou-me: «Olha os teus irmãos como me puseram. Foi o teu pai que mandou dentro de uma baça (…) O E………. e o D………. e a C………. «meteram-me dentro de uma baça» (…) e depois que puseram umas tábuas por cima e uns blocos para ela não sair (…) a minha mãe estava a contar… a minha mãe contou-me a história verdadeira (…) a minha mãe nunca foi de inventar. A minha mãe as coisas que dizia era realidade. Ela nunca foi de inventar”; que conhece a tal baça, “está numa loja que é alta (…) ainda era funda (…) a minha mãe lá dentro ficava para aí a meio da baça (…) era muito mais alta que a minha mãe”; que foi a ofendida quem lhe disse que foram três dos seus irmãos que a meteram na baça, a mando do pai e para não ir ao tribunal;
- do depoimento da testemunha M……….: que afirmou saber de uma altura em que meteram a ofendida dentro de uma baça; que “eu nesse dia que foi o julgamento da minha mãe, estávamos à espera da minha tia (…) no tribunal (…) chamaram o nome dela e eu virei-me para a minha mãe e disse assim: «A tia não vem?», diz ela. «Não sei, ela disse que vinha.» Prontos, nós espera, espera, ela não veio e eu ia assim a passar e eu ouvi assim a dizer: «Não, ela hoje aqui não vem, ela onde está, está bem segura.» (…); a quem ouviu essas palavras “foi aqui o meu tio (…) foi de tarde”; percebeu o que se tinha passado “porque depois o julgamento foi adiado e a minha tia depois no outro julgamento, ela já apareceu e nós estivemos com ela e ela disse: «Sabes porque é que eu não fui?» disse assim: «porque é que você então não foi tia, não apareceu?», diz ela: «Não fui porque eles, os meus filhos e o meu homem prenderam-me dentro de uma baça», e eu, eu disse «Prenderam-na dentro da baça e você então…», diz ela: «eu fiz tudo ali dentro da baça e tudo. Eu não, queria sair e não podia. E olha, estou, estava toda pisada.» (…) disse que foi o D………., foi o E………. e a C1………. [diminutivo por que é tratada a arguida C………. ] e o marido.”; que não conhece a baça, mas “eu sei que existia lá baças, agora…Sei que eram umas baças de madeira (…) grandes, ainda eram bastantes grandes (…) fecharam com umas tábuas e puseram-lhes uns tijolos em cima (…) foi a minha tia que me disse (…) porque eu disse: «Como é que você, como é que eles a conseguiram prender lá dentro? Você não conseguia fugir?», «Ai não, porque eles puseram-me pedras e blocos, tudo em cima e, e eu não conseguia sair»; que o julgamento a que a ofendida faltou opunha a sua mãe ao senhor que comprou o terreno ao arguido B………. e, enquanto este era testemunha desse senhor, a ofendida era testemunha da mãe da depoente;
- do depoimento da testemunha N……….: que referiu ter ouvido falar que a ofendida tinha estado presa dentro de uma baça: “isso ouvi muita vez, isso disse ela muita vez, que tinha sido presa dentro da baça (…) contou que eles a meteram dentro da…(…) disse que foram os filhos e… acho, ela deitava a culpa nos filhos, nos filhos, que é que a meteram dentro da baça (…) também falaria no B………. (…) mais apertava, apertava mais os filhos (…) dentro da baça, ela dizia que a chafurdaram lá dentro da baça, agora se é verdade ou não, também não sei”;
- do depoimento da testemunha N……….: que referiu que a ofendida “contou-me que os filhos (…) que a meteram dentro de uma baça (…) que a taparam com umas madeiras por cima e com uma pedra (…) com pedras, várias pedras; que ela disse que quem a meteu lá dentro da baça foram “o senhor E………. e a senhora C2………. … como é que, nós chamamos pela C1………., mas a senhora C………. (…) se referiu mais eu não me lembro, que são tantos filhos a fazer mal à senhora que eu…”;
- do depoimento da testemunha J………. ( filho da ofendida e do arguido B………. e irmão dos demais arguidos ): que referiu que o episódio da baça “foi quando se vendeu, foi para vender a quinta de O………. (…) aquilo quando foi para vender a quinta de O………. não queria que ela estivesse presente. Meteram-na dentro da baça (…) eles iam falar por causa de vender a quinta e não a quiseram presente e puseram as portas em cima que… (…) da baça, pelo menos duas vezes, sou sabedor disso (…) eu na de O………., tenho a certeza que ela foi presa na baça (…) depois outra também foi lá por causa de não estar lá o pessoal a fazer vergonhas (…) e essa aqui do tribunal, acho que há uma… não tenho a certeza (…) sei que ela esteve lá dentro, mas não vi tão pouco quem foi (…) sei que ela esteve lá, mas quem foi não sei, não sei”;
- do depoimento da testemunha I………. ( filho da ofendida e do arguido B………. e irmão dos demais arguidos ): que referiu “acerca dessa situação [da baça] é que o meu pai, portanto, não queria que ela assistisse portanto a um julgamento. Ia dizer a verdade e eles meteram-na dentro… (…) A história da baça é assim: a minha mãe pronto disse-me que a minha irmã que eles não queriam que a minha mãe assistisse, portanto, ao julgamento, por causa do caminho”; que pensa que a sua mãe ia como testemunha pelo lado da prima M……….; que havia lá em casa baças dentro das quais a ofendida pudesse ser colocada; que a ofendida contou-lhe directamente que “taparam com tábuas e puseram pedras em cima” da baça; que a ofendida “falou-me que foi, portanto, foi a C……….: Agora se foi o E………. ou o D………. aí já não sei. Sei que a C………. marcou-me (…) referiu de um dos meus irmãos, agora não sei se foi o D………. ou se foi o…”;
- do depoimento da testemunha P……….: que referiu saber que em casa do arguido B………. existem baças, porque ele fabrica vinho, e que se trata de baças grandes, com mais ou menos metro e meio;
- do depoimento de F………. ( filho da ofendida e do arguido B………. e irmão dos demais arguidos ): que referiu saber que a ofendida se queixou de ter sido fechada numa baça; que não sabe quem a fechou lá, “sinceramente, não sei. Ouvi dizer, mas não… (…) A minha mãe acusou… acusou… quer dizer, falou sobre isso (…) que eles a prendiam…? (…) que era o D………. e a C………. (…) ela disse-me isso”, mas “não, não acreditei (…) porque isso é impossível. Isso… acho que os meus irmãos não eram capazes de fazer isso (…) ela disse-me, mas eu não acredito nisso (…) ela disse-me isso, mas isso para mim… eu acho que isso era impossível”; que não se recorda se ela estava sóbria quando ela lhe disse isso, mas “era raro a minha mãe estar sóbria”.
Resulta à evidência deste conjunto de declarações e depoimentos que a convicção do tribunal relativamente ao episódio em referência se mostra suficientemente alicerçada. Em primeiro lugar, nas declarações da própria ofendida que era quem, dadas as circunstâncias em que os factos foram praticados (na intimidade do lar, longe das vistas de terceiros), melhor os podia esclarecer. Em segundo lugar, nos depoimentos que dão conta de relatos feitos pela ofendida em momentos temporalmente próximos da data a que se reportam os factos, indicando os seus autores e as circunstâncias em que os mesmos foram praticados. É certo que no essencial se trata de depoimentos indirectos, pois, para além dos arguidos, que podiam esclarecer os factos mas negaram a sua prática, as demais testemunhas não os presenciaram e deles só tiveram conhecimento através daquilo que ouviram da boca da ofendida. Trata-se, no entanto, de meio de prova válido, tendo em conta o disposto no nº 1 do art. 129º do C.P.P. e o facto de não ser possível inquirir (directamente) a pessoa, determinada, a quem ouviram dizer, já que a ofendida sumiu, em circunstâncias misteriosas, há vários anos. A versão desta, no entanto, foi transposta para as declarações que prestou durante o inquérito antes de desaparecer e às quais já acima aludimos. No caso, é inequívoco que a valoração dos depoimentos indirectos é permitida por lei e o seu teor, conjugado com o das referidas declarações da ofendida, sustenta a plausibilidade da convicção formada pelo tribunal relativamente aos factos constantes do ponto 6. (e, igualmente, do ponto 10.) da matéria de facto provada, depois de optar por uma das versões em confronto como lho permite a livre apreciação da prova e sem que se detecte nesse processo qualquer afrontamento às regras da experiência comum. Irrelevante para o efeito é a convicção manifestada por uma das testemunhas (o F………., cujo depoimento, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, e como o evidencia a motivação da decisão de facto, não foi o único que foi levado em conta pelo tribunal a quo) acerca da veracidade do que ouviu dizer à ofendida, pois o motivo que apresentou para essa descrença (o alcoolismo da ofendida, apesar de não ter precisado inequivocamente se, na altura em que a ouviu, ela se encontrava ou não alcoolizada) não é suficiente para pôr irremediavelmente em causa a credibilidade que o tribunal conferiu quer às declarações dela, quer às das demais testemunhas que a ouviram relatar tais factos em ocasiões distintas, relatos esses caracterizados por uma descrição consistente, coerente e reforçada por um facto objectivo indesmentível – a falta de comparência da ofendida, em circunstâncias temporais coincidentes com aquelas em que afirmou ter sido aprisionada na baça, a uma audiência de julgamento no tribunal, para a qual se encontrava convocada e relativamente à qual já havia manifestado a intenção de comparecer. Para além de que foram apontadas motivos lógicos que terão estado subjacentes a tal “aprisionamento”: o propósito de impedir a ofendida de ir testemunhar, naquela audiência, em sentido contrário aos interesses dos arguidos, mormente àquele que o arguido B………. defendia na correspondente acção judicial.
Inexiste, pois, fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto.

3.2. Insurge-se o recorrente relativamente à não aplicação do princípio in dubio pro reo quanto aos factos integradores do crime de sequestro, afirmando que o tribunal a quo, apesar de ter ficado num estado de dúvida quanto à matéria de facto dada como provada, mesmo assim, optou por condená-lo a ele e à co-arguida C………. .

O princípio “in dubio pro reo” é um dos princípios estruturantes do processo penal, ao qual a regra da livre apreciação da prova está sujeita.
O art. 32º da CRP inclui entre as garantias do processo criminal, no seu nº 2, a de que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (…)”.
O princípio da presunção de inocência, ali consagrado, “integra uma norma directamente vinculante e constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos (art. 18º, nº 1 da CRP)”.[13]
“A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado o esforço processual para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de ónus de prova a seu cargo baseado na prévia presunção da sua culpabilidade. Se a final da produção de prova permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido impõe-se uma sentença absolutória”[14].
O princípio in dubio pro reo é, pois, uma emanação do princípio da presunção de inocência e surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal.
Pressupondo a violação deste princípio um estado de dúvida no espírito do julgador, deve a mesma ser tratada, nesta perspectiva, como erro notório na apreciação da prova.
Assim sendo, para que se possa afirmar a existência de erro notório na apreciação da prova por violação do princípio in dubio pro reo, terá de resultar de forma evidente do texto da sentença recorrida - por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, ou então dos juízos lógicos que possam ser efectuados sobre a factualidade em apreço, ou a prova documental plena que não haja sido atendida - que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
O que está em causa não é uma qualquer dúvida subjectiva, mas sim uma dúvida razoável e insanável, que seja objectivamente perceptível no contexto da decisão proferida, de modo a que seja racionalmente sindicável.

Ora, no texto da sentença não se vislumbra que a Julgadora tenha tido dúvidas (e muito menos dessa natureza) sobre a prova dos factos impugnados pelo recorrente, e que, por via delas, a decisão recorrida contenha qualquer erro notório na apreciação dos factos ou na valoração da prova produzida.
Aliás, a decisão recorrida procedeu à indicação dos meios de prova em que o tribunal baseou a sua convicção, no caso as declarações da ofendida e os depoimentos das testemunhas a quem ela relatou o sucedido (sendo tal relato a sua razão de ciência), esclarecendo sucintamente, de forma perceptível e lógica, as razões pelas quais concluiu ter o recorrente e a co-arguida praticado os factos em questão e que lhes vinham imputados.
Sendo, pois, evidente que a Julgadora conseguiu dirimir a dúvida inicial, após a produção de prova, alicerçando a sua convicção, entre as opções possíveis, naquela que, segundo as regras da vida, se apresentava como a mais lógica e racional, não se verificou qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Em conclusão, dir-se-á que não assiste razão ao recorrente, sendo nesta parte manifesta a improcedência do recurso.
Saliente-se, porém, que, embora o recorrente aponte como um dos fundamentos do recurso a violação do princípio in dubio pro reo, o que se retira da motivação do recurso é a sua discordância quanto ao modo como o tribunal valorou a prova produzida, o que não se confunde com o vício que acaba invocando e tem, antes, a ver com a formação da íntima convicção do julgador. Sucede, porém, que, e como já referimos, não merece censura o modo como e o sentido em que a Julgadora formou a sua convicção, em função das provas que foram produzidas e que lhe cabia apreciar.

3.3. Na óptica do recorrente, o tribunal a quo não apresentou as razões pelas quais conferiu credibilidade bastante ao depoimento da testemunha F………. e o valorou apesar de essa testemunha ter afirmado expressamente não ter acreditado no que a ofendida lhe contou. Considera, ainda, que da motivação não resultam com clareza e precisão as razões pelas quais decidiu a condenação dos arguidos por uns factos e a sua absolvição por outros, taxando-a de insuficiente para dar como provados os factos como tal considerados. Enfim, aponta-lhe a falta de análise crítica, objectiva e suficientemente fundamentada dos meios de prova, arguindo, como resulta da motivação, a nulidade prevista nos arts. 379º nº 1 al. a) e 374º nº 2 do C.P.P.

Como é sabido, a estrutura de uma sentença comporta três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo, que devem obedecer aos requisitos enumerados no art. 374º do C.P.P.
No que diz respeito à fundamentação[15], a mesma deve conter, sob pena de nulidade (cfr. al. a) do nº 1 do art. 379º do C.P.P.), a especificação dos factos provados e não provados, bem como a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, com realce para aqueles em que assentou a convicção do tribunal, sendo “ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto”[16]. A estas exigências legais subjazem, pois e por um lado, objectivos de transparência e de credibilização das decisões. Num Estado de Direito democrático, o poder judicial tem de se afirmar perante os interessados e a própria sociedade, nomeadamente, pela justificação das suas decisões, afastando suspeitas de arbítrio ou de leviandade. Não basta vencer, é indispensável convencer. Por outro lado, tais exigências permitem o controlo das decisões pelas instâncias superiores, em caso de recurso, viabilizando a correcção de falhas clamorosas.
Os motivos de facto que fundamentam a decisão, aludidos no nº 2 do preceito em referência, “não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova. (…)
A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico e racional que lhe subjaz (…). E extraprocessualmente deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade”[17].
Pese embora as linhas gerais traçadas na lei, a fundamentação não se tem de conformar com um modelo rígido e uniforme, devendo ser mais ou menos aprofundada consoante as particularidades de cada caso: a existência ou inexistência de versões contraditórias ou de pontos que hajam de ser esclarecidos de forma a que sejam perceptíveis os motivos pelos quais a convicção do tribunal se orientou num sentido e não noutro.
O que se exige é que o tribunal, a partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a sua convicção, enuncie as razões de ciência extraídas destas, os motivos porque optou por uma das versões em confronto, quando as houver, os motivos da credibilidade dos depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, de forma a permitir a reconstituição e análise crítica do percurso lógico que seguiu na determinação dos factos como provados ou não provados.
Isto não significa que o tribunal tenha de analisar minuciosa e exaustivamente todas as provas produzidas, nem que haja de as transcrever (porque para isso serve a documentação das declarações)[18], bastando que exteriorize de forma clara e inequívoca o raciocínio que seguiu na formação da convicção, assim demonstrando que não procedeu a uma ponderação das provas arbitrária, ilógica, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.

Lendo a motivação da decisão recorrida, verificamos que, embora de forma sucinta, ela cumpre minimamente o desiderato legal. De facto, nela vêm indicados os meios de prova produzidos e em que se alicerçou a convicção, nomeadamente quanto aos factos que vinham imputados ao recorrente e à co-arguida e que foram considerados como provados: as declarações da ofendida, conjugadas com os depoimentos das testemunhas a quem ela na altura relatou os factos, entre elas a testemunha F………., que também admitiu ter-lhos ouvido relatar, embora não acreditasse nesse relato - convicção essa que se evidencia ter sido desvalorizada pelo tribunal tendo em conta a credibilidade que aquelas declarações e depoimentos assumidamente lhe mereceram – bem como os documentos constantes de fls. 395 a 397 (referentes à notificação da ofendida para comparecer à audiência designada para o dia 14/3/01 e à sua falta a essa audiência). A razão de ciência também é clara: a da ofendida, por razões óbvias, e a das testemunhas, porque ouviram o relato dos factos da boca dela, tudo, aliás, conforme o que resulta da transcrição efectuada. Além disso, o tribunal explicou a convicção alcançada pelo confronto da prova, conjugada entre si, com as regras da experiência comum e da normalidade, esclarecendo igualmente os motivos pelos quais não considerou provados alguns dos factos que aos arguidos vinham imputados, o que não se deveu a ausência de credibilidade, mas sim a falta de consistência, contradições e imprecisões que deram lugar a dúvidas a respeito deles e que não foi possível ultrapassar.
Assim, entendemos que o raciocínio seguido pelo tribunal a quo se mostra lógico e coerente, sustentado em provas permitidas por lei de acordo com o preceituado no art. 355º do C.P.P., não se evidenciando qualquer arbitrariedade ou atropelo das regras da experiência comum na apreciação da prova e na formação da convicção.
Temos, pois, por não verificado o vício apontado.


3.4. Por fim, invoca o recorrente a existência de contradição entre a fundamentação dos factos provados e não provados, e entre a fundamentação e a decisão.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão está elencada no nº 2 do art. 410º do C.P.P., a par da insuficiência para a decisão da matéria de facto e do erro notório na apreciação da prova, como um dos vícios da decisão passíveis de serem detectados através do mero exame do próprio texto da mesma, sem recurso a quaisquer outros elementos constantes do processo, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão tanto pode existir ao nível da factualidade, como ao nível do direito que é apreciado na decisão proferida; pode reportar-se quer à fundamentação da matéria de facto, quer à contradição na matéria de facto com o consequente reflexo no fundamento da decisão de direito, quer aos meios de prova que serviram para formar a convicção do juiz.
Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou de forma a excluírem-se mutuamente[19].

Nem nas conclusões do recurso, nem na respectiva motivação, concretiza o recorrente as razões em que poderia assentar a invocação do vício em questão. E, percorrendo o texto da decisão recorrida, a única contradição que se detecta é aquela que existe entre o teor do ponto 10 dos factos provados, na parte em que se afirma que “os arguidos C………. e D………. actuaram de forma deliberada e com perfeita consciência de que, em conjugação de esforços e de comum acordo, molestavam fisicamente a ofendida (…)”, e os factos não provados, dos quais resulta não ter ficado provado que qualquer daqueles arguidos tenha, por alguma forma, actuado com intenção de provocar ou tenha causado lesões à ofendida. Contradição essa que também se evidencia na fundamentação de direito, na qual se conclui pela ausência de prova relativamente aos factos integradores do crime de ofensa à integridade física simples que (também) àqueles arguidos vinha imputado. Aliás, resulta evidente que tal contradição não se deveu senão a lapso, provavelmente resultante da transcrição do teor da acusação e da falta de eliminação do correspondente segmento descritivo e, de todo o modo, não tem qualquer influência no sentido da decisão, sendo perfeitamente inócua. De qualquer forma, adiante se ordenará a pertinente correcção. Quanto ao mais, não se verifica a existência de qualquer contradição nem nos factos provados, nem nos factos não provados, nem se detecta qualquer contradição entre eles e a fundamentação ou o sentido da decisão, nem tão-pouco que tenha sido retirada de qualquer facto uma consequência logicamente inaceitável ou de impossível verificação.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.

B) - Passamos à apreciação das questões suscitadas pelo recorrente B………. .
3.5. Em primeiro lugar, este recorrente insurge-se contra a relevância jurídica que foi conferida aos factos dados como provados, que entende constituírem meras imputações genéricas, sem a necessária concretização circunstanciada em termos de tempo, lugar e modo da sua prática para que delas se pudesse defender eficazmente, contrariamente ao que sucedeu com os factos materiais e concretos que lhe vinham imputados e que todos eles resultaram não provados. Por isso, defende a insusceptibilidade de aqueles factos preencherem o tipo legal do crime de maus tratos, que pressupõe actos concretos e reiterados no tempo, considerando que o entendimento adverso acolhido na sentença recorrida viola o disposto na al. b) do nº 1 do art. 283º e no nº 2 do art. 374º, ambos do C.P.P., e, maxime, o direito de defesa consagrado no art. 32º nº 1 da C.R.P.

De acordo com o disposto no nº 1 do art. 32º da C.R.P., “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”. Este preceito consagra uma cláusula geral que inclui, para além das garantias explicitadas nos números seguintes, todas as demais que decorrem da necessidade de efectiva defesa do arguido em processo penal[20]. A ideia que lhe subjaz é a de que o processo criminal, independentemente da concreta conformação que lhe seja dada na legislação de cada país, há-de configurar-se como um processo equitativo e leal (due process of law, fair trial )[21], que constitui garantia essencial numa sociedade democrática contra eventuais abusos do poder punitivo do Estado e se encontra expressamente consagrado no nº 4 do art. 20º da nossa Constituição, acolhendo o disposto no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[22] (e, também, noutros instrumentos internacionais de protecção de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). O núcleo essencial do processo equitativo implica o respeito por cinco princípios processuais fundamentais (direito a um tribunal imparcial, princípio da legalidade, presunção de inocência, contraditório e direito ao silêncio). “Um processo equitativo postula (…) a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas”[23], implicando que cada uma das partes tenha oportunidade de apresentar perante o tribunal os fundamentos da sua pretensão, oferecer as provas que a sustentam e controlar as da parte contrária, bem como pronunciar-se acerca do mérito de umas e de outras, sendo admitido a fazê-lo em condições tais que não a coloquem numa posição de sensível desvantagem em relação à parte contrária.
A nossa lei fundamental consagra, no nº 5 do art. 32º, a estrutura acusatória do processo penal (mitigada pelo princípio inquisitório a partir da fase da instrução), o que implica que a submissão a julgamento pela prática de um ilícito criminal depende da prévia dedução, por entidade distinta daquela que vai julgar, de uma acusação (ou, quando esta não exista, por um despacho de pronúncia), a qual fixa e delimita os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado. A definição do objecto do processo[24] é uma decorrência do princípio da vinculação temática do Tribunal[25], implicado no princípio da acusação[26], e constitui uma garantia de defesa do arguido, na medida em que impede alterações significativas daquele objecto, ressalvados casos específicos e salvaguardada a inerente possibilidade de ajustamentos na estratégia da defesa.
Para que o arguido possa organizar convenientemente a sua estratégia de defesa de molde a poder exercer eficazmente o seu direito de defesa, é, pois, indispensável que conheça previamente e com precisão os factos que lhe são imputados, bem como os respectivos contornos jurídicos.
A acusação, que “é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado com a pena prevista na lei ou requerida pelo Ministério Público”[27], desempenha, assim, um papel fulcral, com repercussões na ulterior tramitação do processo, devendo a sua dedução revestir-se do maior cuidado e obedecer, sob pena de nulidade (dependente de arguição, porque não abrangida na enumeração taxativa do art. 119º do C.P.P.) às exigências de conteúdo estabelecidas no nº 3 do art. 283º do C.P.P., nomeadamente as constantes da al. b) deste preceito, a saber, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. Exige-se, pois, neste preceito (e vem-no exigindo também a jurisprudência[28]), algum grau de concretização na narração dos factos, de forma a permitir que o arguido os conheça na sua real dimensão para que deles se possa defender.
Por sua vez, o objecto do processo, conformado pelo acervo factual vertido na acusação (ou na pronúncia, quando a houver), vai ser submetido ao filtro do julgamento, em audiência pública em que o arguido pode (e, em princípio, deve) estar presente e na qual são produzidas as provas segundo um procedimento contraditório, sendo, no culminar desta fase, distribuído pelos factos provados e não provados como tal acolhidos na sentença. Em consonância, constitui requisito desta “a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.” (cfr. nº 2 do art. 374º do C.P.P.).

Detenhamo-nos, agora, um pouco perante os contornos do crime de maus tratos que ao recorrente vinha imputado.
O art. 152º do C. Penal, na redacção resultante da revisão operada pelo DL nº 48/95 de 15/3, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 65/98 de 2/9 e 7/2000 de 27/5, dispunha, na parte que aqui nos interessa, que: “1. Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e a) Lhe infligir maus-tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente; (…) é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144. 2. A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus-tratos físicos ou psíquicos.(…)”
A necessidade de criminalização das condutas previstas neste preceito adveio da progressiva consciencialização acerca da gravidade de um fenómeno social de proporções tanto mais alarmantes quanto encapotadas e altamente lesivo, com repercussões quer a nível da formação individual, quer a nível da integridade do próprio tecido social. Fenómeno esse do qual são vítimas pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as ligam às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e aquelas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional. Pretendeu-se, pois, contrariar um sentimento de impunidade - encorajado pelo facto de tais condutas serem habitualmente praticadas em círculos privados ou muito restritos, longe dos olhares alheios, nem sempre denunciadas e ainda mais raramente reclamada a sua punição até às últimas consequências, seja por medo de represálias, vergonha de expor publicamente a situação ou falta de capacidade para o fazer (circunstâncias, aliás, propiciadoras da sua proliferação) -, bem como travar a espiral de violência em que se traduzem e os demais efeitos nocivos que desencadeiam, reprimindo a sua prática.
O bem jurídico protegido pela norma “é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos” nomeadamente os que “afectem a dignidade pessoal do cônjuge”[29]. Trata-se de um crime específico, na medida em que pressupõe a existência de uma determinada relação entre o agente e o ofendido, que “será impróprio ou próprio, consoante as condutas em si mesmas consideradas já constituem crime[30] (…), ou consoante as condutas não configurem em si mesmas qualquer crime”, e que pressupõe, ao menos implicitamente, uma reiteração[31] das respectivas condutas num determinado período de tempo.
O crime de maus tratos pode unificar, através do elemento da reiteração, uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma.
“A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime.
O tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo [Cfr., designadamente, HANS-HEINRICH, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., pp. 998-999, e MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, pp. 546-547].
Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se expressa no artigo 19.º, n.º 2, do CPP, mas que são um só crime; não há pluralidade de crimes, mas pluralidade no modo de execução do crime.
A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único.”[32]
Este crime “persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima (humilhando-a, por exemplo) e a relação de convivência que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente (J. M. Tamarit Sumalla, in Comentarios a la Parte Especial del Derecho Penal, 1996, p. 100).”[33].
Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma acção isolada do agente (tão-pouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), vem entendendo a generalidade da jurisprudência[34] que existem casos em que uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.
No que respeita ao elemento subjectivo, trata-se de um crime doloso[35], podendo o dolo revestir qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, resultando claro - afastada que foi a exigência de que o agente agisse por “malvadez ou egoísmo” que constava da redacção do art. 153º do C. Penal anterior às alterações introduzidas pelo DL nº 48/95 - que basta o dolo genérico.
A entrada em vigor da Lei nº 59/2007 de 4/9 introduziu algumas alterações ao ilícito criminal em referência, distribuindo por três preceitos as previsões que antes se encontravam concentradas num só. Actualmente, os maus tratos a um conjunto de pessoas com quem o agente mantenha ou tenha mantido um relacionamento conjugal ou análogo, seja do outro ou do mesmo sexo e ainda que sem coabitação, bem como àquelas que coabitem com o agente e se encontrem particularmente indefesas, têm previsão autónoma no actual art. 152º, com a epígrafe de “Violência doméstica”. Mas, no essencial e para o que aqui nos interessa, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge, esclarecendo-se agora expressamente que tal actuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.

Feito em traços gerais o enfoque jurídico das questões submetidas à nossa apreciação, vejamos agora o que se passou no caso concreto.
Recordemos os factos que a decisão recorrida considerou como provados e dos quais resultou a responsabilização criminal do recorrente:
1- Desde há mais de vinte anos e até 18 de Março de 2001, altura em que saiu de casa a G………., então sua mulher, que o arguido B………. diariamente, a diversas ocasiões do dia, na residência de ambos, sita no ………., em ………., na área desta comarca, sem qualquer motivo, dirigiu-se àquela chamando-lhe "filha da puta", "bêbada" e "vaca";
2- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e frequência, sem qualquer motivo, o arguido B………. desferiu na G………., pelo menos, murros e pontapés, atingindo-a em diversas partes do corpo, desse modo lhe causando dores e pisaduras, e a cada passo, se via a ofendida deitada na cama a descansar, o arguido B………. agarrava-a pelos cabelos e puxando-os arrastava-a para a banheira e punha-lhe água fria a correr em cima da cabeça;
9- Com a conduta descrita, o arguido B………. actuou de forma deliberada e com perfeita consciência de que, reiteradamente, proferiu as expressões referidas, bem sabendo que ofendiam a honra da ofendida, que a estava o molestar fisicamente e com intenção de lhe provocar as lesões que lhe causou, apesar de saber que tal era proibido por lei.
Todos estes factos já vinham descritos na acusação que foi deduzida pelo MºPº contra o recorrente (na parte que lhe diz respeito). Nessa peça vinham-lhe, ainda, imputados factos relativos a episódios alegadamente ocorridos em data indeterminada de Agosto de 2000 (“à noite, no quarto de dormir, o arguido B………. empurrou a ofendida contra uma mesa de cabeceira, desse modo lhe causando fractura não aguda das costelas 7°, 8°, 9° e 10° do hemitorax direito e 7°, 8°, 9° e 10° do hemitorax esquerdo (…) Apesar das dores que a ofendida sentia devido a essas lesões e de a mesma lhe pedir que a levasse ao hospital, o arguido recusou levá-la e para evitar que a mesma saísse de casa, rasgou-lhe e queimou-lhe roupas que aquela então tinha, acabando a ofendida por não ter qualquer assistência médica a tais lesões”), em data não concretamente determinada de Janeiro de 2001 (“o B………. arrastou a ofendida, puxando-lhe os cabelos, até ao tanque e aí enquanto a segurava, a pedido daquele, o E………. (…), punha-lhe a cabeça dentro de água”), na tarde do dia 14 de Março de 2001 (“nas instalações do Tribunal da Comarca de Vila Nova de Famalicão, sitas no ………., o B………., por várias vezes, perante outras pessoas que como ele aguardavam por uma audiência de julgamento em que era interessado, referindo-se à ofendida, tenha dito "ela está presa na baça, hoje não vem aqui" e "eu vou pô-la como tola" e que “instigados pelo arguido B………. e de comum acordo com aquele, a C………. desferiu vários murros em várias partes do corpo da ofendida e pouco depois juntamente com o D………. deram-lhe várias bofetadas e meteram-na dentro de uma baça”) e no dia 18 de Março de 2001, cerca das 18 horas (“quando a ofendida pretendia ir ao hospital com a filha K………., o D………. agarrou na ofendida e colocou-a no quarto de dormir do próprio, fechando e trancando a porta desse quarto, e de comum acordo e juntamente com o B………. e o E………., manteve aquela ali fechada, desse modo impedindo que a mesma, contra a sua vontade, dali saísse, sendo que era propósito daqueles, como o fora até então, evitar que a ofendida se deslocasse ao hospital”), factos esses que não se considerou provado terem sido praticados pelo recorrente, por se entender que a prova produzida a esse respeito não foi suficientemente esclarecedora.
Pergunta-se, então, se os factos que foram dados como provados não passam de imputações genéricas ou se contêm discriminação suficiente para que o recorrente deles se pudesse ter defendido eficazmente.
Vejamos.
Dos factos em causa consta a contextualização temporal (“há mais de vinte anos e até 18 de Março de 2001”, “diariamente, a diversas ocasiões do dia”, “nas mesmas circunstâncias de tempo e frequência”) e de lugar (“na residência de ambos, sita no ………., em ………., na área desta comarca”, “nas mesmas circunstâncias de (…) lugar”), a descrição das condutas (“dirigiu-se àquela [ a ofendida] chamando-lhe “filha da puta”, “bêbada” e “vaca”, “desferiu na G………., pelo menos, murros e pontapés, atingindo-a em diversas partes do corpo, desse modo lhe causando dores e pisaduras, e a cada passo (…) agarrava-lhe pelos cabelos e puxando-os arrastava-a para a banheira e punha-lhe água fria a correr em cima da cabeça”) e a ausência de motivo para a sua perpetração (“sem qualquer motivo”).
Muito embora não tenham sido dados como provados episódios referentes a dias determinados, que apresentavam contornos específicos em relação ao que se descreveu como sendo o dia-a-dia da relação conjugal, o certo é que os factos que se provaram, tendo em conta o ilícito criminal em causa, contêm a discriminação suficiente para que o recorrente, que da imputação que lhe era feita teve conhecimento adequado e atempado, pudesse organizar convenientemente a sua defesa[36]. E, atento o longo período temporal a que se reportam, outra discriminação não era possível, sendo certo que as condutas imputadas ao recorrente não eram pautadas pela ocasionalidade ou pela intermitência, antes constituíam um comportamento-tipo, sistematicamente adoptado por ele no relacionamento com a ofendida, seguindo um fio contínuo, repetido diariamente ao longo dos anos em que durou a coabitação do casal e que só conheceu o seu final quando esta cessou (quando a ofendida saiu de casa, em 18/3/01). Aliás, que assim sucedia resultou dos elementos de prova a que o tribunal conferiu credibilidade, tendo merecido destaque os depoimentos das testemunhas K………., I………. e J………., filhos de recorrente e ofendida, que descreveram “o ambiente que se vivia em casa dos pais, a forma como habitualmente o pai se comportava em relação à mãe, os insultos que lhe dirigia, a forma como a tratava e as marcas físicas que viam na mãe”. O recorrente teve oportunidade de contrariar essas provas, e tentou fazê-lo, quer pondo em causa a isenção e idoneidade daquelas testemunhas, quer negando a prática dos factos, quer apresentando outras testemunhas que afirmaram que as coisas não se passavam bem assim (embora algumas delas, mesmo assim, admitissem que os conflitos eram frequentes), mas sem êxito, porque o tribunal não acreditou na versão por ele sustentada e firmou a sua convicção com base na versão oposta, que, em face do conjunto da prova, considerou mais digna de crédito e conforme com as regras da experiência comum.
A objecção de índole semântica invocada pelo recorrente, quanto à utilização dos verbos “dirigir” e “desferir” na 3ª pessoa do pretérito perfeito, também não colhe, na medida em que resulta claro da redacção dos pontos 1 e 2 dos factos provados que tais condutas eram praticadas, ora umas, ora outras, com uma frequência diária, a diversas ocasiões do dia.
Assim, e em conclusão, entendemos que não foram postergados os direitos de defesa do recorrente.
Por outro lado, os comportamentos que se considerou terem sido praticados pelo recorrente integram, inequivocamente, o crime de maus tratos que lhe vinha imputado. Com efeito, o recorrente não só deu maus tratos psíquicos e físicos à ofendida, injuriando-a, humilhando-a e ofendendo-a corporalmente, violando, além do mais e de forma grave, o particular dever de respeito decorrente do vínculo conjugal que os unia, como o fez reiteradamente durante um longo período de tempo, actuando de forma deliberada e com a perfeita consciência de que a ofendia na sua honra e a molestava fisicamente, apesar de saber que a sua conduta era proibida por lei.
A subsunção jurídica dos factos não merece censura, não se mostrando violado qualquer dos preceitos legais apontados pelo recorrente.

3.6. O recorrente entende que, por a queixa apresentada pela ofendida apenas se referir a factos alegadamente ocorridos dois meses antes de 27/3/01 (quando ele a teria arrastado da cama pelos cabelos até junto de um tanque e a teria segurado enquanto o co-arguido E………. lhe metia a cabeça nesse tanque) e a data anterior (quando ele a teria empurrado contra uma mesinha de cabeceira, dando azo a que partisse quatro costelas), o MºPº não tinha legitimidade para exercer a acção penal e deduzir acusação por outros factos. E que, ao ter exorbitado a matéria da denúncia, a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 48º, 49º nº 1, 52º nºs 1 e 2 als. a) e b), 143º nº 2, 262º e 275º, todos do C. Penal, e arts. 113º nº 1, 115º nº 1 e 152º nº 2, estes do C. Penal.

Desde que foi criado, com a entrada em vigor do C. Penal de 1982, o tipo de crime de maus tratos sofreu sucessivas reformulações.
Sendo inicialmente um crime de natureza pública, passou o respectivo procedimento criminal a depender de queixa com as alterações introduzidas pela Lei nº 48/95 de 15/3, e que entraram em vigor em 1/10/95.
A alteração seguinte surgiu com a Lei nº 65/98 de 2/9, que entrou em vigor em 7/9/98 e que, embora tenha mantido a regra do procedimento dependente de queixa, consagrou a possibilidade de o MºPº poder dar início ao procedimento “se o interesse da vítima o impuser e não houver oposição desta antes de ser deduzida a acusação” (cfr. nº 2 do art. 152º na versão introduzida pela referida da Lei).
Com a entrada em vigor, em 1/6/00, da Lei nº 7/2000, de 27/05, o crime voltou a ter natureza pública, e conserva-a na actual redacção do art. 152º, resultante das alterações introduzidas pela Lei nº 59/2007 de 4/9.
Porque o crime de maus tratos constitui (como já acima deixámos referido), um único crime, embora (em regra) de execução reiterada, a sua consumação ocorre com a prática do último acto de execução. É este o momento em relação ao qual se deve aferir a legitimidade do MºPº para exercer a acção penal[37] - e não aquele em que cada uma das condutas parcelares foi praticada, como sucederia se elas (pressupondo que preenchessem, por si próprias, um comportamento típico) recebessem tratamento jurídico-criminal autónomo.
Ora, considerando a data da prática do último acto parcelar (18 de Março de 2001, data até à qual o recorrente praticou reiterada e sistematicamente as condutas agressivas e injuriosas descritas nos pontos 1 e 2 da matéria de facto provada), o crime de maus tratos, que só então se pode considerar consumado, tinha natureza pública. É, pois, irrelevante que a ofendida tenha ou não apresentado queixa e, mesmo que a tenha apresentado, como sucedeu no caso, que nela apenas tenha relatado alguns dos factos parcelares. Estando em causa um crime de natureza pública, como aliás já se inferia do teor da queixa e se veio a confirmar com o desenrolar da investigação, o MºPº, qualquer que fosse o modo como adquiriu a notícia da prática dos factos susceptíveis de o integrar, dispunha de plena legitimidade para promover o processo (cfr. arts. 48º ss. do C.P.P.), investigar tais factos (e devia fazê-lo o mais esgotantemente possível, perspectivando toda e qualquer relevância jurídico-penal que deles se pudesse colher, e sem qualquer entrave decorrente da circunstância de apenas ter sido denunciada uma parte dos mesmos) e, recolhidos os indícios suficientes da verificação do crime e respectivo agente, por eles deduzir acusação. Com uma pequena ressalva, respeitante às condutas praticadas antes de 1/1/83, data da entrada em vigor do C. Penal de 1982, e na medida em que até então não eram objecto de punição. Ressalva essa que, no caso, assume expressão insignificante e em nada influi na decisão, tendo em conta que mais de dezoito dos vinte anos durante os quais os maus tratos foram praticados decorreram já depois daquela data.
Tendo o MºPº qualificado juridicamente os factos como crime de maus tratos, não tendo sido (nem havendo motivos para que fosse) posta em causa essa qualificação, e tendo-se o ilícito em questão consumado em data em que tinha natureza pública, é forçoso concluir pela improcedência de mais este fundamento do recurso.

3.7. Finalmente, entende o recorrente que, não figurando na acusação e na sentença o circunstancialismo temporal em que os factos foram praticados, não se sabe se eles foram praticados antes ou depois do início da vigência da Lei nº 7/2000. Como até então o procedimento criminal dependia de queixa, com as inerentes consequências quanto à extinção do direito de queixa, sua renúncia e perdão, a dúvida quanto à data da sua ocorrência deve determinar, por aplicação dos princípio in dubio pro reo e da não retroactividade da lei penal, que sejam eliminados e tidos por não escritos.

Entre os princípios constitucionais básicos em matéria de punição criminal, conta-se o princípio da não retroactividade da lei penal (desfavorável), consagrado nos nºs 1, 2 e 4 da C.R.P., que veda à lei a criminalização de factos passados, o agravamento da punição relativamente a crimes anteriormente praticados, bem como que lhes seja atribuída relevância para efeitos de aplicação de medida de segurança ou para agravamento de sanção desta natureza. Este princípio foi transposto para a nossa lei adjectiva ordinária, estando ínsito nas normas dos nos 1 (“Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática” e 2 (“A medida de segurança só pode ser aplicada a estados de perigosidade cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior ao seu preenchimento”) do art. 1º do C.P.P.

Este fundamento do recurso mostra-se prejudicado pela resposta que demos acima às demais questões suscitadas pelo recorrente. Com efeito, os factos considerados provados e que determinaram a responsabilização penal do recorrente mostram-se suficientemente contextualizados, nomeadamente em termos temporais, tendo-se o crime de maus tratos consumado[38] em data posterior à entrada em vigor da Lei nº 7/2000, tendo, pois, natureza pública. Nessa medida, não se coloca a questão da extinção do direito de queixa pelo seu exercício intempestivo (para além do prazo de 6 meses fixado no nº 1 do art. 115º do C. Penal) ou pelas dúvidas acerca dessa tempestividade, questão essa que só teria sentido no caso de estar em causa um crime de natureza semi-pública (ou particular). Tão pouco foi invocada (nem os autos noticiam) a existência de queixas anteriores por parte da ofendida e de que esta tivesse desistido, no período em que a lei o admitia (antes de 1/6/00), e que pudesse subtrair à apreciação do tribunal parte dos factos dos quais resultou a responsabilização criminal do recorrente.
***
O recorrente B………., tendo orientado a sua argumentação no sentido da absolvição, não manifestou qualquer reserva quanto à medida em que a pena foi fixada. No entanto, tendo em conta que tal pena foi fixada em 2 anos e 6 meses e que a sua execução foi suspensa pelo período de 4 anos, há que levar em consideração as alterações que a Lei nº 59/2007 de 4/9 introduziu ao nº 5 do art. 50º do C. Penal. Enquanto que na redacção anteriormente vigente o período da suspensão era fixado entre 1 e 5 anos, actualmente “tem duração igual à da pena determinada na sentença, mas não inferior a um ano”. Mostrando-se a lei nova mais favorável ao recorrente, deve a mesma ser aplicada, em obediência ao disposto no nº 4 do art. 2º do C. Penal. E, assim sendo, o período de suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada deve ser reduzido para 2 anos e 6 meses.

4. Decisão
Em face do exposto julgam improcedentes os recursos, mantendo a decisão recorrida, excepto na parte relativa ao período de suspensão da execução da pena aplicada ao recorrente B………., que se reduz para 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, ordenando-se, ainda, a correcção do ponto 10 dos factos provados, que passa a ter a seguinte redacção: “Os arguidos C……… e D………. actuaram de forma deliberada e consciente, em conjugação de esforços e de comum acordo, com intenção de privar a ofendida da sua liberdade”, transitando para a matéria não provada o mais que do mesmo constava.
Vai cada um dos recorrentes condenado a pagar 4 UC de taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.

Porto, 30 de Janeiro de 2008
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias (voto decisão)
Jaime Paulo Tavares Valério
José Manuel Baião Papão

______________________________
1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28
[4] cfr. Ac STJ 7/6/06, proc. 06P763.
[5] As regras da experiência são “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.” - cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, vol. II, pág. 300.
[6] A livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.” – cfr. Idem, Ibidem, pág.298.
[7] cfr. CPP de Maia Gonçalves, 12ª ed., pág. 339.
[8] Como se refere no Ac. STJ de 20/9/2005, www.dgsi.pt, “a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos". Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe”.
[9] O conhecimento directo dos factos é aquele que a testemunha adquiriu por se ter apercebido imediatamente deles através dos seus próprios sentidos, ao passo que no testemunho indirecto (também denominado de testemunho de ouvir dizer ou, na expressão anglo-saxónica, de hearsay evidence rule) a testemunha não percepcionou imediatamente os próprios factos, tendo adquirido o seu conhecimento através de um terceiro.
[10] “O que se pretende com a proibição do chamado depoimento indirecto (…) é que o tribunal não acolha como prova um depoimento que se limita a reproduzir o que se ouviu a outra pessoa que é possível ouvir directamente”. (cfr. Ac. STJ de 6/5/99, CJ, ano VII, t. II, pág. 207)
[11] “Considera-se que, de um modo geral, a admissão e valoração do depoimento indirecto sobre o que se ouviu dizer a pessoas determinadas, cuja inquirição não seja possível por "impossibilidade de serem encontradas", não viola as garantias do processo criminal previstas no artigo 32, n. 1 e 5 da Constituição.
A regulamentação consagrada na norma do n. 1 do artigo 129 do Código de Processo Penal revela-se como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo.
Não estando em causa a intocável dignidade da pessoa humana, não se justificava uma proibição absoluta de produção e de valoração do testemunho de ouvir dizer, sendo consentidas limitações à regra dessa proibição desde que dotadas de razoabilidade. Com isso não se põem em causa os princípios de imediação, de igualdade de armas e a regra da cross-examination, tendo por objecto, obviamente, a prova mediata produzida. E sendo sempre certo que tal prova, como qualquer outra, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal.
Tão-pouco se pode afirmar que a estrutura acusatória do processo criminal, que impõe que a audiência de julgamento e mesmo os actos instrutórios determinados por lei estejam subordinados ao principio do contraditório, ponha em causa a regulamentação do segmento da norma em causa. A lei processual penal veda, em principio a admissibilidade do testemunho de ouvir dizer, impondo que seja chamada a depor a pessoa determinada invocada no testemunho prestado, assegurando-se a imediação, relativamente ao tribunal criminal e aos sujeitos processuais. Só nos casos de tal impossibilidade - em virtude de morte, anomalia psíquica superveniente ou de impossibilidade de ser encontrada - pode ser admitido e valorado o depoimento indirecto.
No que toca a alegada violação do princípio do contraditório sempre se dirá que o arguido poderá inquirir a testemunha que refere o depoimento de outra pessoa e requerer que seja convocada a depor esta última. A lei processual não veda, porem, a admissão e valoração do depoimento indirecto, no caso de impossibilidade de localização da pessoa determinada a quem imputa a afirmação reproduzida.
Trata-se de uma solução excepcional, de evidente base racional, que só por si, e nos contados casos em que ocorre, não pode afectar intolerável ou desproporcionadamente os direitos do arguido.” cfr. Ac. TC 94-213-1, de 2/3/94, www.dgsi.pt).
[12] Ainda assim, o arguido pode contraditar plenamente a testemunha que relatou aquilo que ouviu dizer à pessoa falecida, ao incapacitado por anomalia psíquica superveniente ou ao ausente em parte incerta, requerer as diligências que entenda pertinentes, tendentes a demonstrar a sua falta de idoneidade, a contraditar a sua razão de ciência, a impossibilidade do seu testemunho.
[13] cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, t. II, p. 108.
[14] Cfr. “Constituição Portuguesa Anotada” de Jorge Miranda – Rui Medeiros, t. I, pág.356.
[15] A fundamentação das decisões dos tribunais – excepção feita às que sejam de mero expediente -, na forma prevista na lei, constitui exigência que decorre em primeira linha da própria lei fundamental (art. 205º nº 1 da C.R.P.) - e, no âmbito do processo penal, constitui uma das garantias constitucionais de defesa, aludidas no nº 1 do art. 32º da nossa Lei Fundamental -, e em segunda linha da lei ordinária (art. 97º nº 4 do C.P.P.).
[16] Maia Gonçalves, CPP anotado e comentado, 12ª ed., p. 709
[17] Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 229-230
[18] “A disposição do art. 374.º, n.º 2, do CPP, sobre o exame crítico das provas não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas produzidas e muito menos a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão.”
Ac. STJ de 30/1/02, proc. n.º 3063/01 da 3.ª Secção, http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Anuais/Criminais/Criminais2002.pdf
[19] cfr. Simas Santos, Recursos em Processo Penal., 5ª ed. págs. 63-64.
[20] cfr. Jorge Miranda – Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa anotada, t. I, pág. 354.
[21] “devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.’ cfr. Ac. TC nº 61/88 (D.R., II série, de 20/8/88).
[22] Ratificada pelo Estado Português, que vincula tanto na ordem jurídica como na ordem jurídica internacional, ocupa uma posição infraconstitucional, mas supralegal, na hierarquia das fontes de direito. (cfr. Ireneu Cabral Barreto, “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotada, 3ª ed., págs. 31-32).
[23] cfr. Jorge Miranda – Rui Medeiros, ob. cit., t. I, pág. 192.
[24] Ou do “objecto do julgamento”, como prefere chamar-lhe Damião da Cunha (in “O caso julgado parcial”, pág. 470 ), que faz a distinção entre os dois termos nos seguintes moldes: “(…) não nos parece que se possa afirmar que a dedução da acusação fixa o «objecto» do processo, no sentido «próprio» do termo. O objecto do processo é fixado no momento em que alguém é constituído arguido; a acusação fixa, isso sim, o objecto do «julgamento»: exactamente tudo aquilo que, após a realização de uma investigação «devida», mereceu uma selecção, em ordem a ser apresentado a julgamento e cujo conteúdo delimita não só o dever de sustentar uma acusação, como o âmbito de relevância dos direitos de defesa e, bem assim, a decisão do tribunal.”
[25] No qual se consubstanciam os princípios da identidade (o objecto do processo deve manter-se o mesmo desde a acusação até ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade: o objecto do processo deve ser conhecido e julgado pelo Tribunal na sua totalidade); e da consunção (o objecto do processo deve considerar-se irrepetivelmente decidido na sua totalidade).
[26] “O princípio da acusação limita (…) o objecto da decisão jurisdicional e essa limitação é considerada uma garantia da imparcialidade e de defesa do arguido. Imparcialidade do tribunal na medida em que apenas terá de julgar os factos objecto da acusação, não tendo qualquer «responsabilidade» pelas eventuais deficiências da acusação, e garantia de defesa do arguido na medida em que a partir da acusação sabe de que é que tem de se defender, não podendo ser surpreendido com novos factos ou novas perspectivas dos mesmos factos para os quais não estruturou a defesa.” cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal, t.I, pág. 76.
[27] Idem, Ibidem, t. III, pág. 113.
[28] v., entre outros, o Ac. STJ 15/11/07, proc.nº 07P3236: “Não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal.”
[29] cfr. “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, t. I, pág. 332. Obra que aqui seguimos de perto e à qual pertencem as citações não expressamente identificadas.
[30] Abarcando na sua previsão condutas que também se encontram previstas autonomamente noutros tipos legais, estabelecem-se entre estes e aquele relações de concurso: entre o crime de maus tratos e os crimes de ofensas corporais simples, ameaças, difamação ou de injúrias existe uma relação de especialidade, e entre ele e o crime de ofensas corporais graves uma relação de consunção, aplicando-se somente a pena prevista para os maus tratos no primeiro caso, e a pena prevista para as ofensas corporais graves no segundo. – cfr. ob. cit., pág. 336.
[31] Reiteração e não necessariamente habitualidade na conduta, que o tipo não exige (neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, “Código Penal Anotado, 2º vol., 1996, pág. 182, e, entre outros, o Ac. STJ de 8/01/97, proc. nº 934/96).
[32] cfr. Ac. RP 5/11/03, proc. nº 0342343.
[33] cfr. Ac RG 31/5/04, proc. nº 719/04-1.
[34] cfr., entre outros, os Acs. STJ 14/11/97, C.J. STJ, ano V, t. 3, pág. 235, 5/4/06, proc. nº 06P468, e 6/4/06, proc. nº 06P1167, e RE 29/11/05, proc. nº 1653/05-1.
[35] “Todavia, uma vez que este crime tanto pode ser um crime de resultado (…) como de mera conduta (…), como, ainda noutra perspectiva, tanto pode ser um crime de dano (…) como crime de perigo (…), o conteúdo do dolo é variável em função da espécie de comportamento do agente.”
[36] Aliás, os contornos do caso sub judice são substancialmente diferentes daquele que foi objecto de apreciação no Ac. RP 9/3/05, proc. nº 0411496, a que o recorrente faz alusão, sendo que neste, efectivamente, havia uma manifesta ausência de concretização factual: deu-se como provado que “o arguido desde há cerca de 4 anos a esta parte vem agredindo a esposa” (sem se concretizar em que consistiram tais agressões e a frequência com que foram praticadas), que “costuma ameaçar a esposa e o filho, dizendo que os há-de matar a tiro e incendiar a casa onde habitam” (sem se concretizar em que circunstâncias de tempo e com que frequência foram proferidas tais ameaças), concretizando-se apenas uma situação em que foram praticadas agressões e que o Ac. em referência considerou preencherem apenas a previsão do crime de ofensa à integridade física simples.
[37] cfr., neste sentido, os Acs. RP 5/11/03, acima citado, e 11/7/07, proc. nº 0711856.
[38] Têm, aqui, plena aplicação as seguintes considerações expendidas no Ac. RP 5/11/03, já acima citado:
“Fixado o momento determinante, não se coloca, no caso, qualquer problema de sucessão de leis processuais penais materiais que conforme um conflito que deva ser resolvido de acordo com os princípios constitucionais da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável e da imposição da lei penal favorável [Que se aplicam às normas processuais penais materiais. Sobre o tema, cfr. TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1990, p. 210 e ss.].
Trata-se apenas de aplicação da lei vigente no momento da consumação do crime.”