Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
203/19.4TXPRT-H.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
AUSÊNCIA ILEGÍTIMA
REINSERÇÃO SOCIAL
Nº do Documento: RP20200422203/19.4TXPRT-H.P1
Data do Acordão: 04/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO O RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Uma ausência ilegítima “per se” ou um menor tempo de reclusão desde a entrega voluntária para cumprimento do remanescente da pena não podem fundamentar, em exclusivo, uma negação da liberdade condicional.
II - Devem ser ponderadas, também, as razões que motivaram tal comportamento e, sobretudo, sendo muito longo, se o período de ausência foi, ou não, aproveitado pela reclusa para a sua devida reinserção social e demarcação do modo de vida anterior no qual praticou o crime cuja pena se encontra em execução, de modo a gerar uma efetiva redução das preocupações de prevenção especial, permitindo formular o desejável juízo de prognose favorável que viabiliza a liberdade condicional nos termos do disposto no artigo 61º, número 2, al. a), “ex vi” do número 3 do mesmo artigo.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 203/19.4TXPRT-D.P1

Data do acórdão: 22 de Abril de 2020

Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa

Origem:
Tribunal de Execução das Penas do Porto
Juízo de Execução das Penas do Porto

Sumário:
……………………………
……………………………
……………………………

Acordam, em conferência, os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente a reclusa B…;


I – RELATÓRIO
1. Em 9 de Dezembro de 2019 foi proferida nos autos principais uma decisão de não concessão de liberdade condicional à reclusa B….
2. Inconformada com a decisão, a interessada recorreu da mesma, terminando a motivação com as conclusões a seguir reproduzidas:
"No caso em apreço, concluímos que os fundamentos invocados, salvo o devido respeito por opinião diversa, que é muito, incorrem em lapso, descurando certas circunstâncias determinantes, não podendo, deste modo, a recorrente concordar com a douta decisão nestes autos proferida, pelo que a impugna.
B… cumpria ininterruptamente uma pena de 6 anos de prisão, que teve o seu início no dia 04/10/2000, até ao dia 23/12/2003, quando, na sequência de uma Licença de Saída Jurisdicional, se ausentou ilegitimamente, não tendo regressado ao Estabelecimento Prisional.
Nessa data, a arguida havia já cumprido três anos, dois meses e dezanove dias de prisão efetiva e essa foi a segunda "saída precária" concedida à arguida.
A ausência atrás referida teve, na sua base, motivos imperativos de auxílio financeiro à sua filha, que se encontrava desempregada e com uma filha menor a seu encargo.
A arguida, precisamente em 31/12/2003, na segunda saída precária que lhe foi concedida, interrompeu o cumprimento da pena de prisão e viajou para o estrangeiro.
Aí a arguida arranjou trabalho em estabelecimento de restauração e ali permaneceu durante mais de 15 (quinze) anos seguidos, sem que tivesse praticado qualquer delito de natureza criminal.
A arguida tinha consciência de que o seu comportamento estava errado, mas o mais importante para si era ajudar a sua filha e, na altura, achou que seria a melhor solução.
É de salientar que a arguida se apresentou voluntariamente no E.P. para dar continuidade ao cumprimento da sua pena no dia 18/02/2019, denotando uma clara consciência normativa, retidão e vontade de retomar a sua vida de uma forma normal e livre de qualquer atividade ilegítima.
Na decisão da arguida de se apresentar voluntariamente no estabelecimento prisional, pesou o facto de não poder vir a Portugal e estar com a sua família e pretendeu colocar um fim a essa situação por ter sido um erro seu. B…, atualmente com 56 anos, considera que perdeu uma vida inteira por ter interrompido o cumprimento da pena e encontra-se arrependida de ter praticado o crime que originou toda a situação em que agora se encontra.
Comprovadamente, a arguida encontra-se ressocializada, sendo que jamais praticou qualquer ilícito de natureza criminal durante mais de 22 (vinte e dois) anos seguidos, tendo também abandonado o consumo de sustâncias estupefacientes desde o ano 2000.
Ora, considerando o imenso lapso de tempo que decorreu entre a prática dos factos que levaram à sua condenação e o momento presente e, tomando em consideração o período de mais de quinze anos que se encontrou em liberdade, integrada social e profissionalmente, não é expectável qualquer regresso à atividade de tráfico de produtos estupefacientes, nem sequer à prática de outro qualquer ilícito.
Ademais, por outro lado, a arguida completou já 56 (cinquenta e seis) anos de idade e a prática dos factos pelos quais veio a ser condenada reporta-se à sua idade de 34 (trinta e quatro) anos, ou seja, há mais de 22 (vinte e dois) anos a esta parte.
Tem a arguida neste momento a oportunidade de ir viver com a sua única filha e esta, inclusivamente, o propósito e a possibilidade de colocar a sua mãe a trabalhar no mesmo supermercado "C…" onde exerce funções.
B… tem, portanto, e no momento presente, o apoio familiar da sua filha, uma casa onde morar com aquela e a possibilidade de trabalhar por conta de outrem no supermercado "C…" e auferir o seu salário mensal.
A referida pena de prisão terá o seu fim em 22/11/2021.
No entanto, todas as razões, quer de prevenção geral, quer especial, conforme se concluiu acima, encontram-se completamente acauteladas.
Desta forma, a douta decisão do Tribunal a quo violou o prescrito nos artigos 61.°, n.°s 2 e 3 e 63.°, n.° 2 do Código Penal e no artigo 410.°, n,° 2, alínea b), do Código de Processo Penal, porquanto, consagra clara contradição entre a matéria dada como provada - nomeadamente, que a arguida para além da condenação acima referida, não consta averbada do seu CRC qualquer outra condenação (ponto F, dos factos provados) ou, ainda, que a arguida encontra-se afastada dos consumos de estupefacientes (alínea j), do ponto G, dos factos provados); que a arguida no estabelecimento prisional trabalha na oficina D… e está inscrita na E…, bem como no ginásio (alínea l), do ponto G, dos factos provados); e, também, que a "arguida não tem infrações disciplinares, mantendo um comportamento adequado às regras institucionais, (alínea m), do ponto G, dos factos provados); quando depois a conclusão que se alcança na douta decisão proferida de que "... o percurso prisional da arguida é revelador de uma personalidade claramente desviante e resistente às sanções penais privativas da liberdade persistindo de uma forma inultrapassável as necessidades de prevenção especial, que desaconselham a aplicação de liberdade condicional nesta fase da pena.".
Existe, portanto, clara e insanável contradição na douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.
Aliás, as necessidades ou exigências de prevenção especial apontam precisamente no sentido de que, de forma consolidada, seja de esperar, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes.
Como muito bem nos ensinou o Professor Doutor Figueiredo Dias, "o instituto da liberdade condicional, enquanto incidente de execução da pena de prisão que antecipa a libertação do condenado, visa eliminar ou, pelo menos, esbater, o criminógeno da pena e consequente aumento das dificuldades dos condenados em regressarem, de forma integrada, ao seio da comunidade, terminado que seja o respetivo cumprimento" in "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas", pgs. 528 e 542.
Clarificando, a liberdade condicional serve, tal como consta no ponto 9 do Preâmbulo do Código Penal, um objetivo bem definido: o de "criar um período de transição entre a prisão e a liberdade durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.".
Ora, é matéria assente que B… durante quinze anos, um mês e vinte e seis dias, viveu em liberdade e conduziu a sua vida de um modo socialmente responsável, sem cometer qualquer crime, tendo inclusivamente a necessidade de ultrapassar grandes dificuldades e provações (materiais e emocionais) por ter ido viver para um pais distante, com outra língua que não dominava, outros usos e costumes e longe da sua filha, jamais tendo recorrido à via criminal para sobreviver ou superar tais engulhos.
Não é legítimo, por outro lado, pressupor que, vinte e dois anos depois da prática dos factos que levaram à condenação da aqui recorrente, haja qualquer probabilidade de regresso à atividade criminosa e muito menos de tráfico de produtos estupefacientes.
Não existem, portanto, neste momento, dúvidas acerca da ressocialização desta arguida e muito menos existe qualquer benefício em que a mesma continue privada da liberdade, privada do convívio com a sua única filha, netos, etc. e privada de poder trabalhar e completar a sua integração social livre de qualquer atividade criminosa.
Assim, por tudo o exposto, conclui-se que, no caso sub judice não se verificam as condições que justifiquem e determinem a não concessão à arguida B… da liberdade condicional, bem como não se mostra tal decisão como necessária, adequada e proporcional.
Impõem-se, pois, a sua revogação, nos termos e com os fundamentos supra expostos, com todas as consequências daí resultantes.
Nestes termos, deverão Vossas Excelências dar provimento ao presente recurso, revogando, no que se refere à arguida B… a douta decisão de 1a instância recorrida, e que não a coloca nesta data em liberdade condicional, assim se fazendo

3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
4. O Ministério Público apresentou resposta, que concluiu nos seguintes termos:
A reclusa/recorrente cumpre a pena de 6 Anos de prisão, a ordem do proc. 112/00.6P6PRT, pela pratica de um crime de trafico de estupefacientes, p. e p. pelo art° 21°, do Dec. Lei 15/93, de 22/01;
Iniciou o cumprimento da pena a 04/10/2000, quando colocada em prisão preventiva, e mantendo-se recluída, já em cumprimento da condenação, até 23/12/2003, data em que se ausentou ilegitimamente no decurso do gozo de uma Liberdade Condicional que lhe fora concedida.
Retomou o cumprimento da pena a 18/02/2019, decorridos 15 anos 1 mês e 18 dias!
O modo como a reclusa se refere à ausência ilegítima que protagonizou ao longo de 15 anos, 1 mês e 18 dias roça a desfaçatez, pois entende-a como um incidente de percurso;
A reclusa, ao ausentar-se ilegitimamente, por tão prolongado período, do cumprimento da sua pena, manifestou e revelou total desprezo pela confiança que o Tribunal em si depositou ao conceder-lhe a licença de saída jurisdicional;
A situação em que a reclusa se colocou veio revelar a incapacidade da mesma em interiorizar, não só o desvalor do crime pelo qual foi condenada, como o efeito pretendido alcançar com o cumprimento da pena;
Perante a conduta da reclusa é manifesto que a evolução da personalidade da reclusa/recorrente no decurso do cumprimento da pena não revela qualquer evolução, nem permite a formulação de qualquer prognose favorável a que, em liberdade, venha a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, pois não foi capaz de o fazer em reclusão;
A reclusa/recorrente não apresenta qualquer manifestação de arrependimento quanto à ausência ilegítima por si protagonizada, ousando apresentar a situação económica da filha como uma justificação aceitável para tal comportamento;
Da decisão a quo não resulta qualquer contradição entre a matéria dada como provada e a conclusão que determinou a não concessão da liberdade condicional;
A ausência ilegítima por 15 anos, 1 mês e 18 dias. Este facto, é o determinante para a conclusão da decisão recorrida no sentido de se imporem, sobremaneira, as exigências de prevenção especial, tal como descritas na al. a), do n° 2, do art° 61°, do Cód. Penal;
Não ocorre violação de qualquer norma, designadamente das referidas no recurso;
O recurso não merece, manifestamente, provimento.
Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, assim de fazendo JUSTIÇA.

5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer, limitando-se a acompanhar a resposta dada na primeira instância.
6. A recorrente não apresentou resposta.
7. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].

Questão a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [1] e a jurisprudência [2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que a recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório produzido nesta decisão, importa decidir as questões suscitadas neste recurso:
a) A decisão recorrida padece do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (artigo 410.º, n.º 2 al. b), do Código de Processo Penal);
b) Erro de direito na interpretação do estatuído nos artigos 61.°, n.°s 2 e 3 e 63.°, n.° 2 do Código Penal, devendo ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que conceda a liberdade condicional.
*
Para decidir o objeto do recurso, importará, primeiramente, recordar a fundamentação da decisão recorrida.
*
II – FACTOS PROCESSUAIS RELEVANTES
Extrato da decisão:
«I. Relatório
Corre termos o presente processo de liberdade condicional referente à reclusa B…, devidamente identificada nos autos, a qual cumpre a pena de 6 anos de prisão à ordem do Processo n° 112/00.0P6PRT, do Juízo Central Criminal do Porto- juiz 4.
Foi realizada a instrução, com elaboração dos pertinentes relatórios e junção de CRC atualizado.
Reunido o Conselho Técnico, procedeu-se à audição do recluso, o qual consentiu na aplicação da liberdade condicional.
Os elementos do Conselho Técnico emitiram parecer unânime desfavorável à concessão da liberdade condicional.
O Ministério Público teve vista do processo, emitindo igualmente parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional.
II. Factos provados
Com relevo para a decisão a proferir, mostram-se assentes os seguintes factos:
A. No âmbito do Processo n° 112/00.0P6PRT, do Juízo Central Criminal do Porto- juiz 4, foi a reclusa condenada na pena de 6 anos de prisão, pela prática de um crime de Tráfico de Estupefacientes
B. A condenada ficou em situação de prisão preventiva desde 4/10/2000, continuando em cumprimento de pena, após trânsito em julgado do Acórdão e até 23/12/2003, data em que lhe foi concedida Licença de saída Jurisdicional, tendo-se ausentado ilegitimamente e não tendo regressado ao EP.
C. Na sequência da ausência ilegítima, em 17/9/2004, veio a ser declarada contumaz e forma emitidos Mandados de Captura.
D. A reclusa apresentou-se voluntariamente para cumprir o remanescente da pena de prisão em 18/2/2019, sendo o período de ausência ilegítima de 15 anos 1 mês e 26 dias.
E. A reclusa atingiu os 2/3 da pena de prisão em 30/11/2019, estando o termo previsto para 30/11/2021.
F. Para além da condenação acima referida, não consta averbada do seu CRC qualquer outra condenação.
G. A reclusa:
a) Nasceu em 25.10.1963.
b) Foi educada pelos avós paternos e teve um percurso escolar bem sucedido até à conclusão do 12° ano. Após, a vontade de independência levou-a a iniciar a vida laboral.
c) Ficou habilitada com o 12° ano de escolaridade e ocupou-se laboralmente como operária fabril.
d) Casou e teve uma filha, agora com 35 anos. Entretanto separou-se e depois divorciou-se.
e) Há cerca de 15 anos emigrou para Inglaterra, onde chegou a explorar negócio próprio de café/restaurante, o qual refere ter encerrado em Setembro de 2018. Estava a trabalhar recentemente numa fábrica de chocolates.
f) Não vinha a Portugal por saber que podia ser reconduzida à prisão.
g) Em Inglaterra viveu com o atual companheiro.
h) Justifica a ausência ilegítima com a ameaça de credores que a abordaram durante a licença de saída jurisdicional e com os quais acordou um prazo de 4 meses para pagar a divida, afirmando que o fez para proteger a sua filha.
i) Reconhece a ilicitude dos factos e as consequências e danos para a sociedade em geral.
j) Encontra-se afastada dos consumos de estupefaciente.
l) No EP trabalha na oficina D… e está inscrita na E…, bem como, no ginásio.
m) Não tem infracções disciplinares, mantendo comportamento adequado às regras institucionais.
n) No âmbito do cumprimento do remanescente da pena não beneficiou de medidas de flexibilização.
o) Quando em liberdade pretende ir viver com a filha, genro e neta, os quais se mostram disponíveis para a receber. As necessidades de subsistência da condenada encontram-se asseguradas pelos salários da filha e companheiro desta, sub-gerentes no C…, referindo que os rendimentos são suficientes para integrar as despesas relativas à satisfação das necessidades básicas da condenada.
p) Não tem inserção laboral garantida.
q) Quando ouvida, questionada sobre a motivação que esteve na origem da prática do crime, refere que era consumidora de cocaína e heroína desde 1997, tinha 31/32 anos e tinha como objectivo conseguir dinheiro para os consumos.
Trabalhava num restaurante mas devido aos consumos perdeu o trabalho; afirma que foi condenada a 6 anos de prisão e na segunda licença jurisdicional, devido ao facto de a filha se encontrar desempregada e com uma filha pequena, quis ajudá-la economicamente e decidiu ir para Espanha.
Na altura sabia que estava a fazer mal mas o mais importante para si era ajudar a filha.
De Espanha foi para Inglaterra onde permaneceu até se vir entregar. Na decisão de se vir entregar pesou o facto de não poder vir a Portugal e estar com a sua família e pretendeu colocar um fim a esta situação por ter sido um erro seu.
Está arrependida de ter praticado o crime porque não ganhou nada com isso, perdeu uma vida inteira.
Relativamente à fuga ao cumprimento da pena considera que foi uma opção errada.
Quando tiver a liberdade vai viver com a filha e esta conseguir-lhe-á emprego numa empresa de limpeza que presta serviço para o C…. Enquanto não trabalhar o agregado familiar da filha tem meios para a apoiar. Recebe visitas da filha no EP. Refere que, desde 2000, nunca mais consumiu drogas, tendo efectuado tratamento no EP.
III. Motivação da matéria de facto
Para prova dos factos acima descritos o tribunal atendeu aos seguintes elementos constantes dos autos, analisados de forma objetiva e criteriosa criteriosa e complementados pelos esclarecimentos prestados em sede de Conselho Técnico: - Certidão do Acórdão condenatório;
- Apenso de revogação da licença de saída jurisdicional (Apenso C);
- Contagem do remanescente da pena de prisão de fls.12;
- Certificado do Registo Criminal de 26 a 27.
- Ficha biográfica de fls. 29;
- Relatório dos serviços de educação de fls. 30 a 32;
- Relatório dos serviços de reinserção social de fls. 33 a 35;
- Declarações da reclusa de fls. 47.
IV. Fundamentação jurídica
O instituto da liberdade condicional, enquanto incidente de execução da pena de prisão que antecipa a libertação do condenado, visa eliminar ou, pelo menos, esbater, o efeito criminógeno da pena e consequente aumento das dificuldades dos condenados em regressarem, de forma integrada, ao seio da comunidade, terminado que seja o respetivo cumprimento (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, págs. 528 e 542).
Pode ler-se, a propósito, no ponto 9 do Preâmbulo do C. Penal (1982): «Definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a liberdade condicional serve, na política do Código, um objetivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.».
Não estamos, assim, perante um instituto concebido como medida de clemência ou como mera compensação pela boa conduta prisional, mas antes, como um incentivo e auxílio ao condenado, uma vez colocado em meio livre, a não recair na prática de novos delitos, permitindo-lhe uma adaptação gradual à nova realidade e a consequente adequação da sua conduta aos padrões sociais.
Daí que, sejam razões de prevenção geral positiva e de prevenção especial de socialização que estão na base do instituto, em plena conformidade, aliás, com as finalidades das penas assinalados no art. 40°, n° 1, do Código Penal (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 528).
Estatui o art. 61° do Código Penal que:
1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.
3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.
4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.
5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.
A concessão da liberdade condicional depende da verificação de pressupostos formais e substanciais.
São pressupostos de natureza formal de tal instituto os seguintes:
a) O consentimento do condenado (artigo 61°, n° 1, do Código Penal (CP);
b) O cumprimento de, pelo menos, seis meses da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61°, n° 2 e 63°, n° 2, do CP);
c) O cumprimento de 1/2, 2/3 ou 5/6 da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61°, n°s 2, 3 e 4 e 63°, n° 2, do CP).
A liberdade condicional quando referida a 1/2 ou a 2/3 da pena (liberdade condicional facultativa) consiste num poder-dever do tribunal vinculado à verificação de todos os pressupostos formais e materiais estipulados na lei, sendo que estes últimos são em número diferente consoante estejamos perante o final do primeiro ou do segundo dos supra referidos períodos de execução da pena de prisão.
Por seu turno, são requisitos substanciais (ou materiais) da concessão da liberdade condicional (exceto na situação do n.° 4):
a) que, de forma consolidada, seja de esperar, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, tendo-se para tanto em atenção as circunstâncias do caso, a sua vida anterior, a respetiva personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão (que constituem índices de ressocialização a apurar no caso concreto); e
b) a compatibilidade da libertação com a defesa da ordem e da paz social (exceto, também, na situação do n.° 3).
Ora, no que se reporta aos requisitos da liberdade condicional, é comummente aceite e lido que a alínea a) se reporta e assegura finalidades de prevenção especial, ao invés da alínea b) que antes visa finalidades de prevenção geral.
Como tal, dando o efetivo relevo ao fito de reinserção social por parte da liberdade condicional, vislumbrável através da condução de vida por parte do libertado condicional de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, haverá para tanto que no caso em análise, para efeitos da alínea a) - no propósito de prevenção especial inerente - atender- se, fundadamente, a tais dimensões subjetivas pelas seguintes vias:
1) circunstâncias do caso: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta dos crimes cometidos e pelos quais operou condenação em pena de prisão, o que se deve fazer por via da apreciação da natureza dos crimes e das realidades normativas que deram azo à efetiva determinação concreta da pena, face ao art. 71.° CP e, por efeito inerente, à medida concreta da pena, assim se atendendo ao grau de ilicitude do facto, ao concreto modo de execução deste, bem como à gravidade das suas consequências e ao grau de violação dos deveres impostos ao agente; determinando a intensidade do dolo ou da negligência considerada; atendendo aos provados sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; acompanhando as condições pessoais do agente e a sua situação económica; atentando na conduta anterior ao facto e na posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; considerando a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta foi censurada através da aplicação da pena.
2) consideração da vida anterior: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta do constante do CRC - simples existência, ou não, de antecedentes criminais.
3) personalidade do condenado: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta, ainda que por via estatística, do passado criminal postulado nos existentes antecedentes criminais, elemento este que se pode revelar como fortemente indiciador de uma personalidade disforme ao direito e, como tal, não merecedora da liberdade condicional, tudo com o firme propósito de aquilatar e compreender se o determinado percurso criminoso do condenado se gerou em circunstâncias que o mesmo não controlou, ou não controlou inteiramente (a chamada culpa pela condução de vida).
4) evolução da personalidade do condenado durante a execução da pena de prisão: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta, não só pelos comportamentos assumidos institucionalmente pelo condenado no seio prisional (a vulgar esfera interna psíquica do condenado), mas essencialmente por via dos padrões comportamentais firmados de modo duradouro e que indiciem um concreto e adequado processo evolutivo de preparação para a vida em meio livre, sempre temperados nos limites da liberdade condicional.
Por seu turno, para efeitos da alínea b) - no propósito de prevenção geral inerente - há que atender a tal dimensão subjetiva através do assegurar do funcionamento da sua vertente positiva, que a lei, outrossim, já prevê como uma das suas valências ao instituir que a mesma serve a defesa da sociedade (art. 42°, n°1 do Cód. Penal).
Por último, em termos de duração da liberdade condicional, fixa o n°5 do art. 61° do Cód. Penal, que esta tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.
*
Verificados que estão os pressupostos formais para a concessão da liberdade condicional (aquisição temporal e consentimento do condenado, este último imposto pelo art. 61°, n°1, do Cód. Penal), cumpre avaliar o preenchimento dos respetivos requisitos de natureza material, os quais, dada a presente fase da execução da pena, são os estabelecidos no art. 61°, n°2, al. a) do Cód. Penal.
Conforme expendido supra, verifica-se que a condenada cumpre agora o remanescente de uma pena de 6 anos de prisão, sendo que no âmbito desta pena, quando, em Dezembro de 2003, lhe foi concedida a segunda saída jurisdicional, ausentou-se ilegitimamente, foi declarada contumaz e permaneceu ausente durante mais de 15 anos, só se tendo apresentado em 18/2/2019.
Assim, desde logo, face a este comportamento, não há dúvida de que o percurso prisional da condenada, é revelador de uma personalidade claramente desviante e resistente às sanções penais privativas da liberdade, persistindo de forma inultrapassável as necessidades de prevenção especial, que desaconselham a aplicação da liberdade condicional nesta fase da pena.
De facto, é impossível, nesta fase de cumprimento da pena, formular qualquer juízo de prognose favorável perante uma reclusa que frustrou de forma tão intensa e relevante, a confiança que o sistema prisional e o juiz do TEP - com concordância expressa ou tácita do respetivo MP - depositou de que aquela reclusa se encontrava numa via segura de ressocialização que lhe permitiam beneficiar de uma saída jurisdicional de forma responsável. Depois disto, o olhar otimista e confiante, que preside à decisão solidária de conceder a liberdade condicional, será sempre muito mais difícil de conseguir.
Por outro lado, estando a reclusa novamente em cumprimento de pena há apenas 10 meses e, como se retira de ambos os relatórios juntos, quer pelo EP quer pela DGRSP, não é possível avaliar, de forma segura e consistente, a evolução da personalidade da mesma.
Assim, não obstante dispor de enquadramento habitacional e familiar apoiante, a interrupção do cumprimento da pena por período tão prolongado, não permitiu à reclusa qualquer evolução da sua personalidade durante o cumprimento da pena.
Acresce que não beneficiou ainda, no cumprimento do remanescente da pena, de medidas de flexibilização que permitam testar o seu comportamento em meio livre.
Ou seja, a reclusa ainda apresenta necessidades de reinserção social, essencialmente dirigidas à aquisição de competências pessoais e sociais para viver de acordo com as normas, pelo que, se afiguram muito acentuadas as necessidades de prevenção especial que operam no caso em análise, as quais demandam acrescido período de prisão efetiva.
(…)"

III – FUNDAMENTAÇÃO EM MATÉRIA DE DIREITO

A decisão recorrida situa-se na fase da execução da pena, apreciando a questão incidental referente à liberdade condicional da reclusa quando se mostram cumpridos dois terços da pena.
*
Do mérito do recurso:
§ 1 - Da alegada nulidade da decisão recorrida
A motivação do recurso começa por suscitar uma alegada nulidade da decisão recorrida (artigo 410º, nº 2, al. b), do Código de Processo Penal), que consiste numa contradição entre a matéria dada como provada - nomeadamente, que a arguida para além da condenação acima referida, não consta averbada do seu CRC qualquer outra condenação (ponto F, dos factos provados) ou, ainda, que a arguida encontra-se afastada dos consumos de estupefacientes (alínea j), do ponto G, dos factos provados); que a arguida no estabelecimento prisional trabalha na oficina D… e está inscrita na E…, bem como no ginásio (alínea l), do ponto G, dos factos provados); e, também, que a "arguida não tem infrações disciplinares, mantendo um comportamento adequado às regras institucionais, (alínea m), do ponto G, dos factos provados) e a conclusão que se alcança na douta decisão proferida de que "(…) o percurso prisional da arguida é revelador de uma personalidade claramente desviante e resistente às sanções penais privativas da liberdade persistindo de uma forma inultrapassável as necessidades de prevenção especial, que desaconselham a aplicação de liberdade condicional nesta fase da pena.".
No exercício do contraditório, o Ministério Público concluiu inexistir tal contradição.
Cumpre apreciar e decidir.
De jure
A contradição insanável na fundamentação da decisão constitui um vício desta, previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, conforme bem assinalado na motivação do recurso.
Porém, tal contradição ocorre quando, analisando-se o texto da decisão, nomeadamente, a matéria de facto dada como provada e a não provada, ou entre a decisão da matéria de facto e a fundamentação da decisão em matéria de direito, se chega a conclusões contraditórias, insanáveis e irredutíveis, que não podem ser ultrapassadas, recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e/ou, ainda, com recurso às regras da experiência comum.
A recorrente alega existir contradição entre os factos provados acima reproduzidos – relacionados com a ausência de outros antecedentes criminais da reclusa, o seu afastamento do consumo de estupefacientes, a sua prática laboral em meio prisional e a sua inscrição em atividade letiva durante a execução da pena - e a conclusão jurídica vertida na fundamentação, segundo a qual “o percurso prisional da arguida é revelador de uma personalidade claramente desviante e resistente às sanções penais privativas da liberdade persistindo de uma forma inultrapassável as necessidades de prevenção especial, que desaconselham a aplicação de liberdade condicional nesta fase da pena.”
No entanto, sem razão.
Importa recordar como o tribunal chegou à conclusão que a recorrente critica, de modo a aferir se a decisão contrariou os factos provados ou, pelo contrário, se limitou a efetuar uma avaliação distinta dos factos à luz de um critério que explicitou.
Contrariamente ao sugerido na motivação de recurso, o tribunal não retirou aquela conclusão dos factos acima enunciados, mas apesar dos mesmos:
“(…) Conforme expendido supra, verifica-se que a condenada cumpre agora o remanescente de uma pena de 6 anos de prisão, sendo que no âmbito desta pena, quando, em Dezembro de 2003, lhe foi concedida a segunda saída jurisdicional, ausentou-se ilegitimamente, foi declarada contumaz e permaneceu ausente durante mais de 15 anos, só se tendo apresentado em 18/2/2019.
Assim, desde logo, face a este comportamento, não há dúvida de que o percurso prisional da condenada, é revelador de uma personalidade claramente desviante e resistente às sanções penais privativas da liberdade, persistindo de forma inultrapassável as necessidades de prevenção especial, que desaconselham a aplicação da liberdade condicional nesta fase da pena.
De facto, é impossível, nesta fase de cumprimento da pena, formular qualquer juízo de prognose favorável perante uma reclusa que frustrou de forma tão intensa e relevante, a confiança que o sistema prisional e o juiz do TEP - com concordância expressa ou tácita do respetivo MP - depositou de que aquela reclusa se encontrava numa via segura de ressocialização que lhe permitiam beneficiar de uma saída jurisdicional de forma responsável. Depois disto, o olhar otimista e confiante, que preside à decisão solidária de conceder a liberdade condicional, será sempre muito mais difícil de conseguir.
Por outro lado, estando a reclusa novamente em cumprimento de pena há apenas 10 meses e, como se retira de ambos os relatórios juntos, quer pelo EP quer pela DGRSP, não é possível avaliar, de forma segura e consistente, a evolução da personalidade da mesma.
Assim, não obstante dispor de enquadramento habitacional e familiar apoiante, a interrupção do cumprimento da pena por período tão prolongado, não permitiu à reclusa qualquer evolução da sua personalidade durante o cumprimento da pena.
Acresce que não beneficiou ainda, no cumprimento do remanescente da pena, de medidas de flexibilização que permitam testar o seu comportamento em meio livre.
Por conseguinte, o tribunal baseou o seu entendimento – o de que a reclusa evidencia uma personalidade claramente desviante e resistente às sanções penais privativas da liberdade, persistindo de forma inultrapassável as necessidades de prevenção especial, que desaconselham a aplicação da liberdade condicional nesta fase da pena – expressamente no facto de, em Dezembro de 2003, ao beneficiar da segunda saída jurisdicional, se ter ausentado ilegitimamente, sendo declarada contumaz e mantendo-se ausente durante mais de 15 anos, só se tendo apresentado voluntariamente em 18 de Fevereiro de 2019 e estar, por isso, em novo cumprimento de pena há, somente, dez meses, resultando dos relatórios juntos aos autos que não é possível avaliar de forma segura e consistente a evolução da sua personalidade.
Conclui, assim, que não obstante beneficiar de enquadramento familiar e habitacional, a interrupção do cumprimento da pena por período tão alargado não permitiu à reclusa qualquer evolução da sua personalidade durante o cumprimento da pena, sendo ainda certo que não beneficiou mais de quaisquer medidas de flexibilização.
Forçoso é concluir, assim, que o tribunal não incorreu em qualquer contradição entre os factos citados pela recorrente e o juízo negativo à da liberdade condicional, pois extraiu aquela conclusão de outros factos, que valorizou – bem, ou mal, isso já resultará da apreciação da segunda questão suscitada no recurso - de forma categórica.
*
§ 2 - Do alegado erro em matéria de direito
No entender da recorrente a decisão recorrida padece de um erro de direito na interpretação do estatuído nos artigos 61°, números 2 e 3 e 63.°, número 2 do Código Penal, por não ter reconhecido merecer a reclusa o benefício da liberdade condicional, tendo em conta os seguintes fatores de ponderação:
a) A reclusa cumpria ininterruptamente uma pena de 6 anos de prisão, que teve o seu início no dia 04/10/2000, até ao dia 23/12/2003 quando, na sequência da segunda licença de saída jurisdicional, se ausentou ilegitimamente, não tendo regressado ao estabelecimento prisional, quando já tinha cumprido três anos, dois meses e dezanove dias de prisão efetiva;
b) Tal ausência deveu-se a imperativos de auxílio financeiro à sua filha, que se encontrava desempregada e com uma filha menor a seu encargo;
c) A ora recorrente arranjou trabalho em estabelecimento de restauração situado no estrangeiro e ali permaneceu durante mais de 15 (quinze) anos seguidos, sem que tivesse praticado qualquer delito de natureza criminal;
d) Findo esse período, aos 56 anos de idade, apresentou-se voluntariamente no estabelecimento prisional para concluir o cumprimento da pena, denotando uma clara consciência normativa, retidão e vontade de retomar a sua vida de uma forma normal e livre de qualquer atividade ilegítima.
e) Abandonou o consumo de estupefacientes desde o ano 2000.
Pelo exposto, considerando o imenso lapso de tempo que decorreu entre a prática dos factos que levaram à sua condenação e o momento presente e, tomando em consideração o período de mais de quinze anos que se encontrou em liberdade, integrada social e profissionalmente, não é expectável qualquer regresso à atividade de tráfico de produtos estupefacientes, nem sequer à prática de outro qualquer ilícito, tendo, aos 56 anos de idade, a oportunidade de ir viver com a sua única filha, a qual poderá coloca-la a trabalhar no mesmo supermercado "C…" onde exerce funções.
Conclui, assim, que todas as razões, quer de prevenção geral, quer especial, se encontram completamente acauteladas, justificando a concessão da liberdade condicional à luz do disposto nos artigos 61°, números 2 e 3 e 63°, número 2 do Código Penal.
O Ministério Público defende a solução vertida na decisão recorrida, substancialmente, com base nos fundamentos na mesma exarados.
Cumpre apreciar e decidir.
De jure
A liberdade condicional[3], quando referida a 1/2 ou a 2/3 da pena (liberdade condicional facultativa) consiste num poder-dever do Tribunal, vinculado à verificação de todos os pressupostos formais e materiais estipulados na lei -, sendo estes últimos diferentes, consoante se esteja no final do primeiro ou do segundo de tais períodos de execução da pena de prisão -.
A sua aplicação assenta em vários pressupostos, de natureza formal e material.
Os primeiros compreendem:
- O consentimento do condenado (artigo 61°, nº 1, do Código Penal);
- O cumprimento de, pelo menos, seis meses da pena de prisão (artigo 61°, nº 2, do Código Penal);
- O cumprimento de 1/2, 2/3 ou 5/6 da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61º, números 2, 3 e 4 e 63º, nº 2, ambos, ainda, do mesmo texto legal).
O Tribunal a quo reconheceu, na decisão recorrida, que os pressupostos de natureza formal se encontram reunidos.
Quanto à matéria jurídica em discussão no recurso, importa recordar o estatuído no número 3 do art. 61º, do Cód. Penal:
“3. O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.”
Em consequência, a aplicação do instituto da liberdade condicional aos dois terços da pena, depende da verificação do seguinte requisito:
Formulação de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado uma vez restituído à liberdade.
Tanto a decisão recorrida, como a motivação do recurso - e a resposta a este – reiteram ser esse o critério legal a aplicar à solução da questão jurídica controvertida.
Este requisito material harmoniza-se com as já referidas finalidades das penas e da execução da pena de prisão, estatuídas nos arts. 40º n.º 1 e 42º n.º 1, do Código Penal e 2.º, n.º 1 do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, fazendo apelo a considerações de prevenção especial [positiva ou de ressocialização e negativa ou de prevenção da reincidência].
Deste modo, a liberdade condicional é aplicada, nos termos da Lei, em função da emissão de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do recluso uma vez restituído à liberdade, decorrente da avaliação das circunstâncias concretas do caso, da vida anterior do agente, da sua personalidade e da evolução desta durante a execução da pena de prisão.
A solução da questão controvertida encontra-se, como normalmente acontece, na avaliação do caso concreto em apreço, aferindo a viabilidade de formulação de um juízo de prognose favorável, ajustado à «finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização», implicando «uma certa medida de probabilidade de, no caso da libertação imediata do condenado, este conduzir a sua vida em liberdade de modo responsável, sem cometer crimes, essa medida deve ser a suficiente para emprestar fundamento razoável à expectativa de que o risco de libertação já possa ser comunitariamente suportado».
Percebe-se, assim, que nesta modalidade de liberdade condicional facultativa (aos dois terços da pena), já não são decisivas as preocupações de prevenção geral (contrariamente ao que sucede na ponderação da possibilidade de concessão da liberdade condicional estando apenas decorrido o cumprimento de metade da pena): a liberdade condicional facultativa aos 2/3 da pena de prisão depende, quase exclusivamente, da ponderação de razões de prevenção especial, seja negativa (de que o condenado não voltará a delinquir), seja positiva (conducente à sua reinserção social).[4]
Tal acontece, uma vez que “No momento de apreciação da liberdade condicional, quando o condenado já cumpriu dois terços da pena, deve entender-se que esse cumprimento parcial satisfaz plenamente as razões de prevenção geral, ficando a liberdade condicional, quando facultativa, apenas dependente do cumprimento das exigências de prevenção especial [5].
Importa considerar, assim, as repercussões do cumprimento da pena tendo em perspetiva a personalidade da reclusa: interessa avaliar se as expectativas de reinserção são superiores aos riscos que a comunidade deverá suportar com a antecipação da sua restituição à liberdade. Tal só será possível mediante um prognóstico favorável à reinserção social da condenada, assente, essencialmente, na probabilidade séria de que a mesmo em liberdade adote um comportamento socialmente responsável.
As especificidades do caso concreto em apreço são, de algum modo, paradigmáticas.
O tribunal “a quo” negou a liberdade condicional à reclusa, por concluir que a interrupção do cumprimento da pena por mais de quinze anos não permitiu à reclusa qualquer evolução da sua personalidade durante o cumprimento da pena, não tendo a mesma ainda beneficiado de quaisquer medidas de flexibilização.
Para tanto, valorizou a ausência ilegítima, por mais de quinze anos, estando de novo em cumprimento de pena há, somente, dez meses, resultando dos relatórios juntos aos autos que não é possível avaliar de forma segura e consistente a evolução da sua personalidade.
Porém, salvo o devido respeito, a factualidade provada na decisão recorrida merece conclusão diversa, pois o ato de julgar significa escolher e decidir com independência, ponderando a globalidade dos factos, tendo em consideração os critérios legais.
Não se pode valorizar uma ausência – ilegítima, é certo - por mais de quinze anos, sem ter em consideração as razões que motivaram tal comportamento e, sobretudo, sem ponderar se tal período foi, ou não, aproveitado pela reclusa para a sua devida reinserção social e demarcação do modo de vida anterior no qual praticou o crime cuja pena se encontra em execução.
No caso concreto em apreço:
a) a ora recorrente ausentou-se ilegitimamente durante mais de quinze anos, tendo emigrado, por ter necessidade urgente de apoiar economicamente a sua filha, a qual ficara desempregada, tendo a seu cargo uma filha – neta da reclusa -;
b) No estrangeiro explorou um negócio próprio de café/restaurante, que encerrou em Setembro de 2018 e, a seguir, trabalhou numa fábrica de chocolates;
c) Esteve familiarmente inserida, não voltou a cometer qualquer crime e afastou-se do consumo de estupefacientes – prática relacionada com o tráfico de estupefacientes pelo qual fora condenada (pena exequenda) -;
Complementarmente:
a) Não cometeu qualquer infração disciplinar em meio prisional;
b) Quando for restituída à liberdade, pretende viver com a sua filha, genro e neta, os quais se mostram disponíveis para recebê-la.
Perante este quadro global entende-se que, não obstante ter sido ilícita a sua ausência ilegítima, a ora recorrente aproveitou a mesma para mudar o seu modo de vida de forma paradigmática, passando a pautar a sua vida durante mais de quinze anos de modo exemplar, tendo-se afastado do meio e abandonado o consumo de estupefacientes que caracterizaram a sua situação pessoal há cerca de duas décadas e conduziram ao cometimento do crime cuja pena se encontra em execução. É diferente, indiscutivelmente, que uma cidadã demonstre capacidade para se integrar de forma válida na sociedade, trabalhando, apoiando a sua família e participando de forma positiva na comunidade e não voltando a cometer crimes, ou, pelo contrário, permanecer em meios marginais à própria sociedade, não contribuindo para o desenvolvimento da comunidade nem para o seu próprio bem-estar pessoal e familiar.
Complementarmente, a ainda reclusa evidenciou comportamento correto no meio prisional e a intenção de se reintegrar na sua família e de trabalhar uma vez restituída à liberdade.
Todo o exposto evidencia uma situação que deve ser classificada de excecional e é favorável à concessão da liberdade condicional - solução que pressupõe uma efetiva redução das preocupações de prevenção especial emergentes do passado da condenada e que se mostra bem evidenciada no caso em apreço -.
Uma ausência ilegítima “per se” ou um menor tempo de reclusão desde a entrega voluntária para cumprimento do remanescente da pena não podem fundamentar, em exclusivo, uma negação da liberdade condicional.
Devem ser ponderadas, também, as razões que motivaram tal comportamento e, sobretudo, sendo muito longo, se o período de ausência foi, ou não, aproveitado pela reclusa para a sua devida reinserção social e demarcação do modo de vida anterior no qual praticou o crime cuja pena se encontra em execução, de modo a gerar uma efetiva redução das preocupações de prevenção especial, permitindo formular o desejável juízo de prognose favorável que viabiliza a liberdade condicional nos termos do disposto no artigo 61º, número 2, al. a), “ex vi” do número 3 do mesmo artigo.
Como referido, a lei exige, para a concessão da liberdade condicional, que seja "fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes" (artigo 61°, nº 2, al. a), do Código Penal, ex vi do nº 3 do mesmo artigo). Também neste contexto vigora o princípio da intervenção mínima do direito penal, igualmente designado "princípio da subsidiariedade do direito penal". Neste quadro, “as circunstância do caso”, a evolução da personalidade da condenada manifestada em liberdade sustenta o juízo de prognose favorável à reclusa, sendo de enaltecer o seu percurso positivo, que merece ser premiado com a sua libertação – que, importa recordar, não deixa de ser condicional -.
A realidade provada nos autos permite formular o desejável juízo de prognose favorável que viabiliza a liberdade condicional nos termos do disposto no artigo 61º, número 2, al. a), “ex vi” do número 3 do mesmo artigo, razão pela qual não poderá subsistir a decisão recorrida e deverá ser concedida a liberdade condicional à condenada, até 22 de Fevereiro de 2022[6], sujeita à observância das seguintes condições:
a) fixar residência em território nacional, que comunicará, de imediato, à DGRSP – assim como qualquer alteração da mesma que venha a realizar no decurso do período de liberdade condicional;
b) reintegrar o seu meio familiar;
c) respeitar as contingências da regulamentação do estado de emergência;
d) procurar atividade laboral remunerada, comunicando de imediato à DGRSP a identidade da sua entidade patronal;
e) apresentar-se e colaborar com a DGRSP que tutelará a condenada, sempre que para tal seja solicitado, sem prejuízo do exercício de atividade laboral.
*
Conclui-se, assim, pela procedência da pretensão recursória, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se a liberdade condicional da reclusa.
*
Das custas:
Sendo o recurso da reclusa julgado provido, não há lugar a custas.
*
IV – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores em conferência e por unanimidade, julgar provido o recurso da reclusa B… e, em consequência, decidem:
a) revogar a decisão recorrida;
b) conceder liberdade condicional à reclusa B… até ao termo da pena (vinte e dois de Fevereiro de dois mil e vinte e dois), sujeita à observância das seguintes condições:
a. fixar residência em território nacional, que comunicará, de imediato, à D.G.R.S.P.[7] – assim como qualquer alteração da mesma que venha a realizar no decurso do período de liberdade condicional;
b. reintegrar o seu meio familiar;
c. respeitar as contingências da regulamentação do estado de emergência;
d. procurar atividade laboral remunerada, comunicando de imediato à DGRSP a identidade da sua entidade patronal;
e. apresentar-se e colaborar com a DGRSP que tutelará a condenada, sempre que para tal seja solicitado, sem prejuízo do exercício de atividade laboral.
c) Sem custas.
*
Passem-se mandados de libertação imediata, sem prejuízo de interessar a detenção ou prisão da condenada à ordem de qualquer outro processo.
*
Comunique, com cópia, ao Tribunal de Execução das Penas do Porto, ao Estabelecimento Prisional (Feminino) de Santa Cruz do Bispo (Feminino)P da Covilhã e à D.G.R.S.P..
*
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 22 de Abril de 2020.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
____________________
[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[3] Através da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, a natureza jurídica deste instituto foi concretizada, finalmente, em termos claros, enquanto incidente de execução da pena de prisão, uma vez que a sua aplicação depende sempre do consentimento do condenado e a sua duração não pode ultrapassar o tempo de pena que ainda falta cumprir o que se justifica político-criminalmente à luz da finalidade preventiva especial de reintegração do agente na sociedade e do princípio da necessidade de tutela de bens jurídicos nos termos do estatuído no art. 40º n.º 1 do Código Penal.
[4] Neste sentido, de forma modelar, o acórdão desta Relação e Secção, de 10 de Setembro de 2014, relatado pela Desembargadora Dra. Maria Dolores Silva e Sousa (ora adjunta), no processo nº 385/11.3TXPRT-M.P1.
[5] Conforme referido no acórdão datado de 18 de Fevereiro de 2009, deste Tribunal e Secção, citado no acórdão identificado na nota anterior.
[6] Nos termos do disposto no artigo 61º, nº 5, do Código Penal e tendo em consideração a liquidação e contagem de pena constante a folhas 73 deste apenso e decidida nos autos principais pelo despacho datado de 27 de Fevereiro de 2019.
[7] Equipa da DGRSP de Porto Penal 1, Rua da Boavista, nº 691 4050 -110 PORTO; Tel: 222085775; Fax 223322870; e-mail: correio.porto.pl@dgrsp.mj.pt.