Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ISOLETA DE ALMEIDA COSTA | ||
Descritores: | AUTORIDADE DO CASO JULGADO TERCEIRO JURIDICAMENTE INDIFERENTE CREDOR HIPOTECÁRIO EXECUÇÃO ESPECÍFICA | ||
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Nº do Documento: | RP2023030911183/21.6T8PRT-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/09/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A autoridade do caso julgado vincula apenas quem tenha sido parte na respetiva ação, pelo que prescindindo da identidade objetiva exige a identidade das partes, admitindo-se restrições a este princípio apenas nos casos expressamente ressalvados na lei, quanto à extensão do efeito favorável do “caso julgado”. Trata-se do corolário do princípio do contraditório previsto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição e no artigo 3.º do Código de Processo Civil. II - A regra geral é a de que apenas nos casos em que a sentença não lhes causa qualquer prejuízo jurídico, porque deixa integra a consistência jurídica do seu direito, embora lhes cause um prejuízo de facto ou económico os terceiros têm de acatar a sentença proferida entre as partes e a correspondente definição judicial da relação litigada. III - O credor hipotecário não é terceiro juridicamente indiferente em ação de execução especifica de contrato promessa do imóvel hipotecado que correu termos entre o devedor e o prometido comprador, não lhe sendo oponível a autoridade de caso julgado da decisão proferida se não teve qualquer intervenção no processo. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo: 11183/21.6T8PRT-A.P1 Sumário (artigo 663º nº 7 do Código de Processo Civil) ……………………………… ……………………………… ……………………………… ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: Por apenso à execução hipotecária que a “Banco 1...” lhes moveu, vieram os executados AA e BB, com os sinais nos autos, apresentar os presentes embargos de executado, pedindo a sua procedência e, em consequência, que seja determinada a extinção da instância executiva, com as legais consequências. Invocam que a hipoteca sobre a fracção “Q” já foi cancelada. Que, em 2013/07/01 por sentença proferida em ação Declarativa –DL 108/2006 – Processo: 595/12.6TVPRT, foi reconhecida e declarada a compra- venda a favor dos executados, da fração autónoma, designada pela letra “Q”, referente ao 3º andar, inscrito na matriz predial urbana sob o nº ... e descrito na Primeira Conservatória sob o nº ..., Livro-B, livre de ónus e Encargos. A exequente pugna pela improcedência destes embargos Foi proferido saneador sentença QUE DECLAROU A AUTORIDADE DE CASO JULGADO DA SENTENÇA PROFERIDA NO PROCESSO N.º 595/12.6TVPRT, QUE CORREU TERMOS PELA EXTINTA Julgou assentes os seguintes factos: 1. - No exercício da sua atividade creditícia, a Exequente celebrou com a sociedade "A..., Lda." um acordo denominado “Compra e Venda Empréstimo com Hipoteca e Mandato” mediante o qual lhe emprestou (Empréstimo n.º ...), o montante de € 1.100.000,00 (um milhão e cem mil euros), formalizado em 31 de Julho de 2008, por escritura pública, empréstimo esse destinado a aquisição de doze frações para revenda, entre elas a fração “Q” abaixo identificada, nos termos constantes do documento n.º 1 junto com o requerimento executivo, e cujo teor se dá aqui por reproduzido, sendo que, para garantia do capital mutuado pelo empréstimo supra descrito, respetivos juros e despesas, a sociedade mutuária constituiu hipoteca voluntária, em benefício da Exequente, sobre os seguintes imóveis: (…) h) fração autónoma designada pela letra “Q” descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º .../...-S e inscrita na matriz predial urbana sob o art. ......; 2 - Dentre tais imóveis, permanecem hipotecadas, na presente data, as frações autónomas designadas pelas letras (…) "Q", (…). 3 - A referida hipoteca foi registada a favor da Banco 1..., ora Exequente, pela inscrição lavrada com base na apresentação 73 de 2008/08/06 do Porto sob o n.º .../...-Q e inscrita na matriz predial urbana sob o art. ......; 4 - A fração autónoma designada pela letra “Q” foi transmitida e encontra-se registada na titularidade de AA e BB, pela inscrição lavrada com base na apresentação 535 de 2013/07/01, registada a aquisição, por decisão judicial, transitada em julgado em 18.2.2013 - ação de execução específica de contrato promessa de compra e venda proferida no âmbito dos autos 595/12.6TVPRT (…) 5 – A sentença referida em tem o seguinte segmento decisório: (…) 6 – (…) A hipoteca invocada pela exequente não foi cancelada. 7. A exequente não foi demandada na acção 595/12.6TVPRT, correu termos pela extinta 3.ª Vara Cível do Tribunal Judicial do Porto, nem nele teve intervenção a qualquer título. 8 - A sociedade mutuária "A..., Lda." foi insolvente no âmbito do processo que, com o n.º 952/12.8TBEPS, corre termos no Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Comércio. A Banco 1... APELO. FORMULOU AS SEGUINTES CONCLUSÕES: 1. A ora Recorrente goza de garantia real hipotecária sobre a fração autónoma, letra “Q”, descrita na CRP do Porto sob n.º ... ...- “Q”, constituída a seu favor pela sociedade “A..., Lda.” para garantia de um contrato de mútuo celebrado com a ora Recorrente, Banco 1.... 2. A garantia não se extinguiu com a venda do imóvel, decretada na sentença proferida na ação intentada pelos atuais proprietários da fração contra a anterior proprietária “A...”, na sequência da celebração entre ambas de um contrato-promessa de compra e venda que aquela sociedade não cumpriu. 3. Isto, ainda que daquela sentença conste, como consta, a menção de que a fração é vendida livre de ónus ou encargos. 4. É que a Banco 1... não foi chamada a intervir naquela ação de execução específica. Não exerceu o seu direito de contraditório. 5. Em relação àqueles autos a Recorrente ocupa a posição de terceiro juridicamente interessado. 6. A Recorrente não teve qualquer intervenção nos mesmos logo, tal decisão não lhe é oponível, nem tem a mesma, em relação a si, força de caso julgado – entendimento doutrinal que vem sendo pacificamente acolhido na jurisprudência. 8. Acresce que, aquela sentença é completamente omissa no que à hipoteca diz respeito, fazendo apenas menção aos ónus pignoratícios. 9. Sendo que, aliás, faz depender o cancelamento daqueles ónus registados sobre a fração do pagamento prévio dos créditos que os mesmos asseguram. 10. Lógica que se aplica, por maioria de razão, também à credora hipotecária. 11. Donde se pode concluir que não era pretensão do Tribunal extinguir os ónus, sem mais, isto é, sem pagamento dos créditos. 12. O que nunca ocorreu, não tendo a credora hipotecária sido paga em momento algum. 13. Pelo que a hipoteca em questão não poderá ser cancelada sem a satisfação do crédito exequendo, o que se pretende com a presente execução. Deve ser reconhecida a existência da hipoteca registada a seu favor e ordenando o normal prosseguimento dos autos executivos. Os executados sustentaram o acerto do saneador sentença Nada obsta ao mérito. OBJETO DO RECURSO: O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil). Em consonância e atentas as conclusões da recorrente as questões a decidir é a de saber se a sentença proferida nos autos de execução especifica nº 595/12.6TVPRT referente ao imóvel hipotecado tem força de autoridade de caso julgado em relação ao credor hipotecário que não foi parte/interveniente em tais autos O MÉRITO DO RECURSO: FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA: FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO: Dá-se aqui por reproduzida a factualidade supra. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO: Insurge-se a Exequente contra a declaração, no que lhe diz respeito, dos efeitos de autoridade de caso julgado da sentença proferida na ação de execução específica de contrato promessa processo nº 595/12.6TVPRT. I Vejamos. O art. 619.º, do Código de Processo Civil, estipula que uma vez transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos arts. 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos arts. 696.º-702.º, do mesmo corpo de normas. Fixa-se nestes preceitos legais o instituto do caso julgado material que tem duas dimensões: a de exceção e a de autoridade. (ver João de Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa, Edições Ática, 1968 pp.38-39; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p.572; José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra, Almedina, 2018, pp.599 e ss 5) Enquanto a exceção é alegada para impedir que seja proferida uma nova decisão, a autoridade é invocada como decisão de um pressuposto de uma nova decisão. Esta distinção supõe a identidade dos objetos processuais na exceção, sendo o objeto da ação anterior repetido na ação subsequente, de um lado, e a diversidade dos objetos processuais na autoridade, surgindo o objeto da primeira ação como pressuposto da apreciação do objeto da segunda. No primeiro caso, deve impedir-se a repetição, porquanto esta iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a. Na segunda hipótese, verificando-se a existência como que de uma dependência do objeto da segunda ação perante o objeto da primeira, as questões comuns não devem ser decididas de modo diferente. Por isso, a decisão da segunda ação deve incorporar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível. Em qualquer caso, o objeto do caso julgado corresponde à parte dispositiva da sentença. O caso julgado (em ambas as suas vertentes) forma-se sobre a decisão. II A análise da questão colocada no recurso prescinde da ponderação dos pressupostos e efeitos da exceção de caso julgado, mesmo que em determinados segmentos se coloquem as mesmas questões, porquanto o que aqui se discute é apenas a autoridade de caso julgado. Reconhecendo a autoridade de caso julgado o juiz deve, pois, assimilar o conteúdo da anterior decisão reportando-se a esta pura e simplesmente. Dissecando um pouco mais este conceito de autoridade de caso julgado convocamos as palavras de Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pg 305 quando ensina que: “ A autoridade de caso julgado versa decisões proferidas sobre o fundo da causa e portanto sobre os bens discutidos no processo; as que definem a relação ou a situação jurídica deduzida em juízo; as que estatuem sobre a pretensão do autor”. III Quanto aos sujeitos, prescindindo da identidade objetiva, a autoridade de caso julgado exige a identidade das partes. "A decisão ou as decisões tomadas na primeira ação vinculam os tribunais em ações posteriores entre as mesmas partes relativas a pedidos e/ou causas de pedir diversos". (Mariana França Gouveia, A causa de pedir na ação declarativa, Coimbra, Almedina, 2004, p.499). Com efeito, a autoridade do caso julgado, enquanto manifestação de um mesmo efeito, vincula apenas quem tenha sido parte na respetiva ação. (admitindo-se restrições a este princípio apenas nos casos expressamente ressalvados na lei, quanto à extensão do efeito favorável do “caso julgado”. A regra geral é a de que “os terceiros têm de acatar a sentença proferida entre as partes e a correspondente definição judicial da relação litigada quando a sentença não lhes causa qualquer prejuízo jurídico, porque deixa integra a consistência jurídica do seu direito, embora lhes cause um prejuízo de facto ou económico”. Manuel de Andrade, ibidem pg 312. IV Os terceiros não têm de acatar a sentença proferida entre as partes se esta lhes pode causar um prejuízo jurídico invalidando ou reduzindo o conteúdo do seu direito. São estes os terceiros juridicamente interessados. Por outras palavras, estes não têm de acatar a sentença proferida entre as partes e a correspondente definição judicial da relação litigada, quando aquela, a valer em face deles lhes poderia causar prejuízo jurídico invalidando a própria existência ou reduzindo o conteúdo do seu direito e não apenas destruindo ou abalando a sua consistência prática (…) a sentença não valendo contra eles também não vale a favor deles. Nesta classe de terceiros há que fazer distinções. Assim os terceiros que são sujeitos de uma relação subordinada (que é aquela dependente de outra que não pode existir ou subsistir sem ela (caso típico da fiança) em princípio a sentença favorável sobre a relação principal aproveita ao terceiro porque a relação de que este é sujeito não pode existir ou manter-se sem a relação litigada e definida entre as partes. Manuel de Andrade, ibidem pg 313. Concluindo “a sentença vale erga omnes como definidora da situação jurídica reinante entre as partes; esta situação jurídica terá depois sobre a situação de terceiros as repercussões (eficácia indireta ou reflexa que possam competir-lhe segundo o direito material – segundo o modo porque este conexiona ou entrelaça as duas situações”. ibidem pg 315. V Podem, assim, aproveitar desse efeito o devedor solidário (art. 522.º do CC, desde que o caso julgado “não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor”), o credor solidário (art. 531.º do CC, “sem prejuízo das exceções pessoais que o devedor tenha o direito de invocar em relação a cada um deles”), o credor de obrigação indivisível (art. 538.º, n.º 2, do CC, “se o devedor não tiver, contra estes, meios especiais de defesa”), o fiador (art. 635.º do CC, “salvo se respeitar a circunstâncias pessoais do devedor que não excluam a responsabilidade do fiador”), o devedor principal (art. 635.º, n.º 2, do CC, “desde que respeite à obrigação principal”), o terceiro autor da hipoteca (art. 717.º, n.º 2, do CC), o contraente beneficiário da nulidade de cláusula contratual geral (art. 32.º, n.º 2, do DL n.º 446/85, de 25 de outubro. VI Sobre esta matéria pronunciou-se de modo assaz esclarecedor, o Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 24.10.2019 (MARIA JOÃO VAZ TOMÉ) 6906/11.4YYLSB-A.L1.S2, in DGSI, e bem assim da mesma Conselheira Relatora, o Acórdão de 08-06-2021, revista 5765/17.8T8LRS.L1.S1, ambos em DGSI, em cujo sumário se pode ler: (…) III. A autoridade do caso julgado, que desenvolve uma função positiva, conduz a que a solução compreendida no julgado se torne vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais (proibição de contradição). Implica uma aceitação de uma decisão proferida numa ação anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda ação, enquanto questão prejudicial. Pressupõe a identidade de sujeitos, mas permite a diversidade de objetos (aliás, é esta diversidade que a demarca da exceção). IV. Esta distinção pressupõe a identidade dos objetos processuais na exceção, sendo o objeto da ação anterior repetido na ação subsequente, de um lado, e a diversidade dos objetos processuais na autoridade, surgindo o objeto da primeira ação como pressuposto da apreciação do objeto da segunda. V. Prescindindo da identidade objetiva, a autoridade de caso julgado exige a identidade das partes. A diferente e distinta personalidade jurídica de ambos os Réus nas duas ações e a diferente qualidade jurídica que a Autora lhes conferiu em cada uma das ações comprometem a identidade de sujeitos necessária à imposição da autoridade do caso julgado formado pela primeira ação na segunda (esta) ação. VII É jurisprudência assente no Supremo Tribunal (ver a jurisprudência citada no aresto referido) que havendo ausência de identidade de sujeitos em duas ações, não pode falar-se de autoridade do caso julgado (ressalvadas as exceções consignadas em lei). Tanto a exceção como a autoridade de caso julgado pressupõem a identidade de sujeitos em ambas as ações. Trata-se do corolário do princípio do contraditório previsto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição e no artigo 3.º do Código de Processo Civil. VIII Ora, no caso destes autos não tem aplicação o artigo 717º nº 2 do CC. A exequente não foi parte no processo nº 595/12.6TVPRT, e não é terceiro juridicamente indiferente, porquanto qualquer decisão em relação à hipoteca que constituiu sobre o imóvel afeta o seu direito de garantia. A ausência de identidade de partes em ambas as ações afasta a autoridade de caso julgado, nos termos expostos, que consequentemente não lhe é oponível IX Acresce que conforme resulta da matéria de facto subsiste o registo da hipoteca sobre o imóvel exequendo, pelo que este segmento dos embargos também não pode ser acolhido. Com efeito, dada a natureza jurídica da hipoteca, (artigo 686.º do Código Civil) o artigo 54º nº 2 do CPC veio estabelecer a possibilidade de, em execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro, o exequente fazer seguir a execução diretamente contra este (….). Esta questão de resto foi decidida sem reparo no saneador sentença recorrido, e não foi objeto de recurso Concluímos deste modo pela razão da apelante. SEGUE DELIBERAÇÃO: PROVIDO O RECURSO. REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, DECLARA-SE OS EMBARGOS IMPROCEDENTES DEVENDO A EXECUÇÃO PROSSEGUIR OS SEUS TERMOS. Custas pelos embargantes/recorridos. Porto, 9 de março de 2023 Isoleta de Almeida Costa Ernesto Nascimento Carlos Portela |