Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
21094/21.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DANO BIOLÓGICO
ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RP2023060521094/21.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/05/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O dano biológico deve ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica do lesado, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho.
II - Para efeitos de indemnização autónoma do dano biológico, na sua vertente patrimonial, só relevam as implicações de alcance económico, sendo as demais vertentes do dano biológico, que traduzem sequelas e perda de qualidade de vida do lesado sem natureza económica, ponderadas em sede de danos não patrimoniais, razão pela qual o dano biológico na vertente de dano patrimonial futuro não pode ser também indemnizado autonomamente como dano biológico a se.
III - Nos casos em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que, só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
IV - De acordo com a jurisprudência dominante nas situações em que o evento lesivo se reveste simultaneamente da natureza laboral e civil, traduzindo-se num acidente de trabalho e de viação, as indemnizações a atribuir ao lesado, em sede laboral e em sede cível, não são cumuláveis, mas sim complementares até ao ressarcimento da totalidade do dano.
V - Verifica-se a existência de danos distintos, cujo ressarcimento se impõe, sem que haja lugar a qualquer dedução do montante indemnizatório atribuído no foro laboral na indemnização conferida na ação cível pelo ressarcimento do dano biológico.
VI - Na apreciação, em sede de recurso, o montante arbitrado a título de compensação por danos não patrimoniais, estando em causa critérios de equidade, apenas deve ser reduzido quando afronte manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 21094/21.0T8PRT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível do Porto-J8

Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. António Mendes
2º Adjunto Des. Dr. Miguel Baldaia


Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
AA, residente Rua ..., ..., intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma comum contra A..., S.A., com sede na Avenida ..., ..., Lisboa, pedindo a condenação desta a pagar-lhe indemnização, no valor global de 47.532,77€, com fundamento nos danos não patrimoniais (dano biológico, dano estético e quantum doloris–47.500,00€) e nos danos patrimoniais (custo de uma andadeira–32,77€) que lhe advieram na sequência de acidente de viação.
Alegou em síntese que tal acidente foi causado por condutor de veículo cuja responsabilidade pelos danos decorrentes da sua circulação estaria transferida para a Ré.
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Contestou a Ré admitindo, em traços gerais, a dinâmica do acidente descrita na petição inicial e a celebração do referido contrato de seguro e na medida que expressamente declara que não põe em causa a responsabilidade do veículo por si seguro na produção do acidente dos autos (artigo 7.º da contestação); impugnou, no entanto, as consequências que do embate lhe terão advindo.
Mais alegou que o acidente em causa foi classificado, simultaneamente, como acidente de trabalho, tendo a Congénere/Seguradora“B...”(que admitiu a transferência da responsabilidade infortunística da entidade patronal do A. por via da apólice de seguro que a garantia) assumido o pagamento das prestações a que o A. tem direito por força da Lei dos Acidentes de Trabalho (LAT)–Lei n.º 100/97, de 13/7– nomeadamente, indemnizações pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho sofridos até à data de alta clínica, pensão anual e vitalícia a partir da alta clínica, e incapacidade permanente para o trabalho que lhe foi determinada em função da TNI, pelo que, no âmbito do processo de trabalho n.º 21317/19.5T8PRT e, no que diz respeito a eventuais perdas salariais, o A. já se encontra devidamente indemnizado, nada mais havendo a liquidar a esse título.
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Foi determinada a citação da Segurança Social nos termos do art. 1.º do DL 58/89, de 22/02.
A Segurança Social, devidamente citada, remeteu-se ao silêncio.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador por escrito, com indicação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, foram admitidos os meios de prova e determinada a realização de perícia (requerida por ambas as partes), com vista a apurar as consequências que do acidente advieram ao Autor.
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Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.
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A final foi proferida decisão que julgou parcialmente procedente por provada a acção e, consequentemente condenou a Ré “A... em Portugal” a pagar ao A. AA:
a)- a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros), a título de indemnização por dano biológico e outros danos não patrimoniais (aqui abrangendo o dano estético e o sofrimento-dores (físicas e psicológicas, acrescida de juros de mora contados desde a presente data até integral pagamento; e
- a quantia de 32,77€ (trinta e dois euros e setenta e sete cêntimos), acrescida dos juros de mora, contabilizados à taxa legal de 4% e contados desde a data da sua citação até efectivo e integral pagamento.
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Não se conformando com o assim veio a Ré interpor o presente recurso rematando a alegação recursiva com extensas conclusões que aqui nos abstemos de reproduzir.
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Devidamente notificado contra-alegou o Autor concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a) - saber os montante indemnizatórios fixados pelo tribunal recorrido relativos quer ao dano biológico quer aos danos patrimoniais se encontram, ou não, correctamente fixados.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. No dia 02 de Janeiro de 2019, pelas 18:10h, o Autor conduzia o motociclo de marca “Yamaha”, modelo ..., com a matrícula ..-UR-.. (doravante designado por “UR”), da sua propriedade, pela Rua ..., fazendo-o no sentido Sul/Norte, na Freguesia ..., no concelho do Porto, quando sofreu um acidente de viação.
2. Naquelas mencionadas circunstâncias de tempo e lugar, o Autor conduzia on“UR”, prosseguindo a marcha pela Rua ..., fazendo-o no sentido Sul/Norte.
3. A via pela qual prosseguia o Autor trata-se de uma recta com piso betuminoso, que possui apenas duas faixas de rodagem destinando-se uma para cada sentido de marcha do trânsito rodoviário.
4. Por sua vez, o veículo automóvel da marca Audi, modelo ..., com matrícula ..-LB-.. (doravante designado por “LB”), segurado pela Ré, circulava na Rua ..., que vem entroncar pelo lado direito na Rua ..., atendo o referido sentido de marcha em que seguia o Autor.
5. Naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, os dois automóveis que seguiam em frente ao Autor, sinalizaram a mudança de direcção para passar a circular na referida Rua ....
6. Após a manobra desses dois veículos, o “UR” prosseguiu a sua marcha em frente, em direcção à Estrada ....
7. Aconteceu que o veículo “LB” iniciou a sua marcha, proveniente daquele arruamento em entrando na Rua ..., onde embateu na lateral do veículo “UR”, projectando-o e ao Autor.
8. De acordo com a sinalização vertical existente no local, no arruamento de onde provinha o automóvel “LB” existe um sinal de “STOP”, obrigando à paragem de todos os veículos daí provenientes e que pretendem entrar na Rua ....
9. O condutor do veículo “LB” não respeitou a sinalização existente no local, pois não imobilizou o veículo de modo a ceder a passagem ao Autor, acabando por invadir a faixa de rodagem em que este circulava.
10. O condutor do veículo “LB”, segurado pela Ré, efectuou a referida manobra sem verificar que da mesma não resultaria qualquer perigo e sem se certificar previamente se circulava algum veículo na Rua ..., invadindo a faixa de rodagem destinada ao sentido da marcha em que circulava.
11. Com o que não se mostrou possível evitar o embate, acabando o Autor por ser colhido pela frente do veículo “LB”, segurado na Ré, o qual embateu no motociclo tripulado pelo A.
12. Face à abruptidão do surgimento do “LB”, não foi possível ao Autor evitar a trajectória do veículo e o consequente embate do mesmo.
13. Como consequência directa do acidente, o Autor sofreu ferimentos que resultaram em:
- Fractura diáfise do fémur direito
- Fractura exposta, dos ossos da perna direita “Grau I Gustillo”;
- Fractura do calcâneo do pé direito
- Internamento hospitalar no serviço de ortopedia do Hospital 1...;
- Uma intervenção cirúrgica, a 02/01/2019 para encavilhamento fémur direito e da tíbia direita;
14. Em consequência dos ferimentos causados no Autor pelo referido acidente de viação, o mesmo foi submetido a internamento hospitalar por um período de 7 (sete) dias, entre o dia 02/01/2019 e 09/01/2019, recebendo alta médica em 09/01/2019.
15. Após alta hospitalar, o Autor passou a ser seguido pelos serviços do Hospital 2..., comparecendo a consultas regulares entre 11/01/2019 e 16/10/2019, como decorre do teor dos documentos incorporados como.
16. O Autor teve de passar a frequentar sessões de recuperação fisiátrica para recuperar a mobilidade da perna direita, durante um período de nove meses.
17. Mesmo depois de ter recebido a alta hospitalar, o Autor continuou a manter a sua mobilidade reduzida, pelo menos até Maio de 2019, continuando a recorrer ao uso de “canadianas” para se poder deslocar.
18. Bem como a depender da ajuda de terceiros para a realização de algumas tarefas quotidianas, nomeadamente para tomar banho, para vestir ou calçar e até para o transportar nas suas deslocações à fisioterapia.
19. O que representou para o Autor uma profunda alteração do seu modo e estilo de vida.
20. O Autor, desde a data do acidente (02/01/2019) até, pelo menos finais de Outubro de 2019, esteve privado da sua autonomia e deixou de viver o seu quotidiano como até então o vinha a fazer.
21. Vendo-se, por isso, o Autor privado de desenvolver com normalidade a sua rotina diária que até à data do acidente mantinha.
22. Em virtude do acidente, o Autor sofreu dores, as quais persistiram com especial acentuação durante o primeiro mês e que o inibiam de realizar qualquer tipo de movimentos.
23. Durante os primeiros dias subsequentes ao acidente, o Autor padeceu de dores agonizantes.
24. À data do acidente de viação, a mulher do Autor encontrava-se grávida de cerca de 7 (sete) meses de gestação.
25. A mulher do Autor esteve em situação de baixa médica–incapacidade temporária para o trabalho–com início em 3-1-2019 e termo previsto em 17- 3-2019.
26. Tendo o filho do Autor nascido antes desse termo previsto, em 8 de Março de 2019.
27. O Autor não pôde apoiar a sua mulher até à data do nascimento do seu filho uma vez que ainda se encontrava debilitado e em recuperação das lesões do acidente.
28. Foi a sua mulher que, mesmo estando numa situação de incapacidade temporária para o trabalho que teve de ajudar o Autor no seu dia-a-dia.
29. Quando o seu filho nasceu, e até Maio de 2019, o Autor ainda se encontrava impedido de tocar com o pé direito no chão, continuando a ter de recorrer a canadianas e privado de desenvolver a sua rotina diária.
30. Uma vez que se encontrava sem mobilidade e com dores persistentes, não pode acompanhar o nascimento e primeiros meses da vida do seu filho.
31. A mulher do Autor teve de arcar com a execução de todas as tarefas diárias inerentes a um recém-nascido, acrescidas ainda de todas as ajudas que teve de prestar ao Autor.
32. Circunstância que afectou o estado emocional e psíquico do Autor, retirando-lhe a alegria e o desejo de viver.
33. A perna direita do A. passou a apresentar várias cicatrizes, algumas das quais com alteração de sensibilidade ao toque.
34. O autor diminuiu a dorsiflexão do tornozelo direito, e padece de um défice de rotação externa da anca direita.
35. O Autor continua com falta de força na perna direita.
36. O que obriga a cuidados redobrados e de protecção da parte inferior da perna para evitar contactos.
37. Por força das lesões e sequelas acimas descritas, emergentes do acidente de viação, o Autor sofreu afectação quanto às suas actividades lúdicas porque ficou reduzida a sua mobilidade e capacidade para realizar alguns movimentos com a perna direita.
38. O que o impede de livremente manifestar ou exercer certas actividades desportivas, o que fazia regularmente antes do acidente.
39. O Autor não consegue ajoelhar-se ou estar na posição de cócoras sem que lhe cause dor.
40. Por força das lesões e sequelas acimas descritas, emergentes do acidente de viação, o A. ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, com repercussão nas actividades familiares e sociais, fixável em 3 pontos percentuais.
41. Por força das lesões e sequelas descritas sofridas pelo A. por força do acidente de viação o A. sofreu dores fixáveis em grau 4 numa escala de sete pontos de gravidade crescente.
42. Por força das lesões e sequelas descritas sofridas pelo A. por força do acidente decorreu dano estético permanente (correspondente à repercussão das sequelas, numa perspectiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afectação da imagem do A., quer em relação a si próprio, quer perante os outros) fixável no grau 2 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
43. Por força das lesões e sequelas descritas sofridas pelo A. por força do acidente adveio uma repercussão permanente nas actividades desportivas de lazer fixável no grau 2 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
44. O Autor sentiu pânico ao ver o “LB” dirigir-se na sua direcção sem que nada pudesse fazer para o impedir, o que o fez temer pela sua vida, e ainda hoje o atormenta em pesadelos.
45. O Autor à data do acidente era técnico de computadores na empresa “C..., Lda.”, na qual auferia o vencimento base de 756,72 € (setecentos e cinquenta e seis euros e setenta e dois cêntimos), acrescido de subsídio de alimentação.
46. Em resultado do acidente teve de cessar essa actividade na empresa onde trabalhava uma vez que o trabalho implicava que o Autor se mantivesse em pé durante várias horas seguidas, o que o mesmo não conseguia por lhe ser muito doloroso.
47. A alteração da sua condição física e redução de mobilidade do membro tem reflexo futuro e permanente na sua vida e na sua futura actividade profissional, representando uma diminuição na sua qualidade de vida e redução na sua capacidade de desempenho profissional.
48. O que configura um dano patrimonial futuro, de que o A. foi já indemnizado no âmbito do processo n.º 21317/19.5T8PRT, que correu termos pela Procuradoria do Juízo de Trabalho do Porto.
49. No âmbito de (auto de) conciliação ocorrida no dia 6 de Outubro de 2021, ascendo o capital de remição ao valor de 6.481,52 €;
50. Pois que o sinistro em causa foi igualmente qualificado como acidente de trabalho, por ocorrer quando o Autor se deslocava do local de trabalho para a residência no final do dia de trabalho.
51. No decurso da acção referida foi atribuída ao Autor uma incapacidade permanente parcial de 3,9600% tendo em conta a tabela nacional de incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.
52. O Autor dependeu do uso de uma andadeira nas primeiras semanas após alta hospitalar, em virtude de não conseguir deslocar-se sem apoio, tendo despendido o valor de € 32,77 (trinta e dois euros e setenta e sete cêntimos) para a sua aquisição.
53. O Autor nasceu em .../.../1987.
54. O proprietário do veículo “LB”, à data do acidente, mantinha transferida a responsabilidade pelo risco de danos causados a terceiros com a circulação do mesmo para a ora Ré, por via de um contrato de seguro válido, titulado pela Apólice n.º ...10.
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Factos não provados:
Não se provou que:
a) Na sequência do acidente de viação, devido a toda a aflição que sofreu, a mulher do Autor ficou na condição de grávida de risco.
b) Que o Autor continua a claudicar da marcha.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber os montante indemnizatórios fixados pelo tribunal recorrido relativos quer ao dano biológico quer aos danos patrimoniais se encontram, ou não, correctamente fixados.
1- A questão do dano biológico
Como se evidencia da decisão recorrido o tribunal fixou, a este nível, o montante indemnizatório de €15.000,00.
Deste montante dissente a apelante alegando, desde logo, que o tribunal recorrido devia ter abatido a esse montante o valor recebido pelo Autor na acção laboral.
Será que assim devia ter procedido o tribunal recorrido?
No segmento indemnizatório aqui em apreciação movemo-nos no âmbito do que a jurisprudência e a doutrina têm apelidado de dano biológico ou fisiológico, que constitui, no fundo, um dano à saúde, violador da integridade física e do bem-estar físico, psíquico e social.
A jurisprudência, de forma maioritária, tem vindo a considerar este dano biológico como sendo de cariz patrimonial e, por isso, indemnizável nos termos do artigo 564.º, nº 2 do Cód. Civil.
Tem-se afirmado que a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, porque determinante de consequências negativas ao nível da sua actividade geral, justifica a sua indemnização no âmbito do dano patrimonial.
Em abono deste entendimento, a tónica é posta nas energias e nos esforços suplementares que uma limitação funcional geral implicará para o exercício das actividades profissionais do lesado, destacando-se que uma incapacidade permanente parcial, sem qualquer reflexo negativo na actividade profissional do lesado e no seu efectivo ganho, “se repercutirá, residualmente, em diminuição da condição e capacidade física e correspondente necessidade de um esforço suplementar para obtenção do mesmo resultado”.
Porém, outros entendem, como por exemplo no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/10/2009, que também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.
Escreveu-se o seguinte neste aresto:
“Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso com o decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos (…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.
E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.
Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta direta–ou indiretamente–no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente, numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.
Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.
A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão origina, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial”.
Sustentam outros ainda que o dano corporal ou dano à saúde deve ser reconhecido como dano autónomo, verdadeiro “tertium genus” de natureza específica, com um lugar próprio que não se esgota nem é assimilado pela dicotomia clássica entre o que é patrimonial e o que não é patrimonial, impondo-se como uma realidade digna de reparação autónoma.
Entendimento este a que não são alheias as grandes dificuldades e delicadíssimos problemas suscitados pela determinação e avaliação das consequências pecuniárias e não pecuniárias do dano corporal no quadro da distinção dano patrimonial/dano não patrimonial.
Concretamente, quanto à indemnização de perdas patrimoniais futuras, a título de lucros cessantes, lembra-se que o lesado terá que provar a subsistência de sequelas permanentes que se repercutem negativamente sobre a sua capacidade de trabalho, destacando-se que a avaliação e reparação das chamadas pequenas invalidades permanentes se deve confinar à área do chamado dano corporal ou dano à saúde.
Como quer que seja, independentemente da sua integração jurídica nas categorias do dano patrimonial ou do dano não patrimonial-ou eventualmente como tertium genus, como dano de natureza autónoma e específica, por envolver prioritariamente uma afetação da saúde e plena integridade física do lesado-, o certo é que a perda genérica de potencialidades laborais e funcionais do lesado constitui inequivocamente um dano ressarcível, englobando-se as sequelas patrimoniais da lesão sofrida seguramente no domínio dos lucros cessantes, ressarcíveis através da aplicação da denominada teoria da diferença.
Ora, a posição maioritária, que também sufragamos, vem considerando que este dano deve ser calculado como se de um dano patrimonial futuro se tratasse: há uma perda de utilidade proporcionada pelo bem corpo, nisso constituindo o prejuízo a indemnizar, irrelevando para este efeito o facto de as lesões sofridas pelo demandante não terem implicado, de forma imediata, a perda de rendimento.
Neste conspecto, a casuística que sufraga tal posição vem recorrentemente enfatizando que a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento do trabalho, releva para efeitos indemnizatórios– como dano biológico/patrimonial-porque é determinante de consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado e, especificamente da sua atividade laboral, designadamente num jovem, condicionando as suas hipóteses de emprego, diminuindo as alternativas possíveis ou oferecendo menores possibilidades de progressão na carreira, bem como uma redução de futuras oportunidades no mercado de trabalho, face aos esforços suplementares necessários para a execução do seu trabalho.
Evidentemente que casos há em que as lesões físicas não causam nenhum acréscimo, para o lesado, de esforço na actividade profissional que ele exerce. Uma ligeira desvalorização no plano físico, mesmo que relacionada com a mobilidade, não tem para um lesado que desenvolve uma actividade profissional sedentária e marcada pelo esforço intelectual, qualquer repercussão nesta.
Por isso, em certas situações justifica-se que, apesar da comprovada desvalorização do lesado no plano físico em consequência do acidente, o dano correspondente seja ressarcido apenas no plano não patrimonial, por este não se repercutir, directa ou indirectamente, na sua situação profissional, tanto em termos de remuneração como de carreira.
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Postas estas considerações e respeitando-se entendimento diverso, nada temos a censurar à decisão recorrida quando enveredou pela não dedução do valor recebido pelo Autor a nível laboral no quantum fixado pelo dano biológico.
Sob este conspecto está provado o seguinte:
“- o A. foi já indemnizado no âmbito do processo n.º 21317/19.5T8PRT, que correu termos pela Procuradoria do Juízo de Trabalho do Porto;
- No âmbito de (auto de) conciliação ocorrida no dia 6 de Outubro de 2021, o capital de remição ascendeu ao valor de 6.481,52 €;
- Por o sinistro em causa ter sido qualificado como acidente de trabalho” (cfr. pontos 48. a 50. dos factos provados).
Ora, esta responsabilidade objetiva do dano reparável no caso de responsabilidade sem culpa do empregador por um acidente de trabalho não segue o princípio da reparação integral do dano sofrido pelo lesado, como prevê o artigo 562.º do CCivil.
Com efeito, os danos a indemnizar pelo acidente de trabalho encontram-se limitados, só existindo reparação nos termos previstos pela Lei dos Acidentes de Trabalho (artigos 1.º e 2.º da LAT).
Portanto, no âmbito laboral, a reparação em dinheiro (art. 47.º da LAT) apenas visa satisfazer os danos patrimoniais corporais resultantes da extinção ou redução- ainda que temporária-da capacidade de trabalho ou de ganho e com os seguintes limites: nas prestações por indemnizações temporárias e/ou indemnização em capital e pensão por incapacidade permanente para o trabalho: a) pelo coeficiente de incapacidade sofrido pelo sinistrado; b) com reporte a uma percentagem da retribuição (art. 48.º n.ºs 1, 2, 3, als. a) a e), da LAT).
Significa, portanto, que não são indemnizáveis em direito laboral os danos não patrimoniais, como sejam o dano de sofrimento, o dano estético (exceto se tiver repercussões na perda da capacidade de trabalho ou de ganho) e outros danos patrimoniais diretos como sejam a perda de vestuário, telemóvel, automóvel, motociclo, capacete (danos materiais sofridos pelo trabalhador em coisas que são propriedade sua), embora inclua próteses, óculos, cadeira de rodas, perna artificial e, mesmo, o dano biológico na sua vertente patrimonial [cfr. arts. 25.º, n.º 1, al. g), 41.º e 43.º todos da LAT].
Por, assim ser, o art. 17.º da LAT preceitua:
1 - Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais.
2 - Se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
3 - Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante.
4 - O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.
5 - O empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.
Mantém aqui, pois, plena validade o ensinamento de Vaz Serra quando este propósito refere: “A solução de que as indemnizações por acidentes simultaneamente de viação e de trabalho se não cumulam e apenas se completam até ao ressarcimento total do dano causado ao lesado é manifestamente exacta, pois a finalidade da indemnização é reparar o prejuízo causado ao lesado e não atribuir a este um lucro”.[1]
Por isso se diz que as indemnizações fixadas em cada uma dessas jurisdições (civil e laboral) não se sobrepõem, completam-se. As indemnizações são independentes e dessa independência decorre que o tribunal em que for formulado o pedido de indemnização exerce a sua jurisdição em plenitude, decidindo e apurando, sem limitações, a extensão dos danos, e deixando ao critério do lesado a opção pela que melhor lhe convenha, devendo, porém, acrescentar-se que os danos não patrimoniais não entram no cômputo da indemnização laboral.
Daqui decorre que são de considerar como danos diferentes o que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que, embora não determinem perda de rendimento laboral, envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente.
Deste modo, não existe na situação vertente uma duplicação de indemnizações em favor do Autor susceptível, como tal, de provocar um injustificado enriquecimento deste.
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Alega depois a apelante que, mesmo que se assim não se entenda, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que fixe o quantum indemnizatório a atribuir a este título, num montante não superior a €10.000,00, porquanto o valor fixado de €15.000,00 revela-se desajustado e desproporcional, face às decisões da jurisprudência.
Quid iuris?
Assentando-se, como supra já se referiu, na qualificação do aludido dano como dano patrimonial futuro, debrucemo-nos agora sobre as particularidades do caso concreto no concernente à determinação do respetivo quantum indemnizatório.
Como deflui do regime vertido nos artigos 564.º e 566.º, nº 3 do CCivil, o princípio geral a presidir à tarefa de determinação desse quantum deve assentar em critérios de equidade, sendo tal noção absolutamente indispensável para que a justiça do caso concreto funcione, devendo, assim, ser rejeitados puros critérios de legalidade estrita.
No entanto, a equidade não corresponde a arbitrariedade. Por isso, de há longo tempo, a jurisprudência, num esforço de clarificação na matéria, tem procurado definir critérios de apreciação e de cálculo do dano em causa, assentando fundamentalmente nos seguintes parâmetros-força:
1ª) A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendi­mento que a vítima não auferirá e que se extingue no final do período provável de vida;
2ª) No cálculo desse capital interfere necessariamente, e de forma decisiva, a equidade, o que implica que deve conferir-se relevo às regras da experiência e àquilo que, segundo o curso nor­mal das coisas, é razoável;
3ª) As tabelas financeiras por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equi­dade;
4ª) Deve ponderar-se o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que per­mitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, haverá que considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia;
5ª) E deve ter-se preferencialmente em conta, mais do que a esperança média de vida ativa da vítima, a esperança média de vida, uma vez que, como é óbvio, as necessidades básicas do lesado não cessam no dia em que deixa de trabalhar por virtude da reforma (em Portugal, no momento presente, a esperança média de vida dos homens já se aproxima dos 78 anos, e tem tendência para aumentar).
Acolhendo tais directrizes e regressando ao caso dos autos, importa, desde logo, respigar o seguinte quadro factual:
“- O A., à data do acidente, tinha 31 anos de idade;
- Por força das lesões e sequelas acimas descritas, emergentes do acidente de viação, o A. ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, com repercussão nas actividades familiares e sociais, fixável em 3 pontos percentuais (cfr. pontos 40. e 53. dos factos provados).
Antes, porém, de avançarmos na determinação do montante indemnizatório referente ao dano em causa cumpre salientar que o dano biológico não reporta unicamente à perda de rendimentos profissionais futuros.
Na verdade, o dano aqui em apreciação também abarca a diminuição da capacidade do lesado para o exercício das tarefas da sua vida pessoal (familiares e sociais) como é aqui o caso.
Com efeito, tal como decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/07/2019[2], ”o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado–embora não determinem perda de rendimento laboral-envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente.” (negrito nosso).
No mesmo sentido Acs. STJ de 03/11/2016[3], em cujo sumário se pode ler “O dano biológico perspetivado como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre, é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial” (negrito nosso), 17/12/2019[4], e de 14/12/2017.[5]
Portanto, o que daqui resulta claro no que se refere a este de dano (biológico) é o acolhimento por parte da jurisprudência de a um reconhecido dano corporal corresponder, de acordo com a sua gravidade, um crédito indemnizatório, independentemente de este ter tradução direta ou não na perda de rendimentos laborais, porquanto sempre implicará e na medida da sua gravidade uma diminuição das competências sociais e em família e mesmo funcionais de cada indivíduo, com reflexos maiores ou menores dependendo de cada caso, não só na sua inserção social e familiar como na sua capacidade produtiva e de como, nestes vários contextos, terá o lesado de superar ou suportar as suas limitações com maior esforço e/ou penosidade.
Importa, por outro lado, enfatizar que a propósito do factor rendimento, alguma jurisprudência[6] vem considerando que nos casos, como o presente, em que não há (imediata) perda de capacidade de ganho, não existindo, como não existe, qualquer razão para distinguir os lesados no valor base a atender, deverá usar-se, no cálculo do dano biológico, um valor de referência comum sob pena de violação do princípio da igualdade, já que só se justificará atender aos rendimentos quando estes sofram uma diminuição efetiva por causa da incapacidade, por só aí é que o tratamento desigual dos lesados terá fundamento.
Em busca do tratamento paritário, no cálculo que efetue, o julgador terá que partir de uma base uniforme que possa utilizar em todos os casos, para depois temperar o resultado final com elementos do caso que eventualmente aconselhem uma correção, com base na equidade.[7]
Com efeito, a integridade psicofísica é igual para todos (artigos 25.º, nº 1, da CRPortuguesa e 70.º, nº1, do Código Civil) de modo que, no cálculo da indemnização, não deve ser relevada a situação económica do lesado, sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, nº 1 e nº 2 da Constituição.
O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho, determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as actividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para quem exerce um profissão remunerada com €5.000,00 ou com €500,00 sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano.
Fazer interferir o valor do salário de cada um ou o do salário mínimo nacional quando o lesado não exerce ou não tem profissão, pode até, a nosso ver gerar situações injustas.
A Portaria 377/2008 de 26 de Maio faz consignar o montante da remuneração mínima mensal garantida como valor para efetuar o cálculo do dano biológico.
Ora, considerando que o legislador faz interferir o salário como elemento fundamental para o cálculo da indemnização, temos então como mais correto que se pondere, para o efeito, o valor do salário médio nacional e não a remuneração mínima mensal garantida.
A informação estatística da base de dados da Pordata, em Portugal, in www.pordata.pt indica que o ordenado médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano de 2018 (não há valores para os anos posteriores) foi de €1.212,00.
Este valor é então um dos elementos a ponderar para o cálculo da indemnização do dano biológico, havendo também que considerar a idade do lesado, que era no caso de 35 anos à data do acidente e o grau de desvalorização ou incapacidade que é de 3 pontos.
Como assim, tendo por referência um rendimento anual de €16.968,00 (€943,00x14) a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida do lesado, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa), com uma dedução que razoavelmente se pode estimar em 1/4, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital.[8]
De acordo com os enunciados fatores, considerando que o autor ficou afetado de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, temos que a perda patrimonial anual corresponde a €826,56 [(€943.000,00 x 14) x 3%], o que permitiria alcançar, ao fim de 47 anos de vida (considerando-se, neste ponto, que à data do acidente o autor contava 31 anos de idade e que a sua esperança média de vida se situa nos 78 anos de idade), o montante de €38.848,32, apurando-se um valor de €29.131,12 após se operar o apontado desconto de ¼.
Isto dito importa ainda, para se atingir a solução que, neste caso, se haja de considerar como a mais equitativa, apelar à jurisprudência que se vem pronunciando sobre situações com alguma similitude.
Constata-se assim o seguinte:
- Com uma incapacidade avaliável em 3 pontos, a um lesado com a idade de 40 anos foi fixada a indemnização por dano biológico em 8.000,00€;
- Com uma incapacidade de 4 pontos, a uma lesada de 73 anos foi fixada a indemnização por dano biológico em 2.500,00€;
- Com uma incapacidade de 4 pontos, a uma lesada de 78 anos foi fixada a indemnização respectiva em 8.000,00€;
- Com uma incapacidade de 5 pontos, a um lesado de 36 anos fixou-se indemnização aproximada a 12.000,00€;
- Com uma incapacidade de 5 pontos, a um lesado de 39 anos, também motorista, foi fixada a indemnização de 12.500,00€;
- Com uma incapacidade de 6 pontos, a uma lesada de 46 anos, que auferia rendimento mensal médio bruto de aproximadamente 7.500,00€, foi fixada a indemnização pelo dano biológico em 55.000,00€;
- Com uma incapacidade de 6 pontos, a um lesado de 44 anos, que auferia rendimento mensal global de 3.100,00€, foi fixada a indemnização pelo dano biológico em 25.000,00€;
- Com uma incapacidade de 8 pontos, a um lesado de 42 anos foi arbitrada a indemnização de 12.000,00€;
- Com uma incapacidade de 8 pontos, num lesado de 49 anos foi fixada a indemnização de 20.000,00€
- Com uma incapacidade de 7 pontos, num lesado de 39 anos foi fixada a indemnização de 15.000,00€.[9]
Como assim, sopesando o quadro factual apurado, relevando especialmente que as sequelas sofridas pelo Autor embora compatíveis com o exercício da actividade habitual, implicam esforços suplementares, o montante fixado pelo tribunal recorrido é justo e equilibrado, quer na vertente da justiça do caso concreto, quer na ótica da justiça comparativa, aliás, o que se pode dizer é que ele ficou à quem da fórmula de cálculo por nós utilizada e atrás transcrita.
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2- A questão dos danos não patrimoniais
Na decisão recorrida fixou-se a este nível o montante de €15.000,00.
Deste valor discorda também a apelante.
Alega, desde logo, que também aqui houve uma duplicação de indemnizações, uma vez que o valor fixado a título de dano biológico, o foi na vertente não patrimonial, tendo-se entrado para linha de ponderação com a dor e o sofrimento do Autor o que, também a este título, se pretende indemnizar.
Dúvidas não existem de que a indemnização pelo dano biológico na vertente de dano patrimonial futuro, não pode ser também indemnizado autonomamente como dano biológico a se.
Com efeito, não se pode indemnizar duas vezes a mesma coisa.
A indemnização emergente de acidente de viação não visa um enriquecimento ilegítimo à custa do lesante mas, antes, a reparação do dano causado.
Todavia, a referência doutrinal e jurisprudencial ao dano biológico não tem visado esse desiderato.
O que nela se tem discutido, como supra se referiu, é a questão de saber se esse dano deve ser indemnizado a título de dano não patrimonial ou a título de dano patrimonial, quando se verifica que a incapacidade permanente parcial não implica uma perda de ganho do rendimento auferido.
No entanto, ninguém defende que o dano biológico seja indemnizado autonomamente, para além da indemnização da perda de ganho, porque isso seria uma duplicação indemnizatória, violadora da lei e dos princípios de equidade que presidem à fixação do montante indemnizatório em causa.
Acontece que, lendo a decisão recorrida dela resulta, sem margem para qualquer tergiversação, que o dano biológico foi valorado apenas na vertente de dano patrimonial futuro.
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Alega depois a recorrente que o valor fixado para este tipo de danos se revela excessivo, devendo ser reduzido para o valor de € 10.000,00.
Que dizer?
Os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando pela sua gravidade, merecerem a tutela do direito, conforme o artigo 496.º, nº 1, do C. Civil, consequência do princípio da tutela geral da personalidade previsto no artigo 70.º do mesmo diploma legal.
A gravidade mede-se por um padrão objectivo, conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias concretas; por outro lado, aprecia-se em função da tutela do direito. Neste caso o dano é de tal modo grave que justifica a concessão da indemnização pecuniária aos lesados.
Existem danos não patrimoniais sempre que é ofendido objectivamente um bem imaterial, cujo valor é insusceptível de ser avaliado pecuniariamente. Nestes casos, a indemnização visa proporcionar ao lesado “uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível) que lhe permita obter prazeres ou distracções-porventura de ordem espiritual-que, de algum modo, atenuem a sua dor”.[10]
E, o montante da indemnização, nos termos dos artigos 496.º, nº 3 e 494.º do Código Civil, será fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante às demais circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa, bem como aos critérios geralmente adoptados pela jurisprudência e às flutuações do valor da moeda.[11]
No caso que nos ocupa, o dano violado foi a integridade física do Autor, que viu o acidente causar-lhe danos corporais que deixaram sequelas.
Assim releva no prisma–danos não patrimoniais–a seguinte factualidade:
- Como consequência do embate, o A. sofreu ferimentos que resultaram em: fractura diáfise do fémur direito; fractura exposta, dos ossos da perna direita “Grau I Gustillo”; fractura do calcâneo do pé direito, internamento hospitalar no serviço de ortopedia do Hospital 1...; e uma intervenção cirúrgica, a 02/01/2019 para encavilhamento fémur direito e da tíbia direita;
- Em consequência dos ferimentos causados no Autor pelo referido acidente de viação, o mesmo foi submetido a internamento hospitalar por um período de 7 (sete) dias, entre o dia 02/01/2019 e 09/01/2019, recebendo alta médica em 09/01/2019;
- Após alta hospitalar, o Autor passou a ser seguido pelos serviços do Hospital 2..., comparecendo a consultas regulares entre 11/01/2019 e 16/10/2019, como decorre do teor dos documentos incorporados como;
- O Autor teve de passar a frequentar sessões de recuperação fisiátrica para recuperar a mobilidade da perna direita, durante um período de nove meses;
- Mesmo depois de ter recebido a alta hospitalar, o Autor continuou a manter a sua mobilidade reduzida, pelo menos até Maio de 2019, continuando a recorrer ao uso de “canadianas” para se poder deslocar;
- Bem como a depender da ajuda de terceiros para a realização de algumas tarefas quotidianas, nomeadamente para tomar banho, para vestir ou calçar e até para o transportar nas suas deslocações à fisioterapia;
- O que representou para o Autor uma profunda alteração do seu modo e estilo de vida pois o Autor, desde a data do acidente (02/01/2019) até, pelo menos finais de Outubro de 2019, esteve privado da sua autonomia e deixou de viver o seu quotidiano como até então o vinha a fazer, vendo-se, por isso, o Autor privado de desenvolver com normalidade a sua rotina diária que até à data do acidente mantinha;
- Em virtude do acidente, o Autor sofreu dores, as quais persistiram com especial acentuação durante o primeiro mês e que o inibiam de realizar qualquer tipo de movimentos,
- Durante os primeiros dias subsequentes ao acidente, o Autor padeceu de dores agonizantes;
- Tendo o filho do Autor nascido em 8 de Março de 2019, o Autor não pôde apoiar a sua mulher até à data do nascimento do seu filho uma vez que ainda se encontrava debilitado e em recuperação das lesões do acidente;
- Foi a sua mulher que, mesmo estando numa situação de incapacidade temporária para o trabalho que teve de ajudar o Autor no seu dia-a-dia;
- Quando o seu filho nasceu, e até Maio de 2019, o Autor ainda se encontrava impedido de tocar com o pé direito no chão, continuando a ter de recorrer a canadianas e privado de desenvolver a sua rotina diária;
- Uma vez que se encontrava sem mobilidade e com dores persistentes, não pode acompanhar o nascimento e primeiros meses da vida do seu filho, circunstância que afectou o estado emocional e psíquico do Autor, retirando-lhe a alegria e o desejo de viver;
- A perna direita do A. passou a apresentar várias cicatrizes, algumas das quais com alteração de sensibilidade ao toque;
- Por força das lesões e sequelas sofridas pelo A. por força do acidente de viação o A. sofreu dores fixáveis em grau 4 numa escala de sete pontos de gravidade crescente;
- E decorreu para o A. dano estético permanente (correspondente à repercussão das sequelas, numa perspectiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afectação da imagem do A., quer em relação a si próprio, quer perante os outros) fixável no grau 2 numa escala de sete graus de gravidade crescente;
- O Autor sentiu pânico ao ver o “LB” dirigir-se na sua direcção sem que nada pudesse fazer para o impedir, o que o fez temer pela sua vida, e ainda hoje o atormenta em pesadelos. “
Importa, por outro lado, sopesar que o acidente foi causado por culpa exclusiva do condutor do LB.
Realçando a componente punitiva da compensação por danos não patrimoniais pronunciam-se no seu ensino os tratadistas.
Assim, Menezes Cordeiro[12] ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”.
Galvão Telles[13] sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima–na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”.
Menezes Leitão[14] realça a índole ressarcitória/punitiva, da reparação por danos morais quando escreve: “assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, de forma a desagravá-la do comportamento do lesante”.
Pinto Monteiro[15], de igual modo, sustenta que, a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um “castigo”, uma “pena para o lesante”.
Por outro lado, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “factie specie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.
Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto, sendo que, nesta ponderação de valores, tem defendido que os montantes não poderão ser tão escassos que sejam objectivamente irrelevantes, nem tão elevados que ultrapassem as disponibilidades razoáveis do obrigado ou possam significar objectivamente um enriquecimento injustificado.[16]
Registe-se, de qualquer modo, que nesta matéria, ao invés de buscar exemplos que possam servir de comparação, entende-se mais significativo salientar que o Supremo Tribunal de Justiça[17] vem acentuando que estando em causa critério de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, como igualmente acentua que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica.
Como assim, sopesando o quadro factual supra exposto entendemos que a compensação por esta categoria de danos fixada pelo tribunal recorrido se revela justa e equilibrada nos termos do artigo 566.º, nº 3 do Cód. Civil.
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Improcede, assim, todas as conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respectivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 05 de junho de 2023.
Manuel Domingos Fernandes
Mendes Coelho
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Cfr. Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-05-1978, RLJ 111, p. 327-331.
[2] Processo nº 1456/15.2T8FNC.L1.S1 in www.dgsi.pt..
[3] Processo 1971/12.0TBLLE.E1.S1, in www.dgsi.pt..
[4] Processo 2224/17.2T8BRG.G1.S1, in www.dgsi.pt..
[5] Processo nº 589/13.4TBFLG.P1.S1 in www.dgsi.pt..
[6] Entre outros, Ac. do STJ de e acórdão do STJ de 26.01.2012 (processo nº 220/2001.L1.S1), onde expressamente se enfatiza que o desenvolvimento da noção do dano biológico em Itália partia, entre outros, do pressuposto da “irrelevância do rendimento do lesado como finalidade da liquidação do ressarcimento, Ac. de Coimbra de 04/06/2013, da Relação de Lisboa de 22/11/2016 (processo nº 1550/13.4TBOER.L1-7), de 25/02/2021 852/17.5T8AGH.L1 e 24/10/2019 processo nº 3570/17.0T8LSB.L1-2 e da Relação do Porto, de 19/03/2018 processo nº 1500/14.0T2AVR.P1.
[7] Cfr. Rita Mota Soares, O dano biológico quando da afetação funcional não resulte perda da capacidade de ganho– o princípio da igualdade, Revista Julgar, nº 33, p. 126.
[8] Tem sido esta a solução preconizada, designadamente, pelo Conselheiro SOUSA DINIS em trabalho publicado na CJ, Acórdãos do STJ, ano V, tomo 2º, págs. 15 e seguintes.
[9] Cfr., entre muitos outros, respectivamente, Acs. Rel. Porto de 20.3.2012, p. 571/10.3 TBLSD.P1, 17.9.2013, proc. 7977/11.9 TBMAI.P1, 7.4.2016, proc. 171/14.9 TVPRT.P1, de 1.7.2013, p. 2870/11.8 TJVNF.P1 de 17.6.2014, proc. 11756/09.5 TBVNG.P1, de 24.2.2015, proc. 435/10.0 TVPRT.P1, de 9.12.2014, proc. 1494/12.7 TBSTS.P1, 10.12.2013, p. 2236/11.0 TBVCD.P1, de 9.12.2014, p. 149/12.7 TBSTS.P1, disponíveis in www.dgsi.pt, e da Rel. Guimarães de 27.2.2012, p. 2861/07.3 TABRG.G1, e de 22.3.2011, p. 90/06.2 TBPTL, da Relação de Lisboa de 24/10/2019 processo nº 3570/17.0T8LSB.L1-2disponíveis www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1972, pág. 375.
[11] Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 484 e 485.
[12] In Direito das Obrigações, 2° vol. pag. 288.
[13] In Direito das Obrigações, pág. 387.
[14] In Direito das Obrigações, vol. I, 299.
[15] In “Sobre a Reparação dos Danos Morais”, RPDC, n° l, 1° ano, Setembro, 1992, p. 21.
[16] Ac. STJ 28.11.2013, Proc. 177/11.0TBPCR.S1, Ac. STJ 07.05.2014, Proc. 436/11.1TBRGR.L1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt
[17] Cfr., por todos, acórdão de 7.12.2011 (processo nº 461/06.4GBVLG.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt.