Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
730/10.9TYVNG-K.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RP20190522730/10.9TYVNG-K.P1
Data do Acordão: 05/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 696, FLS 21-34)
Área Temática: .
Sumário: I - O processo de insolvência constitui um processo de execução universal, em que o administrador da insolvência deve agir de forma criteriosa e ordenada, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhe sejam confiados.
II - O pagamento aos credores pelo produto da massa insolvente, não impede, ao abrigo do regime previsto no art. 59º CIRE, que os credores demandem o administrador da insolvência para ser ressarcidos pelos danos causados com a sua atuação, desde que se demonstre a diminuição da percentagem do crédito que, se não fora o ato lesivo, o prejudicado provavelmente receberia, ou, pelo menos, no agravamento das condições de recebimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Insolv-Indm-AdmJud-730/10.9TYVNG-K.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum, instaurada ao abrigo do disposto no artigo 59º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, por apenso ao processo especial de insolvência n.º 730/10.9TYVNG, em que é insolvente “B…, Lda.”, e em que figuram como:
- AUTOR: C…, S.A., pessoa coletiva número ………, com sede na Avenida …, …, em Lisboa; e
- RÉU: D…, com o NIF ……… e morada profissional na Rua …, n.º …, ….-… …, Vila Nova de Famalicão;
pediu o autor a condenação do réu no pagamento da quantia de €195.526,95, acrescida de juros vincendos à taxa legal, até integral pagamento.
Alegou, para o efeito, que em 19.11.2010 foi proferida sentença que declarou B…, Lda. insolvente, e que ao abrigo do disposto no art. 52º do supra citado diploma legal foi nomeado administrador da insolvência o ora réu; mais alegou que o Banco autor reclamou os seus créditos sobre a insolvente, nos termos do art. 128º do CIRE, no valor global de €4.083.994,94, reportados à data de 8.1.2011, os quais foram devidamente reconhecidos como garantidos por hipotecas quanto aos bens imóveis identificados sob as verbas n.º 2 a 21 do auto de apreensão de bens, na relação de créditos a que alude o art. 129º do referido diploma legal, reconhecimento que se manteve (e graduação) na sentença proferida no competente apenso de reclamação e graduação de créditos, em 12.5.2014, entretanto transitada em julgado.
Alegou ainda que o ora Réu diligenciou pela venda dos indicados imóveis hipotecados através da modalidade de venda em estabelecimento de leilão, fixando os correspondentes valores mínimos de licitação e indicando a sociedade leiloeira “G…” como responsável pela promoção e venda através desse leilão.
A contratação desta sociedade foi levada a cabo por iniciativa do Réu, sem ter previamente comunicado aos autos as respetivas cláusulas contratuais dos serviços a prestar e, ainda, sem autorização por parte da Comissão de Credores, nos termos do art. 161º, n.ºs 1, 2, 3, al. g) e 4, do CIRE. O Autor, enquanto membro da Comissão de Credores, não teve conhecimento de qualquer cláusula contratual atinente a tal contratação.
Mais alegou que antecipando a realização da venda através de leilão, o Autor apresentou proposta de adjudicação dos imóveis a si hipotecados, nos termos do art. 164º do CIRE, ao Réu, na qualidade de administrador da insolvência, antes mesmo da realização do indicado leilão, ou seja, em 10.4.2012; tal proposta foi apresentada “nos termos e sob cominação do art. 164º, n.ºs 3 e 4, do CIRE”, “para aquisição de cada verba 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21 do auto de apreensão (referentes ao “Empreendimento E…”, em Viana do Castelo), pelos valores a seguir indicados (…)”, juntando 19 cheques bancários, destinados a cobrir 20% do valor proposto para cada verba, emitidos à ordem da massa insolvente.
Mais acrescentou que “face ao disposto no art. 164º, n.º 3 do CIRE, o Senhor Administrador da Insolvência, caso não aceite a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior”; pretendeu, assim, o Autor adjudicar os referidos imóveis não no âmbito do leilão que se viesse a realizar, mas sim de acordo com a prerrogativa conferida pelo disposto no n.º 3 do art. 164º do CIRE, a qual permite ao credor garantido propor a aquisição dos bens hipotecados, desde que o preço oferecido seja superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado e que tal proposta seja apresentada junto do administrador da insolvência em tempo útil.
Referiu, ainda, que a apresentação da referida proposta não obstava à realização do leilão para venda dos imóveis, o qual veio efetivamente a ter lugar. Contudo, nenhuma licitação ocorreu nem ali veio a ser apresentada uma qualquer proposta de aquisição dos imóveis, com o que sobrou apenas a proposta de adjudicação do Autor, apresentada fora de qualquer leilão.
Alegou que o Réu celebrou com o Autor duas escrituras públicas de compra e venda, uma em 28.6.2012 e outra em 25.07.2012, onde se procedeu à venda e compra dos imóveis supra referidos e onde expressamente se fez constar, naturalmente, que “não houve intervenção de mediador imobiliário na celebração do negócio aqui titulado” (conforme documentos 4 e 5 juntos).
Não obstante o exposto, após a venda dos imóveis e após inúmeros contactos do Autor junto do Réu a insistir que não considerava a venda dos referidos imóveis como realizada ao abrigo do contrato de prestação de serviços com a leiloeira, este, sem qualquer autorização judicial ou da comissão de credores, pagou-lhe a quantia de €195.526,95, referente ao leilão realizado relativamente aos imóveis sitos em Viana do Castelo (em causa nestes autos) e €234.622,50 referente ao leilão realizado relativamente ao imóvel sito em …, recorrendo para o efeito aos valores que se encontravam depositados à ordem da massa insolvente e que, maioritariamente, haviam sido pagos pelos credores hipotecários como caução nos termos do n.º 4 do art. 164º do CIRE, assinando os respetivos cheques sem contar com a assinatura de qualquer outro membro da comissão de credores, bem sabendo que com tal o Autor não concordava.
Acresce que no apenso da prestação de contas (Apenso F), foi proferida sentença em 21.8.2015, entretanto transitada em julgado, onde se considerou que “independentemente das circunstâncias em que ocorreu a intervenção da leiloeira, o certo é que a remuneração atribuída à mesma é manifestamente desproporcional ao serviço efetivamente prestado. No contexto em causa e tendo em consideração os direitos dos credores sacrificados pelo estado da insolvência da empresa em causa afigura-se-nos que os montantes em causa pagos violam as regras da lealdade processual e configuram um autêntico abuso de direito.”.
Tal recebimento configura uma verdadeira situação de enriquecimento sem causa por parte da leiloeira, pois que nenhuma causa existe que possa justificar tão avultado pagamento por, supostamente, ter promovido e divulgado dois leilões, cujos imóveis foram adjudicados pelos credores hipotecários, sendo certo que tal pagamento nunca foi acordado, aceite e menos ainda autorizado pela Comissão de Credores; deste modo, a atuação do Réu afigura-se violadora do disposto no artigo 161º do CIRE, ao proteger interesses de terceiros ao invés de proteger os interesses da massa insolvente e dos credores da insolvente.
Conclui que ao atuar como atuou, o Réu assumiu a responsabilidade pelo ato cometido e pelos danos que essa conduta acarretou para os credores da insolvência, introduzindo o indicado valor nas contas que apresentou, como se de custos ou dívidas da massa insolvente se tratassem, na tentativa de que as mesmas sejam judicialmente aprovadas nos termos do art. 64º do CIRE. Estes factos mostram-se provados, nos termos da sentença proferida no apenso F (prestação de contas), pelo que têm a força de caso julgado, sendo inegável que a conduta do Réu, enquanto administrador da insolvência, constitui um fator pelo qual deve ser responsabilizado, atendendo ao disposto no n.º 2 do art. 59º do CIRE e artigo 483º do Código Civil. Efetivamente, a ilicitude da sua conduta deriva do incumprimento deliberado do previsto nos artigos 55º, n.º 2 e 5 e no art. 161º, n.ºs 1, 3, al. g) e 4, do CIRE, contribuindo para a lesão dos direitos e interesses do Autor que se encontravam protegidos por tais normativos.
Considerou que o réu agiu com culpa, porquanto sabia e tinha de saber que devia ter agido de outro modo, tendo antes optado por ao arrepio dos seus deveres agir de forma ilegal; assim, ao optar por pagar à leiloeira o valor em apreço, sem qualquer autorização, o Réu, voluntária e conscientemente, impediu o Autor de ser pago pelo produto da venda dos bens que lhe estavam hipotecados na medida do valor entregue àquela, causando-lhe o correspondente prejuízo ou dano patrimonial emergente; na verdade, relativamente ao produto da venda dos imóveis que integram as verbas 2 a 21 do auto de apreensão, o Banco Autor haverá de ser pago logo depois das dívidas da massa insolvente e do crédito do Estado / Fazenda Nacional na parte em que goza de privilégio especial imobiliário – IMI, pelo que, tendo tais imóveis sido vendidos pelo valor global de €3.179.300,00 e sendo o crédito hipotecário reconhecido ao Autor no valor de €4.083.994,94, é inequívoco que o referido produto da venda assegura o pagamento dos citados créditos graduados em primeiro e segundo lugar, mas nunca será suficiente para assegurar o pagamento integral do crédito do Autor, assim se concluindo que o valor indevidamente entregue pelo Réu à leiloeira a título de comissão pela venda daqueles imóveis (€195.526,95), se assim não tivesse acontecido, reverteria na íntegra para o Autor em sede de rateio, neste valor se liquidando o dano causado pelo Réu ao Autor.
Quanto ao nexo de causalidade, é manifesta a sua existência entre a conduta do Réu e o dano sofrido pelo Autor, pois não fosse a ilegítima atuação do Réu, enquanto administrador da insolvência, ao pagar a terceiros o que não podia pagar, aproveitando-se de fundos existentes na conta bancária da massa insolvente, e impedindo o Autor de receber aquilo a que teria direito, jamais se verificaria a produção de qualquer dano, emergindo este da postura irresponsável e ilícita do Réu.
Por fim, alegou que de acordo com o art. 59º, n.ºs 1 e 2, do CIRE, o administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem e ainda pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respetivos direitos e estes resultarem de ato seu. Acresce que notificado judicialmente para repor os valores em apreço nos autos, até à data o Réu não o fez, apresentando a sua recusa através de sucessivas démarches processuais, em claro abuso de direito; por fim, de acordo com o disposto no art. 562º do Código Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, devendo a indemnização ser fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, o que significa, na presente situação, que o Réu deve ser condenado a pagar ao Autor o valor de €195.526,95, por ser este o valor necessário a indemnizá-lo do dano sofrido.
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O Réu citado, contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por exceção suscitou a prescrição do direito do Autor.
Por impugnação alegou, em síntese, que cumpre ao administrador da insolvência tomar a decisão sobre a modalidade da venda e indicar a empresa leiloeira responsável pela venda, sendo certo que foi comunicado ao autor os termos do acordo celebrado com a leiloeira, sendo devida a retribuição pela prestação do serviço, sem que daí resulte a violação de qualquer das obrigações e deveres que se impõem ao administrador da insolvência.
Mais referiu que a sentença proferida em sede de apenso de prestação de contas não releva para o efeito de se apurar a responsabilidade civil do réu.
Pugnou pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.
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O Autor apresentou articulado onde se pronunciou sobre a exceção de prescrição invocada, defendendo a sua improcedência.
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Foi convocada audiência prévia, com vista a permitir às partes pronunciarem-se sobre o desfecho da causa, por se ter entendido que os autos permitiam a prolação de sentença de mérito em sede de despacho saneador.
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Foi então concedida às partes prazo para sobre tal desfecho se pronunciarem, o que o Autor fez em articulado apresentado nos autos em 23.4.2018 e o Réu em articulado apresentado nos autos em 26.4.2018, mantendo ambos as respetivas posições.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Em consequência de tudo o acabado de expor, julga-se a presente ação improcedente e, em consequência, absolve-se o réu do pedido.
Custas a cargo do Autor (art. 527º, n.º 1 e n.º 2, do CPC, ex-vi art. 17º do CIRE)”.
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O Autor veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
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Termina por pedir o provimento do recurso, com revogação da sentença recorrida, substituindo-se a mesma por decisão que condene o réu no pedido em face da matéria de facto dada como provada, ou, caso assim se não entenda, ordene o prosseguimento dos autos para apuramento da factualidade controvertida, ou, caso assim se não entenda ainda, ordene a suspensão dos autos até que se mostre realizado o rateio definitivo nos autos de insolvência.
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O réu D… veio apresentar resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- apurar se ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito, o processo contém desde já os elementos de facto para em sede de saneador proferir decisão sobre o mérito da causa;
- inconstitucionalidade da interpretação defendida na sentença, por violação do art. 20º da CRP;
- mérito da causa.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1.Por sentença proferida em 19.11.2010 nos autos principais, que assumiram o n.º 730/10.9TYVNG, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade “B…, Lda.”, conforme resulta daqueles autos.
2. Na sentença referida em 1 foi nomeado administrador da insolvência o Dr. D….
3. O Sr. Administrador da Insolvência indicado em 2, na sequência da sua nomeação, procedeu à apreensão dos bens da insolvente, entre os quais se encontram os imóveis identificados sob as verbas n.º 2 a 21 do auto de apreensão de bens, constante do apenso A, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
4. O Banco autor reclamou os seus créditos sobre a insolvente, nos termos do art. 128º do CIRE, no valor global de €4.083.994,94, reportados à data de 8.1.2011.
5. Os créditos referidos em 4 foram reconhecidos como garantidos por hipotecas constituídas sobre os bens imóveis identificados sob as verbas n.º 2 a 21 do auto de apreensão de bens, constante do apenso A, na relação de créditos a que alude o art. 129º do referido diploma legal, apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência no apenso B.
6. Por sentença de verificação e graduação de créditos proferida no apenso B, em 12.05.2014, os créditos referidos em 4 foram reconhecidos e qualificados como garantidos, atentas as hipotecas constituídas sobre os bens imóveis identificados sob as verbas n.º 2 a 21 do auto de apreensão de bens, constante do apenso A, tendo sido graduados quanto a estes bens nos seguintes termos:
1º As dívidas da massa insolvente, que saem precípuas, na devida proporção do produto da venda de cada bem imóvel;
2º Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito do Estado / Fazenda Nacional, na parte em que goza de privilégio imobiliário especial – IMI;
3º Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito hipotecário do F…, S.A.; (…).
7. No âmbito da liquidação do activo, que corre termos no apenso A, o Sr. Administrador da Insolvência identificado em 2 procedeu à liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente.
8. No que concerne aos bens referidos em 3, o Sr. Administrador da Insolvência optou por os vender em estabelecimento de leilão, indicando como entidade responsável a sociedade leiloeira “G…”.
9. O leilão organizado pela sociedade leiloeira “G…” relativamente aos bens referidos em 3 teve lugar em 11.4.2012.
10. No referido leilão não foi apresentada qualquer proposta de compra dos imóveis referidos em 3.
11. O Banco Autor, em 10.4.2012, entregou ao Sr. Administrador da Insolvência, aqui Réu, proposta de adjudicação dos imóveis referidos em 3, nos termos do documento junto por cópia a fls. 40 verso e seguintes, acompanhada de 19 cheques bancários, conforme cópias em apreço, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os legais efeitos.
12. Na sequência do referido em 11, o Sr. Administrador da Insolvência indicado em 2, ora Réu, celebrou com o Banco Autor as escrituras de compra e venda, datadas de 28.6.2012 e 25.07.2012, juntas por cópia como documentos 4 e 5 com a petição inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os legais efeitos.
13. No âmbito do apenso de prestação de contas (apenso F), foi proferida sentença em 21.8.2015, onde além do mais se tiveram por assentes os seguintes factos, que aqui igualmente se consideram assentes:
a) A requerente G…, S.A. tratou da divulgação e preparação do leilão, quer do prédio sito no Porto, quer dos prédios sitos em Viana do Castelo.
b) Procedeu à divulgação do leilão através de publicação no jornal de notícias nos dias 24.03.2012 e 31.03.2012.
c) Publicitou o referido leilão na página da Web, desde 20.03.2012.
d) Enviou, a 01.04.2012, e-mail de marketing para 123.000 registos da sua base de dados.
e) Divulgou e preparou o leilão respeitante aos prédios sitos em Viana do Castelo agendado para o dia 11.04.2012 através de publicação no H... nos dias 24.03.2012 e 31.03.2012.
f) Colocou publicidade no local, mediante lonas publicitárias.
g) Procedeu à publicitação do leilão em causa através de publicidade na internet e publicação na página web desde 20.3.2012.
h) Enviou e-mail de marketing em 1.04.2012 e em 9.4.2012 para 123.000 registos da sua base de dados.
i) Realizou iniciativas de apresentação personalizada aos seus melhores clientes e investidores mediante os seus dois colaboradores / comerciais.
j) O acesso ao portal da leiloeira foi de 4.865 visualizações no período que medeia os dias 9 de Março e 11 de Abril.
k) Suportou os salários dos funcionários e prestadores de serviços afetos ao esforço de divulgação e suportou os encargos com deslocações, alugueres de espaço, publicitação na imprensa escrita.
l) Compareceram ao leilão de 04.04.2012 - 18 participantes e ao leilão do dia 11.04.2012 - 26 participantes.
m) Os bens foram adjudicados aos credores hipotecários, à margem dos leilões realizados.
n) O administrador de insolvência procedeu ao pagamento à leiloeira, pela venda do empreendimento de Viana do Castelo, da comissão no valor de 195.526,95€ e procedeu ao pagamento, pela venda do empreendimento de …, da comissão no valor de 234.622,50€.
14. Na sentença referida em 13, foi além do mais decidido que “independentemente das circunstâncias em que ocorreu a intervenção da leiloeira, o certo é que a remuneração atribuída à mesma é manifestamente desproporcional ao serviço efetivamente prestado. No contexto em causa e tendo em consideração os direitos dos credores sacrificados pelo estado de insolvência da empresa em causa afigura-se-nos que os montantes em causa pagos violam as regras da lealdade processual e configuram um autêntico abuso de direito. Aliás, a adjudicação dos bens imóveis em causa ocorreu à margem do leilão e a intervenção da leiloeira não terá tido a anuência dos membros da Comissão de Credores. Impõe-se, por isso, a redução do valor fixado pela prestação do serviço em causa afigurando-se-nos como justo, adequado e proporcional o montante global de 40.000,00€, sendo 20.000,00€ pela preparação de cada um dos leilões.”.
15. A sentença referida em 13 e 14 foi alvo de recurso e transitou em julgado em 31.10.2016.
16. No âmbito do apenso F, o Banco Autor, enquanto membro da Comissão de Credores, foi notificado nos termos do disposto no art. 64º, n.º 1 do CIRE em 5.6.2013, para se pronunciar sobre as contas apresentadas pelo Sr. Administrador da Insolvência.
17. E em 17.6.2013, o Banco Autor apresentou requerimento onde pugnou pela não aprovação da despesa de 195.526,95€, relativa à comissão paga pelo Sr. Administrador da Insolvência à sociedade leiloeira “G…”.
18. A presente ação foi instaurada em 9.8.2017.
19. Por despacho proferido em 17.09.2018, o Sr. Administrador da Insolvência, ora Réu, foi destituído e substituído por outro.
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- Factos não provados
Não se mostram não provados quaisquer factos com interesse para o desfecho da causa.
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3. O direito
Na apreciação das questões, por efeito da sucessão de leis no tempo, cumpre ter presente que o processo de insolvência, ao qual se encontra apensa a presente ação, foi instaurado em 2010, sendo aplicável no caso presente o regime substantivo do direito da insolvência previsto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (que passaremos a designar de forma abreviada “CIRE”) DL 53/2004 de 18/03, na redação do DL 200/2004 de 18/08, com as alterações introduzidas pelo DL 116/2008 de 04/07, DL 185/2009 de 12/08 (art. 12º/1 CC).
As alterações introduzidas pelo DL 79/2017 de 30 de junho apenas serão aplicáveis nas questões estritamente processuais e que não contendam com a relação substantiva.
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O apelante insurge-se contra a decisão recorrida, questionando que os autos contenham todos os elementos de facto para a decisão em sede de saneador, pretendendo que se determine o prosseguimento dos autos para apurar a matéria de facto controvertida ou caso assim se não entenda, se ordene a suspensão dos autos até que se mostre realizado o rateio definitivo nos autos de insolvência.
Trata-se, assim, de apurar se ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito o processo reúne destes já os elementos de facto para a proferir decisão de mérito em sede de saneador.
Dispõe o art. 595º CPC que o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Enquadram-se na previsão da norma as situações em que não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo[2], nomeadamente quando:
- toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita por acordo ou documento;
- quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, por serem manifestamente insuficientes ou inócuos – inconcludência do pedido - para apreciar a pretensão do Autor ou a exceção deduzida pelo Réu;
- quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental[3].
Contudo, naquelas situações limite, em que concluída a fase dos articulados, o juiz conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos, deve fazer prosseguir a ação, ponderando as diversas soluções plausíveis da questão de direito.
O conhecimento do mérito da causa, em sede de saneador, deve reservar-se para as situações em que o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa e que não seja apenas aquela que o juiz da causa perfilha, devendo assim atender-se às diferentes soluções plausíveis de direito, facultando sempre a ampla discussão da matéria de facto controvertida.
Como refere ABRANTES GERALDES, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça: “[a]pesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas”[4].
No caso presente analisados os articulados e ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito, somos levados a considerar que o processo não reúne ainda os elementos de facto necessários para proferir decisão, por se manter controvertida a causa da obrigação de indemnizar e os prejuízos, face ao enquadramento jurídico dos factos expresso nos articulados, o qual pode ser legitimamente defendido.
O Autor-apelante instaurou a presente ação, com fundamento no art. 55º, 59º/1/2 do CIRE e art. 483º CC. Em síntese, considera que o administrador da insolvência não cumpriu com deveres de informação e agiu no interesse de terceiros, preterindo o interesse do credor com garantia real sobre os bens a vender, porquanto promoveu a venda em estabelecimento de leilão sem dar conhecimento à comissão de credores da entidade nomeada para esse efeito e do contrato celebrado, no qual se fixaram os honorários devidos à leiloeira.
Mais defende que o administrador da insolvência atuou em defesa de interesses de terceiros, causando prejuízos aos credores, entre os quais o autor, porque apesar da leiloeira não ter procedido à venda dos bens, os quais foram adjudicados ao autor, sob proposta por si apresentada, enquanto credor hipotecário, o administrador da insolvência pagou a retribuição convencionada com a leiloeira pela realização da venda.
Considera que o valor indevidamente pago - € 195.526,95 -, que saiu do depósito da caução, representa um prejuízo para o autor, porque tal valor se destinava a garantir o pagamento do seu crédito - € 4.083.994,94 -, pois o preço da venda - € 3.179.300,00 - não se mostra suficiente para garantir o pagamento das dívidas da massa insolvente, do crédito das finanças, ambos com preferência, e o seu crédito reconhecido na sentença de graduação de créditos.
Alegou, ainda, que em sede de prestação de contas a despesa apresentada não foi aprovada, fixando-se na sentença uma comissão de € 20.000,00 pelo serviço prestado pela leiloeira. A diferença não foi restituída pelo administrador da insolvência.
O réu apelado impugnou toda a matéria, alegando ter comunicado à comissão de credores os termos do contrato de prestação de serviços celebrado com a leiloeira e que a comissão paga corresponde ao preço convencionado pelo serviço prestado.
O juiz do tribunal “a quo” entendeu que perante os factos alegados pelo autor não assistia ao autor o direito que se arrogava e nesse sentido ouviu as partes.
Proferiu-se sentença que julgou improcedente a ação e em sede de fundamentação de direito considerou-se, como se passa a transcrever:
“Vejamos agora se deve o Réu ser condenado a pagar ao Autor a quantia de €195.526,95, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, vincendos até integral pagamento, quantia esta necessária a indemnizá-lo pelo prejuízo sofrido na sequência do pagamento, por aquele, da indicada quantia de €195.526,95 à leiloeira “G…”, a título de comissão, sem a tal estar autorizado e por tal pagamento não ser devido.
Como sabemos, com a prolação da sentença que declarou insolvente a sociedade “B…, Lda.”, foi nomeado administrador da insolvência o ora Réu D…. Na mesma sentença, foi determinada a imediata apreensão dos bens da insolvente, disso tendo sido encarregue o indicado administrador da insolvência, conforme resulta dos artigos 36º, n.º 1, al. g), 52º, 54º, 149º e 150º, todos do CIRE.
Nessa sequência, o administrador da insolvência procedeu efetivamente à apreensão de bens da insolvente, conforme resulta do facto provado 3, tendo igualmente procedido à sua liquidação e nesse âmbito optado, quanto aos bens referidos em 3, por vendê-los em estabelecimento de leilão, para tal tendo contratado a sociedade leiloeira “G…” (factos provados 7 e 8).
Resulta do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia (art. 158º, n.º 1 do CIRE).
E como é de todos conhecido, o processo de insolvência é um processo de execução universal, cuja finalidade se reconduz à satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência ou, quando tal não se afigure possível, através da liquidação do património do devedor insolvente e subsequente repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º, n.º 1 do CIRE) (sublinhado nosso).
Efetivamente, encerrada a liquidação da massa insolvente, segue-se a distribuição e rateio final, efetuados pela secretaria do tribunal quando o processo é remetido à conta e em seguida a esta (art. 182º, n.º 1 do CIRE).
Deste modo, o património do devedor integra a massa insolvente e o produto da sua liquidação substitui-o. Antes de se proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, o administrador da insolvência deduz da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo (art. 172º, n.º 1 do CIRE), sendo certo que as dívidas da massa insolvente são imputadas aos rendimentos da massa e, quanto ao excedente, na devida proporção, ao produto de cada bem, móvel ou imóvel; porém, a imputação não excederá 10% do produto de bens objeto de garantias reais, salvo na medida do indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos (n.º 2 do preceito em apreço).
No que ao pagamento dos credores garantidos concerne, dispõe o art. 174º do CIRE que sem prejuízo do disposto nos números 1 e 2 do art. 172º, liquidados os bens onerados com garantia real, e abatidas as correspondentes despesas, é imediatamente feito o pagamento aos credores garantidos, com respeito pela prioridade que lhes caiba; quanto àqueles que não fiquem integralmente pagos e perante os quais o devedor responda com a generalidade do seu património, são os saldos respetivos incluídos entre os créditos comuns, em substituição dos saldos estimados, caso não se verifique coincidência entre eles (sublinhado nosso).
Tendo em consideração o exposto, impõe-se ainda salientar que são dívidas da massa insolvente (art. 51º do CIRE), além de outras como tal qualificadas, as custas do processo de insolvência, as remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores, as dívidas emergentes dos atos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente, as dívidas resultantes da atuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções, qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência, qualquer dívida de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração, qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objeto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório, as dívidas constituídas por atos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes, as dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente, a obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do art. 93º.
Tendo presente o ora exposto, não há dúvida que o património do devedor, com a declaração de insolvência, integra a massa insolvente e o produto da sua liquidação substitui-o.
No caso dos autos, com a declaração de insolvência da devedora B…, Lda., o seu património, apreendido pelo Sr. Administrador da Insolvência, passou a integrar a massa insolvente; e o produto da sua liquidação substituiu tal património, integrando igualmente a massa insolvente.
Assim, com a venda dos bens apreendidos e supra referidos em 3, à semelhança do que sucedeu com a venda dos demais bens apreendidos para a massa insolvente, o produto de tal venda integrou a massa insolvente e não o património de qualquer credor, nomeadamente do credor garantido, ora Autor.
Na verdade, o facto de o aqui Autor ser um credor cujo crédito sobre a insolvência se encontra garantido por hipoteca constituída sobre os referidos bens (no ponto 3), tendo visto o seu crédito graduado para ser pago pelo produto destes bens logo após o pagamento das dívidas da massa insolvente, que saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada imóvel, e do crédito do Estado / Fazenda Nacional, na parte em que goza de privilégio imobiliário especial – IMI, não lhe dá o direito de ver transferido o produto da liquidação destes bens (logo após a liquidação) para o seu património (e por não o ter sido, qualificá-lo como prejuízo seu); dito de outro modo, o facto de o Autor ser um credor cujo crédito se encontra garantido por hipoteca constituída sobre os referidos bens não permite que o produto da sua liquidação ingresse de imediato ou automaticamente no seu património, caso em que o pagamento de despesas da liquidação destes bens não aprovadas se traduziria num prejuízo para si.
O produto da liquidação destes bens é (crédito) da massa insolvente, tal como as despesas com a liquidação destes bens são dívida da massa insolvente, como vimos supra.
Só em sede de rateio (o qual tem lugar apenas após o pagamento das custas e das dívidas da massa insolvente) é que as operações de pagamento serão efetuadas, sem prejuízo do disposto no art. 174º do CIRE, de acordo com o qual o pagamento aos credores garantidos pode ser efetuado logo após a liquidação dos bens dados em garantia, sem prejuízo do disposto no art. 172º, n.ºs 1 e 2 e abatidas as correspondentes despesas.
Deste modo, ainda que indiretamente se possa considerar um prejuízo do credor garantido, quando as despesas com a liquidação dos bens onerados com a garantia excedam as devidas, o prejuízo é sempre e diretamente da massa insolvente, na medida do supra exposto: os bens apreendidos integram a massa insolvente e o produto da sua liquidação substituiu-o, sendo certo que de igual modo as despesas da liquidação são dívidas da massa insolvente e não dos credores garantidos.
Acresce, como vimos também, que o prejuízo (da massa insolvente) a considerar, atento o decidido no apenso F, sempre haverá que ser reduzido a €175.526,95.
No seguimento do exposto, entende-se que o valor referido nos autos, de €195.526,95, pago pelo Sr. Administrador da Insolvência à leiloeira “G…” (ponto 13, n) dos factos provados), sem prejuízo da sentença já proferida no apenso F, onde se considerou devido e correcto um pagamento apenas no valor de €20.000,00, é uma dívida da massa insolvente e, não tendo sido aprovado na sua íntegra, é crédito da massa insolvente e não do credor garantido, ainda que, a seu tempo, possa todo este valor ou parte dele vir a ser entregue ao credor garantido, ora Autor, por via do rateio a realizar.
Sendo este o nosso entendimento (o de que o direito invocado pelo Autor nestes autos não lhe pertence, antes pertence à Massa Insolvente), não deixaremos de salientar que de acordo com o n.º 5 do art. 82º do CIRE, “toda a acção dirigida contra o administrador da insolvência com a finalidade prevista na alínea b) do n.º 3 apenas pode ser intentada por administrador que lhe suceda”, sendo certo que esta alínea prevê as “ações destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente”.
De acordo com estes preceitos legais, a legitimidade ativa para a propositura de ação de responsabilidade civil contra o administrador da insolvência, destinada à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, pertence unicamente ao administrador que lhe suceda.
No caso dos autos, porém, o Autor configurou a ação como uma ação de responsabilidade civil destinada à indemnização de um prejuízo próprio e não da generalidade dos credores da insolvência, devendo atender-se à ação tal como proposta pelo Autor para apurar da verificação dos pressupostos processuais. Por essa razão, não entendemos ser o Autor parte ilegítima, mas tão só, não ser o titular do direito que aqui invocou.
Sendo este o nosso entendimento, resta concluir pela improcedência da ação, absolvendo-se o Réu do pedido (na medida em que o direito em causa nos autos não assiste ao Autor, mas à Massa Insolvente)”.
No essencial, na sentença, considerou-se que o valor de €195.526,95, pago pelo Administrador da Insolvência e apelado, à leiloeira “G…” (ponto 13, n) dos factos provados), sem prejuízo da sentença já proferida no apenso F, onde se considerou devido e correto um pagamento apenas no valor de €20.000,00, é uma dívida da massa insolvente e, não tendo sido aprovado na sua íntegra, é crédito da massa insolvente e não do credor garantido, o aqui apelante, admitindo que a seu tempo, possa todo este valor ou parte dele vir a ser entregue ao credor garantido por via do rateio a realizar.
Entendemos que o raciocínio estaria correto se o produto da venda do bem com garantia real se mantivesse na disponibilidade da massa insolvente, pois o valor de € 195.526,95 não foi restituído pelo administrador da insolvência à massa insolvente, nem foi intentada ação de indemnização pelo novo administrador judicial para tutela do interesse dos credores, ao abrigo do art. 82º/3 b)/5 CIRE.
Mas mesmo que assim não seja, entendemos que nada impede que o credor que se vê afetado por ação do administrador da insolvência faça uso da faculdade concedida pelo art. 59º do CIRE para exigir o ressarcimento dos prejuízos sofridos.
Tal como o autor-apelante estruturou a sua pretensão, a ação insere-se no âmbito das ações de indemnização previstas no art. 59º/1 do CIRE, onde se determina que:
“1.O administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado”.
A responsabilidade do administrador da insolvência é apreciada à luz do regime da responsabilidade civil prevista no art. 483º CC, com a especificidade de constituir uma modalidade funcional de responsabilidade, que se fundamenta na violação de deveres postos a cargo do administrador da insolvência na satisfação da missão geral de que está encarregado.
Consideram-se lesados para efeitos de aplicação do regime de responsabilidade previsto no nº1 do preceito o devedor ou o credor da insolvência.
A obrigação de indemnizar com fundamento em responsabilidade do administrador da insolvência pressupõe a verificação dos seguintes pressupostos: “[…]conduta voluntária imputável ao administrador judicial; ilicitude[…]; atuação culposa; e, finalmente, existência de um nexo de causalidade adequada entre o evento produtor e o dano produzido”[5].
A ilicitude traduz-se na violação de deveres impostos ao administrador, acentuando-se o caráter funcional das suas atribuições.
A violação dos deveres do administrador tanto pode traduzir-se numa conduta positiva como num comportamento omissivo. Neste âmbito cumpre convocar os deveres impostos no Código da Insolvência (art. 55º CIRE) e no Estatuto do Administrador Judicial (art. 12º).
No que respeita à culpa a lei estabelece um critério particular da sua apreciação, ao considerar que “a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado”. A lei não estabelece uma presunção de culpa.
Neste âmbito cumpre ter presente que o administrador da insolvência deve orientar a sua atividade no sentido de satisfazer os interesses dos credores[6] e essa atividade se traduzir em regra na administração e liquidação da massa insolvente.
Como salientam CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA “[…]importará é verificar se o ato em apreço se adequa à satisfação dos interesses em causa segundo o critério médio de um administrador diligente, o que se traduzirá essencialmente em avaliar se, nas circunstâncias concretas do agente, o ato em questão era aquele que, de entre os possíveis, melhor se ajustava a assegurar a necessária tutela dos interesses dos credores.[…][I]sto significa ou comporta a necessidade de apreciar se o ato do administrador que é posto em causa se adequou à otimização das possibilidades de pagamento aos credores, seja pela disponibilização de fundos que proporcionou – ou era razoavelmente expetável que pudesse proporcionar -, seja pelas perdas patrimoniais que evitou à massa”[7].
O dano traduz-se na diminuição da percentagem do crédito que, se não fora o ato lesivo, o prejudicado provavelmente receberia, ou, pelo menos, no agravamento das condições de recebimento.
O nexo de causalidade estabelece-se entre o ato do administrador praticado com a violação de deveres que lhe incumbem e o prejuízo do credor.
Recai sobre o lesado o ónus da prova dos pressupostos da obrigação de indemnizar, com fundamento em responsabilidade do administrador da insolvência, à luz do art. 59º/1 CIRE, nos termos do art. 342º/1 CC e art. 487º CC.
Neste quadro legal e ponderando os factos alegados pelo apelante a verificarem-se os pressupostos da responsabilidade os prejuízos repercutem-se diretamente na esfera jurídica do credor, o aqui apelante-autor.
O apelante, credor com garantia hipotecária, viu o seu crédito reconhecido pelo montante de € 4.083.994,94. Os bens objeto de garantia foram adjudicados ao credor pelo preço de € 3.179.300,00. O pagamento do seu crédito (deduzidas as despesas e as dividas da massa insolvente e créditos preferenciais) realiza-se com o produto da venda do bem que estava onerado com a garantia e só na parte em que não obtém pagamento é considerado um crédito comum, cujo pagamento será efetuado juntamente com os demais credores comuns, de forma rateada e com o produto da liquidação dos restantes bens da massa insolvente (art. 173º e art. 174º CIRE).
O depósito-caução efetuado ao abrigo do art. 164º/4 CIRE, ascende a € 635.860,00 (20% do preço). Este depósito visa garantir o pagamento das despesas e do crédito com preferência (crédito da Fazenda Nacional - IMI) em relação ao crédito reclamado. Foi a partir deste depósito que o administrador retirou a quantia de € 195.526,95 para proceder ao pagamento da comissão à leiloeira. Se a comissão arbitrada ascende a € 20.000,00, conforme determinado por sentença com trânsito em julgado, apenas o credor com garantia real fica prejudicado, porque do remanescente do produto da venda dos imóveis com garantia, o credor vai receber menos do que teria direito a receber, já que o pagamento das despesas da massa insolvente estão sempre garantidas e o valor do crédito com preferência também.
A apurarem-se os factos alegados pelo apelante não é a massa insolvente que é diretamente afetada pelo procedimento do administrador, mas a esfera patrimonial do credor com garantia real e nessa medida o administrador da insolvência fica responsável perante o credor pela diferença entre o valor que receberia e aquele que efetivamente lhe será atribuído, na medida em que essa diferença caiba na satisfação do direito de crédito garantido.
Constitui por isso matéria controvertida, face à posição assumida pelas partes nos articulados, apurar da ilicitude da conduta do administrador judicial, culpa e nexo de causalidade, bem como, os prejuízos.
Com efeito, a sentença proferida em sede de apenso de prestação de contas não tomou posição sobre as circunstâncias em que foi celebrado o contrato com a leiloeira, como decorre do ponto 14 dos factos provados. Nessa sentença apenas se cuidou de fixar o valor proporcional e adequado para a remuneração pelo trabalho desenvolvido pela leiloeira.
Por outro lado, está em aberto apurar se efetivamente o apelante sofreria o prejuízo que invoca, pois basta que se demonstre que em relação à diferença que não está coberta pelo preço da venda e por isso, enquanto crédito comum e em concorrência com os demais credores veria o seu crédito integralmente pago, para desta forma não se verificar o prejuízo (o que se nos afigura altamente improvável). De todo o modo, sempre será necessário operar um rateio, ainda que provisório, para apurar o efetivo prejuízo e os dados que constam do processo não permitem nesta fase obter uma conclusão.
Conclui-se perante a matéria de facto alegada e que permanece controvertida, que o processo não contém desde já todos os elementos de facto que possibilite a apreciação da pretensão do autor-apelante à luz do art. 59º/1/2 CIRE, devendo prosseguir os ulteriores termos com enunciação dos temas de prova e diligências de instrução, julgamento e sentença.
Em conformidade com o assim decidido, anula-se a sentença (art. 595º CPC, conjugado com o art. 662º/2 c)/3 b) CPC).
Procedem, em parte, as conclusões de recurso, sob os pontos I a XXVI, considerando-se prejudicada a apreciação das demais questões (art. 663º/2 e art. 608º/2 CPC).
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela parte vencida a final.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar, em parte, procedente a apelação e anular a sentença e determinar o prosseguimento os autos para apreciação da matéria de facto controvertida, alegada na petição, com elaboração dos temas de prova, diligências de instrução, julgamento e sentença.
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Custas a cargo da parte vencida a final.
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Porto, 22 de maio de 2019
(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum-Á luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013pag. 183
[3] Cfr. ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2000, pag. 138.
Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pag. 402.
Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum –À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pag.183 a 186.
[4] Cfr. ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil, ob. cit., pag. 138. Na jurisprudência, entre outros, seguindo esta orientação pode consultar-se o Ac. Rel. Coimbra 23.02.2010, Proc. 254/09.7TBTMR-A.C1 – endereço eletrónico: www.dgsi.pt.
[5] LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2013, pag. 359 (obra que seguimos de perto na análise da natureza e pressupostos da responsabilidade do administrador da insolvência).
[6] Cfr. Acórdão TC 616/2018 de 21 de novembro de 2018, DR 2.ª série — N.º 3 — 4 de janeiro de 2019 e Texto integral do Acórdão disponível no sítio eletrónico do Tribunal Constitucional: tp://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180616.html?impressao=1
[7] LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, ob. cit., pag. 360